A teologia no tempo
Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF
“Olhai como crescem os lírios do campo,
Não trabalham, nem fiam” (Mt 6,28)
Introdução
Um dos acontecimentos mais novidadeiros que impulsionaram a reflexão teológica católica nas últimas quatro décadas foi o Concílio Vaticano II (1962-1965). Significou um evento fundamental na sensibilização da teologia para os reais desafios do tempo. O clima de abertura foi favorecido pelo carisma particular do papa João XXIII, que reconhece a necessidade de um “salto para frente” na vida da igreja e o imperativo de “dilatar os espaços de caridade” para toda a humanidade. Deve-se sublinhar que o primeiro documento aprovado pelo Concílio foi uma mensagem dirigida a todos os homens e nações, em 20 de outubro de 1962. A idéia tinha sido gestada por um dos grandes teólogos de então, o dominicano Marie-Dominique Chenu (1895-1990). Animado por grande dinamismo profético, o pe. Chenu reiterava a necessidade de um novo posicionamento da igreja face ao mundo, que para ele revestia-se de uma “dignidade” particular. Não mais reconhecido como “lugar do mal”, como dava entender certa literatura católica, o mundo passa a ser visto como “criação de Deus”[1]. O desafio decisivo vem a ser o diálogo da igreja com o mundo moderno.
Na Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS) essa nova sensibilidade vem situada com firmeza: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo”[2]. A mudança de perspectiva vem sinalizada com a expressão “sinais dos tempos” (“signa temporum”), utilizada em vários momentos da Gaudium et Spes (GS 4, 11, 44). A igreja se vê provocada a “perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal modo que possa responder, de maneira adequada a cada geração, às interrogações eternas sobre o significado da vida presente e futura e de suas relações mútuas” (GS 4). Com a assunção de um novo método indutivo, a igreja começa a reconhecer a necessidade do auxílio do mundo e da história, entendidos agora como lugares especiais para o ausculto e discernimento eclesial. Na visão de pe. Chenu, "todo o tecido da história humana, todo o esforço humano de organizar o mundo, toda civilização, todas as culturas fazem parte do corpo, da linguagem nos quais a palavra de Deus e a fé se expressam e se encarnam”[3]. Há que reconhecer, porém, que essa abertura aos “sinais dos tempos” e essa nova sensibilidade histórica não foram simplesmente gestadas no Concílio, mas na verdade, o Concílio acolheu com generosidade e abertura todo um movimento que já estava em curso na teologia e buscava afirmar-se no cenário eclesial.
1. A relevância salvífica da história
Um traço singular na compreensão do tempo na perspectiva cristã, distintamente da filosofia grega, é a sua “organização em história”, mas uma história pontuada pela iniciativa divina, que marca a seqüência dos eventos do passado, presente e futuro. Mas igualmente sinalizada pela resposta livre do ser humano em seus gestos criadores. Nessa perspectiva, o presente ganha uma qualificação particular de kairos, ou seja, um tempo “favorável capaz de abrigar em plenitude a relação do homem e de Deus”[4]. Na visão de Karl Rahner (1904-1984), o singular arquiteto da teologia católica contemporânea, o tempo traduz “o modo de vir-a-ser da liberdade finita”[5]. É no tempo como história que o ser humano realiza sua transcendentalidade livre e participa da dinâmica da salvação. Não existem duas histórias paralelas, uma profana e outra sagrada. O que existe é uma única história da salvação que se desenrola na história global da humanidade. Como mostrou com acerto o teólogo Gustavo Gutiérrez, “a história da salvação é a própria entranha da história humana”[6].
Há que recuperar a dimensão positiva de salvação. Em seu sentido primário, a salvação diz respeito a salvus (forte, sólido, sadio) e salvar (libertar, remir, resgatar, preservar). É uma categoria que concerne a uma aspiração universal dos seres humanos: “conduzir alguém a realizar o sentido de sua existência” e encontrar o seu destino[7]. Trata-se de uma aspiração que envolve o ser humano como um sopro, como um “impulso vital”, incentivando-o a realizar-se como sujeito e pessoa. A salvação diz respeito à feliz condução da própria vida, de uma vida sensata e bem sucedida. Em perspectiva distinta da concepção tradicional, que identificava a salvação como “redenção das almas”, vigora hoje uma nova compreensão, que articula o espiritual e o temporal. A salvação deixa de ser uma realidade alheia ao agir humano na história. Como sublinhou Karl Barth, “aquele que renega as coisas terrenas do homem, renega as coisas celestes de Deus”[8]. É no exercício de sua ação histórica que o ser humano realiza sua própria humanidade, e isso não é estranho ao dinamismo salvífico. A salvação diz respeito à “integridade do homem total”, envolvendo e abraçando em seu projeto a história global.
