domingo, 30 de setembro de 2012

Joseph Ratzinger e a crise de um papado


Uma avaliação pontificado de Bento XVI – por Marco Politi  (Resenha)

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF

Joseph Ratzinger crise di un papato, por Marco Politi. Laterza, Roma-Bari 2011, 1 vol. It., 140 x 210mm, p. 328 – ISBN 978-88-420-9504-0

Marco Politi é hoje, sem dúvida, um dos maiores especialistas de questões vaticanas, com um reconhecimento internacional. Um nome sempre lembrado entre os grandes vaticanistas, como Giancarlo Zizola, Carl Bernstein, John L. Allen Jr., Luigi Accatoli e Alceste Santini. Dentre suas obras anteriores, destaca-se o best-seller, escrito junto com Carl Bernstein, His Holiness: John Paul II and The Hidden History of Our Time (1996 – com tradução brasileira pela editora Objetiva). Publicou ainda: Papa Wojtyla. L´addio (2007 - Morcelliana); Il ritorno di Dio (2004 - Mondadori); La Chiesa del no (2009 – Mondadori).
            Com sua nova obra, Joseph Ratzinger, crisi di un papato (2011), Marco Politi busca reconstruir , com uma impressionante informação, os primeiros seis anos do pontificado do papa Bento XVI. A tese central defendida pelo autor, é que nesses primeiros anos de pontificado, Joseph Ratzinger mostrou-se um papa competente no âmbito da teologia, uma personalidade de relevo espiritual e intelectual, mas um líder frágil no campo da geopolítica. Um papa “rigoroso nas análises, intransigente na defesa da doutrina e apaixonado na pregação”, mas hesitante na arte do governo e na lida cotidiana dos problemas internos da Igreja. São diversos os passos que traduzem uma clara incerteza na condução estratégica do pontificado (p. 284).
            Diferentemente de João Paulo II, o papa Bento XVI é um papa da palavra, não de grandes gestos. Há uma nítida descontinuidade no estilo, agora pontuado por clara “austeridade espiritual”. Marcou o início de seu pontificado pelo signo da “decantação”, para usar uma expressão do historiador Alberto Melloni, bem como pela intransigente defesa da identidade católica. Politi mostra com clareza que já durante o conclave que o elegeu o lobby pro-Ratzinger não apresentava um projeto vivo para o futuro da Igreja. O traço distintivo era de caráter defensivo, de reação ao mundo contemporâneo (p. 302), bem na linha do clássico livro-entrevista de Ratzinger, Rapporto sulla fede (1985).
            A fragilidade no âmbito da geopolítica reflete-se na dificuldade de um posicionamento coerente e sintonizado com os sinais dos tempos. O que ocorre, muitas vezes, como assinala Politi, é uma práxis de titubeio: “depois de passos falsos, movem-se os interventos de socorro”, como se uma “mão invisível” movesse o pontificado a cíclicas polêmicas e recaídas (pp. 108-109).
            No prefácio que escreveu para a obra, Stefano Rodotà sinaliza que os primeiros seis anos de pontificado de Bento XVI são marcados por uma “linha constelada de incidentes de percurso” que favorecem, sem dúvida, uma exposição da Igreja e a reveladora e impiedosa ação da crônica.  Na visão desse autor, “o teólogo, o estudioso que em determinados momentos parece mais preocupado com a redação de seus livros que com a função pontifical, distancia-se desse estereótipo e abre um momento distinto. É um tempo de retorno à ordem, de pregação ao serviço de uma projeto exigente, com o objetivo de pulir o mundo do pecado do relativismo e mantê-lo protegido dos riscos da ciência” (p. IX).
