Croire et interpréter. Le tournant herméneutique de la théologie, por Claude Geffré. Cerf, Paris, 2001, 1 vol. br. 135 x 215mm, 173 p.
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
No contexto atual da reflexão teológica sobre o pluralismo religioso, Claude Geffré destaca-se como um dos mais originais e instigantes pensadores católicos. Nascido em Niort (França) em 1926, dedicou boa parte de sua vida ao ensinamento teológico, começando o seu trabalho nas Faculdades Dominicanas de Saulchoir (1957-1968) e posteriormente no Instituto Católico de Paris (1967-1996). Teve também uma passagem na Escola Bíblica e Arqueológica de Jerusalém, onde atuou como diretor de 1996 a 1999. Ao lado de sua atuação acadêmica tem marcado presença na revista internacional de teologia, Concilium, enquanto membro fundador e permanente colaborador, bem como na direção da prestigiosa coleção teológica “Cogitatio Fidei”, das Edições du Cerf. Uma de suas maiores contribuições tem sido no campo da hermenêutica teológica, onde vem se destacando como pioneiro e qualificado representante deste tipo de abordagem na França. O desdobramento de sua reflexão para a temática da teologia das religiões ocorreu sobretudo a partir da década de 80, quando então desenvolveu proposições particularmente originais no campo da relação do cristianismo com as outras grandes religiões.
No presente livro, Geffré busca responder ao fundamental desafio de uma teologia hermenêutica capaz de correspender à experiência histórica contemporânea, em particular o desafio imprescindível do pluralismo religioso. O título do livro já sugere a retomada de seu projeto anterior de trabalhar o tema do cristianismo sob o risco da interpretação, agora sob novo ângulo: Crer e interpretar. A reviravolta hermenêutica da teologia. De forma bem organizada, o livro vem dividido em 7 breves capítulos, abordando os seguintes temas: A teologia como hermenêutica (1), Para uma hermenêutica conciliar (2), O neo-fundamentalismo na igreja (3), O pluralismo religioso como paradígma teológico (4), A salvação de Jesus Cristo e a missão da igreja (5), A reinterpretação teológica do judaísmo (6), A filiação divina de Jesus e o monoteísmo muçulmano (7).
O autor justifica no prólogo do livro sua intenção de retomar o seu programa de teologia hermenêutica, desenvolvido no livro O cristianismo sob o risco da interpretação (1983). Na ocasião havia afirmado que “a fé só é fiel ao seu impulso e ao que lhe é dado crer se levar a uma interpretação criativa do cristianismo”. Assume desde então, como convícção íntima, a perspectiva de que uma teologia de orientação hermenêutica não significa uma entre outras correntes da teologia, mas “o destino mesmo da razão teológica no contexto do que se pode pensar contemporaneamente” (p.7). Indica que um dos mais decisivos desafios para a teologia neste início de milênio relaciona-se ao pluralismo religioso, entendido como traço quase insuperável. Não hesita em afirmar que este pluralismo assume hoje o papel de um “novo paradigma teológico” que confirma a dimensão hermenêutica da teologia. Em linha de superação da tradicional teologia da salvação dos infiéis, afirma-se agora uma teologia inter-religiosa, mais sensível e aberta aos desafios do tempo e voltada para a compreensão do significado do pluralismo religioso no desígnio unitário de Deus (p. 9). No conserto polifônico das religiões mundiais, o cristianismo não perde sua singularidade, mas vem provocado a redesenhar sua identidade. Geffré se interroga: “Como promover um diálogo franco e leal em plano de igualdade mantendo a identidade cristã que não pode definir-se senão em referência a Jesus Cristo que é mais que um simples fundador de religião?” (p. 9). Mas ao mesmo tempo, esta singularidade não pode em hipótese alguma apagar ou restringir o que há de único e de irredutível em cada religião. Este dado da irredutibilidade das outras tradições revela o mistério que habita as religiões, que jamais pode ser completado por outra. Um enígma que convoca a reinterpretação da singularidade mesma do cristianismo. Estas são interrogações que acompanharão o autor ao longo de todo o livro.