Com base nessa reflexão, o conceito mesmo de eternidade ganha um novo significado. A vida eterna deixa de ser algo que se acrescenta à vida temporal, traduzindo agora o exercício da definitividade da própria vida livre e digna de ser vivida, da auto-doação do sujeito na liberdade diante de Deus. Na visão de Karl Rahner, a eternidade “não é o contrario do tempo, mas a realização do tempo da liberdade”[9].
Importantes teólogos do século XX enfatizaram essa idéia da história da salvação como acontecimento de libertação humana. Alguns nomes podem ser mencionados, como os europeus Karl Rahner, Yves Congar, Juan Alfaro, Johan Baptist Metz e Edward Schillebeeckx. Esse último cunhou a expressão “extra mundum nulla salus” (fora do mundo não há salvação), assinalando o decisivo papel da ação libertadora no tempo e do amor incondicionado aos outros – sobretudo aos mais pobres -, como espaço essencial de realização da vontade salvífica de Deus[10]. Mas pioneira nesta reflexão foi a teologia da libertação latino-americana, proporcionando um desenvolvimento temático original e irradiador, desde o final da década de 60. Desdobramentos realizados nessa reflexão teológica, a partir dos anos 80, favoreceram novas pistas de abordagem desta questão, como a necessária articulação entre o compromisso radical e verdadeiro com o outro na prática libertadora com a abertura à gratuidade do mistério de Deus presente nessa mesma história. Teólogos como Gustavo Gutiérrez, Jon Sobrino e Clodovis Boff[11], entre outros, foram se apercebendo da importância essencial da experiência da gratuidade na prática libertadora, ou seja, da “libertação com espírito”. O reforço na vida “com mais espírito” era visto como condição essencial para uma inserção integral na vida histórica. A espiritualidade fornecia a “dose de humildade” necessária para o compromisso mais autêntico no mundo dos pobres:
“Assim, desprendidos de nós mesmos, chegamos ao outro libertos de toda tendência de impormos uma vontade que lhe seja alheia, respeitosos de sua própria personalidade, de suas necessidades e de suas aspirações. Dado que o próximo é o caminho para chegarmos a Deus, a relação com Deus será a condição necessária para o encontro, para a verdadeira comunhão com o outro”[12].
Essa nova sensibilidade para a “vida espiritual” veio em seguida acompanhada pela atenção, respeito e cuidado para com a comunidade da vida, de “reverência face à vida”[13]. Uma peculiar sensibilidade ecológica que abriu novos caminhos na reflexão latino-americana. Foi um passo enriquecedor na abertura da reflexão teológica e de ampliação do olhar para captar a complexidade do real.
2. A atenção para a dimensão eterna no tempo
O aprofundamento da temática e da experiência da gratuidade, bem como da espiritualidade trazem desafios renovadores para a reflexão teológica nesse novo milênio. Há que despertar cada vez mais para a dimensão “cosmoteândrica” do real, ou seja, para a profunda comunhão que entrelaça o Mistério maior com o ser humano e o cosmos[14]. A mística, entendida como “experiência integral da vida”, volta a tocar a sensibilidade contemporânea, e a provocar a reflexão teológica. Ela revela-se importante e essencial, pois relaciona-se com “a totalidade da condição humana”[15]. Para aquele que sabe ver, não há realidade profana, pois todo o tempo está banhado pela dimensão de eternidade. Raimon Panikkar cunhou a expressão “tempiternidade” para destacar esta dimensão eterna no tempo[16]. O traço peculiar da mística consiste em favorecer a percepção da presença do Mistério em todas as coisas e em todo o tempo.
Em linha de descontinuidade com a posição defendida por certas tradições religiosas, que desvalorizam o mundo e o tempo em função de uma esperança no além, a perspectiva mística centra o seu olhar no tempo presente, nos pequenos sinais do cotidiano. Destaca-se o caráter sagrado da secularidade. Na verdade, “nirvana é samsara”, ou seja o horizonte de realização do sentido já acontece na dinâmica existencial do ser-no-mundo. Requer-se apenas a sintonia fina dos sentidos para captar sua presença. Na superfície e transitoriedade do mundo e do tempo encontra-se “escondido” um mistério de enorme riqueza.
