NOS RASTROS DO AMADO
O CÂNTICO ESPIRITUAL DE JOÃO DA CRUZ
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
O Cântico Espiritual de João da Cruz é certamente uma das mais preciosas narrativas da literatura mística. Por sua extraordinária beleza e profundidade foi saudado por muitos autores desde sua criação no século XVI. Para Octávio Paz, o Cântico traduz a experiência mística “mais profunda” da língua espanhola[1]. Conhecidas são também as palavras de Menéndez y Pelayo, pronunciadas em 1881, em seu discurso de entrada na Real Academia Espanhola:
“Mas há uma poesia ainda mais angelical, celestial e divina, que já não parece deste mundo, nem é possível medi-la com critérios literários, pois é mais ardente de paixão do que qualquer poesia profana, e tão elegante e delicada na forma, tão plástica e figurativa como os mais saborosos frutos do renascimento. São as Canções espirituais de são João da Cruz (...). Confesso que, ao simples toque, me infundem um religioso terror. Ali passou o espírito de Deus, embelezando e santificando tudo (...)”[2].
Há, de fato, uma força poética nas estrofes do Cântico que produzem no leitor admiração e espanto. Não há como se proteger ou manter distância do impacto do poema. O estupor é contagiante, como sinalizou Damaso Alonso em seu livro sobre a poesia de João da Cruz. Trata-se, para ele, de um poema que convoca à admiração e ao silêncio, e que se insere entre as “mais complexas de toda a literatura espanhola”[3].
O Cântico Espiritual é o trabalho mais representativo e famoso de João da Cruz, tendo sido escrito entre os anos de 1578 e 1584. É com ele que o místico espanhol dá início à sua obra de escritor. Nasceu como um poema, e as primeiras 31 estrofes brotaram no cárcere de Toledo, quando João da Cruz esteve aprisionado pelos próprios confrades que reagiram ao seu trabalho de reforma do Carmelo. Estas estrofes formam “o primeiro núcleo do poema, o chamado ´protocântico`”[4].
João da Cruz iniciou sua vida religiosa aos 21 anos, ao entrar no noviciado dos carmelitas.[5] O período coincidia com o final do Concílio de Trento (1563), quando então a igreja católica inaugurava os caminhos da contra-reforma. Os estudos de filosofia e teologia são realizados em Salamanca, que na ocasião vivia um grande esplendor. Durante sua experiência acadêmica residiu no convento carmelita de Santo André. O rigoroso sistema de estudos sufoca a vocação contemplativa de João da Cruz que entra em crise profunda, aventando inclusive a hipótese de entrar para a Cartuxa. É quando aparece em seu caminho a figura iluminada de Teresa de Ávila, em agosto de 1567, e o convence a “buscar maior perfeição” permanecendo na própria Ordem.[6] Nasce uma grande empatia entre os dois, que será duradoura. Iniciam ali uma intensa colaboração em favor da renovação do Carmelo. Em 1568, em Duruelo, João da Cruz lança um novo ramo da família carmelita, assumindo radicalmente a linha da reforma teresiana. Na incipiente reforma João da Cruz assumirá inúmeras tarefas: mestre de noviços, formador espiritual e mistagogo do Carmelo Teresiano. Esta dinâmica inovadora será, porém, interrompida com a prisão de Toledo, em dezembro de 1577, quando João da Cruz foi seqüestrado por um “estranho bando” de carmelitas calçados, descontentes com a Reforma, e encerrado por nove meses num cárcere conventual. Jogaram-no em uma cela pequena e sombria. Sua alimentação estava reduzida a pão, água e sardinhas e não lhe permitiam trocar de roupas.[7] Seu gesto de compromisso em favor da Reforma foi julgado como desobediência e rebeldia, e na prisão foi submetido a um forte disciplinamento. É neste contexto de “solidão exterior” e “desolação interior” que nasceram as primeiras estrofes do Cântico Espiritual. Como mostrou Eulogio Pacho, as únicas ocupações do prisioneiro eram “meditar, rezar, pensar e esperar”, e isto durante noites e dias intermináveis. E os versos do cântico vão sendo compostos mentalmente e registrados na memória, pois não tinha onde escrever. Luminosas imagens vão esclarecendo a “solidão sonora” vivida no cárcere. Nos longos meses vão emergindo as “peregrinas cadências” do Cântico. João da Cruz “sente imperiosos desejos de transmitir ao papel aquelas melodias poéticas mas tem que forçadamente conter a febre da criação”[8] Com a mudança de carcereiro, no quarto ou quinto mês de aprisionamento, é que consegue maior compreensão, adquirindo papel e tinta para escrever “algumas coisas devocionais”. E surge assim nada menos do que o mais elevado poema da lírica espanhola.[9] É de se admirar que versos tão carregados de serenidade e marcados por singular atmosfera estética possam ter brotado na dura solidão e miséria de um calabouço: “privado de todo horizonte exterior, abriram-se-lhe as profundas entranhas do sentido com imagens de luz e espaços místicos”[10].
1. Os passos de uma gênese
A estruturação do Cântico Espiritual levou cerca de seis anos, iniciando-se em 1578, em Toledo, e concluindo-se em 1584, em Granada. As 31 primeiras estrofes foram feitas no cárcere de Toledo, outras três em Baeza e 5 em Granada. Uma das estrofes, de número 11, não consta no chamado primeiro Cântico (Cântico A), tendo sido posteriormente acrescentada[11]. O poema ganha complemento com os comentários que foram sendo acrescentados em razão da solicitação feita pelas carmelitas de Beas, que conheciam as canções do pequeno caderno que João da Cruz conseguiu salvar na fuga do cárcere. As religiosas inteiravam-se da profundidade espiritual dos versos, mas os mesmos resultavam para elas ainda ininteligíveis. Daí a sugestão do acréscimo de um comentário feito por João da Cruz mesmo. Já em Beas aparecem os primeiros intentos de comentários do poema. De acordo com Eulogio Pacho, é acertado dizer que “o comentário se inicia antes que o santo complete o poema primitivo de Toledo”[12].
Havia entre as religiosas de Beas muita curiosidade a propósito da redação do Cântico, de seu elevado tom espiritual. Estudiosos da obra do grande místico, como Baruzi, indicam que a inspiração de sua obra aconteceu muitas vezes sob um “estado teofático”, num “êxtase prolongado”. Em determinados momentos, ficava João da Cruz “tão absorvido em Deus (...) que tinha, às vezes, que golpear a parede com o punho para que a dor o devolvesse ao mundo sensível”[13]. Conta-se que a copista oficial, movida por curiosidade, perguntou a João da Cruz se era mesmo Deus que havia inspirado nele aquelas palavras que as religiosas tanto adoravam. E ele a respondeu: “Filha, algumas vezes Deus me deu e outras buscava-as eu”[14].
Uma das questões mais complexas para a compreensão do Cântico Espiritual é a relação entre a poesia do Cântico e os seus comentários em prosa. De fato, a poesia de João da Cruz guarda um vigor insólito e inaugural, que marca uma singularidade única, luminosa e insubstituível. São canções que perdem sua pureza original quando encorpadas pela estranha roupagem dos comentários anexados. Para a estudiosa Luce López-Baralt, “os ensinamentos teológicos de João da Cruz em sua prosa permanecem pálidos diante das certezas gozosas e indizíveis que consegue comunicar com absoluta liberdade em sua poesia”[15]. Tem havido certa “divisão de trabalho” no estudo do Cântico Espiritual: os teólogos em geral têm se dedicado mais à análise dos comentários e os críticos literários à análise da poesia. Mas há necessidade de uma compreensão mais global da obra, de forma a não ignorar nem a poesia nem a prosa. E o contato mais aproximado, por exemplo, com a prosa sanjuanista pode revelar facetas importantes para a revelação da riqueza de sua poesia, e vice versa. Este é o caminho que será seguido neste breve artigo, privilegiando a articulação da poesia com a prosa. Em seu rico estudo sobre João da Cruz, Colin Thompson acentuou a importância da recuperação dos comentários em prosa para o favorecimento de uma avaliação mais ampla da obra literária do místico espanhol. Thompson reconhece, como João da Cruz, que a linguagem humana é um instrumento imperfeito e limitado para poder expressar o que é inaudito. O poema busca “alojar o inefável”, “tornar visível o que é invisível sem dele se apoderar”. É o grande paradoxo da linguagem poética do místico. Mas este inefável também se faz presente na prosa. Os comentários de João da Cruz destinam-se a “explicar” as imagens do poema. Não deixam, porém, de ser “outro tipo de testemunho balbuciante da experiência que a poesia cantou primeiro”[16]. Esta é também a sua importância.
Para a correta compreensão da hermenêutica do Cântico Espiritual torna-se indispensável o manejo desta articulação entre a poesia e a prosa sanjuanista. Há que igualmente saber desentranhar a arte de João da Cruz que habita na sua misteriosa linguagem. Mas para tanto é necessário superar certos preconceitos que são comuns no âmbito da academia, e deixar-se envolver por certo “estado de receptividade”, onde se possa também “saborear” algo que é sobretudo “dom”. Se aqueles que se aproximam da obra de João da Cruz não partilham ou não são capazes de captar a “atmosfera” espiritual que marcou sua composição, só poderão ali encontrar “dislates” ou disparates. Segundo Colin Thompson, “as versões do século XX desses ´dislates` poderiam ser os críticos que só sabem encontrar em sua poesia o desafogo de uma sexualidade reprimida ou sublimada, ou de uma mente desequilibrada”[17]. Não é de se estranhar que o Cântico Espiritual tenha sido dedicado a alguém que carecia de formação na teologia escolástica mas que era experiente na teologia mística, “que se sabe por amor” (Prólogo 2). Aos que se interessam pela leitura do Cântico Espiritual, Colin Thompson dá uma sugestão: o leitor não deveria fixar-se na preocupação de superar todas as dificuldades de acompanhamento das explicações fornecidas pelo místico: “´algo`se compreenderá, pois no fim de contas ´algo` (...), ´un no se qué`, segundo são João, é tudo o que se pode compreender”[18].
2. Análise do Cântico Espiritual
Há duas redações distintas do Cântico Espiritual, conhecidas como Cântico A (CA) e Cântico B (CB), a primeira com 39 estrofes e a segunda com 40 estrofes. Uma das notas diferenciais entre as duas versões é o acréscimo de uma estrofe no CB, a estrofe de numero 11. As duas redações são idênticas até a estrofe 10. Com a inserção de uma nova estrofe no CB a seqüência fica alterada, o que permanece até a estrofe 15. Haverá depois uma transposição da ordem até a estrofe 34 (CB), quando então será retomada a seqüência primitiva, marcada pela diferença de uma estrofe. Segundo Eulogio Pacho,“o grupo estrófico 16-34 está reorganizado de modo que as canções em que se descreve o desposório espiritual formem um bloco unitário e as do matrimônio, outro, o que não ocorria na primeira escritura (CA)”[19]. A intenção de João da Cruz, com a mudança da ordem nas estrofes do CB, é a de favorecer uma maior clareza na apresentação do “esquema” de desenvolvimento da vida espiritual. Como mostrou José Angel Valente, o CA reflete “a desordem vital da experiência” e o CB “o rigor sistemático da docência”[20].
