Marcos de uma mística inter-religiosa
Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF
Introdução
Em sua etimologia, a palavra mística deriva de myein: fechar os olhos ou cerrar os lábios. O místico é alguém que vive a experiência do mistério, é o sujeito de uma experiência que tem o mistério como objeto. Inicialmente, o termo mystikòs vem utilizado como adjetivo, e só em torno do século XVII ganha a sua acepção de substantivo[1]. É a partir de então que se começa a falar em linguagem mística, como linguagem nova e singular. No vocabulário cristão, a mística vai designar um modo peculiar de conhecimento de Deus, distinto do conhecimento comum, marcado pela força de uma Presença que excede a capacidade de expressão. Definições distintas desta experiência foram sendo fornecidas ao longo da história: Cognitio Dei experimentalis (Tomas de Aquino); a “união interior de Deus com a alma” (Angelus Silesius); “notícia amorosa de Deus” (João da Cruz); “experiência fruitiva do Absoluto (Jacques Maritain). Vale assinalar a força de dois termos essenciais que envolvem esse modo singular de acesso direto ou imediato ao Mistério e ao Real: a experiência e a presença. Em seus sermões sobre o Cântico dos Cânticos, Bernardo de Claraval assinala que é no “livro da experiência” que se dá o acesso ao mistério de Deus. A seu ver, é através da “experiência” que a inteligência humana pode aceder a campos mais profundos da compreensão[2]. Testemunhos importantes sobre a força desta experiência foram dados por místicos de diversas tradições religiosas. A pensadora francesa, Simone Weil, descreve em carta autobiográfica a pungente experiência de Deus que teve em Solesmes, no ano de 1938: “Cristo mesmo desceu e me tomou”[3]. E igualmente o místico-poeta nicaragüense, Ernesto Cardenal: “Tu também entraste velozmente dentro de mim, e minha alma indefesa querendo tapar suas vergonhas”[4]. Fala-se também em “presença de Deus”, como no belo relato de Teresa de Ávila:
“Vinha-me de súbito, na representação interior de estar ao lado de Cristo, de que falei, tamanho sentimento da presença de Deus que eu de maneira alguma podia duvidar de que o Senhor estivesse dentro de mim ou que eu estivesse toda mergulhada nele. Não se tratava de uma visão; acredito ser o que chamam de teologia mística: a alma fica suspensa de tal modo que parece estar fora de si; a vontade ama, a memória parece estar quase perdida, o intelecto não discorre, mas, a meu parecer, não se perde; entretanto, repito, também não age, ficando como que espantado com o muito que alcança, porque Deus lhe dá a entender que ele nada compreende daquilo que sua Majestade lhe representa”[5].
Os místicos de todas as tradições têm uma consciência muito clara de que o mistério abissal e inalcançável em sua totalidade supera e transborda sempre a experiência. Por mais que se esforcem para expressar a experiência, a fala é pobre e insuficiente para traduzir a riqueza experimentada. O que ocorre muitas vezes, é que eles precisam “atormentar as palavras”, “desnaturar a língua”, para poder descrever, ainda que limitadamente, a força de uma presença iluminadora.
Sem negar a singularidade e especificidade que marcam as diversas tradições religiosas, há que reconhecer a presença de “grandes semelhanças e analogias ao nível da experiência religiosa”[6]. São semelhanças que não apagam as diferenças, e que resguardam o espaço de uma experiência que é sempre única. Mesmo no âmbito da profundidade espiritual há sempre o que partilhar com o outro. Daí a grande dificuldade de julgar a experiência espiritual dos outros, de relativizá-las, ou situá-las em degraus de inferioridade. É extremamente complexo querer interpretar uma determinada experiência religiosa ou mística fora de uma sintonia fina com a mesma. Há que ter grande delicadeza espiritual para poder se aproximar de uma experiência religiosa distinta. Isto vale também para o ajuizamento dos rituais religiosos diferenciados. Eles sempre dizem respeito a uma “experiência primordial” e sua reatualização. São rituais que não transmitem um mero conhecimento, mas sobretudo uma experiência. Como mostrou com acerto Amaladoss, “alguém que não tenha tido a experiência e que a está procurando fora da tradição talvez não a consiga interpretar de modo autêntico”[7].