Um dos grandes filósofos da escola de Kiotto, Nishitani Keiji (1900-1990), trabalhou essa questão de forma primorosa. Partindo da perspectiva zen budista, ele busca encontrar o caminho da transcendência mediante a penetração na superfície do mundo: o desafio de captar a transcendência no centro da vida do mundo: samsara-en-nirvana. O maior empecilho para tal desafio está no egocentrismo do ser humano. O egocêntrico é alguém que se fecha no mundo do “cogito” e se destaca das coisas do mundo. É alguém que se encerra no mundo auto-suficiente do “si” e desatende ao “profundo sentimento da realidade das coisas cotidianas”. Seguindo a trilha da reflexão de Nishitani,
“para o si egocêntrico do homem, o mundo tornou-se simplesmente uma mera matéria. Exercitando o seu grande poder de domínio sobre o mundo natural, o homem circunda-se de um mundo frio e sem vida. Inevitavelmente, cada ego individual tornou-se uma ilha fortificada num mar de matéria morta. A vida desaparece da natureza e das coisas naturais. A fonte de vida presente no fundo dos homens e de todas as coisas, e que os mantinha unidos, secou”[17].
Para Nishitani, não há como recuperar a dimensão da vida como elo vital, senão rompendo com o egocentrismo. O verdadeiro encontro com o mundo é resultado de um processo de libertação do eu, de um despertar para o mundo tal como ele é:
“Esta ´transcendência para a vacuidade`no centro da vida do mundo, um tipo de samsara-en-nirvana, é uma transcendência mais elevada que a outra que rechaça este mundo em favor de outro (...). Portanto, o eu libertado do egocentrismo não é simplesmente um eu isolado do mundo. Esta libertação tem lugar no encontro com o mundo tal como é”[18].
Estar diante do “mundo tal qual é” é estar diante de um “infinito aberto”. Isso foi bem sublinhado pelo discípulo de Nishitani, Ueda Shizuteru, estudioso japonês da obra de Eckhart. Comentando o clássico aforismo de Angelus Silesius, “a rosa é sem porque: floresce porque floresce”[19], Shizuteru indica que a tradição zen budista ainda é mais radical. O aforismo soaria um pouco distinto: “a rosa floresce como floresce”. Há uma “sutil diferença” entre as duas expressões:
“Na frase zen, as flores florescem sem a fratura devida ao ´porque` do pensamento. O ´porque`é uma palavra que pensa a realidade, que a penetra, enquanto o ´como` é uma palavra não pensante da realidade, na qual esta reflete-se tal como é, de per si”[20]
A tradição zen rompe com as prescrições teóricas e deixa-se penetrar pela experiência imediata, aquela que traduz o estupor diante das coisas em si. É uma tradição que prefere lidar com o indicativo, captando a simplicidade que habita o mundo, sem maiores delongas explicativas. O mesmo pode ser aplicado às palavras de Jesus no evangelho de Mateus, a propósito dos lírios do campo (Mt 6,28-30). A perspectiva zen fixa-se no que é essencial: “Olhai os pássaros do céu! Olhai os lírios do campo”. Não se acrescentam prescrições, como no relato bíblico, mas apenas o vigor do impacto do aprendizado dessa presença. A simples presença indicativa dos pássaros em vôo e dos lírios em flor, estilhaça qualquer possibilidade de fechamento do ser humano, que vem situado em seu devido lugar e novamente convocado/despertado para a vida[21].
Não é tarefa muito fácil perceber a presença do ilimitado na dinâmica limitada da vida. Mas é um desafio essencial para todos: saber captar o “aberto ilimitado” que está sempre aí, rodeando, envolvendo e penetrando os seres humanos por toda parte. Na tradição mística cristã, Teilhard de Chardin foi um mestre na percepção dessa presença. Para ele, Deus se fazia presente por toda parte, como uma atmosfera vital. E uma presença que o acompanhava no “sentimento apaixonado com o seu tempo”. E dizia com vigor que a todos estava facultada essa visão: bastava apenas a educação do olhar. Como projeto de sua vida estava o desafio de “ensinar a ver Deus em toda parte: vê-lo no mais secreto, no mais consistente, no mais definitivo do Mundo” [22]. Era capaz de perceber na “áspera matéria” as reais dimensões de Deus:
“Sem ti, Matéria, sem os teus ataques, sem as tuas arrancadas, viveríamos inertes, estagnados, pueris, ignorando a nós mesmos e a Deus. Tu feres e curas, resistes e dobras, arruínas e constróis, acorrentas e libertas. Seiva de nossas almas, Mão de Deus, Carne de Cristo, Matéria, eu te bendigo”[23].