O Cântico Espiritual, como bem sintetizou Jean Baruzi, é fundamentalmente um “canto de amor”[21]. Já na primeira estrofe aparece a marca de uma sede e busca amorosa, refletidas no grito da amada: “Onde é que te escondeste, Amado, e me deixaste com gemido?” (CB 1). Todo o “mistério verbal” que acompanhará o Cântico traduz a familiaridade do místico com a tradição semítica, e em particular com o “Cântico dos Cânticos”, que ocupa, sem dúvida, “o lugar principal entre todas as tradições literárias do poema, tal como os estudiosos reconhecem com coerência”[22]. Todo o itinerário do Cântico deságua na descrição da união divina. Como bem mostrou Henrique Cláudio de Lima Vaz, é
“no âmbito da contemplação unitiva que floresce, na tradição cristã, a chamada ´mística nupcial` (Braut-mystik), que a tradição, desde Orígenes, alimentou com a interpretação alegórica de Cântico dos Cânticos, e que, através da mística medieval – São Bernardo e a mística cisterciense -, atinge a plenitude da sua riqueza simbólica e doutrinal em São João da Cruz e Santa Teresa”.[23]
O prólogo do Cântico Espiritual, assim como os outros prólogos que João da Cruz escreveu para os seus tratados em prosa, tem por objetivo ajudar o leitor a acompanhar suas exposições. Já de início apresenta a questão da inefabilidade da experiência mística e a dificuldade de expressá-la adequadamente através das palavras. Admite que as Canções foram escritas com “algum fervor de amor de Deus”, mas de forma humilde reconhece que suas palavras apenas arranham a plenitude e profusão do amor que as inspiram. As “expressões amorosas de inteligência mística”, como ele mesmo descreve suas Canções, não podem “ser explicadas com clareza por meio de palavras”. E continua: “é o Espírito do Senhor, que ajuda a nossa fraqueza, no dizer de São Paulo, e, habitando em nossa alma, pede para nós com gemidos inenarráveis, aquilo que nós mesmos mal podemos entender ou compreender para manifestá-lo”[24].
Para João da Cruz, as “figuras, comparações e semelhanças” que emprega em seu Cântico são tentativas e esboços para captar os segredos e mistérios que o Espírito dá a conhecer. Mas tais semelhanças devem ser lidas com “simplicidade do espírito de amor e inteligência nelas encerrado”, caso contrário soarão mais como “dislates” ou “disparates” (Prólogo 1).[25] É verdade que a mística cristã é uma “mística da palavra”, mas de uma palavra que é consciente dos seus limites. Daí João da Cruz dizer que “os doutores da Igreja, por muito que digam, e por mais que queiram dizer, jamais poderão acabar de explicar com palavras o que com palavras não se pode exprimir” (Prólogo 1). Há caminhos de acesso a Deus que transbordam aqueles da consciência comum ou da consciência discursiva. Há almas que são “inflamadas” no amor de Deus e estas conseguem “acessar” os umbrais do mistério por caminhos que são inusitados. É o caso de Ana de Jesus, destinatária do Cântico, que supre a ausência da teologia escolástica com a “teologia mística que sabe por amor”[26]. Para João da Cruz, o amor “é o princípio que torna possível a união com a infinidade de Deus. O conhecimento não pode lográ-lo: dado que o conhecimento humano é finito, deve adentrar-se na obscuridade para renascer como fé”[27]. A necessária “simplicidade de espírito” de que fala João da Cruz, relaciona-se com um peculiar “estado de receptividade” que faculta a integração de todas as faculdades na dinâmica gratuita da acolhida de um dom. Trata-se de um estado que favorece a disposição essencial para se poder “saborear” o mistério das “verdades divinas”.
Para favorecer a compreensão do plano esquemático do Cântico Espiritual pode-se seguir uma organização que é usual na mística cristã, que remonta a Pseudo Dionísio (sécs. V-VI) e foi igualmente aplicada no estudo desta obra. Trata-se da distinção entre as três tradicionais vias do caminho místico: a via purgativa (de purificação), a via iluminativa (de iluminação interior), a via unitiva ( de união com Deus). Na verdade, estas três vias revelam um caminho progressivo e ascensional. Mas não se pode encaixar este sistema didático a todo processo de crescimento da vida interior, como se fosse algo rígido e invariável. Em seu estudo sobre João da Cruz, Colin Thompson chamou a atenção para a complexidade da via mística:
“São João sabia perfeitamente que a vida interior não podia reduzir-se a um sistema básico de aplicação universal, e de nenhuma maneira a determinado sistema produzido retrospectivamente, desde a segurança do destino desejado, a união com Deus. Ele mesmo nos diz em várias ocasiões que Deus conduz almas diferentes por caminhos diferentes, o que sugere a possibilidade de haver tantas e distintas trajetórias no caminho como as almas que o empreendem”.[28]
A estrutura geral do Cântico Espiritual, sobretudo em sua redação B, segue o modelo das três vias tradicionais do caminho místico. A via purgativa encontra-se nas cinco primeiras estrofes (CB 1-5), e marca o momento mais inicial de busca, caracterizado pela purificação da alma e da luta contra os desvios. A via iluminativa, presente nas estrofes de 6 a 13 (CB 6-13), já expressa um maior crescimento na vida espiritual, indicando uma proficiência na prática das virtudes. A via unitiva , que marca as estrofes de 14 a 40 (CB 14-40), é expressão superior da vida mística de união com Deus. Neste terceiro momento, João da Cruz faz uma distinção entre desposório e matrimônio espiritual. O desposório traduz uma promessa e disposição de união, e se inicia na estrofe 13 (CB 13). Este momento ainda é marcado por “ausências, perturbações e aflições” (CB 15,30). O matrimônio traduz uma purificação total, revelando uma grande harmonia do ser humano em sua orientação para Deus, e as estrofes que traduzem este momento são as de número 22 e 26 (CB 22 e 26).[29]
a. A via purgativa
O poema do Cântico Espiritual começa com o grito da amada: “Onde é que te escondeste, Amado e me deixaste sem sentido” (CB 1). A amada expõe aqui sua grande ânsia de amor, retomando a conhecida petição da esposa do Cântico dos Cânticos: “Mostra-me, ó amor de minha alma, onde pastoreias...” (Ct 1,7). Fala-se aqui de um ocultamento do Amado, de alguém que se retrai face a “todo humano entendimento” (CB 1,3). Não há como alcançar nesta vida a completa visão de Deus. Não há acesso para a “substância dos segredos” senão seguindo a via de Moisés, que se colocou na “fenda da rocha” e viu o mistério “pelas costas” (Ex 33,22 – CB 1,10)[30]. Mas mesmo que oculto, este mistério está gravado em cada alma. É o que sublinha João da Cruz quando indica que o Amado mora no seio da alma (CB 1,10)[31].
Faz parte da trajetória purgativa da amada, buscar libertar-se de seus antigos hábitos, romper com as “distrações” que a afastam de seu objeto amoroso, alhear-se de todas as coisas e criaturas (CB 8-9). Daí a necessidade da amada também esconder-se em sua interioridade, pois não é fora de si que ela poderá encontrar o Amado: “Que mais queres, ó alma, e que mais buscas fora de ti, se tens dentro de ti tuas riquezas, teus deleites, tua satisfação, tua fartura e teu reino” (CB 1,8). O Amado habita o interior da amada, mas ela não o percebe pois ele está escondido. Ela necessita “sair” para dentro de si, e escondida em seu interior será capaz de encontrá-lo e senti-lo (CB 1,9)[32].
Os comentários de João da Cruz sobre a primeira estrofe do Cântico Espiritual acabaram sugerindo para alguns a idéia de que a experiência mística leva ao distanciamento do mundo e ao alheamento das criaturas. De fato, João da Cruz faz menção à necessidade do “esquecimento” de todas as coisas e ao “alheamento” das criaturas (CB 1,9) para o progresso da vida espiritual. Para ele, não há como participar da comunhão com o Amado senão permanecendo com ele escondido. Esta concentração no Amado é um passo específico do momento purgativo, mas não significa um desconhecimento do valor da criação e das criaturas. Os estudiosos de João da Cruz mostraram com pertinência esta questão. É o caso de Jean Baruzi, que assim se expressou a respeito:
“João da Cruz situa-se na primeira fila desses místicos que se inscrevem no universo. Não basta dizer que cantou e analisou o encontro entre Deus e a Alma na solidão. São as coisas mesmas que, repudiadas no início com a negação da noite, voltam a ser absorvidas na alma, descobertas em Deus e apaixonadamente amadas em sua grandeza”[33].
A permanência junto ao Amado é sublinhada com ênfase no Cântico. É na medida em que a amada “está toda unida” com ele que pode então chamá-lo de Amado (CB 1,13). Esta é uma bela passagem que convoca à memória alguns importantes místicos sufis, entre os quais o egípcio Dhū-l-Nūn (séc.IX d.C), que dizia: “Oh Deus, diante dos outros te invoco: Oh meu Senhor! Mas na solidão te chamo: Oh meu Amado (habīb)”[34]. Faz lembrar igualmente o belo sermão de São Bernardo, em seu comentário do Cântico dos Cânticos: “Quando o Esposo é presente e a esposa dirige a ele sua palavra, então vem chamado ´Esposo` ou ´querido`, ou mesmo ´aquele que é a minha alma`; falando dele aos jovens o chama ´Rei`”[35].
A amada enamorada anseia por seu amor, mas ele é como o cervo que escapa com rapidez, deixando-a “com gemido”. Mas como não pode mais descansar ou achar alívio longe de sua presença, como não pode suportar a dor de sua ausência, ela vive sob um “contínuo gemido” (CB 1,14)[36]. Não se trata, porém, de um sentimento que sinaliza um desespero, mas é marcado pela esperança paulina, como descrita em Rm 8,23. A amada foi ferida de amor e “cauterizada com amoroso fogo” (CB 1,16). São feridas singulares, que inflamam a vontade e o coração, acendendo o radical desejo de amor: “a alma por amor é reduzida a nada, sem mais coisa alguma saber senão amor” (CB 1,18)[37]. As feridas produzidas pelo Amado são como “toques de amor”, que não deixam arrefecer na alma sua viva lembrança (CB 1,17 e 19). E é animada por este “apetite” que a amada SAI em busca do Amado, “na força do fogo produzido pela ferida” (CB 1,20). Como uma caçadora, segue os rastros do Amado, numa direção que é única: a do amor. E a decisão de sair guarda consigo exigências bem precisas: significa abandonar “o modo rasteiro de amar” e voltar-se para o “elevado amor de Deus”, num estado de permanente enamoramento (CB 1,21). Há que assinalar o fato de João da Cruz trabalhar aqui com imagens que também estão presentes no Cântico dos Cânticos. Como indica Thompsom, é ali que o místico encontra suas imagens fundamentais: “um Amado ausente, uma partida, uma ferida e um grito de dor, que se assemelha ao do cervo”[38].
Em sua saída a amada clama aos pastores mensageiros[39] por informação mais segura do Amado e a eles expressa a dor de uma ausência: “se porventura virdes aquele a quem mais quero, dizei-lhe que adoeço, peno e morro” (CB 2). A insana busca continua por montes e ribeiras. Na peregrinação da amada nada a pode desviar de sua concentração no Amado: nem flores, nem feras, fortes ou fronteiras. A ele está inteiramente dedicada. Não há como romper o umbral que aponta para além mantendo-se amarrada aos “contentamentos e deleites” que a vida pode oferecer (CB 3,5).[40] A busca espiritual exige um desapego radical. Diz a amada: “não apegarei meu coração às riquezas e vantagens que me oferecer o mundo” (CB 3,5)[41].