            Nos três primeiros capítulos do livro aborda-se os passos de preparação e o processo que resultou na eleição de Bento XVI ao papado. De acordo com o ritmo da tradição, Joseph Ratzinger não era um possível candidato em razão de suas posições “polarizantes”. O firme guardião da ortodoxia no pontificado anterior não armazenava as condições para obter os dois terços de votos necessários para a sua eleição. Era uma “personalidade polarizante” com um currículo recheado de atuações polêmicas: com a teologia da libertação (pp. 3-7), com o episcopado americano e as conferências episcopais em geral (pp. 8-9), com o magistério teológico, em razão de uma série de admoestações e punições a renomados teólogos, inclusive a falecidos (pp. 10-12). Alguns dos documentos produzidos no tempo em que era Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé causaram extremo desconforto, como no caso da Declaração Dominus Iesus, publicada em agosto de 2000 (p. 13). As resistências vieram também de segmentos da hierarquia católica, como os cardeais Franz König, Edward Cassidy, Carlo Maria Martini, Karl Lehman e Walter Kaspers (pp. 8 e 13-14).
            Na Missa pro elegendo pontífice, a homilia proferida pelo cardeal Ratzinger dá o tom de sua perspectiva: a busca de uma fé clara e a radical crítica da denominada “ditadura do relativismo”. Era uma preocupação que ganhava corpo no núcleo de promotores de sua candidatura, entre os quais o enérgico e influente cardeal colombiano Alfonso López Trujillo, bem como o também colombiano Dario Castrillón Hoyos, então Prefeito da Congregação para o Clero. São sobretudo cardeais de língua espanhola. Percebe-se no colégio cardinalício uma aspiração em favor de uma identidade católica reforçada, e isso favorece a eleição de Ratinger, que acontece para a surpresa de muitos, no ano de abril de 2005, quando tinha a idade de setenta e oito anos.
            Como sinaliza Marco Politi, o novo estilo de Bento XVI logo se impõe, de um papa pregador e intelectual, marcado por um jeito peculiar, distinto de João Paulo II, mais sóbrio, contido, sem muita ênfase ou espetáculo. Assume com a intenção de firmar uma Igreja mais sólida e um cristianismo mais essencial. Dedica-se no início à redação de sua primeira encíclica, Deus caritas, e também à redação de seu livro sobre Jesus Cristo. Com seu livro sobre Jesus tinha uma intenção clara:  reanimar a identidade cristã num momento particular de secularização crescente da sociedade, que vê evaporar toda a referência a Deus na vida pública (p. 54).
            No capítulo quarto, Marco Politi trata a polêmica questão do discurso de Regensburg, ou da “catástrofe de Regensburg”, em setembro de 2006. Há que recordar que um pouco antes, no mês de março, num ato inesperado, o papa Bento XVI “exila” para o egito o então presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso, Michael Fitzgerald, e subordina o mencionado Conselho ao Pontifício Conselho para a Cultura. Numa infeliz associação entre Islã e violência, com base numa referência feita a Muhammad, o discurso do papa provoca imediata reação, com repercussões internacionais, sobretudo no mundo muçulmano. Como mostrou Politi, “em uma hora, em Regensburg, rompe-se em frangalhos vinte anos de política wojtiliana no confronto do Islã” (p. 63). Exemplifica-se assim a dificuldade de exercício dialogal de um líder religioso no cenário geopolítico, com um procedimento distinto do papa anterior, que durante décadas construiu de forma laboriosa e paciente uma estratégia que se pautava pela perspectiva dialogal e não de confronto com o mundo muçulmano. Na sequência da crise, o Vaticano se viu pressionado a um posicionamento de retratação, que veio dois dias depois com uma declaração do secretário de Estado, cardeal Bertone,  desculpando-se do ocorrido (p. 67). Politi indica que as dificuldades de Bento XVI com o mundo muçulmano vinham de longe, e que a tendência em curso seria a de reduzir o lugar do diálogo com o Islã a um diálogo de culturas e civilização (pp. 69-70). Os desencontros com o Islã exigem de Bento XVI uma nova postura, mais dialogal, o que vai ocorrer durante sua visita a Turquia, realizada em novembro do mesmo ano. A crise de Regensburg desdobra-se em revisão de atitudes tomadas anteriormente, provocando a retomada do Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso, com a nomeação do cardeal Jean-Louis Tauran, como o novo prefeito do dicastério, um grande diplomata e profundo conhecedor do mundo muçulmano (p. 75).