Nessa mesma linha, insere-se a reflexão de Thomas Merton, para o qual a vida contemplativa não pode estar distanciada do tempo. Ela é, antes de tudo, um dom, “uma tomada de consciência repentina, um despertar à infinita Realidade que existe dentro de tudo que é real”[24]. Nada mais estranho à vida contemplativa que abandonar as coisas para se dedicar ao mistério. Na verdade, o que provoca a vida contemplativa é o exercício de “desapego de si” para melhor ver e captar “todas as coisas em e para Deus”[25]. Quanto mais se avança na vida espiritual maior o apreço pelas coisas criadas. E isso se pode perceber com muita clareza na vida dos grandes místicos e santos: verdadeiros amigos de Deus.
3. A abertura para ouvir o “canto das coisas”
Não basta à teologia estar inserida no tempo, faz-se também necessário deixar-se penetrar pelo tempo. O poeta Rainer Maria Rilke falava do “canto das coisas”. Este é um desafio essencial: saber captar esse canto. As coisas guardam um mistério em seu fundo, e para poder captá-lo é necessário “ouvido musical” e atenção. Aqueles que se afeiçoam à vida contemplativa estão acostumados a prestar atenção aos sinais mais sutis que animam a natureza e a criação. Os fascinantes detalhes da natureza, da energia que pulsa em seu interior, a sua inusitada musicalidade, tudo isso passa desapercebido por aqueles que estão envolvidos e dispersos nos rumores da vida cotidiana. Esses não conseguem perceber a realidade em sua transfiguração[26].
O singular filósofo do judaísmo, educado na tradição hassídica, Abraham Joshua Heschel (1907-1972), assinalava em clássica obra, que o ritmo da civilização moderna acabou provocando o “declínio do senso da maravilha”[27]. O sentimento de abertura, atenção e estupor diante da natureza são importantes fontes de conhecimento. Assim nasceu a filosofia, com suas interrogações essenciais diante da maravilha e do inefável, como bem sublinhou Platão no Teeteto (155d). E Heidegger também assinala: “Somente quando a estranheza do ente nos acossa, desperta e atrai ele a admiração. Somente baseado na admiração – quer dizer fundado na revelação do nada – surge o ´porque`”[28]. O encontro com o real não ocorre somente através do que é útil, mas sobretudo mediante a experiência gratuita da maravilha[29].
O acesso à experiência da maravilha requer muita sensibilidade e acontece em momentos inesperados, muitas vezes raros e momentâneos, quando se abrem as portas do mistério e algo novo se disponibiliza para a percepção: “o profundo sentimento da realidade das coisas cotidianas”. Nishitani comenta em sua obra a experiência descrita por Dostoievski nas Recordações da casa dos mortos, quando o personagem em estado de grande emoção, num dia comum de verão, deixa-se tocar pela paisagem circundante, e capta “o mundo prenhe de Deus, o puro, sereno horizonte, com as livres estepes desabitadas”[30]. Nada mais desafiante que romper a lógica habitual e entrar, de fato, em contato com o mistério das coisas, “perder-se” em seu meio e fazer a experiência de uma integração profunda com o todo.
A aproximação ao “canto das coisas” acontece quando o sujeito despoja-se de seu egocentrismo e toca o centro íntimo e nevrálgico de si, o “ponto virgem” (point-vierge) que habita o íntimo do coração. Ali se dá a “abertura das portas para a contemplação do mistério de Deus”[31]. O “ponto virgem” é luz que faculta perceber a presença duradoura e irremovível do mistério em todas as coisas e em todo o tempo; é luz que rompe a idéia de fragmentação ou separação. Torna-se ilusória a crença de uma existência separada e cindida e ganha força a dimensão de Presença. Foi essa convicção que animou Thomas Merton quando em meio à agitação de Louisville, tomou consciência de que sua solidão é sonora, pois animada pela pertença de todos. A consciência da presença desse “pontinho de nada”, que é a vida do Real, não acontece sem esforço e despojamento: “sem o espírito da noite, sem a aragem da aurora, silêncio, passividade, repouso, a natureza do homem não pode ser ela própria”[32].