João da Cruz assinala que nas três primeiras estrofes do Cântico há a descrição do “exercício do conhecimento próprio” (CB 4,1), passo fundamental para o conhecimento de Deus. Em seguida a amada volta-se para o exterior e interroga bosques, espessuras e o prado de verduras: “Dizei-me se por vós ele há passado” (CB 4).Volta-se para a inumerável variedade das criaturas, que compõem a terra, a água, o ar e o fogo, para saber sobre os rastros do Amado (CB 4,2). As criaturas são aqui vistas positivamente. Nelas a amada vê “a grandeza e excelência do Criador” (CB 4,1). Foram plantadas pela mão do próprio Amado. As estrofes 4 e 5 são extremamente plásticas e ricas de simbolismo. Segundo Luce López-Baralt, elas expressam “os versos mais alucinados da literatura espanhola do Século de Ouro”[42]. Ao falar, por exemplo, no “prado de verduras, de flores esmaltado” (CB 4), João da Cruz quer expressar a metáfora dos “pastos eternos dos céus”, esmaltados pelas estrelas. Ele retoma uma imagem típica da tradição pastoril cristã, para a qual “os pastos verdes e floridos do céu distinguem-se dos da terra por suas belezas que nunca murcham e pela luminosidade de seus habitantes”[43].
Em resposta à indagação da amada, as criaturas respondem que o Amado “passou por estes soutos com ventura” (CB 5). Deixou seus rastros na beleza com que dotou todas as coisas no ato da criação. Aqui João da Cruz, como Agostinho nas Confissões, indica que na natureza pode-se captar a “formosura” do Amado.[44]
b. A via iluminativa
João da Cruz reconhece na sexta estrofe do Cântico os limites das criaturas para o desvelamento do mistério do Amado. Depois de captar a resposta das criaturas, a amada manifesta o seu desencanto com as notícias veiculadas pelos diversos mensageiros: “Não queiras enviar-me um outro mensageiro, que não sabem dizer-me quanto anseio” (CB 6). Em sua explicação, o místico assinala como é parcial e fragmentário tudo “quanto nesta vida se pode conhecer a respeito de Deus, por muito que seja, não é conhecimento verdadeiro (CB 6,5). Não há na terra ou no céu quem possa dar à amada a notícia que ela deseja do Amado (CB 6,7). As criaturas deixam somente “um rastro da formosura” (CB 6,2). Na medida em que vai avançando espiritualmente, a amada percebe que a proximidade do conhecimento de Deus acende ainda mais fortemente a “ânsia de vê-lo”. Não há como curar sua doença senão com “a presença e vista do Amado” (CB 6,2)[45].
Em sua busca amorosa, a amada se dá conta que todos os relatos transmitidos pelos humanos a respeito do Amado aprofundam nela a chaga da separação, deixando-a morrendo. São relatos que acirram o seu enamoramento, mas não traduzem a resposta querida, pois ficam “somente no rastro”. O que as criaturas trazem com suas respostas são apenas frágeis esboços: “um ´não sei que` que ficam balbuciando” (CB 7). Mas para que haja verdadeira compreensão do Amado é necessário algo mais, uma “subida experiência”, que escapa ao poder das palavras e do entendimento: mas que está ao alcance do sentimento. E este sentimento é tão forte e substancioso que provoca a sensação de morte: “e deixa-me morrendo” (CB 7). Apoderada deste sentimento, a amada experimenta “uma impressão tão elevada do mesmo Deus, que claramente tem a convicção de ficar tudo por entender” (CB 7,9)[46]. João da Cruz distingue três formas de penar pelo Amado: a ferida, a chaga e o morrer de amor. No caso da ferida, é um penar de intensidade menor, que passa mais brevemente. Já a chaga dura mais tempo, em razão de produzir mais impressão na alma. Mas o morrer de amor é das três a mais intensa, é como uma chaga afistulada pelo “toque de notícia altíssima da Divindade” (CB 7,4).[47]
Os toques de amor são como flexas que se recebe do Amado e que tocam o coração (CB 8,3). E a amada sente-se chagada. De forma semelhante ao cervo que foi ferido com erva venenosa, a amada também foi tocada pela erva do amor. E sua doença não tem cura: “tudo quanto pensa, diz e faz, antes lhe serve para aumentar seu sofrimento” (CB 9,1)[48]. O único remédio é “por-se nas mãos de quem a feriu, para que ele, livrando-a de toda pena, acabe de matá-la com a força do amor” (CB 9,1).
Na estrofe seguinte, João da Cruz introduz o tema da mirada, que é essencial para todos os enamorados, pois é através do olhar que eles intercambiam suas almas. E a amada prossegue suas súplicas: “Extingue os meus anseios, porque ninguém os pode desfazer; e vejam-te meus olhos” (CB 10). Os anseios identificam-se com as inquietações que acompanham a sede de ver a Deus. Só podem ser dissipados com a “posse do Amado”. Daí suplicar a amada pela visão face-a-face, pois Deus é “a luz de seus olhos” (CB 10,8).
Na estrofe que foi introduzida no Cântico B, de número 11, retoma-se uma temática trabalhada em momento anterior (CB 6,2), onde se assinala que a doença de amor só se cura com a presença do Amado. A amada reforça agora com mais vigor o seu desejo: “Mostra tua presença! Mate-me a tua vista e formosura” (CB 11). Para João da Cruz, são duas as visões que matam o ser humano. Uma é a do basilisco, o fabuloso réptil que guarda no bafo e no olhar o poder de matar; a outra é a visão de Deus. Enquanto uma mata com um poderoso veneno, a outra mata com a saúde e a glória (CB 11,7). Para a amada não é nenhum sacrifício morrer diante da formosura divina. Ela reitera: “Se percebesse um só vestígio da beleza e sublimidade de Deus, não desejaria apenas uma morte, como aqui, para contemplá-la eternamente, mas mil acerbíssimas mortes...” (CB 11,7)[49]. Para López-Baralt, “a emissora dos versos toca levemente a intuição fundamental de eros e tánatos: a posse amorosa é tão radical que permite a intuição da perda do ser. Dito de outro modo, o ego se apaga (ou a identidade se rende) quando se transforma no objeto amado”[50]. E João da Cruz é bem claro a respeito em seu comentário: “É necessário saber que o amor jamais chegará à perfeição até que se juntem os amantes em unidade, transfigurando-se um no outro” (CB 11,11). Comparada às demais estrofes, esta vem marcada por diferenças que são bem definidas, como mostrou Jean Baruzi. Nela aparecem palavras bem abstratas: presença, figura, vista, formosura. Este autor sublinha ainda seu estranhamento com respeito à utilização que foi feita por João da Cruz de elementos dos comentários da estrofe 6,2[51].
Na estrofe de número 12, João da Cruz prepara o passo culminante de seu itinerário místico. Neste estágio de sua travessia, a amada toca o limiar do mistério. Sob forte atração do centro misterioso de gravidade, ela assemelha-se à “cera que começou a receber a impressão do selo”, mas o desejo de proximidade acirra ainda mais sua ousadia. Sente-se como “a imagem que levou só a primeira mão, e ficou apenas no esboço” (CB 12,1). Neste momento jubiloso a amada “perde” a identidade. Em sua análise do Cântico, López-Baralt, assinala que ela já vinha perdendo a corporeidade na medida em que o poema avançava: é uma amada “que não tem rosto, nem identidade, nem vulto corpóreo (...)”[52]. E a estrofe é bem rica para evidenciar esta surpresa descomunal. De modo bem diverso do mito de Narciso, a protagonista quando agora se debruça sobre a “cristalina fonte”, vê refletida não a sua imagem, mas a do Amado. Nos “semblantes prateados” da claríssima nascente a imagem que forma é aquela que está desenhada nas entranhas da amada (CB 12). De forma magnífica, a estrofe consegue solucionar a pergunta feita pela amada no início do Cântico: “Onde é que te escondeste?” (CB 1). A resposta vem agora desvelada no espaço de sua própria ipseidade, onde o Amado se revela, ou seja, nela mesma. É algo semelhante ao que foi descrito por Attar na sua conhecida obra “Linguagem de Pássaros”. Depois de atravessarem os sete vales de dificuldades, os trinta pássaros que sobraram entre todos os que partiram em busca do Simorg, o rei dos pássaros, irrompem nas portas de seu Reino e dão-se conta que a luz do Simorg transparece no reflexo de seus rostos[53].
Na visão de López-Baralt, o que ocorre aqui é uma “extraordinária novidade literária” de João da Cruz, ao sugerir este “narcisismo jubiloso”, utilizando a metáfora espiritual e universal da água[54]. Com base em suas pesquisas sobre a contextualidade islâmica, esta autora sublinha que em sua reflexão sobre a “união transformante” o místico espanhol aproxima-se da radical experiência de alguns místicos sufis, como Abū Yazid Bistami (sécs. VIII e IX dC), conhecido pela embriaguês de suas locuções teopáticas. O transe da amada diante da “cristalina fonte” vem descrito como uma experiência semelhante a de Bistami que gritava: subhānī (Louve a mim), em momento extremo de seu êxtase místico. Na expressão de sua “auto-glorificação” o célebre místico sufi indicava que no momento preciso da união total dissolvia-se a substância de seu eu para somente Deus brilhar[55]. Mas segundo López-Baralt, o místico espanhol foi mais acanhado que seus “entusiastas colegas sufis” e se detém um pouco antes do atrevimento de um arrebato místico que o faria dizer, como Bistami, “louve a mim”. A amada, diante da cristalina fonte, vive em profundidade a união participante, mas não ousa dar o passo teopático mais radical[56].
Em sua explicação, João da Cruz assinala que os “semblantes prateados” da cristalina fonte “cobrem o ouro dos divinos raios” (CB 12,4)[57]. O desenho do Amado brota do interior mesmo da amada e se reflete na claríssima nascente. Há entre os dois uma viva “união de amor”, sendo possível afirmar
“que o Amado vive no amante, e o amante no Amado; é tão perfeita a semelhança realizada pelo amor na transformação dos amados, que podemos dizer: cada um é o outro, e ambos são um só “(CB 12,7).
O mistério de Deus permanece no coração da amada como um selo (CB 12,8). Nela está entranhado. À medida que a amada avança em sua caminhada e se aproxima do mistério de Deus, a sede desta fonte viva se radicaliza. E atormentada por este desejo ardente enfrenta com vigor todas as intempéries que encontra pelo caminho: “dificuldades do mundo, fúrias dos demônios, penas infernais, tudo seria pouco para a alma sofrer, a troco de engolfar-se no abismo dessa fonte de amor” (CB 12,9)[58].
A experiência da amada na cristalina fonte diante da força dos raios divinos foi impactante. Os raios de sua grandeza “foram tão sublimes e com tanta força comunicados, que a fizeram sair de si por arroubamento e êxtase” (CB 13,2). Era extremamente frágil e sutil a linha divisória que a “separava” de seu amado, a “tela” que impedia o radical e doce encontro. Ao sentir perder sua própria identidade ela roga ao Amado: “Aparta-os, meu Amado, que eu alço vôo” (CB 13)[59]. A amada implora ao Amado apartar de si os seus olhos divinos, porque eles a “fazem voar”, e sair de si mesma à contemplação mais admirável (CB 12,2). Como diria o compositor brasileiro, “não dá para segurar, explode coração!”. A sublime comunicação que ela recebe do Amado é mais possante que a sua capacidade de acolhida. Não pode receber tal conhecimento “sem que lhe custe quase a vida”. Ela vê-se obrigada a afastar tal “secreta mirada”[60]. Mas o que ocorre, mais uma vez, é a aporia recorrente no Cântico, que desvela uma simultaneidade de direções: a amada alça vôo para dentro de si mesma, e vive a dinâmica do estupor[61]. O poeta e místico nicaragüense, Ernesto Cardenal, expressou com clareza o significado da experiência: “não sabemos que no centro de nosso ser não somos nós mesmos mas Outro”[62]. Neste momento, o Amado lança pela primeira vez sua voz no poema e grita: “Regressa, ó paloma, que o cervo vulnerado já pelo outeiro assoma na brisa de teu vôo e fresco toma” (CB 13). Como explica João da Cruz, “em vez de satisfazer o desejo da amada, o Esposo apressou-se em impedi-lo e em cortar-lhe o vôo, dizendo Volve-te, columba” (CB 13,2). Como ainda se encontra num estado de progressão (via iluminativa), a amada não consegue abrigar tais comunicações divinas numa dinâmica de “paz e suavidade” (CB 13,6). Vive ainda sob o impacto de arroubamentos diante do vigor dos olhos divinos, que se traduzem como um “forte desconjuntamento dos ossos” (CB 13,4). Quando o Amado intervém, interrompendo o êxtase, quer dizer à amada que “não é ainda chegado o tempo de tão alto conhecimento” (CB 13,8).
c. A via unitiva
Um momento culminante do Cântico Espiritual encontra-se nas estrofes 14 e 15 (CB 14-15), que dão início ao núcleo de intensidade artística e mística do poema, quando então irá ocorrer o êxtase transformante. Trata-se, segundo João da Cruz, de um “alto estado e união de amor” que dá remate ao longo processo de exercício espiritual que acompanha os momentos purgativo e iluminativo (CB 14,2). Dá-se agora a afirmação do “desposório” espiritual, que havia começado na estrofe 13 (CB 13). Nesta nova etapa, a amada
“não faz outra coisa senão contar e cantar as magnificências de seu Amado, conhecidas e gozadas nessa união do desposório. Assim, nas demais canções já não se fala de penas e ânsias, como fazia anteriormente, mas só trata da comunicação e exercício de amor suave e pacífico, com seu Amado” (CB 14,2).
