sexta-feira, 16 de abril de 2010

Uma nota fora do tom

Uma nota fora do tom: Bento XVI e o Islã

Ao criticar o Islã e citar de forma inapropriada um trecho de carta do imperador cristão bizantino Manuel II, o papa Bento XVI marca uma posição que o diferencia do pontificado anterior, que enfatizava o diálogo inter-religioso.
Faustino Teixeira* - Carta Maior

“Onde numa sociedade o respeito vem violado, algo de essencial se perde”.
J. Ratzinger


O clima de diálogo entre cristianismo e islã, gestado ao longo dos últimos quarenta anos, sofreu uma refração nos últimos dias, em razão de um discurso infeliz proferido pelo papa Bento XVI em sua viagem à Alemanha. Em aula magna realizada na Universidade de Regensburg, no dia 12 de setembro de 2006, visando abordar o tema da fé, razão e universidade, o papa manifesta uma dupla preocupação: com os desdobramentos sombrios da secularização numa Europa cada vez mais “surda” a Deus, e o acirramento dos fundamentalismos religiosos.

O seu objetivo era o de defender a racionalidade do cristianismo e pontuar a necessidade da razão para o equilíbrio da fé. Ao tratar deste tema nas distintas religiões, o papa deteve-se especialmente no islã. Tendo em vista os islamistas radicais, o papa assinala que a jihad islâmica contraria a lógica da razão e suscita a doença mortal do fundamentalismo. Rebate de forma vigorosa o uso da violência para a defesa da fé. E de forma inapropriada, cita em seu discurso um trecho de carta do imperador cristão bizantino Manuel II (séc. XIV), que causou grande reação na comunidade muçulmana internacional. Nesta carta, escrita um pouco depois do autor ter se libertado da corte otomana – em torno do ano de 1391 -, ele relata ao seu interlocutor persa que Maomé defendia “coisas más e desumanas, como sua ordem de divulgar a fé usando a espada”. 

Como mostrou de forma pertinente o editorial do jornal Le Monde, de 16/09/2006, trata-se de um “discurso politicamente incorreto sobre a tentação da violência no islã”, e num momento extremamente delicado da conjuntura internacional: cinco anos depois dos acontecimentos de 11 de setembro, quando ainda persistem ondas de islamofobia por toda parte. Também o editorial do New York Times manifestou preocupação com as palavras do papa em seu discurso na Alemanha, considerando-as “trágicas e perigosas”. Na visão do vaticanista italiano Marco Politi, o ocorrido significou “muito mais do que um incidente de comunicação”. E para o estudioso francês Gilles Kepel, as palavras do papa foram “arriscadas”, na medida em que podem provocar a radicalização de parte da comunidade muçulmana.

Este lamentável episódio, que teve uma imensa repercussão, provocou a necessidade imediata de explicação do Vaticano, que se deu com a declaração do secretário de Estado, Tarcisio Bertone, publicada no jornal L´Osservatore Romano em 17/09, e também com a auto-crítica de Bento XVI durante o Angelus em Castelgandolfo, que declarou estar “profundamente sentido” com as reações ao seu discurso.

Este posicionamento de Bento XVI com respeito ao islã reflete claramente uma nítida mudança com respeito ao pontificado anterior e, quem sabe, uma nova geopolítica do papa Ratzinger nos confrontos do mundo islâmico. A ênfase no diálogo e acolhida inter-religiosa estavam bem presentes com João Paulo II, sobretudo nos gestos realizados nesse sentido, que davam continuidade ao “espírito” que presidiu o memorável encontro inter-religioso de Assis, em 1986. Foi um papa que “teceu uma teia de relações feitas de gestos concretos e visíveis em todo o planeta” (M.Politi). 

Com respeito ao diálogo com os muçulmanos, foram inúmeras iniciativas novidadeiras, como as que ocorreram durante a sua viagem à terra santa (2000) e a visita à mesquita Omíade de Damasco (2001). Vale registrar, em especial, o encontro com os jovens muçulmanos do Marrocos, em agosto de 1985. Em discurso no estádio de Casablanca para cerca de oitenta mil jovens, o papa afirmou: “A Igreja católica olha com respeito e reconhece a qualidade do vosso caminho religioso, a riqueza da vossa tradição espiritual (...). Creio que nós, cristãos e muçulmanos, devemos reconhecer com alegria os valores religiosos que temos em comum e dar graças a Deus”. E não faltou também a coragem decisiva para se contrapor à guerra de Bush contra o Iraque. 

Com Bento XVI há uma mudança de perspectiva. Ele se dá conta da força vigorosa representada pelo islã no tempo atual, dos esforços realizados por esta tradição em favor de uma nova base espiritual para a vida dos povos. Mas é também consciente das dificuldades de um diálogo em nível teológico ou religioso e do risco que a seu ver acompanha a corrente islamista mais radical. A mudança que realiza vai no sentido de priorizar esta relação no nível de um diálogo de culturas e civilizações. Isto já estava presente na homilia de sua investidura como papa, em abril de 2005, quando fala em prosseguir o diálogo com as “diversas civilizações”. 

Um sinal explícito da nova perspectiva foi a decisão do papa de destituir Michael Fitzgerald do cargo de presidente do Pontifício Conselho para o Dialogo Inter-Religioso, em cujo dicastério há uma comissão para as relações religiosas com os muçulmanos, e designá-lo para a função de núncio apostólico no Egito. Os analistas vêem nesse fato um claro balizamento do distanciamento do pontificado com respeito ao “espírito de Assis”, de que Fitzgerald era um dos mais entusiastas.

Após o primeiro ano de seu pontificado, vislumbram-se, claramente, sinais de uma certa “decantação”, para utilizar uma expressão do historiador Alberto Melloni. A dinâmica de composição da Cúria Romana vai bem nessa linha, como a recente nomeação de Tarcísio Bertoni para a Secretaria de Estado, um cardeal que trabalhou com Ratzinger na condição de Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé. Foram os dois que assinaram a polêmica Declaração Dominus Iesus, em agosto de 2000. A ênfase recai agora na explicitação da identidade católica e na contundente critica à “ditadura do relativismo”. Há uma preocupação em dar um sentido diferente ao diálogo, para bem distingui-lo de sua utilização usual, que em textos anteriores o cardeal Ratzinger equiparava-o à “quinta essência do credo relativista”, enquanto resistente ao sentido da missão e conversão necessárias.

Nesse delicado momento da conjuntura política internacional, de acirramento dos etnocentrismos e da violência também inter-religiosa, faz-se mais do que necessário e urgente a implementação de uma dinâmica dialogal entre as religiões. Não há como amenizar ou abafar o imperativo irrevogável do diálogo inter-religioso. No final dos anos 50, o papa João XXIII anunciava a convocação do Concílio Vaticano II, para a surpresa de muitos, e situava como um de seus fundamentais objetivos o impulso de “dilatar os espaços da caridade”. Já se passaram mais de quarenta anos do final do Concílio, mas fica sempre o desafio de manter aceso o seu espírito de abertura e diálogo, retomado vivamente no encontro de Assis, que ao olhar de João Paulo II significou “uma antecipação daquilo que Deus gostaria que fosse o curso da história da humanidade: uma viagem fraterna na qual nos acompanhamos mutuamente uns aos outros rumo à meta transcendente que ele estabelece para nós”.

(Publicado na Agência Carta Maior - 19/09/2006)

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