No primeiro capítulo aborda o tema da teologia como hermenêutica. Para o autor, a hermenêutica não significa uma corrente teológica entre outras, mas uma “dimensão interior da razão teológica ou ainda um novo paradigma, um novo modelo, uma nova maneira de fazer teologia” (p. 11). A hermenêutica provoca assim uma reviravolta na teologia, intimamente associada à reviravolta linguística. Geffré estabelece uma distinção entre hermenêutica enquanto interpretação dos textos fundadores do cristianismo e a hermenêutica enquanto interpretação das fórmulas dogmáticas. Esta última tarefa hermenêutica não traduz para o autor uma relativização dos dogmas, mas um exercício de re-situar tais fórmulas dogmáticas na organicidade da fé. Para que se compreenda, segundo o autor, a razão teológica como razão hermenêutica, há que superar o apego à razão especulativa (metafísica) , entendida no sentido aristotélico de conhecimento teórico, e buscar a aproximação da razão teológica à compreensão histórica, assim como trabalhada por Heigegger, Gadamer e Paul Ricoeur. Trata-se de uma nova perspectiva que faculta a transfiguração do discurso teológico, que passa agora a falar humanamente de Deus, estando atento e disponível às contribuições das ciências humanas da religião. Na visão de Geffré, a generalização atual da instância hermenêutica nos diversos domínios do saber, permite a reivindicação de um estatuto científico para a teologia, que responde com este novo olhar, aos critérios de uma ciência hermenêutica no sentido moderno do termo. Sublinha que “todo conhecimento científico hoje em dia é um conhecimento interpretativo” (p. 14). Com base no aporte da reflexão de David Tracy, Geffré assinala que os textos clássicos da teologia devem ser compreendidos na rica dinâmica da manifestação de uma pluralidade de sentidos, excluindo-se toda e qualquer interpretação definitiva ou fechada. Tais textos devem ser situados no contexto de uma pluralidade de interpretações (p. 15), e sempre abertos à “credibilidade disponível” da inteligência moderna.
Marcando continuidade com seus escritos anteriores, Geffré busca distinguir o modelo dogmático que marcou a teologia católica após o concílio de Trento, do atual modelo hermenêutico. No primeiro modelo, a teologia é muito mais reflexo do que fonte. Sua tarefa fundamental é a de explicar o ensinamento oficial. A Escritura e a tradição entram apenas para comprovar o ensinamento dominante. Por sua vez, o modelo hermenêutico tem como ponto de partida o texto, privilegiando a sua compreensão, e sua inscrição numa dada tradição. Para Geffré, não pode haver pensamento fora da linguagem e da tradição de linguagem onde alguém se inscreve. É no contexto de um lugar determinado, com seus recursos próprios, que são disponibilizados os esquemas interpretativos a partir dos quais faculta-se a apreensão da realidade e a eventual elaboração de novos conceitos (p. 17). Cada ser humano habita uma linguagem, que segundo Heidegger, constitui a “morada do ser”. Mas não existe um estado zero da linguagem. No caso da interpretação cristã, o teólogo irá se utilizar da longa tradição textual do cristianismo para poder aceder à experiência fundamental da salvação oferecida por Deus em Jesus Cristo. Sua singular tarefa hermenêutica será restituir esta experiência fundamental, dissociando-a de suas representações e interpretações, pertencentes a um mundo de experiência atualmente transformado. O processo de interpretação está sempre aberto: há sempre uma diversidade de recepções. Segundo Geffré, “a mensagem cristã é ao longo dos anos susceptível de múltiplas recepções e estas percepções não constituem jamais uma interpretação definitiva; elas podem ser permanentemente objeto de retomada” (p. 19). Uma boa situação hermenêutica seria para o autor aquela que favorece uma correlação crítica entre a experiência cristã da primeira comunidade e a experiência atual dos que crêem: um espaço de experiência precedente e um horizonte de espera projetado para o futuro. Não se pode prescindir nem do olhar do passado nem da prospectiva com respeito ao futuro. Para aquele que busca captar teologicamente o acontecimento de Jesus, há que reconhecer que ele vem recoberto pelo evento da palavra e pelo evento da escritura. Tal acontecimento é o ponto de partida de uma experiência de fé que se faz mensagem. Recorrendo a Schillebeeckx, Geffré assinala que o cristianismo não consiste “numa mensagem que deve ser acreditada, mas numa experiência de fé que se traduz numa mensagem” (p. 20). A questão que hoje se coloca como essencial é saber quais os textos que permitem no tempo atual fazer uma experiência de Jesus Cristo enquanto acontecimento de salvação por parte de Deus tendo em conta a dinâmica contextual da linguagem e dos esquemas de pensamento (p. 21). A boa interpretação não é necessariamente a mais fielmente rigorosa, mas aquela que suscita as melhores potencialidades da obra. A hermenêutica envolve uma dinâmica de conversação entre o leitor e o texto, mas ambos falam e colocam questões. O modelo hermenêutico em teologia traz consequências bem precisas, como uma nova aproximação da Escritura e abertura às suas potencialidades desconhecidas; o reconhecimento de uma pluralidade de testemunhos que buscam traduzir o acontecimento fundador, rompendo-se com a obsessão fundamentalista em favor de uma palavra pura e original; a releitura da tradição, que busca discernir a experiência histórica subjacente às formulações dogmáticas. Há que acrescentar ainda a atenção concedida à dimensão prática, aos sujeitos concretos da história. A hermenêutica do sentido conduz à uma determinada prática social, não produz apenas novas interpretações mas motiva igualmente um novo fazer.