Estas duas estrofes nucleares inserem-se entre as liras mais ricas de amor de todos os tempos, de uma profundidade abismal, e traduzem uma experiência espiritual única:
“Meu Amado, as montanhas,
os vales solitários nemorosos,
as ilhas mais estranhas,
os rios sonorosos,
o sibilar dos ares amorosos;
a noite sossegada,
nos raios suavíssimos da aurora,
a musica calada,
a solidão sonora,
a ceia que deleita e enamora”[63].
Na visão de López-Baralt, estas enigmáticas liras do poeta místico desconcertam a capacidade racional dos humanos. São versos “fundamentalmente misteriosos para nossa intelecção estritamente intelectual por sua ausência de verbo e sua ofegante torrente de imagens desconexas”, animadas por “marcado ritmo encantatório”[64]. As imagens apresentadas pelo poeta são, na verdade, aparentemente desconexas, pois sinalizam uma outra lógica, que é “a-racional”[65]. A força tensional dos oxímoros enriquecem ainda mais a construção poética: “a musica calada”, “a solidão sonora”. O que ao primeiro olhar parece absurdo revela, porém, valores que são preciosos. O estudioso Michel de Certeau marcou em sua análise esta “audácia” de João da Cruz: a sua capacidade de “manipulação técnica”, que aos olhares externos pode soar como “dislates”. Como um grande poeta, o místico espanhol, “desnatura a língua”, que abandona sua tradicional função de imitação das coisas. Em sua prática de desapego lingüístico ele “atormenta as palavras para fazê-las dizer aquilo que, literalmente, não dizem”[66].
A protagonista do Cântico, que havia antes buscado o Amado pelos bosques, montes, prados e outeiros, dá-se conta agora que ele mesmo está incorporado nessas paisagens: “Meu Amado, as montanhas”. Na dinâmica de “imagens alucinadas”, João da Cruz dá vida a registros que são vivamente sensoriais. Curiosamente, o monge asceta reencontra em Deus os deleites táteis e gustativos que tanto se negou em vida[67]. Mediante o procedimento metafórico de equiparação do Amado com as montanhas, o místico indica que Deus só pode ser descrito de modo alusivo, sugerido e não explicado. Para ele, “Deus, a quem se encaminha o entendimento, ultrapassa o mesmo entendimento; e, portanto, é incompreensível e inacessível ao entendimento; se, pois, o entendimento vai entendendo, não se vai aproximando de Deus, mas vai antes se apartando dele”[68]. Na visão englobante do poeta, todas as coisas criadas são portais do Amado: “cada uma destas grandezas que se atribuem a Deus, e todas elas em conjunto, são o próprio Deus” (CB 14,5)[69]. Mas Deus é sempre uma “ilha estranha”, seja aos homens, anjos e santos que o contemplam. Ele sempre se manifesta como novidade ao coração acolhedor, é um Deus que “se move”. Nesse sentido, os seres humanos, por mais que se esforcem, “jamais acabam ou acabarão de vê-lo; até o último dia, o do juízo, vão descobrindo nele tantas novidades a respeito dos seus profundos juízos, e das obras de misericórdia e justiça, que sempre lhes causa nova admiração e cada vez mais se maravilham” (CB 14,8)[70].
No momento unitivo, a noite deixa o toque de sua obscuridade e ganha um traço tranqüilo e sereno. É uma noite que anuncia, agora, os “levantes da aurora” (CB 15,23) que, para João da Cruz, simbolizam a manhã da luz divina.[71] É um tempo de suavidade, de “conhecimento sossegado” (CB 15,25), de percepção da sonoridade espiritual (CB 15,26) e de regozijo amoroso. Daí falar João da Cruz em “ceia que deleita e enamora”. A imagem é gustativa, expressando uma ciência que é saborosa. E trata-se aqui, como sublinha López-Baralt, não da ceia eucarística, mas do alimento que “é o próprio Amado” (CB 15,29). Trata-se do panis angelicus, do qual nutrem-se os anjos, em sua gozosa visão divina[72]. No momento unitivo, a amada participa do deleite e gozo do próprio Amado, resultado de uma “divina união”.
Nas três estrofes seguintes (CB 16-18), João da Cruz menciona as resistências impostas ao itinerário da amada. Não há como conservar o “deleite íntimo de amor” deste momento unitivo senão afastando os possíveis estorvos e turbações. É necessário afastar as “raposas”, que traduzem “o conjunto de apetites e movimentos sensitivos” (CB 16,5); deter o vento Bóreas, o vento muito frio que murcha as flores, e que na alma produz um semelhante efeito de secura espiritual (CB 17,3)[73]; manter também fora dos umbrais as “ninfas da Judéia”, ou seja, as imaginações, movimentos e inclinações da parte inferior da alma (CB 18,4)[74].
Neste momento de união mais íntima, o Amado vem também nomeado de “Querido” (Carrillo): “Esconde-te, Querido! Voltando tua face, olhas as montanhas” (CB 19). Trata-se agora de um “diálogo entre iguais”, ou seja, “entre esposos convertidos não apenas numa só carne, mas, o que é mais dramático, num só espírito”[75]. Seguindo uma lógica de inversões, agora é o Amado que poderia exclamar: “Minha amada, as montanhas”[76]. O grande anseio da amada é recolher o Amado no mais íntimo de si (CB 19,3), ser tocada por ele no âmago de sua substância, ser penetrada por sua divindade. O que deseja é “conhecer a Deus pela sua face”, e não pelas costas como Moisés (CB 19,4)[77].
Como sublinha João da Cruz, para que alma possa atingir o alto estado de perfeição, que é o matrimônio espiritual, deve estar purificada de todas as imperfeições (CB 20,5-11)[78], bem como animada de “grande fortaleza e mui subido amor para que se torne capaz de tão forte e estreito abraço de Deus” (CB 20,1). O que vigora no estado unitivo é a presença de “amenas liras”, que traduzem a delicada e suave presença do Amado junto à amada. Os dissabores cessam e o que se ouve são os deleites do “canto de sereias” (CB 21,16). A amada está protegida por um “cerco de paz” (CB 21,18).
O matrimônio espiritual inaugura-se na estrofe 22: “Entrou enfim a Esposa no horto mais ameno desejado”. Este novo momento expressa uma união que significa “transformação total no Amado” (CB 22,3)[79]. Dá-se agora uma “certa consumação de união de amor, em que a alma é feita toda divina, e se torna Deus por participação, tanto quanto é possível nesta vida” (CB 22,3). Enquanto na estrofe 17 a amada era o horto que atraía o desejo do Amado, agora é o Amado que aparece como o horto desejado da amada, em cujos braços ela repousa o “colo reclinado”[80] Como indica Lima Vaz, a página central da literatura mística cristã encontra-se na descrição da união divina, enquanto “união teopática”[81]. Mas não é tarefa fácil captar a forma como se dá tal união em João da Cruz. A poesia parece mais ousada que a prosa. Em seus comentários, João da Cruz vai frisar a idéia de união “por participação”[82], ou então falar de “certa consumação na união”. Tais considerações amenizam a idéia de uma unitas indistinctionis, típica da mística presente em autores como Hadewijch de Amberes, Marguerite Porete ou Mestre Eckhart, entre outros. De acordo com Juan Martín Velasco, mesmo utilizando imagens pertencentes ao acervo da mística da unitas indistinctionis, como por exemplo “o centro da alma é Deus”[83], João da Cruz mantém com clareza a idéia de que “a união do matrimônio espiritual não conduz à fusão das substâncias, mas à conformidade das vontades”[84].
No Cântico, o horto transforma-se em “locus paradisíaco” onde acontecerá a união de amor. Sob o pé da macieira, a amada será desposada[85]. É o sublime momento onde o Amado comunica seus “doces mistérios” (CB 23,1). Nesta estrofe aparece um dêitico que terá um lugar muito importante na poesia do Cântico. Trata-se do advérbio demonstrativo “ali”. Este dêitico, que aponta ou mostra, está sempre relacionado a uma noção de espaço. Como aponta López-Baralt, “foi ali, nesse indeterminado e inominável ali da própria identidade da protagonista poemática onde se deu o milagre da união transformante”[86].
Na estrofe 24 aparece a bela imagem do “leito florido”, onde a amada receberá do seio do Amado “a comunicação de seu amor” (CB 24,3). A referencia vem tomada do Cântico dos Cânticos: “Nosso leito está florido” (Ct 1,16)[87]. É por sua condição nupcial que o leito encontra-se florido, e as flores expressam “o momento indescritível da transformação teopática”[88]. É curioso observar que as flores, antes recusadas (CB 3), tornam-se agora o adorno essencial do leito amoroso. A mesma amada que recusava colher as flores, viverá a experiência da união num leito florido. E igualmente sua grinalda será tecida de “flores e esmeraldas” (CB 30)[89]. O cenário que o poeta apresenta é marcado por rica atmosfera estética, e toda a criação resplende de brilho e fulgor[90]. O leito da união mística é um leito florido, tecido de púrpura e de paz edificado. Está abrigado de todos os perigos. Assim também a amada, neste momento sublime, encontra-se segura e defendida, pois animada pelas virtudes dos leões, que são animais de fortaleza e ousadia (CB 24,4). Está agora “livre de toda perturbação das paixões naturais, alheia e desprendida do bulício e variedade dos cuidados temporais (...), goza com segurança e tranqüilidade a participação de Deus” (CB 24,5).