Simone Weil foi muito criticada por determinados teólogos católicos por ter afirmado que “os místicos de quase todas as tradições religiosas coincidem quase até a identidade”[8]. Contrapondo-se à autora, e também aos defensores de uma filosofia perene, que buscam firmar a “unidade transcendente das religiões”, o teólogo Henri de Lubac buscou sublinhar o dado da “diferença qualitativa” que separa as outras tradições religiosas com respeito à tradição cristã[9]. Em obra clássica sobre o catolicismo, De Lubac reconhece que mesmo fora do cristianismo a humanidade conseguiu alçar, “por exceção”, a vértices espirituais. Mas por força de sua “teologia do acabamento” levanta questionamentos à caridade budista e à mística hindu. Em sua visão, os mais belos e poderosos esforços humanos precisam ser “fecundados pelo cristianismo para produzirem frutos de eternidade”[10].
Não há como negar a diferença entre as tradições religiosas, bem como as peculiaridades que distinguem a experiência e a interpretação do Mistério realizadas pelos místicos das distintas religiões. Há, porém, que recuperar as “equivalências ocultas” e destacar as “profundas semelhanças” que irmanam os místicos em sua trajetória na busca do Real. Reconhecer as diferenças não significa apagar a “intensa confraternidade” que subjaz nas experiências vivenciadas. Este é o grande desafio que anima aqueles que acreditam numa mística comparada e na possibilidade de uma mística inter-religiosa, ou mesmo numa mística para além das religiões.
1. A mística como experiência do Real
Na busca de uma pista positiva para o acesso à compreensão de uma mistica inter-religiosa, o conceito de Real surge como altamente proveitoso. E o autor que aparece aqui como luz para a reflexão é Raimon Panikkar, o teólogo e místico catalão que muito tem contribuído para o desenvolvimento de um enriquecedor debate no campo do diálogo-inter-religioso. Em trabalho publicado em 2005, Panikkar assinala que a mística não é uma especialização, mas uma “dimensão antropológica” que acompanha a pessoa em todo o seu trajeto existencial[11]. O ser humano está animado potencialmente pela capacidade de desocultar o Mistério que habita na realidade, e de fazer irradiar esta experiência para os outros, como as ondas que atingem as margens de um lago. A mística vem por ele descrita como “a experiência da realidade última”, da “experiência integral da realidade”[12]. A categoria “realidade” (ou “Real”) vem escolhida em razão de sua maior neutralidade e por seu potencial macro-ecumênico. A realidade é o símbolo escolhido para traduzir o Tudo (to holon). A experiência mistica é, assim, uma experiência de integralidade, que possibilita o acesso à realidade integral, que pode ser nomeada de diversas formas: Deus, Tudo, Nada, Ser etc. Não se trata de algo superficial ou de mera imediatez, mas de uma inserção profunda no interior mesmo da coisa experienciada. E isto não significa assunção do panteísmo, pois a experiência mistica toca apenas tangencialmente e contingencialmente a realidade. O Mistério permanece aceso. O divino envolve toda a realidade mas a ultrapassa infinitamente.
Por influxo da tradição cristã ortodoxa, mas também da espiritualidade advaita indiana, Panikkar faz recurso à “intuição cosmoteândrica” para expressar as três dimensões da realidade: as dimensões divina, humana e cósmica. São três dimensões que se interpenetram e revelam o enigma fundamental da relação[13]. Esta visão advaita (a-dualidade) favorece uma percepção da realidade que supera tanto o monismo como o dualismo e faz surgir uma harmonia de relação e integração do transcendente com o imanente. Para Panikkar, “a intuição advaita não consiste em afirmar a unidade nem negar a dualidade, mas precisamente, com uma visão que transcende o intelecto, reconhece a ausência de dualidade na base de uma realidade que em si mesma carece de dualidade”[14]. A estrutura própria da realidade é dialógica e harmônica. O ser humano participa de uma “aventura da realidade” que envolve o transcendente e o imanente, que é simultaneamente divina, humana e material.