No segundo capítulo, Geffré propõe uma hermenêutica conciliar. Da mesma forma como os textos da revelação podem ser objeto de uma interpretação, o autor sugere que semelhante procedimento seja também aplicado com liberdade aos textos da tradição dogmática (p. 39). O autor não nega a importância essencial da fidelidade ao passado, mas acrescenta que esta fidelidade deve ser criadora. Isto é verdadeiro para toda tradição, mas em particular para o cristianismo, na medida em que o que é transmitido não é apenas um texto do passado, ou um acontecimento do passado, mas uma realidade sempre atual: o acontecimento da ressurreição de Jesus Cristo (p. 40). Estar em presença da tradição cristã é participar de um acontecimento dinâmico, inserido no coração da história. Há um elemento que é doado, que é precedente, mas que reeditado historicamente ganha uma interpretação criadora. Assim ocorre também com as definições dogmáticas, mediante as quais a tradição cria suas confissões de fé. Tais definições não se reduzem a atos de jurisprudência, mas traduzem também atos de interpretação. Buscam responder uma situação de crise, onde um dado elemento de fé pode estar sendo contestado, mas não podem expressar a totalidade da fé cristã, pois determinadas mudanças na situação eclesial podem exigir um novo sentido com respeito àquele original (p. 41-42).
No intuito de favorecer uma justa interpretação das fórmulas dogmáticas, Geffré propõe quatro regras de uma hermenêutica conciliar. A primeira regra trata da compreensão do alcance de um enunciado dogmático. Segundo o autor, para que ocorra tal compreensão é necessário “forjar a boa situação hermenêutica determinada pela dinâmica da pergunta e da resposta” (p. 42). Saber situar a pergunta é conseguir colocar a questão à qual responde o texto. Para Geffré, “uma definição dogmática não pode ser compreendida senão com respeito à questão histórica que a provocou”. Todo texto traduz uma resposta a determinada questão, e não se pode compreender esta resposta senão compreendendo primeiro a questão à qual ela busca responder (p. 42-43). O teólogo crítico deve estar sempre atento aos condicionamentos que incidem na formulação das definições dogmáticas e manter distância das perspectivas que propõem um sentido invariante destas definições. A significação permanente de um texto só pode, de fato, ser revelada à luz da compreensão do presente. A segunda regra indica que “as definições conciliares devem ser lidas à luz de nossa leitura crítica da Escritura” (p. 44). Para Geffré, o momento atual exige um novo método: não mais aquele típico do período pós-tridentino que privilegiava a leitura da Escritura a partir das ulteriores explicitações da tradição dogmática, mas um método que inversamente privilegia a reinterpretação dos enunciados dogmáticos à luz da leitura atual da Escritura (p. 45). Assinala que certas teses da cristologia clássica exigem hoje uma revisão, tendo em vista os resultados da moderna exegese. De acordo com a terceira regra, “as definições conciliares devem ser interpretadas à luz da dinâmica de correlação crítica entre a experiência cristã fundamental e as novas experiências humanas de hoje” (p. 46). A compreensão da mensagem cristã ocorre sempre numa dada situação histórica particular, que constitui elemento integrante para sua apreensão. Geffré fala na “credibilidade disponível” do ser humano, que varia com o desenvolvimento dos conhecimentos científicos e a evolução dos estados de consciência das pessoas. A dinâmica da recepção pela igreja do ensinamento do magistério, não pode ser fechada, mas deve estar sempre aberta e disponível para a retomada criadora tendo em vista as novas experiências históricas e