            No capítulo quinto, Politi aborda o delicado caso da retomada da missa tridentina, através de um motu proprio, Summorum pontificum (julho de 2007), visando uma reaproximação com a Fraternidade sacerdotal são Pio X, o movimento cismático anticonciliar dos seguidores de Marcel Lefebvre. Curiosamente, sublinha Politi, o mesmo Ratzinger que na revista Concilium havia definido o rito tridentino como “arqueológico”, assume a sua reintegração na vida da Igreja (p. 88). Trata-se, dizem os observadores, de um violento golpe. Não se trata apenas de uma retomada da missa em latim, mas de um questionamento do “valor constitutivo e formativo da reforma litúrgica, fruto do Vaticano II” (p. 89). É a carta branca concedida aos ultra-tradicionalistas lefebvrianos.
            A relação com os judeus vem abordada no capítulo sexto do livro, denominado “a ira dos rabinos”. Aborda-se ali a visita de Bento XVI ao campo de concentração de Auschwitz, na Polônia,  em maio de 2006. Em seu discurso o papa não fala em Shoah, mas apenas de holocausto. Sabe-se que para os judeus, a expressão Shoah é bem mais significativa do que holocausto, pois expressa a idéia de uma “catástrofe destrutiva”, evocando a violência e brutalidade não justificável do genocídio nazista. O que é mais grave no discurso do papa, segundo Politi, é a utilização de uma “lente deformante” na leitura da história, presente em seu discurso. Um discurso que visa deslocar a responsabilidade da Igreja católica no dramático episódio nazista, como se ele fosse totalmente “estranho” ao catolicismo alemão da época. O papa, em seu discurso, não menciona a expressão antissemitismo, e isso provoca a imediata reação nos ambientes judaicos. Dá-se a impressão que ele busca “desresponsabilizar o povo alemão e a Igreja” daqueles tristes episódios (p. 105). E novamente, nesse caso, ocorrem as intervenções de socorro, depois do passo em falso.
            No capítulo sétimo, aborda-se outra questão delicada, que foi a remissão da excomunhão a quatro bispos lefebvrianos, por ordem de Bento XVI, em janeiro de 2009, sendo um deles, Richard Williamson, um claro representante da extrema direita católica e porta-voz de um antissemitismo explícito. Alguém que negava inclusive a existência das câmaras de gás. Era mais uma vitória dos lefebvrianos, que em apenas um ano e meio conseguiram dois eloquentes presentes: a liberação da missa tridentina e a revogação da excomunhão de quatro de seus membros. Após o “incêndio”, novamente as tentativas de acomodação vaticana. É o que ocorre no discurso do papa em sua audiência geral, no final de janeiro de 2009 (p. 124), bem como na carta de Willianson endereçada ao Vaticano, reconsiderando suas ofensivas declarações (p. 135).
            A mecânica dos passos em falso aparece novamente na reflexão do capítulo oitavo, em torno da infeliz nomeação de Gerhard Wagner, como bispo auxiliar de Linz, na Áustria, em fevereiro de 2009. Os meios de comunicação austríacos logo reagiram alarmados, pois a figura escolhida era de um conservadorismo vivo e ameaçador. Duas semanas depois, sob a pressão geral de segmentos da igreja austríaca e da opinião pública, o papa Bento XVI comunica em boletim a dispensa do bispo em questão.
            No capítulo nono, aparece o tema da solidão de Bento XVI no governo pontifício. Distintos episódios, duros e difíceis, apontam para problemas no modo como o papa governa a Igreja. Indica Politi que é o ponto frágil de sua gestão. E sublinha: “Ratzinger experimenta o fracasso de decisões que imaginava profícuas, dá-se conta da ineficiência de quem na cúria deveria sustentá-lo e assiste impotente a uma revolta que se propaga nos meios de comunicação. Coisa ainda mais amarga, é obrigado a abrir os olhos para a rachadura radical do mundo católico com respeito à sua linha” (p. 160).