O grande desafio consiste em despertar para esta realidade, captar a diafania do outro mundo que permeia este mundo, captar os pequenos sinais e a luz que resplende do interior mesmo das coisas. Faz-se necessário afinar o ouvido para o tempo presente, realizar uma “escuta poética” de todo o kosmo. O dom essencial da contemplação, como assinala Thomas Merton, é acordar para a “infinita Realidade que existe dentro de tudo que é real”[15]. É uma experiência que envolve tranqüilidade e atenção permanentes. Não é algo que se restringe a poucos virtuosos, mas está disponível a todo aquele que se disponha a atender ao tempo, com sensibilidade e transparência. Em sua rica experiência na direção espiritual dos noviços trapistas em Gethsemani (EUA), Thomas Merton sinalizava a íntima relação entre vida contemplativa e vida ativa. O exercício da vida contemplativa não era para ele nada de muito complicado, mas um dom de viver simplesmente, de sentir a vida que flui, de avançar em profundidade no grande mistério que habita o tempo. Em suas reflexões para os noviços dizia que a vida do contemplativo “era simplesmente viver, como o peixe na água”[16].
Na observação atenta da aragem da aurora, Merton conseguiu distinguir um “ponto virgem”, entre trevas e luz, que traduz o segredo inefável da presença envolvente do mistério. Na contemplação da noite, antes mesmo da luz real povoar a aurora, quando ainda os pássaros ensaiam os primeiros pios e “a criação em sua inocência pede licença para ´ser`de novo”, o místico trapista desocultou a presença do “ponto cego e suave”, que habita o centro do ser e que identificou com a presença da pura glória de Deus[17]. Trata-se do irredutível centro secreto do coração. Para Merton, esse ponto de simplicidade, de inexprimível inocência, revela o segredo da auto-consciência, liberdade e paz. Um ponto que desvela o “vasto e aberto segredo que lá está para todos, que é gratuito e ao qual ninguém presta atenção”[18]. A inspiração desta imagem do “ponto virgem” (point-vierge) veio do influxo do orientalista francês Louis Massignon, estudioso da mística sufi. Na psicologia mistica do islã, e em particular no pensamento de al-Hallaj, o “ponto luminoso” e primordial traduz a profundidade mística do conhecimento do Real (al-Haqq). Este ponto representa o “centro nevrálgico da esfera do tawhid (unidade)[19]”. Na visão de Hallaj, o princípio orgânico de tudo, que expressa o núcleo da luz original, é esse ponto luminoso (nuqta). É interessante perceber como alguns mestres muçulmanos, estudiosos do Corão, concentram-se na importância do ponto diacrítico que marca a letra ba em árabe. O livro do Corão se inicia com a letra b: Basmala (“Em nome de Deus”). Os mestres sufis sustentam, com base na simbologia esotérica, que o conteúdo de todo o Corão concentra-se no ponto diacrítico do b, que dá início à Basmala.
2. O Real de todos os nomes
Numa de suas belas homilias sobre o Cântico dos Cânticos, Gregorio de Nissa, um dos três grandes Capadócios do IV século, fala da água que se esconde sob a fonte. Se alguém se avizinha de uma fonte, maravilha-se com a riqueza da água que jorra sem cessar. Mas não se dá o acesso a “toda água”, que permanece misteriosamente escondida no seio da terra. E esta água que não cessa jamais de se manifestar, acende permanentemente o desejo do sedento[20]. O Real é como o “olho da fonte”, em seu incessante movimento de generosidade e gratuidade.
Assim como “toda água” da fonte não pode ser acessada, igualmente o Real permanece sempre velado. E a razão para escolher o termo Real para expressar o Mistério último decorre de sua utilização na linguagem de certas tradições religiosas. No judeu-cristianismo define-se Deus como “aquele que é” (Ex 3,14); na linguagem sânscrita do hinduísmo utiliza-se a expressão sat; e no árabe al Haqq. São expressões correspondentes, que buscam traduzir na imprecisa e frágil linguagem humana o mistério maior sem nome. Na tradição budista opta-se pelo “silêncio de Deus”, o que não significa absolutamente ateísmo. A negação funciona como “cifra da transcendência”. Como sublinhou Velasco, o silêncio de Deus praticado por Buda “é a forma mais radical de preservar a condição misteriosa do último, o supremo, apontado por toda religião”[21].