eclesiais (p. 47). A tradição verdadeira está sempre sob o signo da continuidade e da ruptura. Conforme a quarta regra, “em certos casos, a reinterpretação de um enunciado dogmático pode conduzir a uma reformulação” (p. 49). Segundo Geffré, não pode estar descartada a priori a necessidade de reformulação de um dogma, cuja repetição continuada em contextos históricos diferenciados pode tensionar com os estados novos de consciência do ser humano. As palavras e conceitos assumidos pelo dogma podem em determinado momento assumir “um outro alcance semântico, uma outra significação”. Daí a necessidade de “recorrer a uma mudança de formulação para manter-se fiel à visada permanente de uma afirmação de fé” (p. 49). Trata-se de uma “operação arriscada” mas necessária, que suscita uma nova linguagem e uma reinterpretação do dogma. A realidade de uma diversidade de expressões deve ser vista como algo positivo, que não compromete a unidade da fé. Não apenas o pluralismo teológico é bem vindo, mas também o pluralismo das confissões de fé no interior da única igreja de Jesus Cristo, um dado essencial para a abertura ecumênica.
O terceiro capítulo aborda o tema do neo fundamentalismo na igreja. Ao analisar esta complexa questão, Geffré reconhece a diversidade de sentidos que recobrem hoje a questão do fundamentalismo. O termo vem aplicado, nem sempre de forma rigorosa, a várias experiências religiosas, provocando assim equívocos e incompreensões. A “nebulosa fundamentalista” ganha, na visão do autor, duas possibilidades de expressão: o fundamentalismo escriturístico e o fundamentalismo doutrinal. A reflexão de Geffré estará sobretudo concentrada na primeira forma de expressão. Como ponto de partida, aborda as origens históricas do fundamentalismo: a especificidade do fundamentalismo americano e do neo fundamentalismo bíblico. Em seguida busca abordar as causas do fundamentalismo escriturístico, identificadas em três direções. Assinala primeiramente o contragolpe da renovação bíblica que precedeu o Concílio Vaticano II (1962-1965) e as reações por ela suscitadas; indica também a experiência de conversão que acompanhou a atitude fundamentalista, em particular o contato direto com a palavra de Deus pregada, e as reações de suspeita que este contato imediato com o Deus vivente suscitou com respeito às abordagens críticas das Escrituras; assinala por último a angustiante necessidade de certeza que anima certos fundamentalismos: a busca de um fundamento seguro, como recurso de proteção contra o risco da perde da credibilidade da fé. O autor serve-se de uma imagem bíblica para expressar o temor ou mesmo pânico que envolve os fiéis - a imagem de Maria Madalena no evangelho de João, angustiada com o sepulcro vazio: Retiraram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde o colocaram” (Jo 20,2). Os diversos fundamentalismos são marcados por questões teológicas que traduzem uma compreensão ingênua da inspiração, a rejeição da instância hermenêutica na leitura da Escritura e o desconhecimento da história e da ação do Espírito na igreja. No caso particular do cristianismo, a ação dos fundamentalistas atua sobretudo contra a plausibilidade do conjunto de recursos de ordem científica e histórica colocados à disposição da comunidade eclesial. Em nome da fé provoca-se o “suicídio da inteligência” (p. 79). Para os fundamentalistas cristãos, não há outra história senão aquela que resulta da relação direta com os fatos e gestos de Jesus apresentados no Novo Testamento. Os textos evangélicos são entendidos como estenografia das palavras de Jesus. Não se admite em hipótese alguma a presença e o valor da dinâmica interpretativa e de reconstrução de um acontecimento histórico.