4. O toque da cortesia espiritual
Uma das virtudes mais essenciais estimuladas pelo aprofundamento místico é a delicadeza ou cortesia espiritual. Trata-se de uma virtude básica da interioridade[33], que vem conhecida na tradição sufi com o termo adab. Estar animado pela delicadeza espiritual é estar, sobretudo, atento ao mundo do outro e à realidade das coisas. Uma atenção que requer um esforço particular, uma disponibilidade específica: estar vazio de si para auscultar o outro e deixar-se penetrar pelo seu enigma e mistério. A delicadeza é um dom que brota do fundo da alma, do núcleo do coração, traduzindo um despojamento que desloca o “eu” de sua centralidade e deixa brilhar outros valores que estão presentes no mundo, ainda que muitas vezes ocultos.
Na tradição mística renana, Meister Eckhart expressou com vigor a idéia de que o acesso à intimidade de Deus, ao seu abismo sem fundo, passa pela experiência da humildade, ou seja, pelo caminho do recolhimento no fundo íntimo da alma. À medida que se dá o aprofundamento da alma nesse espaço de intimidade, “tanto mais a força divina nela se derrama plenamente e opera veladamente de maneira a revelar grandes obras”[34]. Como canta o Salmo 42-43, o abismo chama o abismo (abyssus abyssum invocat). E os dois abismo, o criado e o incriado, tornam-se “um único Um”. É quando o ser humano torna-se, então, essencial, como sublinha Tauler em seu sermão 41, e desperta para aquilo que é comum a todos. É dessa experiência abissal que brota a generosidade mais radical, raiz e fonte da benevolência e amabilidade universais[35].
Essa experiência, que os místicos traduzem em grau de maior densidade, pode ser observada de forma mais inteligível na dinâmica de aprofundamento da própria tradição religiosa. Quanto mais o ser humano busca aprofundar-se em sua religião, descendo sempre mais a fundo, tanto mais desponta sua liberdade espiritual e a possibilidade de crescer em generosidade, delicadeza e abertura para com todas as outras formas de “expressão do sentido último da existência”[36]. É o caminho da profundidade que desvela os canais substantivos de uma espiritualidade marcada pela delicadeza e cortesia.
Conclusão
Em sua bela e delicada Oração ao tempo, Caetano Veloso fala desse “senhor tão bonito”, que é “compositor de destinos e tambor de todos os ritmos”. A teologia veio percebendo isso ao longo de sua trajetória e acabou “entrando num acordo” com ele nas últimas décadas. Nada mais significativo do que sentir-se vinculada ao tempo e enraizada nos seus desafios. Talvez o toque mais decisivo hoje consiste em aprofundar esse “amor pelo todo”, adentrar-se mais corajosamente em sua espessura. Abraçar sem receios o presente e deixar-se contagiar pela sua delicadeza. Há atualmente uma demanda pela espiritualidade que extrapola o campo das religiões e que expressa uma insatisfação crescente com os rumos da modernidade. Revigora-se o desejo profundo de abertura para a vida, para a “imanensidade”, de mergulho no real, em suma, o desafio de “habitar o universo”[37]. Para além da lógica que rege o mercado, há uma busca humana que não pode deixar de ser atendida, e a teologia deve estar atenta a isso. A sede espiritual e mística retorna e, com ela, a possibilidade de novos contornos para a experiência vital e para o exercício de uma “razão sensível e cordial”, capaz de gestar os grandes sonhos que dão rumo à vida.
(Publicado na Revista Tempo Brasileiro, n. 176, janeiro-março 2009, pp. 103-114)
[1] Jacques DUQUESNE. Un théologien en liberte. Chenu. Paris: Centurion, 1975, p. 180; Yves CONGAR. Mon journal du Concile I. Paris: Cerf, 2002, pp. 99-100; Hans KÜNG. Libertad conquistada. Memórias. 3 ed. Madrid: Trotta, 2004, p. 364.
[2] Constituição Pastoral “Gaudium et Spes” n. 1. In: COMPÊNDIO do Vaticano II. Constituições, decretos, declarações. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 1968.
[3] Marie-Dominique CHENU. La dottrina sociale della chiesa. 2 ed. Brescia: Queriniana, 1977, p. 38.