Os diversos nomes que são atribuídos a Deus ou ao Mistério maior, não se aplicam à sua essência, que permanece sempre inatingível. Os nomes implicam sempre um estado de determinação e limite. A “Presença Espiritual”, que irrompe em toda a história, torna-se fragmentária ao manifestar-se no tempo e espaço. Os nomes ou atributos de Deus são “míseros resíduos” que exalam do “perfume da natureza divina”[22], são um barzakh (istmo) que fazem a ponte entre a essência do mistério e o cosmos. Os Místicos de tradições diversas sublinham que o Real está para além dos nomes: mestre Eckhart distingue o Deus em si mesmo do Deus das criaturas; Gregorio de Nissa distingue Deus em sua essência de Deus em seus atributos, que traduzem suas operações na história; Ibn ´Arabi, na tradição sufi, distingue a Divindade absoluta da Divindade das convicções dogmáticas, que é “prisioneira das limitações”; na espiritualidade advaita da tradição hindu, distingue-se o Deus em si e o Deus dos nāmarūpa (nomes e formas). No clássico sermão alemão de numero 2, mestre Eckhart relata a força incandescente e ardente de Deus que flui sem cessar no “burgozinho” da alma. Mas é um Deus “livre de todos os nomes e despido de todas as formas, totalmente solto e livre”[23].
O fluxo da auto-revelação do mistério é sempre contínuo e jamais se repete. Daí místicos como Ibn ´Arabi assinalarem a importância dos buscadores ampliarem suas crenças de forma a poder participar e desfrutar dos inúmeros bens que animam o Real. Não há como impor limites ao Real. As crenças, por sua vez, são sempre fragmentárias; são como vínculos ou ataduras que delimitam o Real. Correspondem às “inumeráveis cores que as pessoas impõem à luz incolor por meio de suas próprias existências delimitadas”[24]. As religiões e crenças são, na verdade, sistemas de símbolos que aludem ao Real, simultaneamente transcendente e imanente. Mas o Real está para além do que dele se consegue captar através dos símbolos. As religiões têm o importante papel de anamnese, ou seja, de recordação viva e atual da dinâmica transformadora do Real, suscitando nas pessoas a provocação em favor do exercício de descentramento egóico e recentramento no mistério do outro. Como bem sublinhou o teólogo John Hick, o Real constitui o ponto de arranque essencial para a transformação humana: “É aquela realidade em virtude da qual, através da nossa resposta a uma ou outra de suas manifestações como figuras de Deus ou dos Absolutos não-pessoais, podemos alcançar o estado bem-aventurado de descentramento egóico, que é nosso bem supremo”[25].
3. O Real e sua fragrância
Mesmo sendo infinito e intangível, o Real manifesta-se na profundidade do ser humano, na centralidade do coração. Num de seus sermões, Eckhart sublinhou que o acesso ao “fundo de Deus” se dá através da profundidade da pessoa, quando esta purifica o seu coração de todos os apegos e vive em humildade a receptividade pura ao dom do mistério. Ele assinala: “Os mestres dizem que as estrelas derramam toda sua força no fundo da terra, na natureza e no elemento terra, produzindo ali o ouro mais límpido. Quanto mais a alma chega ao fundo e no mais íntimo de seu ser, tanto mais a força divina nela se derrama plenamente e opera veladamente de maneira a revelar grandes obras...”[26].
É no fundo do coração que se revela o “portal da misericórdia de Deus”. Mas faz-se necessário um trabalho diuturno de purificação do coração, de rompimento dos nós que impedem o exercício da acolhida do outro e da delicadeza espiritual. Esta idéia do coração como espelho que reflete Deus foi também muito acentuada por Gregório de Nissa. São belas as suas reflexões sobre os “puros de coração” com base na reflexão de Mateus 5,8. De fato, os puros de coração verão a Deus. Mas para que isto ocorra, é necessário que o espelho esteja polido, de forma a poder refletir com ternura e vigor os raios incessantes do Mistério da Luz.
Quando se vai ao fundo, o “perfume difuso” do Mistério se derrama, e o faz queimando todos os “nomes e formas”. Na profundidade consegue-se captar a dinâmica própria do coração, que é movimento, oscilação e pulsação permanente. A cada segundo o coração capta as formas diversificadas e imprevisíveis do mistério do Real. Assim também ocorre quando os fíéis das distintas tradições religiosas buscam adentrar-se na experiência religiosa, mediante o aprofundamento de sua própria religião. Na medida em que aprofundam o seu empenho, se dão conta que o mistério que habita a experiência não pode limitar-se à sua própria religião. O teólogo Paul Tillich percebeu isto com muita clareza: “Na profundidade de toda religião viva há um ponto onde a religião como tal perde sua importância e o horizonte para o qual ela se dirige provoca a quebra de sua particularidade, elevando-a à uma liberdade espiritual que possibilita um novo olhar sobre a presença do divino em todas as expressões do sentido último da vida humana”[27].