Um dos eixos mais importantes do livro de Geffré vem apresentado no quarto capítulo, que trata do pluralismo religioso como paradigma teológico. Na visão do autor, o pluralismo religioso constitui o “horizonte da teologia no XXIº século” (p. 93). O pluralismo religioso é um dado essencial da experiência história deste tempo contemporâneo, que nenhuma teologia que se pretenda hermenêutica pode prescindir. É a partir de sua percepção, não apenas como fato mas também como valor, que se coloca hoje em dia o desafio de reinterpretação das verdades fundamentais do cristianismo. Os teólogos são hoje convocados a reconhecer para além de um pluralismo de fato, a presença de um pluralismo de princípio que corresponde a um misterioso desígnio divino. Esta é, para Geffré, a nova questão teológica que se apresenta para a teologia hermenêutica e para a teologia moderna das religiões no momento atual (p. 94). O pluralismo religioso vem reconhecido como um “destino histórico autorizado por Deus, cuja significação última nos escapa” (p. 95). Trata-se de um reconhecimento essencial para qualquer diálogo inter-religioso: a consciência precisa da presença de um enigma da pluralidade das religiões em sua diferença irredutível e irrevogável. Contrariamente à idéia de que representa um mal, ou dado conjuntural momentâneo, a diversidade religiosa constitui expressão das riquezas espirituais dispensadas por Deus às nações (AG 11). Na busca de critérios para um “ecumenismo inter-religioso”, Geffré desta algumas condições. Indica, inicialmente, a importância do respeito ao outro em sua identidade própria. O diálogo não apaga as diferenças, mas consiste em apontar “semelhanças nas diferenças”. O diálogo exige também fidelidade à própria identidade. O verdadeiro diálogo acontece com interlocutores que não dispensam ou omitem a integralidade de sua fé. Há ainda a necessidade de paridade entre os interlocutores no processo dialogal. A dinâmica de encontro dialogal deve proceder respeitando-se o engajamento absoluto dos interlocutores com respeito à própria verdade. Mas o resultado do diálogo, quando verdadeiro, é novidadeiro, pois provoca a transformação da cada um dos interlocutores. O confronto com a verdade do outro, suscita mudança na maneira de apropriação da própria fé. Não se trata de relativismo, mas de relativização da forma de captação da própria verdade, e de abertura a uma nova interpretação da tradição. O diálogo faculta, segundo o autor, a celebração de uma verdade mais ampla e profunda, que transborda e supera as verdades particulares de cada interlocutor. As distintas tradições são portadoras de verdades diferentes, mas não necessariamente contraditórias. A afirmação de um pluralismo querido por Deus bloqueia a força de compreensões teológicas que reduzem a singularidade das religiões, entendidas como preparação de uma única verdade que habitaria a revelação cristã. O pluralismo de direito provoca o reconhecimento da cidadania das religiões, bem como o estatuto de suas verdades diferentes e a caminho. Nenhuma religião pode esgotar o sentido da verdade. Cada religião traduz um vínculo particular e contingencial, que ao mesmo tempo possibilita e interdita a aproximação ao mistério das riquezas de Deus. Ao final do capítulo, Geffré aponta para a possibilidade de um ecumenismo planetário, que traduza simultaneamente a afirmação autêntica do humano e o descentramento de si em direção ao mistério da alteridade transformante do Deus sempre maior (p. 106-107).
No capítulo cinco vem abordado o tema da salvação em Jesus Cristo e a missão da igreja. Na visão de Geffré, a teologia católico-romana tem buscado nos últimos anos superar um eclesiocentrismo estreito em favor de uma unicidade de inclusão. Torna-se mais difícil encontrar aqueles que defendem peremptoriamente o cristianismo como única religião autêntica e verdadeira. Há em curso uma nova sensibilidade a respeito. Na linha aberta pelo Vaticano II, Geffré busca defender que as religiões constituem mediações derivadas de salvação e objetivações da vontade salvífica universal de Deus (p. 112). Ao destacar o lugar das religiões no plano da salvação, o autor indica a idéia de mediações derivadas, pois a mediação essencial cabe para ele a Jesus Cristo. Nem mesmo a igreja é vista como mediação exclusiva da salvação, pois Deus está para além das mediações eclesiais, como a palavra, os sacramentos e os ministérios. Todas as religiões estão marcadas por ambiguidades. Geffré reconhece a presença de valores crísticos nas diversas religiões, que possibilitam inclusive a melhor explicitação de certas virtualidades do mistério cristão não visualizados no próprio cristianismo. Estes valores podem ser da ordem do conhecimento, do culto e da exigência ética. Para Geffré, a história humana está recoberta por uma “cristianidade”, que traduz por toda a parte a superabundante presença do mistério de Cristo (p. 115).