            Nos capítulos dez a doze, Marco Politi aborda temas delicados como as controvérsias em torno dos preservativos e a questão da pedofilia na Igreja. Diante do “grito dos inocentes”, Bento XVI se vê convocado a confessar os graves pecados da Igreja nesse campo dos abusos sexuais. É o que aparece na corajosa carta aos católicos da Irlanda, de março de 2009. Na visão de Politi, trata-se de “um dos documentos mais significativos do pontificado. Ratzinger faz sua mea culpa. Confessa os graves pecados da Igreja” (p. 219). Situações delicadas e que exigem enfrentamento, envolvem líderes de movimentos da Igreja, como Marcial Maciel Degollado, fundador dos Legionários de Cristo, e também acusado de abusos sexuais (pp. 237s). A imprensa italiana reage firme, e denuncia o silêncio dos jornais católicos a respeito dos casos de pedofilia. Tudo isso provoca uma grande desilusão entre os fiéis, que se desencantam com a Igreja. Os dados trazidos por Politi são expressivos (p. 247).
            A grande preocupação de Bento XVI é com a Europa, como mostra Politi no capítulo treze de seu livro. Está ali o núcleo duro da atenção do papa. O que era antes uma “coluna do catolicismo” vive agora uma situação de crise, laicização e relativização. É ali que se dá o fenômeno mais dramático do esvaziamento das igrejas, da diminuição estrondosa do clero e do sangramento dos fiéis, desencantados com a prática religiosa em curso. As cifras falam por si mesmo. Só na Alemanha, terra do papa, mais de 123.681 fiéis abandonam a Igreja em 2009. São cerca de 40% os fiéis alemães que abandonaram a Igreja desde a eleição de Bento XVI (p. 136). Mesmo no seu país de origem, Ratzinger não consegue mais seguidores. Segundo Politi, somente um terço dos alemães segue apoiando sua linha de trabalho e pouco mais da metade dos católicos estão convencidos em defendê-lo (p. 285).   São poucos os católicos que seguem de fato a Igreja, como indica Politi baseando-se numa pesquisa realizada na Itália em 2007. O que prevalece, mais do que os discursos ouvidos, é mesmo a lei da consciência (p. 272). As perdas no campo da vida religiosa são também expressivas (p. 288). Politi sinaliza que mesmo as tentativas de uma abertura dialogal com os ateus, como no exemplo da criação do “Átrio dos Gentios”, não resulta em sucesso, pois mantém acesa a disparidade e a centralidade clerical (pp. 281-282).
            O título do último capítulo traduz claramente o momento da atual conjuntura da Igreja católica, um horizonte incerto. Essa incerteza reflete-se em vários âmbitos, como no caso do diálogo interreligioso. A relação com os muçulmanos permanece delicada, como se viu anteriormente. Com os judeus permanece tensa, com a manutenção de posicionamentos restritivos, como o presente na carta Summorum Ponficum. Resiste-se em reconhecer a dignidade única dos judeus e o traço irrevogável de sua aliança. Permanece em vigor posicionamentos problemáticos que insistem em convocar os judeus a reconhecerem em Jesus o salvador de todos os humanos (p. 107). Os importantes encontros de Assis, iniciados com João Paulo II em 1986, perdem a sua mordência e significado (p. 184). Permanece como um nó na garganta de muitos irmãos de outras religiões, incluindo os protestantes, o regressivo documento Dominus Iesus, que em verdade bloqueou o caminho dialogal. É o que sentem, por exemplo os luteranos (p. 292).
            Apesar dos esforços em favor das jornadas com a juventude, o que se ouve entre muitos jovens, e nos fiéis em geral, como salienta Politi, é que o papa atual “não transmite esperança”, não suscita sedução. Em verdade, “aparece muito teólogo e não vem percebido como imagem de uma Igreja de misericórdia” (p. 304).
            Não se pode restringir a avaliação da atual conjuntura da Igreja católico-romana a um único olhar. Há outras interpretações e outras perspectivas de visada, mesmo entre importantes vaticanistas hoje em ação. Mas não há dúvida de que este livro de Marco Politi, sério e amplamente documentado, traz uma importante contribuição para a compreensão da Igreja nesse difícil momento atual. Seria muito oportuno que esta obra pudesse ser acolhida e traduzida para o português.