O valor e a riqueza de uma religião revela-se no seu potencial de fragrância humanizadora, ou seja, nos seus frutos visíveis. Para Gandhi, o que comprova a verdade de uma religião é a sua “fragrância” de amor, espiritualidade e paz[28]. Em sua carta aos Gálatas, Paulo fala da importância dos frutos visíveis arrolados pelo Espírito: de “amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio” (Gal 5, 22-23). A pista essencial é a de seguir esses frutos do Espírito. O grande místico sufi, Rûmî, expressou com riqueza a centralidade desses frutos visíveis na dinâmica mesma da salvação: “No dia da ressurreição, homens e mulheres comparecerão pálidos e trêmulos de medo para o julgamento final. Eu apresentarei o teu amor em minhas mãos e Te direi: interrogue-o, ele te responderá”[29]. A fragrância de espiritualidade não ocorre, porém, somente nas religiões. Os seres humanos são capazes de desenvolver em alto grau qualidades especiais do espírito, como o amor, compaixão, delicadeza, cortesia, paciência, hospitalidade, cuidado etc. Estas virtudes não são propriedades exclusivas das religiões[30].
Conclusão
Uma autêntica mistica inter-religiosa necessita reconhecer a irradiação universal da Presença Espiritual, da força do Real que envolve todo o universo e empapa toda a história. Trata-se de uma presença que se manifesta nas crenças, mas que as transcende radicalmente. Nada mais essencial que a capacidade de poder ampliar a visão para poder reconhecer a presença do Real em todas as suas manifestações transcendentes e imanentes. Não há como participar de uma visão profunda do Real senão mediante a ampliação das crenças e o reforço no potencial de sensibilidade para saber perceber o divino em toda parte. Como dizia o místico Teilhard de Chardin, “nada é profano” para quem sabe ver. Daí a importância fundamental de uma “educação da vista”. Como dizia outro grande buscador, Henri le Saux, “basta abrir os olhos” para se poder perceber a presença do Graal. Um dos mais ousados místicos de todos os tempos, Ibn ´Arabi, reconheceu como poucos o coração como o lugar por excelência da percepção mistica do Real: um coração capaz de acolher todas as formas. Ele dizia num de seus poemas: “As mais diversas crenças em Deus têm as pessoas. Mas eu as professo todas: creio em todas as crenças”[31]. No mistério da profundidade encontra-se a chave da verdadeira delicadeza espiritual, de uma cortesia singular que faculta perceber a dinâmica da manifestação do divino em todas as formas particulares. Fixar-se exclusivamente na dimensão transcendente (tanzīh) para se captar o divino é um limite; assim como fixar-se na dimensão imanente (tasbīh). Há que combinar as duas dimensões: transcendência e proximidade para se aproximar do Mistério que se doa e acolhe, um Mistério que não é só transcendência, mas também auto-revelaçao para o mundo.
(Publicado em: José Maria Vigil (Org.). Por los muchos caminos de Dios V. Hacia una teología planetária. Quito: Abya Yala, 2010, pp. 163-172)
[1] Michel de CERTEAU. “Mystique” au XVII siècle. Le problème du langage “mystique”. In: Vários. L´homme devant Dieu. Mélanges offerts ao Père Henri de Lubac. Paris: Aubier, 1964, v. II, pp. 267-291.
[2] Bernardo di CHIARAVALLE. Sermoni sul Cantico dei Cantici. v. 1. Roma: Edizioni Vivere in, 1996, pp. 53 e 230 (sermões III,I,1 e XX,I,2).
[3] Simone WEIL. Attente de Dieu. Paris: Fayard, 1966, p. 45.
[4] Ernesto CARDENAL. Telescopio en la noche oscura. Madrid: Trotta, 1993, p. 67.
[5] Teresa de JESUS. Livro da vida 10,1. In: Obras completas. São Paulo: Loyola, 1995, p. 70.
[6] Thomas MERTON. O diário da Ásia. Belo Horizonte: Vega, 1978, p. 245.
[7] Michael AMALADOSS. Pela estrada da vida. Prática do diálogo inter-religioso. São Paulo: Paulinas, 1996, p. 30 ( e também pp. 87-88).