No quadro geral da teologia das religiões, Geffré encontra sua melhor identificação no âmbito do inclusivismo. Para a especificação de sua posição, joga um importante papel a idéia do mistério de Cristo como universal concreto. Em posição equidistante tanto do eclesiocentrismo como do teocentrismo mais radical, o autor prefere o caminho do aprofundamento do mistério da encarnação: “Em lugar de recorrer a um teocentrismo geral, creio que é o aprofundamento do mistério da encarnação que nos deve permitir compreender como manter a singularidade do mistério de Cristo, sua unicidade, sem que tal unicidade resulte numa espécie de imperialismo, de hegemonia do cristianismo com respeito às outras religiões” (p. 117). Não é descartando mas aprofundando o mistério da encarnação que se pode chegar a uma perspectiva dialogal. O aprofundamento deste mistério possibilita reconhecer inclusive os limites presentes no cristianismo e na própria humanidade de Jesus, enquanto limitada e aberta às riquezas do Verbo de Deus. Para Geffré, Jesus é ícone e não ídolo de Deus. Com base na reflexão dos padres da igreja, Geffré insere “a economia do Verbo encarnado como o sacramento de uma economia mais vasta, aquela do Verbo eterno de Deus, que coincide com a história religiosa da humanidade” (p. 118). O aprofundamento do mistério da encarnação revela a dimensão kenótica inerente ao cristianismo e de sua intrínseca dimensão dialogal, que convoca ao outro e ao diferente; bem como o valor simbólico da cruz, que traduz uma universalidade ligada ao sacrifício da particularidade. Segundo Geffré, a proposta que defende o pluralismo como alternativa ao inclusivismo é não só equívoca como inútil (p. 122). Para ele, é no interior da lógica inclusivista , depurada de uma visão limitada da singularidade cristã, que se deve buscar o caminho dialogal. Para tanto deve-se evitar confundir “a universalidade de direito do Cristo como Verbo encarnado e a universalidade do cristianismo como religião histórica”.
O autor defende uma unicidade do cristianismo relativa e não de excelência e integração, sem que venha comprometida a singularidade cristã (p. 122). Trata-se de uma unicidade animada pela abertura e pelo devenir. Daí ser equivocado dizer que o cristianismo complementa todas as religiões. A correta relação do cristianismo para com as demais religiões deve estar precedida pela clara consciência da irredutibilidade de cada tradição religiosa, de forma a honrar dignamente a sua alteridade. Esta nova perspectiva teológica recoloca sob novas bases a missão da igreja e redefine sua urgência. Segundo Geffré, não é a igreja que define a missão, mas é a missão que delineia o rosto de uma igreja que busca ser na história o sinal do Reino de Deus. Em sua visão, “a vocação histórica da igreja não se traduz pela extensão quantitativa dos cristãos mas consiste, no diálogo com todos os homens e mulheres de boa vontade que podem pertencer ou não a outras religiões, dar o testemunho do Reino de Deus que vem” (p. 124). A missão de testemunhar os valores do Reino na história não pode ser automaticamente motivada pelo desejo de conversão do outro à lógica particular da tradição específica. O objetivo não deve ser o da mudança de religião, mas de mudança na forma de exercício da religião, uma metanoia que produza uma transformação recíproca de cada um. Na conclusão do capítulo, Geffré estabelece um diálogo com as teses de Jacques Dupuis, expressas no livro Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso (1997). Assinala os pontos de acordo e distanciamento que marcam sua relação com as teses de Dupuis. Sublinha em particular sua dificuldade com a idéia de complementaridade religiosa, defendida por Dupuis, mas que para ele mostra-se problemática por não respeitar a seu ver a alteridade irredutível de cada tradição religiosa.