É nos rastros ou pisadas do Amado que a amada vai aos poucos descobrindo o seu mistério. Trata-se de um conhecimento “cheio de suavidade” (CB 25,3), e que imprime na amada uma dinâmica singular, tornando-a “muito ligeira para correr após o Amado” (CB 25,4). Também Agostinho, nas Confissões, assinala a força motora dessa presença: “Vamos, agora age, Senhor; agita-nos, convoca-nos, dá-nos logo tua luz, leva-nos contigo; faze sentir teu calor e tua doçura: depois vamos todos nos amar, e correr pelos campos”[91]. Para João da Cruz, os caminhos que levam ao Amado são diversificados. Alguns seguem suas pisadas em obras exteriores, outros no exercício da interioridade. Neste último caso, as “visitas íntimas do Amado” podem ocorrer como “toque de centelha” ou na embriaguez do “temperado vinho” (CB 25, 5-6). O “toque de centelha” vem caracterizado como um “contato muito sutil” do Amado, que incendeia no coração o fogo do amor. Mas “a centelha toca a alma e se extingue” (CB 25,8). Já o “temperado vinho” é um toque diferente, que dura por muito mais tempo. Este vinho especial vem concedido “às almas já perfeitas” (CB 25,7-8).[92]
No momento unitivo a amada encontra-se “revestida de Deus” e “banhada de divindade”, e isto não só no âmbito da superfície, mas “no íntimo do seu espírito” (CB 26,1). João da Cruz insere de forma rica e poética o matrimônio espiritual no “horto ameno” (CB 22) e na “adega interior” (CB 26).[93] É ali na “adega” que acontece a verdadeira borracheira mística: “Na interior adega, do Amado meu, bebi” (CB 26)[94]. São palavras simples, mas de uma densidade única. João da Cruz, em seu comentário, indica que é ali nesta adega interior que Deus se comunica à amada, “com admirável glória, transformando-a nele” (CB 26,4)[95]. E para expressar o que ali ocorreu, que é totalmente inefável, a única palavra adequada que a amada encontra para traduzir algo do mistério experimentado é: “Do Amado meu, bebi” (CB 26,4).
E como ocorre em qualquer estado de embriaguez ou borracheira, a bebida vai tomando conta de todas as veias do corpo e a pessoa se transforma. Assim também com a amada, tomada pelo Amado. Embriagada pela divina comunicação, ela “se transforma toda em Deus” (CB 26,5).[96] A força da Presença é tal que ao sair da adega, a amada perde a consciência de tudo: “quando eu saía, por toda aquela várzea, já nada mais sabia” (CB 26)[97]. Saciada pelo vinho da “altíssima sabedoria de Deus”, a amada esquece todas as coisas do mundo, e até mesmo o que antes sabia. Todo o acúmulo de seu saber apaga-se diante daquela “ciência divina” e sobrenatural (CB 26,13). Este sentimento de “não saber” que acompanha a união (CB 26,14), foi igualmente experimentado pela esposa do Cântico dos Cânticos: “E sem o saber, coloquei-me sobre os carros de Aminadib!” (Ct 6,11).
No misterioso e inespecífico lugar, definido pelo simbólico dêitico ali, o Amado dá o seio à amada e dita-lhe ciência saborosa (CB 27). Ocorre mais uma vez uma lógica de inversão, típica do mestre espanhol, que sublinha o lado feminino e materno do Amado. E a “ciência saborosa” que ele oferece como dom é a própria teologia mística, entendida como “ciência secreta de Deus” (CB 27,5)[98]. E esta experiência de intimidade com o Amado não isola a amada do mundo, mas a lança com força inaudita ao serviço do amor: “pois é somente amar o meu exercício” (CB 28 e CB 28,2). Também no Cântico dos Cânticos, a esposa senta-se na deleitosa sombra do Amado, mas logo em seguida, depois de introduzir-se na sua adega, vê desfraldada diante de si a bandeira do amor (Ct 2,3-4). Na realidade, a conversio morum dá seqüência à conversio cordis. Como bem expressou Juan Martin Velasco, o estado teopático, enquanto etapa derradeira de realização da experiência mística, não desloca o sujeito do mundo, mas “o devolve à vida diária que, recentrada pelo exercício da opção teologal, da experiência da fé, permite-lhe viver divinamente, com um novo valor, com um novo sentido”[99].
Se para o olhar superficial a experiência da união pode parecer estranha, como se os amigos de Deus estivessem “perdidos para aquilo que o mundo aprecia e estima” (CB 29,5), para estes trata-se de uma entrega ao mais alto amor. Os verdadeiros amantes não são vistos por aqueles que se fixam e perambulam pela praça, pois eles superam a dinâmica dos nomes e formas (nama rupa) que domina a lógica limitada do mundo. O que para uns significa perda, para os amantes significa ganho. Os enamorados de Deus são como os rios que perdem seus nomes ao chegar no mar: “andando enamorada, tornei-me perdidiça e fui ganhada” (CB 29). O único desejo que anima a alma enamorada de Deus é “perder tudo e a si mesma, voluntariamente, por Deus, e nisto encontra todo o seu lucro” (CB 29,11).
Numa das estrofes finais do Cântico Espiritual encontra-se um dos passos mais ousados utilizados por João da Cruz para expressar a união mística: “Gozemo-nos, Amado, e vamos ver em tua formosura o monte e o escarpado, donde mana água pura; entremos inda mais nesta espessura” (CB 36). O místico espanhol retoma sua magistral lição unitiva por um surpreendente caminho. A amada está agora transfigurada em pomba e convida o Amado para o gozo mútuo. A autora Luce López-Baralt, ao analisar esta passagem, sublinha a “valentia literária” de João da Cruz, que retoma com fidelidade o epitalâmio ebraico, que é certamente “o poema mais refinadamente erótico da história da humanidade”[100]. A amada convida o seu Querido para alçar vôo em busca do “monte e o escarpado”, onde poderão adentrar-se na “espessura”. E o convite vem motivado pelo ardente desejo de engolfar-se e “embrenhar-se mais em seu Deus” (CB 36,11)[101]. É ali nas “mais subidas cavernas” que se dará o encontro amoroso, e os amantes poderão sorver “o mosto das romãs” (CB 37). Para João da Cruz, assim como dos diversos grãos das romãs sorve-se um mesmo suco, é também das diversas maravilhas de Deus que se dá a singular fruição e deleite de amor, oferecido pelo Espírito (CB 37,8), ou seja, “sob a aparente multiplicidade dos grãos da fruta subjaz a absoluta e indiscutível unidade de Deus, representada pela bebida embriagante”[102].
Na visão do Cântico dos Cânticos, é também nas “subidas cavernas” que se aninham as rolas. É nas “fendas da rocha, no esconderijo escarpado” que a esposa convida o Amado para mostrar o seu rosto (Ct 2,14). É daí que João da Cruz se inspira para falar de seu misterioso “ali”, que é o lócus unificado da união amorosa e mística. É ali no mais escondido das cavernas que se dará a celebração nupcial (CB 37). É ali que o Amado vai desvendar para a amada o que “sua alma pretendia” (CB 38)[103].
E na “noite serena” da união mística as únicas testemunhas do fervoroso encontro serão a brisa e o doce rouxinol (CB 39). A inserção do rouxinol (a doce Filomena) neste momento culminante do Cântico vem carregada de valor simbólico. É uma ave que tem longa e rica história na tradição mística cristã, mas também sufi[104]. É um pássaro de canto noturno, e sua voz “se ouve na primavera, quando já passou o inverno” (CB 39,8) e as flores se anunciam. Nada mais deleitoso do que poder ouvir esta suave melodia depois do rigoroso inverno[105]. A amada do Cântico, no derradeiro momento unitivo, livre de todas a tribulações, “sente-se numa nova primavera, com liberdade, dilatação e alegria de espírito; aí ouve a doce voz do Esposo, que é o seu doce rouxinol” (CB 39,8). Partilha agora a presença duradoura do Amado numa noite que é serena, uma noite mística. Neste sublime momento, a amada está protegida de todo cerco ameaçador, “profundamente adentrada no recolhimento interior” (CB 40,2). Está agora “sob o amparo do abraço de Deus” (CB 40,3).
Conclusão
Não é fácil abordar a complexidade desta magnífica obra de João da Cruz. As possibilidades de sua interpretação são inúmeras e diversificadas. O que se buscou fazer aqui foi apenas uma tentativa de aproximação do tema da busca do Amado, tendo como referência algumas das estrofes mais importantes do livro. É verdade que não se trabalhou todas as estrofes, e nem se aprofundou todas as nuances de compreensão das estrofes analisadas. Foi mais um exercício de apresentação do tema, temperado com alguns toques de interpretação. O trabalho foi igualmente marcado por sensibilidade inter-religiosa, de forma a favorecer a leitura de interlocutores de outras tradições, abrindo o apetite para o aprofundamento na mística cristã. Sem desconhecer as diferenças que pontuam a identidade e experiência dos grande místicos nas distintas tradições religiosas, há que reconhecer, porém, “equivalências ocultas” (Simone Weil) e “semelhança existencial” (Thomas Merton). E disto não há dúvida.
É impressionante o vigor e criatividade da reflexão de João da Cruz. São mais de 460 anos que separam o seu nascimento do momento atual. E sua obra continua a suscitar interesse e paixão. Os dados estatísticos apontam mais de 5.000 estudos publicados sobre João da Cruz ao longo do século XX[106]. E não é só questão de interesse acadêmico. É uma obra que aponta caminhos e luzes na trajetória de crescimento espiritual. Como indicou Collin Thompson, João da Cruz é um autor que continua “contemporâneo” e permanece inspirando a reflexão por sua aguda e penetrante visão[107].
Dentre as inúmeras riquezas presentes na obra de João da Cruz, e em particular no Cântico Espiritual, vale assinalar sua abertura ao mundo, sua sensibilidade estética e sua delicadeza e cortesia para com todos os elementos da criação. É assombrosa sua capacidade poética de abrir os olhos dos leitores para a beleza da natureza, para a maravilha inaugural de suas nuances; mas também para as paisagens interiores. É também contagiante sua liberdade de reflexão, sua ousadia de avançar para além dos exoterismos instituídos e relativizar as mediações humanas; uma liberdade que alonga as cordas sem quebrar o valor da domiciliação identitária. É um mistico que coloca o leitor diante de um Deus que é permanente surpresa, um Deus que é movimento e abertura.
Ao abordar no Cântico Espiritual o progresso espiritual como um “itinerário do sujeito em direção ao centro de si mesmo”, João da Cruz aponta para uma experiência “análoga à dos mais audaciosos dos seus contemporâneos”. É o que revela a lúcida análise de Michel de Certeau. Assim como Descartes em seu Discurso do Método busca “reconstruir a ordem dum universo a partir duma perceptio do infinito do eu”, assim também os grandes autores espirituais dos séculos XVI e XVII. Eles são igualmente “inspirados pelo mesmo problema radical (o do sujeito) e guiados pelos mesmos critérios (experiências que assinalam o processo duma descoberta pessoal)”[108].
Quando se acompanha a protagonista do Cântico em seu processo de descoberta pessoal, constata-se igualmente a impressionante percepção de que no fundo do eu habita um Outro, e que ele buscou a amada muito antes dela empreender sua jornada em sua direção[109]. A tradução viva desta gratuidade do amor do Amado talvez seja a razão mais misteriosa da sedução de João da Cruz. Numa de suas obras mais clássicas, Simone Weil tinha assinalado que a amizade dos amigos de Deus é o que mantém viva a intensidade da mirada em Deus[110]. E para ela, João da Cruz foi um desses “amigos de Deus”. O que a ela mais impressionava no místico espanhol era sua sensibilidade ao mundo, seus formosos versos sobre a “beleza do mundo”. E lamentava que este traço estava “quase ausente na tradição cristã”. Para ela, a grande aporia do cristianismo era reconhecer-se, de direito, católico, mas afastar de si as riquezas do universo[111].
A leitura de João da Cruz favorece sempre a abertura, transmite para os leitores uma atmosfera estética de largueza, de transparência, de gratuidade, sensibilidade, sabor e perfume. Sua poesia sobreviveu à obscuridade da prisão, às resistências institucionais e ao clima da inquisição. Não há rastros deste clima em sua poesia livre. Num tempo marcado por representações sombrias de Deus, da irrupção do medo e da culpabilidade, João da Cruz quebra esta barreira apresentando uma imagem de Deus diferente, de um Deus amoroso e benevolente, um Deus cheio de graça e beleza, um Deus rico de futuro.