[4] Jean-Yves LACOSTE. Tempo. In: ____. (Ed.). Dicionário crítico de teologia. São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004, p. 1699.
[5] Karl RAHNER & Herbert VORGRIMLER. Dizionario di teologia. Milano: Editore Associati, 1994, p. 683.
[6] Gustavo GUTIÉRREZ. Teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 129.
[7] Adolphe GESCHÉ. Il destino. Cinisello Balsamo: San Paolo, 1998, p. 30.
[8] Apud Yves CONGAR. Un popolo messianico. 2 ed. Brescia: Queriniana, 1977, p. 158.
[9] Karl RAHNER. Corso fondamentale sulla fede. Roma: Paoline, 1978, p. 65; Id. Sollecitudine per la Chiesa. Roma: Paoline, 1982, p. 518.
[10] Edward SCHILLEBEECKX. Umanità la storia di Dio. Brescia: Queriniana, 1992.
[11] Em particular: Gustavo GUTIÉRREZ. Beber no próprio poço. Petrópolis: Vozes, 1984 e Jon SOBRINO. Espiritualidade da libertação. São Paulo: Loyola, 1992.
[12] Gustavo GUTIÉRREZ. Beber no próprio poço, p. 125.
[13] Veja o impacto dessa preocupação na “Carta da Terra”, que teve a contribuição de Leonardo Boff. Cf. L.BOFF. Do iceberg à Arca de Noé. O nascimento de uma ética planetária. Rio de Janeiro: Garamond, 2002.
[14] Raimon PANIKKAR. Mistica pienezza di vita. Milano: Jaca Book, 2008, pp. 12, 261-262.
[15] Ibidem, p. 12.
[16] Ibidem, pp. 6, 55,264 e 272.
[17] Keiji NISHITANI. La religioni e il nulla. Roma: Città Nuova, 2004, p. 42.
[18] James W. HEISIG. Filósofos de la nada. Un ensayo sobre la Escuela de Kioto. Barcelona: Herder, 2002, p. 284.
[19] Angelus SILESIUS. Il pellegrino cherubico. Cinisello Balsamo: San Paolo, 1989, p. 156 (I,289).
[20] Shizuteru UEDA. Silencio y habla en el budismo zen. In. Oscar PUJOL & Amador VEGA (Eds). Las palavras del silencio. Madrid: Trotta, 2006, p. 30.
[21] Shizuteru UEDA. Zen e filosofia. Palermo: Lepos, 2006, pp. 206-208.
[22] Teilhard de CHARDIN. O meio divino. Lisboa: Presença, s/d, pp. 42-43 e 66.
[23] Teilhard de CHARDIN. Hino à matéria. In: ____. Hino do universo. São Paulo: Paulus, 1994, pp. 72-73.
[24] Thomas MERTON. Novas sementes de contemplação. 2 ed. Rio de Janeiro: Fisus, 2001, p. 10.
[25] Ibidem, p. 29.
[26] Enzo ROMEO. I solitari di Dio. Separati da tutto, uniti a tutti. Catanzaro: Rubbetino, 2005, pp. 35-36.
[27] Abrahan Joshua HESCHEL. L´uomo non è solo. Una filosofia della religione. Milano: Mondadore, 2001, p. 45.
[28] Martin HEIDEGGER. Que é metafísica. São Paulo: Duas Cidades, 1969, p. 43.
[29] Abrahan Joshua HESCHEL. L´uomo non è solo, p. 44.
[30] Apud Keiji NISHITANI. La religione e il nulla, pp. 38-39 (aqui p. 39).
[31] Louis MASSIGNON. La passion de Hallâj III. Paris: Gallimard, 1975, p. 26.
[32] Thomas MERTON. Reflexões de um espectador culpado. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 158. E também pp. 151-152 e 183.
[33] Abraham Joshua HESCHEL. L´uomo alla ricerca di Dio. Magnano: Qiqajon, 1995, pp. 129-130.
[34] Mestre ECKHART. Sermões alemães. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 296-197 (Sermão 54a).
[35] Giovanni TAULERO. I sermoni. Milano: Paoline, 1997, pp. 383-4 (Sermão 41).
[36] Paul TILLICH. Le christianisme et les religions. Paris: Aubier, 1968, p. 173.
[37] André COMTE-SPONVILLE. O espírito do ateísmo. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
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