O capítulo sexto trata a questão da reinterpretação da teologia do judaísmo. O autor busca abordar a questão de um patrimônio comum entre judaísmo e cristianismo. Seu objetivo é mostrar as mudanças ocorridas no campo católico-romano na linha de superação de uma mentalidade cristã anti-judaica. Assinala a importância da declaração conciliar Nostra aetate no reposicionamento da questão, ao sinalizar a singularidade e permanência de Israel com respeito à igreja católica. Mas esta abertura nem sempre encontrou continuidade em documentos eclesiais subsequentes, que demonstram a permanência ainda que velada de uma tradicional teologia da substituição, ou de transferência de alianças. Para Geffré, o tema da relação do cristianismo com o judaísmo ganha hoje grande atualidade pois revela-se paradigmático não só para o ecumenismo confessional mas também para o diálogo inter-religioso (p. 136). Com ele emerge a essencial questão da irredutibilidade das tradições religiosas. O autor sublinha a importância do histórico discurso do papa João Paulo II na sinagoga de Roma, em abril de 1986. Em seu discurso aos representantes da comunidade judaica de Roma, o papa identifica os judeus como “irmãos prediletos” e afirma a “vocação irrevogável” do povo de Israel. Com seu discurso, o papa indica que a religião judaica não é extrínseca, mas intrínseca à religião cristã. Afirma-se, assim, a presença viva de um “patrimônio comum” entre as duas grandes tradições religiosas e a perenidade de Israel. Com base nas reações dos interlocutores judeus, Geffré chama a atenção para a presença de ambiguidades que acompanham esta quase-evidência de um patrimônio comum, e lança três observações a respeito. Assinala, em primeiro lugar, a realidade de uma assimetria fundamental na percepção cristã de um patrimônio comum. Adverte os cristãos para a necessidade de compreender a singularidade do judaísmo assim como os judeus a compreendem, bem como interiorizar a importância do judaísmo para a compreensão mesma da identidade cristã. Indica também a importância de uma afirmação dialogal com os judeus que transcenda o diálogo interno com os textos do Primeiro Testamento. Há que estabelecer interlocução com o judaísmo rabínico, reconhecendo a centralidade não só da Torah, mas também do Talmud. Assinala, por fim, a necessidade de levar mais a sério a diferença do judaísmo com respeito ao cristianismo. Seria incorreto, segundo o autor, afirmar simplesmente que o cristianismo complementa o judaísmo, pois isto seria negar o que há de irredutível em Israel. Tais considerações levam Geffré a propor no capítulo a reinterpretação da noção de realização ou recapitulação, de forma a evitar uma compreensão totalitária e excludente. A constação teológica da perenidade de Israel traduz um importante desafio para a teologia cristã. Ocorre reconhecer a presença de um “face-a-face misterioso de Israel e da igreja até que o desígnio de Deus seja realizado” (p. 143). É esta constatação da irredutibilidade de Israel que proporcionou, segundo Geffré, o arranque para a legitimação do pluralismo religioso visto como questão teológica e a abertura para a compreensão da irredutibilidade das demais tradições religiosas.
O último capítulo do livro aborda o tema da filiação divina de Jesus e o monoteísmo muçulmano. O autor busca neste momento estabelecer pistas para um diálogo entre o islã e o cristianismo. A grande dificuldade para este diálogo relaciona-se com a compreensão do monoteísmo, ou seja, a distinta inteligência na captação do mesmo mistério de Deus. Para Geffré, encontra-se aberto o diálogo entre o monoteísmo muçulmano e o monoteísmo cristão, pois as críticas tecidas pelo primeiro à questão da trindade e da filiação divina de Jesus não tensionam com a verdadeira compreensão cristã deste mistérios, uma vez bem compreendidos (p. 158). O autor encontra uma pista para o diálogo fecundo com o islã na cristologia narrativa de Jesus Servidor de Deus (p. 163). Seja para os cristãos, como para os muçulmanos, é o Deus de Jesus que é absolutamente único, o Deus confessado na experiência judaica de Jesus. A unidade e a unicidade de Deus vêm confirmadas seja na fé cristã como na muçulmana. Com base nos testemunhos da tradição neotestamentária, Geffré sublinha que a filiação divina de Jesus diz respeito não ao mistério da encarnação, mas ao mistério da páscoa, ressurreição e exaltação de Jesus como Cristo (p. 164). O autor vale-se do conceito de “intronização”, tomado das mais antigas confissões de fé, para justificar sua tese. A filiação divina de Jesus, segundo o Novo Testamento, não é necessariamente de ordem de uma geração física ou metafísica, recusadas pelo islã, mas de ordem de uma intronização e enaltecimento de Jesus por Deus. É o que traduz São Paulo na carta aos Romanos, quando assinala que Jesus foi “estabelecido Filho de Deus com poder por sua ressurreição dos mortos” (Rm 1, 4), e os Atos dos Apóstolos: “Tu és o meu filho, eu hoje de gerei” (At 13, 33). O caminho proposto por Geffré, na linha de uma cristologia narrativa do Jesus Servidor de Deus, traduz uma tendência da moderna exegese neo-testamentária. Uma tal cristologia distancia-se da tradicional cristologia descendente e permite um diálogo mais fecundo com o islã. Neste diálogo há uma mútua interpelação. De um lado, uma advertência do islã para os cristãos, no sentido de evitar uma confissão da divindade de Jesus que atenue os direitos absolutos de Deus; por outro, do cristianismo para o islã, no sentido de uma convocação de abertura a uma maior dinamização da unicidade de Deus, rompendo com o risco de uma compreensão da divindade como perfeição auto-suficiente e impermeável à diferença do Deus de Abraão, Isaac e Jacó.