(Publicado no livro: Faustino TEIXEIRA (Org). Nas teias de delicadeza. São Paulo: Paulinas, 2006, pp. 57-101)
[1] Octávio PAZ. Poesía de soledad y poesia de comunión. In: Las peras del olmo. México: UNAM, 1957, p. 103.
[2] Apud Damaso ALONSO. La poesia di san Giovanni della Croce. 3 ed. Roma: Abete, 1958, p. 11; Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche. Estúdio sobre san Juan de la Cruz. Madrid: Trotta, p. 35.
[3] Damaso ALONSO. La poesia di san Giovanni della Croce, pp. 11-12.
[4] Eulogio PACHO. Cântico espiritual. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz. Burgos: Monte Carmelo, 2000, p. 246.
[5] João da Cruz nasceu no ano de 1542, em Fontiveros (Ávila) e morreu em dezembro de 1591, em Ubeda. O seu nome de família era Juan de Yepes. Teve uma infância muito pobre. Seu pai, que era tecelão, morreu cedo (1545) e sua mãe teve que assumir o cuidado da família. João da Cruz estudou com os jesuítas a partir de 1559. Em 1563 ingressa no convento carmelita, atraído pelo espírito contemplativo da ordem. Assume então o nome religioso de Juan de san Matias. Segue depois seus estudos de filosofia e teologia em Salamanca (1564-1567). O decisivo encontro com Teresa de Ávila ocorrerá no final de 1567, quando então encontra uma luz para a insatisfação vocacional que o dominava no período. Com Teresa, 27 anos mais velha do que ele, insere-se no projeto de reforma do Carmelo, e inaugura em novembro de 1568 em Duruelo (Ávila) a primeira fundação masculina do Carmelo Teresiano. É quando então assume o nome religioso que o fez conhecido universalmente: Juan de la Cruz (João da Cruz).
[6] TERESA DE JESUS. Fundações 3,17. Obras completas. 2 ed. São Paulo: Carmelitanas/Loyola, 2002, p. 609.
[7] Teresa de Ávila, em fragmento de uma carta mutilada (escrita a Gracián, 1578), descreve as condições do cárcere. Chegara a escrever para Felipe II, assinalando que João da Cruz estaria melhor entre os mouros, que dele teriam mais piedade: Jean BARUZI. San Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística.2 ed. Valladolid: Junta de Castilla y Leon, 2001, pp. 207-208.
[8] Eulogio PACHO. San Juan de la Cruz. Historia de sus escritos. Burgos: Monte Carmelo, 1998, p. 106.
[9] Eulogio PACHO. Cántico espiritual. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz, pp. 245-246; Eulogio PACHO. San Juan de la Cruz. Historia de sus escritos, pp. 100-111; Federico RUIZ. Místico e mestre São João da Cruz. Petrópolis: Vozes, 1995, pp. 27-30; A poesia mística de San Juan de la Cruz. São Paulo: Cultrix, 1984, pp. 11-13; Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche, p. 81.
[10] Federico RUIZ. Místico e mestre São João da Cruz, p. 29. E o mesmo autor sublinha: “em condições de estreitamento, obscuridade, paralisia, odor repugnante, ´numa tumba`, compôs o poema com maior sensação de espaço largo, paisagem, movimento, perfume, da poesia espanhola”: Apud Ciro GARCIA. Hombre. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz, p.743; María del Sagrario ROLLÁN. Hermosura. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz, p. 730. João da Cruz conseguirá escapar da prisão em agosto de 1578 e receberá acolhida no convento das carmelitas descalças.
[11] Conforme Jean Baruzzi, esta 11ª estrofe será incluída na edição de Roma (1627): Jean BARUZI. San Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística, pp. 62-63.
[12] Eulogio PACHO. San Juan de la Cruz. Historia de sus escritos, p.187. A superiora das carmelitas de Beas, Ana de Jesús (1582-1621), chegou a pedir formalmente a João da Cruz a redação de um comentário completo sobre o Cântico. A ela João da Cruz destinou o Cântico Espiritual, cujo titulo original parece ter sido: “Librico de las canciones de la Esposa”. Ana de Jesús era uma mulher de grande beleza, e exerceu um importante papel na Reforma do Carmelo. Como João da Cruz, viveu fortes experiências místicas, mas infelizmente nada deixou escrito a propósito. Cf. Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible. San Juan de la Cruz canta al éxtasis transformante. Madrid: Trotta, 1998, pp. 14 e 21.
[13] Jean BARUZI. San Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística, p. 300 e 301. Para Baruzi, “João da Cruz experimentou um êxtase que não é freqüente no misticismo católico e que constitui uma tenaz adesão à beleza cósmica”: Ibidem, p. 298.
[14] Eulogio PACHO. San Juan de la Cruz. Historia de sus escritos, p. 187.
[15] Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible, p. 31. Uma posição que é partilhada por Eulógio Pacho: Cántico Espiritual. In: Diccionario de San Juan de la Cruz, p. 247. Para este autor, a experiência radical vivida por João da Cruz vem melhor traduzida no poema. O comentário, a seu ver, acaba encolhendo ou reduzindo a amplitude da experiência “captada” pela poesia. É o limite da linguagem denotativa, “colocada em razão”. Daí ter João da Cruz assinalado que sua interpretação nos comentários não pode ser tomada como exaustiva ou definitiva: Ibidem, p. 253.
[16] Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche, pp. 215 e 167.
[17] Ibidem, p. 314.
[18] Ibidem, p. 314.
[19] Eulogio PACHO. Cántico espiritual. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz, p. 249.
[20] José Angel VALENTE. Noticia incierta. Apud Teodoro POLO. San Juan de la Cruz: la fuerza de un decir... Madrid: Editorial de espiritualidad, 1993, p. 116.
[21] Jean BARUZI. San Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística, p. 617.
[22] Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche, p. 153. Ver também Luce López-Baralt. San Juan de la Cruz y el Islam. Madrid: Hiperión, 1990, pp. 33-53; Id. Poesia sanjuanista. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz, p. 1183. Mas não se pode excluir igualmente, como vem mostrando Luce López-Baralt, uma influência literária da espiritualidade sufi sobre a obra de João da Cruz: Asedios a lo indecible, p. 17; Abū-l-Hasan al-Nūrī de Bagad. Moradas de los corazones. Madrid: Trotta, 1999, p. 51 (estúdio introductorio de Luce López-Baralt).
[23] Henrique Cláudio de Lima VAZ. Experiência mística e filosofia na tradição ocidental. São Paulo: Loyola, 2000, p. 72, n. 136.
[24] SÃO JOÃO DA CRUZ. Obras completas. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 575 (Prólogo 1). Para o presente artigo seguiremos esta tradução. Para o poema seguiremos também duas outras traduções, de Marco LUCCHESI e Dora Ferreira da SILVA. Cf. Juan de la Cruz. Pequena antologia amorosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000 (tradução e apresentação de Marco Lucchesi) e A poesia mística de San Juan de la Cruz. São Paulo: Cultrix, 1984 (tradução de Dora Ferreira da Silva). Para a edição espanhola, que será também cotejada, cf. San Juan de la Cruz. Obra Completa 2. Madrid: Alianza Editorial, 2003 (Edición de Luce López-Baralt y Eulogio Pacho). No corpo do texto as citações de João da Cruz virão acompanhadas da referencia em parêntesis, sigladas com CB.
[25] A estudiosa Luce López-Baralt vem se dedicando a trabalhar esta questão dos dislates em João da Cruz, e seus paralelos com os šatt dos místicos muçulmanos, ou seja, os ditos emitidos sob os desconcertantes efeitos do transe amoroso. Cf. Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible, p. 29; Id. San Juan de la Cruz y el Islam. Madrid: Hiperión, 1990, pp. 200-202.
[26] Prólogo 2. O conceito de “teologia mística” remonta a Pseudo Dionísio, o Areopagita. Trata-se de um “terminus technicus” para indicar não um tipo particular de experiência, mas “o conhecimento (ou melhor supra-conhecimento) que diz respeito ao mistério de Deus em si”: Bernard McGINN. Storia della mística cristiana in occidente. Le origini (I-V secolo). Genova: Marietti, 1997, p. 231. Para Luis Aróstegui, a forma adjetival místico-mística em João da Cruz, vem expressar um “conhecimento experiencial” e “uma vivencia de amor”. E isto porque “a sabedoria mística ´é por amor` (CB Prólogo 2)”: Experiencia mística. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz, p. 592.
[27] Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche, p. 196. Este autor toma o exemplo da relação entre os reis magos e os pastores para clarear a distinção entre o conhecimento e o amor. Enquanto os reis magos são movidos por uma busca intelectual, o estudo das estrelas, os pastores são atraídos pela maravilha e o amor. Citando o poema de Sidney Godolphin, Thompson indica que os sábios, superando todas as vias do conhecimento, entregam-se, ao final, à experiência da maravilha dos pastores: Ibidem, p. 196-197.
[28] Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche, p. 301. Em sua reflexão, Thompson mostra que é incorreto supor que para João da Cruz todos os buscadores seguem, necessariamente, uma mesma linha retilínia de a a b, livre de curvas ou variações.
[29] Eulogio PACHO. Desposorio espiritual. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz, p. 410; Id. Matrimonio espiritual. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz, p. 929; Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche, p. 202.
[30] Assim que a Amada progredir em seu caminho espiritual vai querer romper “a tela” do doce encontro, ou seja, em perspectiva distinta de Moisés, vai querer “conhecer a Deus pela sua face” (CB 19,4), pedir sua “clara presença e visão de sua divina essencia” (CB 1,4). Trata-se de uma grande ousadia da amada, já que Moisés foi sempre o modelo para os contemplativos, por sua relação íntima com Deus. Mas esteve sempre relacionado com a visão indireta de Deus. Não há como ver aqui uma ressonância do Cântico dos Cânticos: “Minha rola, que moras nas fendas da rocha, no esconderijo escarpado, mostra-me o teu rosto...” (Ct 2,14).
[31] Na primeira Canção da Chama viva do amor, João da Cruz também afirma com vigor: “O centro da alma é Deus” (Ch 1,12).
[32] É bem significativa esta imagem da “saída” da amada em busca do objeto de seu desejo. Também o Cântico dos Cânticos expressa semelhante idéia quando diz: “Levanta-te minha amada, minha bela, e vem!” (Ct 2,13). Toda busca mística se inicia com uma saída. No caso revelador do Cântico Espiritual, trata-se de uma saída para dentro, para o fundo. Trata-se de “um surpreendente regresso à própria ipseidade” Cf. Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible, p. 33. O titulo do diário de um dos grandes buscadores espirituais do século XX, Henri le Saux, traduz de forma muito rica a mesma idéia: “La montée au fond du coeur” (a subida no fundo do coração).
[33] Jean BARUZI. San Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística, p. 665. Sobre a conclusão apressada que alguns estudiosos ou autores podem chegar sobre a imagem negativa da criação em João da Cruz, Colin Thompson adverte: “As criaturas assumirão, em seu devido tempo, o lugar que corresponde como objetos livres e independentes, e no final do caminho se afirmarão em toda a sua variedade e beleza”: Canciones en la noche, p. 262. Isto já acontecerá no Cântico Espiritual, no momento unitivo, mas sobretudo na Chama de amor viva: a idéia de que todos os seres criados “desvendam à alma as belezas próprias de cada um deles, bem como suas virtudes, encantos e graças, e a raiz de sua duração e vida”. Estes seres têm “em Deus sua vida, força e duração” (Ch 4,5).