[8] Simone WEIL. Lettre à un religieux. Paris: Gallimard, 1951, p. 53.
[9] Henri de LUBAC. Prefazione. In: André RAVIER (Ed). La mistica e le mistiche. Milano: San Paolo, 1996, p. 22.
[10] Henri de LUBAC. Catholicisme. Les aspects sociaux du dogme. Paris: Cerf, 1947, p. 186. Em semelhante linha de reflexão, o teólogo beneditino Anselm Stoltz (1900-1942), afirmava que só na Igreja católico-romana poderia frutificar uma verdadeira mística, não havendo medida de comparação entre a mística cristã e as demais: A. STOLTZ. Teologia della mistica. Brescia: Morcelliana, 1940.
[11] Raimon PANIKKAR. L´esperienza della vita. La mistica. Milano: Jaca Book, 2005, p. 16.
[12] Ibidem, pp. 58 e 175.
[13] Raimon PANIKKAR. Entre Dieu et le cosmos. Paris: Albin Michel, 1998, pp. 131-136.
[14] Raimon PANIKKAR. Il dharma dell´induismo. Una spiritualità che parla ao cuore dell´Occidente. Milano: BUR, 2006, p. 171.
[15] Thomas MERTON. Novas sementes de contemplação. 2 ed. Rio de Janeiro: Fissus, 2001, p. 10.
[16] Ernesto CARDENAL. Vida perdida. Memórias 1. Madrid: Trotta, 2005, pp. 144 e 204.
[17] Thomas MERTON. Reflexões de um espectador culpado. Petrópolis: Vozes, 1970, pp. 151-152 e 183.
[18] Patrick HART & Jonathan MONTALDO (Eds). Merton na intimidade. Rio de Janeiro: Fissus, 2001, p. 179.
[19] Sthéphane RUSPOLI. Le message de Hallâj l´expatrié. Paris: Cerf, 2005, p. 264.
[20] Gregório de NISSA. Omelie sul Cantico dei Cantici. Roma: Città Nuova, 1996, pp. 225-226 (Omelia XI).
[21] Juan Martin VELASCO. El fenómeno místico. Madrid: Trotta, 1999, p. 161. E o autor continua: “O fato de calar sobre Deus, de não afirmar nem negar sua existência, e, mais radicalmente, de eludir a resposta à pergunta sobre ele – não por não dispor dessa resposta, mas por saber que a pergunta é incorreta, indevida, lesiva da transcendência da realidade à qual se refere -, esse fato é a forma paradoxal, talvez única possível, de fazer eco a uma presença que só pode manifestar-se de forma alusiva...”: Ibidem, pp. 161-162.
[22] Gregório de NISSA. Omelie sul Cantico dei Cantici, p. 52 (Omelia XI). Como sugere Gregorio de Nissa, com base no Cântico dos Cânticos, Deus é um “Perfume difuso”.
[23] Mestre ECKHART. Sermões alemães. Petrópolis: Vozes, 2006, pp. 49-50 (Sermão 2).
[24] William C. CHITTICK. Mundos imaginales: Ibn al-Arabi y la diversidad de las creencias. Sevilla: Alquitara, 2003, p. 283.
[25] John HICK. Teologia cristão e pluralismo religioso. O arco-íris das religiões. São Paulo: PPCIR/Attar, 2005, p. 91 (e também 90 e 41).
[26] Mestre ECKHART. Sermões alemães, p. 296 (Sermão 54a).
[27] Paul TILLICH. Le christianisme et les religions. Paris: Aubier, 1968, p. 173.
[28] Mohandas Karamchand GANDHI. Gandhi e o cristianismo. São Paulo: Paulus, 1996, pp. 131-132.
[29] Djalâl-od-Dîn RÛMÎ. Rubâi´yât. Paris: Albin Michel, 1993, p. 21.
[30] DALAI LAMA. Uma ética para o novo milênio. Rio de Janeiro: Sextante, 2000, pp. 32-33; André COMTE-SPONVILLE. L´esprit de l´atheísme. Paris: Albin Michel,2006; Leonardo BOFF. Espiritualidade. Um caminho de transformação. 2 ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2001, pp. 20-26.
[31] Ibn ´ARABI. La taberna de las luces. Murcia: Editora Regional de Murcia, 2004, p. 24 (seleção, apresentação e tradução de Pablo Beneito).
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