O livro em análise é claro e sintético, profundo e abrangente. A questão abordada é complexa e arriscada. Claude Geffré aceita o corajoso desafio de assumir esta espinhosa tarefa de clarear os rumos da compreensão da singularidade cristã nestes tempos de pluralismo religioso. O livro supera as expectativas e apresenta hipóteses inovadoras. A abordagem insere-se na tradição inclusivista. Geffré identifica-se como um teólogo que assume a lógica da teologia da realização ou do acabamento (p. 116), embora em nossa opinião ele avança um pouco além desta perspectiva. Mas como outros teólogos desta linha, manifesta certa timidez na reflexão propriamente eclesiológica. No quinto capítulo, em particular, há certos deslizes em sua abordagem do papel mediador da igreja católico-romana, no destaque de sua superioridade sobre as mediações assumidas pelas demais religiões. Titubeia em reconhecer um papel mediador mais decisivo para as religiões: reconhece nelas somente “certo papel mediador” (p. 113). Mantém viva a visão tradicional que fala em “ordenação para a igreja” (p.114), o que resulta, a nosso ver, problemático. Ao falar do diálogo inter-religioso, tem dificuldade em aceitar o papel de igualdade entre os interlocutores: fala em “certa igualdade” (p. 103). Isenta-se de elaborar uma crítica mais contundente à Declaração Dominus Iesus, identificada simplesmene como uma pertinente advertência aos teólogos pluralistas (p. 10). Uma outra indagação pode ser acrescentada com respeito ao caminho proposto pelo Autor, visando a ampliação dos horizontes do inclusivismo. Geffré faz referência à categoria dos “valores crísticos” universais, como alternativa à visão que defende os “valores implicitamente cristãos”. Há que se perguntar em que medida esta alternativa traduz, de fato, uma mudança singular de perspectiva, preservando a atenção e o respeito ao que há de singular e único nas diversas tradições religiosas. Podemos entender uma tal percepção como legítima e plausível enquanto circunscrita ao olhar cristão que descortina ou desoculta a dimensão crística de uma outra tradição religiosa. Esta interpretação cristã, fruto de um olhar particular e válida em âmbito interno, não pode, porém, ser entendida e tratada como linguagem objetivante e constatante, sob o risco de interferir negativamente nas convicções religiosas distintas das outras tradições. A consideração objetiva de uma latência de “valores crísticos”, que são universais, acaba por não respeitar ou desconhecer a verdade interna que habita as religiões, em sua diferença irrevogável. São questões pontuais e circunscritas, que não diminuem o vigor e o arrojo presentes na reflexão de Geffré. Estamos, sem dúvida, diante de uma obra fundamental para compreender o estado atual da reflexão sobre a teologia cristã do pluralismo religioso. Uma obra que está em vias de ser publicada no Brasil pela editora Vozes, encontrando-se no momento em fase de tradução. Trata-se de uma iniciativa que vem favorecer o acesso à reflexão mais atural de Geffré, cujos trabalhos mais recentes, infelizmente, não se encontram disponíveis na lingua portuguesa.
(Publicado na Revista REB, v. 64, n. 254, abril de 2004, pp. 473-481)
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