[34] Giuseppe SCATTOLIN. Esperienze mistiche nell´islam. I primi tre secoli. Bologna: EMI, 1994, p. 63; Ibn ´ARABI. Les soufis d´Andalousie. Suivi de la vie merveilleuse de Dhū-L-Nūn l´égyptien. Paris: Albin Michel, 1995, p. 265.
[35] Bernardo di CHIARAVALLE. Sermoni sul Cântico dei Cantici. v.2. Roma: Vivere in, 1996, p. 49.
[36] Nas diversas tradições místicas é clássico este tema da dor relacionada à separação do Amado. Na abertura do conhecido Mathnawī de Rūmī (séc. XIII dC) está presente o tema do lamento da flauta de bambu, que se queixa do seu desterro: “Desde que me separaram de minha raiz, minhas notas queixosas arrancam lágrimas de homens e mulheres”: Djalāl-od-Dīn RŪMĪ. Mathnawī. La quête de l´absolu. Paris: Rocher, 1990, p. 53.
[37] Como sublinha Colin Thompson, “as feridas sofridas pela alma são ´feridas de amor` (C1,17), como flechas de fogo cravadas na alma, mas que trazem prazer por acender o desejo de Deus”: Canciones en la noche, p. 219. Este autor faz uma brilhante exegese das cinco primeiras estrofes do Cântico: cf. Ibidem, pp. 217ss.
[38] Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche, p. 220.
[39] Pastores que João da Cruz identifica com os “próprios desejos, afetos e gemidos” (CB 2,2).
[40] Na Subida do Monte Carmelo, João da Cruz indica que é a concentração em Deus que possibilita o ardor e o vigor da virtude. E compara com as essências aromáticas, que quando expostas ao ar “se evaporam gradualmente, perdendo a fragrância e a força do perfume” (S 1,10,1).
[41] O desafio do desapego aparecerá em outros momentos da obra de João da Cruz, como na Subida do Monte Carmelo. Em sua explicação assinala: “Enquanto houver apego a alguma coisa, por mínima que seja, é escusado poder progredir a alma na perfeição” (S1,11,4). E exemplifica com a imagem do pássaro amarrado por um fio grosso ou fino: “Verdade é que quanto mais tênue for o fio, mais fácil será de se partir. Mas, por frágil que seja, o pássaro estará sempre retido por ele enquanto não o quebrar para alçar vôo”. Em seu curto tratado sobre o despreendimento, Mestre Eckhart (1260-1327) fala algo semelhante: “A melhor tabuleta para escrever é aquela em que não há nada escrito. Da mesma maneira, precisa sair de meu coração tudo que possa se chamar isto ou aquilo, para que Deus possa escrever o máximo nele, e o mesmo se dá com o coração desprendido”: Mestre ECKHART. Sobre o desprendimento. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 21.
[42] Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible, p. 36.
[43] Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche, p. 222. João da Cruz identifica, assim, o “prado de verduras” com o céu, pois “as coisas nele criadas estão sempre com um verdor imarcessível; não fenecem nem murcham com o tempo” (CB 4,4). Esta imagem de um céu verde, como lembra López-Baralt, não é estranha aos árabes e à tradição sufi, em “cujos códigos literários místicos o verde simbolizava sempre a mais alta espiritualidade”. Na raiz trilítera árabe, kh-d-r, estão envolvidas tanto a noção de verde como a de céu e paraiso: Asedios a lo indecible, p. 37
[44] Nas Confissões, Agostinho sublinha que a natureza responde à sua pergunta sobre “quem é Deus ?” com a sua própria beleza. Em nota, o tradutor da edição brasileira esclarece que Agostinho “não sentiu apenas a Beleza, não a revelou apenas na sua arte literária e na sua teologia tão profunda e exuberante, mas foi também o filósofo que investigou e admirou no mundo as imagens coloridas do Supremo Ser”: Santo Agostinho. Confissões. São Paulo: Abril, 1973, p. 199 (Confissões X, 6).
[45] É sugestivo verificar como esta sexta estrofe do Cântico servirá para conformar a estrofe 11, que estava ausente no Cântico A. Este tema já estava presente na mística sufi, e de forma muito clara em Rābi´a al-´Adawiyya (séc. IX dC). Entre os ditos desta “malata di Dio” atribui-se um muito significativo. Ao ser indagada pela razão de seu permanente pranto ela teria respondido: “A doença da qual lamento é de tal sorte que nenhum médico pode curá-la. O seu único remédio é a visão de Deus”: Giuseppe SCATOLLIN. Esperienze mistiche nell´islam, p. 50. Ver ainda: I detti di Rābi´a. Milano: Adelphi, 1979, p. 32.
[46] João da Cruz mostra em seu comentário da estrofe 7 (em particular 7,9) toda a profundidade de uma teologia apofática: “os que conhecem a Deus mais de perto entendem mais distintamente o infinito que lhes fica por conhecer” (CB 7,9). Na “subida experiência” da amada fica reforçada a convicção “de ficar tudo por entender”. Em outro poema João da Cruz expressou esta idéia de forma magnífica: “O que ali chega deveras de si mesmo desfalece; o que sabia primeiro muito pouco lhe parece e sua ciência tanto cresce que nada fica sabendo, toda ciência transcendendo”: A poesia mística de san Juan de la Cruz, p. 79 (Entrei onde não sabia).
[47] Um tema muito presente na mística sufi persa é o “morrer antes de morrer”. Trata-se de uma condição fundamental para o renascimento espiritual. Cf. Rūmī. Mathnawī IV, 2271, 2272 e 1372. Ver também: Nizami. Layla & Majnun. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 110.
[48] Em outro momento do Cântico, João da Cruz assinala que a amada quando está enamorada não consegue livrar-se do desejo de ver o Amado. Diz que o Senhor faz com a amada algo semelhante ao que ocorre entre aqueles que jogam água na fornalha, “para que cresça e se inflame mais o fogo” (CB 11,1).
[49] Rūmī fala algo semelhante: “Se meu Amado apenas me tocasse com seus lábios, também eu, como a flauta, romperia em melodias”: Mathnawī (prólogo).
[50] Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible, p. 41.
[51] Jean BARUZI. San Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística, p. 63.
[52] Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible, p. 42.
[53] Farid ud-Din ATTAR. A linguagem dos pássaros. 2 ed. São Paulo: Attar, 1991, p. 231.
[54] Há que recordar que na tradição semítica a idéia de fonte está relacionada com o olhar: a fonte como um olho-d´água. O vocábulo hebreu ´ayin designa tanto olho como fonte. E igualmente o vocábulo árabe: ´ayn (que também expressa a idéia de identidade, substância ou individualidade): cf. Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible, pp. 45 e 49; R.Laird HARRIS & Gleason L.ARCHER Jr & Bruce K. WALTKE. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2001, pp. 1109-1110.
[55] A expressão subhānī aparece juntamente com outra clássica do sufismo, Anā´l-Haqq (Eu sou a verdade) – do místico Hallaj (sécs. IX e X dC) – como a mais célebre e audaciosa expressão de toda a mística islâmica. São palavras que ilustram de forma bem clara o fenômeno conhecido como šatt: a “descida” do divino sobre o humano: Les dits de Bistami. Paris: Fayard, 1989, p. 189 n. 15. Em um de seus ditos Bistami assim se expressa: “Louve a mim, louve a mim! Eu sou o meu Senhor, o Altíssimo”: Ibidem, p. 44 (dito 35).
[56] Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible, p. 50-51.
[57] João da Cruz explica que a “substância encerrada na fé”, que ele compara ao ouro, está ainda “vestida e encoberta com a prata da fé”. Neste tempo da história, o “véu” do encobrimento impede a manifestação explícita do “ouro dos raios divinos” (CB 12,4). A pista vem encontrada em Ct 1,11: “Faremos para ti brincos de ouro com filigranas de prata”. A esposa do Cântico, que ansiava pela posse do Amado, recebe de Deus a promessa “de que lhe daria tanto quanto fosse possível nesta vida” (CB 12,4).
[58] Não é sem razão que Durkheim, num outro registro de análise, tenha mostrado com pertinência a força dinamogênica da religião. Em sua visão, “o fiel que comungou com seu Deus (...) sente em si força maior para suportar as dificuldades da existência e para vencê-las. Está como que elevado acima das misérias humanas, porque está elevado acima de sua condição de homem (...)”: Émile DURKHEIM. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 493 (Conclusão).
[59] Não é simples captar no poema a identidade da amada. Como mostra López-Baralt, “ela oscila entre não ter corpo, ser pomba, retornar a um corpo humano e voltar a ser pomba (...). Estamos diante de um poema que canta “vividuras” à margem do tempo e do espaço, e sobre tudo, à margem do pesado lastro da matéria física”: Asedios a lo indecible, p. 98.
[60] E João da Cruz acrescente em seu comentário: “O grande tormento, pois, que sente a alma na ocasião de visitas dessa espécie, e o extremo pavor que causa essa comunicação por via sobrenatural, levam-na a dizer: Aparta-as, meu Amado” (CB 13,4). No livro do Corão se diz que o crente verdadeiro já se estremece quando defrontado com o nome de Deus (C 8,2).
[61] Como mostra López-Baralt, o Amado repete à sua amada uma impossível ordem: “volte-se para mim e longe de mim”. E indica que “só no contexto de um qalb (coração) protéico e com capacidade de movimentos invertidos o desconcerto de tais deslocamentos, que tão bem souberam explorar os sufis, pode ser suavizado”: Asedios a lo indecible, p. 61.
[62] Ernesto CARDENAL. Vida en el amor. 2 ed. Madrid: Trotta, 2001, p. 28. Segundo Baruzi, para compreender a “espinha dorsal do sistema” de João da Cruz é necessário dar-se conta, que Deus “está mais além de todas as nossas maneiras de ser, e entretanto encontra-se em nós mesmos”. Mas para encontrá-lo há que “recuperar essa Luz interior” que habita todo o humano e saber renunciar a tudo o que não seja ela. Cf. Jean BARUZI. San Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística, p. 609.
[63] CB 14-15. A frase inicial da estrofe 14 acabou sendo traduzida de forma imprecisa na tradução brasileira das obras completas de João da Cruz, publicada pela editora Vozes. Contrariando a lógica do poema acabou-se de introduzindo um verbo que desfigura os versos misteriosos do poeta: “No Amado acho as montanhas”. A omissão do verbo é intencional no autor, e traduz um nítido influxo semítico.
[64] Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible, p. 71. Para a autora, “este conjunto de liras produz um efeito de melodia, de um mantra, de um conjuro ou feitiço encantatório: são João, como muitos séculos mais tarde Rimbaud, logra conjurar o leitor com o ritmo hipnótico de sua magia acústica”: Ibidem, p. 71. Com o recurso de símbolos e técnicas que são impressionistas, ou mesmo surrealistas, João da Cruz “parece antecipar a ruptura do século XX com as pautas narrativas e poéticas tradicionais e fomentar assim um caráter aberto a múltiplas interpretações”: Colin THOMPSON. Canciones en la noche, p. 369.
[65] Luce LÓPEZ-BARALT. San Juan de la Cruz y el islam, p. 23. A autora fala no estabelecimento de uma “poética do delírio”: ibidem, p. 52.
[66] Michel DE CERTEAU. La fable mystique 1. Paris: Gallimard, 1982, p. 195. O que ocorre, segundo este autor, é um “destacamento da língua de seu funcionamento natural para a modelar sobre a paixão dos sujeitos locutores”. Ver também: Teodoro POLO. San Juan de la Cruz: la fuerza de un decir..., pp. 98-103.
[67] Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible, p. 72.
[68] Chama viva de amor 3,48. SÃO JOÃO DA CRUZ. Obras completas, p. 899.
[69] E como sublinha López-Baralt, este estado transformante é algo bem distinto do panteísmo, ao qual jamais cede João da Cruz: Asedios a lo indecible, p. 75.
[70] Ver ainda, Chama viva de amor 4,6.
[71] Para João da Cruz, a noite “torna-se um símbolo intraduzível, capaz de gerar novas situações e emoções que se captam paulatinamente”. Ela pode ser ambiente, guia, mediadora etc. É um símbolo que vem atraído “para a esfera de amar: noche amable. Sugere-se uma equação de noite e amor”: Leo SPITZER. Três poemas sobre o êxtase. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 68. É importante também sublinhar o significado de símbolo. Diferentemente da alegoria, “um símbolo quase nunca se realiza em sua essência. Para que se dê um símbolo autêntico, não deve haver correspondência exata entre os diversos planos da experiência nem estes podem substituir-se indiferentemente um por outro”: Jean BARUZI. San Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística, p. 338.
[72] Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible, pp. 80-81.
[73] E clamar pelo vento Austro, que convoca as chuvas e faz germinar a plantação Este vento vem comparado à força do Espírito Santo, que “desperta amores” (CB 17,4).
[74] Uma imagem tomada de Ct 8,4: “Eu vos conjuro mulheres de Jerusalém a que não perturbeis nem façais despertar a amada”. Como assinala López-Baralt, o “jardim aromático da alma” deve estar protegido pela fortaleza amuralhada. E a noção de castelo em árabe, hisn, vem traduzido por fortaleza defendida e matrimônio espiritual: Asedios a lo indecible, p. 108. Para João da Cruz, as “distrações” que ameaçam o refúgio psíquico mais íntimo da amada não podem tocar os seus umbrais. Ela está defendida por um “muro” protetor.
[75] Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible, p. 109.
[76] Ibidem, p. 109. Para López-Baralt, as ações são aqui invertidas, seguindo-se uma lógica de transformação típica do coração (qalb – taqallub). Se antes era a amada que via o Amado refletido nas montanhas, agora é o Amado que fixando-se em sua esposa vê as montanhas: “y mira com tu haz a las montañas” (CB 19). Como explica João da Cruz, “o olhar de Deus é amar”. Por isso a amada pede a Deus que se “esconda” nela, voltando-se para o seu interior e dela enamorando-se (CB 19,6).
[77] Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche, p. 244.
[78] E João da Cruz menciona aqui as “digressões da imaginação” (aves ligeiras); as “acrimônias e ímpetos da potencia irascível (leões); os “atos desordenados” (montes, vales e ribeiras); as “afeições” da dor, esperança e paixão (águas, ventos e ardores).
[79] Segundo Jean Baruzi, o matrimônio espiritual significa em João da Cruz a união de Deus com a alma (a amada), como união de exclusividade, “à margem de todo intermediário, sejam anjos, homens, figuras ou formas”: San Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística, p. 636.
[80] Como indica López-Baralt, quando João da Cruz afirma que a amada penetra no horto do Amado, quer dizer que “recebe já e partilha em plena transparência a vida de seu amado”: Asedios a lo indecible, p. 103.
[81] Henrique Cláudio de Lima VAZ. Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, p. 72. Trata-se do derradeiro estado da consciência mística, onde a consciência do eu vem radicalmente transformada por um processo purificador e afirma-se o sentimento de “viver em Deus”. Cf. Jean BARUZI. San Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística, pp. 605ss; Juan Martín VELASCO. El fenómeno místico, pp. 406-422.
[82] CB 22,3 e Chama viva de amor, 2,34.
[83] Chama viva de amor, 1,12.
[84] Juan Martin VELASCO (Ed.). La experiencia mística. Estudo interdisciplinar. Madrid: Trotta, 2004, p. 32. Este autor prefere falar, como outros, em experiência de “imediatez mediada”. Em sua visão, o que ocorre, na verdade, é que “nem nos momentos supremos termina de romper-se ´a tela desse doce encontro`”: ibidem, p. 33.
[85] Vale aqui registrar a entrada da árvore (macieira) e seu significado simbólico. Trata-se, como mostra João da Cruz, de uma árvore redentora: nela a natureza humana foi violada (o mito de Adão e Eva), mas também reparada (no madeiro da cruz) (CB 23,5).
[86] Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible, p. 85. Este dêitico só aparece no Cântico depois que a amada entra no horto: “Tu foste ali comigo desposada”, “Ali te dei a mão” (CB 23) ; “Ali me deu o seio”, “Ali lhe prometi ser sua esposa” (CB 27); “Ali nós entraremos” (CB 37); “Ali me mostrarias”, “Ali, tu, vida minha” (CB 38); Ali ninguém olhava” (CB 40).
[87] Pode-se destacar também a semelhança com o “peito florido”, de que fala João da Cruz na Noite Escura 6: “Em meu peito florido que, inteiro, para ele só guardava...”.
[88] Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible, p. 83.
[89] Na estrofe 30, João da Cruz sublinha que a grinalda da amada será tecida com as “flores e esmeraldas” colhidas pelas manhãs no amor do Amado.
[90] O poeta fala de uma transformação que invade a alma contemplativa, capaz agora de poder desfrutar no seu íntimo as “flores das montanhas”, “os lírios dos vales nemorosos”, “as rosas perfumadas das ilhas mais estranhas”, “as açucenas dos rios sonoros” e o “delicado perfume dos jasmins dos sussurros amorosos” (CB 24,6).
[91] SANTO AGOSTINHO. As confissões de santo Agostinho. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 129 (Confissões VIII, 4,9).
[92] É sugestivo perceber que ao falar do vinho e da “suave embriaguez” para expressar um “toque” específico do Amado, João da Cruz está trabalhando com um “código místico estrito”, que é reconhecidamente sufi. Cf. Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible, p. 91; A poesia mística de San Juan de la Cruz, p. 39 (estudo introdutório de Dora Ferreira da Silva). Este tema estará muito presente entre os místicos sufis, como em geral na poesia persa. Trata-se de um tema que encontrou resistência tanto na tradição corânica como zoroastriana. Os elementos, vinho, amor, musica e apostasia, muito presentes na poesia persa, eram tidos como mal afamados (bad-nām) na perspectiva do ethos corânico. Mesmo expressamente proibido, o vinho estava sempre presente, como um importante traço simbólico para marcar a embriaguez da união com Deus. Cf. Carlo SACCONE. Il maestro sufi e la bella cristiana. Roma: Carocci, 2005, pp. 23-24.
[93] “A celebração do ´matrimônio` coloca-se poeticamente ´na interior adega` e no “ameno horto desejado` (17 e 27 de CA e 26 e 22 de CB)”: Eulogio PACHO. Desposorio espiritual. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz, p. 410.
[94] João da Cruz retoma uma expressão do Cântico dos Cânticos: “Ele me introduziu na sua adega, e a sua bandeira sobre mim é o Amor!” (Ct 2,4).
[95] E aqui João da Cruz exemplifica com as imagens da vidraça que se confunde com raio de sol que a ilumina, do carvão inflamado e o fogo e da luz das estrelas com o sol (CB 26,4). Uma imagem que aparece igualmente na obra Noite Escura, 2,10,1: da ação “do fogo material sobre a madeira para transformá-la em si mesmo”. E trabalha as diversas etapas desta transformação, até o momento em que a madeira torna-se totalmente seca, depois de inflamada e transformada em fogo.
[96] Não sem razão, Eulogio Pacho assinala que para João da Cruz a embriaguez significa uma “graça especial dentro da fenomenologia do amor místico”: Embriaguez. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz, p. 499. Tanto para são Bernardo de Claraval como para são Boaventura, “a embriaguez espiritual marca o quarto grau no caminho para a união com Deus”: Luce LÓPEZ-BARALT. Granadas. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz, p. 708.
[97] Igualmente santa Teresa, quando fala da entrada da alma no “aposento do céu empíreo”, no interior da alma, ao tornar a si perde a capacidade de descrição: Castelo Interior 6,4,8. In: Obras completas, p. 528.
[98] Esta “oferta dadivosa” do Amado encontra analogia na mística sufi com o conhecimento intuitivo de Deus, a ma´rifa, formulada pela primeira vez pelo místico egípcio Dhu´n-Num. Numa de suas celebras palavras disse: “Eu conheci o meu Senhor por meio do meu Senhor, sem o meu Senhor, jamais haveria conhecido o meu Senhor”: Giuseppe SCATTOLIN. Esperienze mistiche nell´islam, p. 63; Annemarie SCHIMMEL. Le soufisme ou les dimensions mystiques del´islam. Paris: Cerf, 1996, pp. 64-69.
[99] Juan Martin VELASCO. El fenómeno místico, p. 461.
[100] Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible, p. 111. E esta autora sublinha que a expressão “gozar” no Século de Ouro expressava justamente o ato de fazer amor. Daí a ousadia de João da Cruz.
[101] No original a imagem é ainda mais rica: “verse más adentro en su Dios” (CB 36,11). Para João da Cruz adentrar-se na “espessura” traduz “o desejo de uma penetração divina essencial”: Jean BARUZI. San Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística, p. 642.
[102] Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible, p.113.
[103] Nas estrofes 37 e 38 do CB o dêitico ali reaparece três vezes, e isto é bem simbólico. Na edição brasileira das obras completas o dêitico ali vem omitido na tradução da estrofe 37. Os tradutores preferiram captar a idéia: “E juntos entraremos”. No original aparecia: “y alli nos entraremos”. O mesmo ocorreu na tradução da estrofe 38 feita por Marco Lucchesi, que também omite o dêitico presente no original: “allí tu, vida mia”.
[104] É um tema que aparece na obra de são Boaventura, e frei Luis de Granada. Cf. Eulogio PACHO. Filomena. In: Eulogio PACHO (Ed.). Diccionario de San Juan de la Cruz, p. 637. E também, largamente, na tradição sufi. Na literatura mística persa o rouxinol é tido como o “mestre da palavra poética” (sokhan- dān), o depositário da “linguagem dos pássaros”, o clássico representante do “místico amante” que, tomado de nostalgia, versa seu canto em direção à rosa, seu amor impossível. Cf. Farīd al-dīn ´Attār. La rosa e l´usignuolo. Roma: Carocci, 2003 (a cura de Carlo Saccone).
[105] No Brasil, o pássaro que canta anunciando a primavera, nas madrugadas e no anoitecer, é o sabiá. E seu canto é igualmente melancólico e saboroso.
[106] M. Diego SANCHES. Bibliografia sistemática de San Juan de la Cruz. Madrid: Editorial de Espiritualidad, 2000; Salvador ROS GARCÍA. La seducción de los místicos Teresa de Jesús y Juan de la Cruz. In: La mística en el siglo XXI. Madrid: Trotta, 2002, pp. 203.
[107] Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche, p. 14.
[108] Michel DE CERTEAU. Culturas e espiritualidades. Concilium, n. 9, 1966, pp. 14.15.
[109] Dizia João da Cruz, na Chama viva de amor: “Primeiramente estejamos certos de que se a alma busca a Deus, muito mais a procura o seu Amado” (Ch 3,28).
[110] Simone WEIL. A la espera de Dios. Madrid: Trotta, 1993, p. 44.
[111] Simone WEIL. A la espera de Dios. Madrid: Trotta, 1993, p. 100.
Olá, Professor
ResponderExcluirSou estudante de letras da UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA, e pesquisador de São João da Cruz. Por paixão, por religião, e por estudo.
Gostaria de saber se haveria possibilidade de entrarmos em contato para alguns esclarecimentos.
preciso da referencia de alguns de seus textos.
Espero pela resposta com esperança.
Obrigado.
Pode entrar em contato através de meu e-mail: fteixeira@uaigiga.com.br
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