(Publicado na Revista Eclesiástica Brasileira (REB),  v. 72, n. 287, julho de 2012, p. 754-758. )


O ecumenismo e os desafios do pluralismo religioso


O ecumenismo e os desafios do pluralismo religioso

(Entrevista para o CONIC – Setembro 2012)

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF


1)    Como você analisa o pluralismo religioso no contexto brasileiro?

Como estou organizando um livro com a antropóloga Renata Menezes sobre as religiões brasileiras no Censo de 2010, e que deve sair no início de 2013 pela editora Vozes, estou bem informado sobre as reflexões que estão sendo feitas no Brasil sobre o tema. O debate é muito rico. A partir das conclusões do censo, verifico que esse processo de pluralização do campo religioso brasileiro está em curso, embora uma grande parte da declaração de crença permaneça ainda vinculada ao âmbito cristão, com 64,6% de declaração católica e 22,2% de declaração evangélica, ou seja, 86,8% dos declarantes estão filiados ao cristianismo. É verdade que nesta forma de ser cristão, particularmente no catolicismo, há uma malha muito larga no exercício de experimentação. Como diz com razão Carlos Rodrigues Brandão em entrevista, há uma grande diversidade nas formas de ser, crer e praticar o catolicismo no Brasil. Ele indica que “a Igreja Católica se permite – entre as comunidades eclesiais de base e as missas-espetáculo do padre Marcelo – abrir-se a todas as alternativas possíveis e imagináveis do ser católico (...)” (Brandão, 2012, p. 55). Diria que há uma forma de vivenciar o catolicismo no cotidiano brasileiro que envolve e inclui práticas, símbolos ou repertórios de outras tradições. É por isso que Pierre Sanchis sublinha com pertinência haver muitas religiões dentro dessa religião. Esse mesmo autor, em entrevista ao IHU-Notícias, salienta que “um dos grandes problemas religiosos do próximo século será o da relação do indivíduo com a instituição que lhe propicia uma identidade religiosa. Dizer-se católico ou umbandista, até proclamar-se evangélico, não será mais unívoco” (Sanchis, 2012, p. 7). Por maiores que tenham sido os esforços das equipes envolvidas com o Censo 2010, a percepção real do quadro religioso brasileiro ficou ainda prejudicada. Os analistas lançam uma certa desconfiança para com os resultados apresentados. Sanchis sublinha a dificuldade em captar realmente o fenômeno da múltipla pertença, que é, sem dúvida, muito maior do que a declaração apresentada no último censo - 15.379 casos (Sanchis, 2012, p. 7); Brandão fala que “é preciso acreditar desconfiando das estatísticas” (Brandão, 2012) e José Ivo Follmann sublinha que há “uma riqueza muito grande que subjaz e que as estatísticas ainda não estão conseguindo fazer emergir” (Follmann, 2012). Nesse sentido, podemos afirmar, sim, o despontar de um pluralismo religioso que se revela irrevogável. Fazendo uma comparação com a diversificação religiosa que ocorre no âmbito internacional mais amplo, chamo a atenção para o artigo apresentado pelo historiador das religiões francês, Frédéric Lenoir, a respeito das “metamorfoses da fé”. Ele assinala que o fenômeno da “dessecularização” está em pleno curso. Indica que nesse âmbito mais amplo o cristianismo continua sua expansão, sobretudo no Sul Global (Ásia, África e América Latina), em razão sobretudo da expansão pentecostal. O islã também continua se firmando, mas com tendência a um crescimento menor na Europa e Ásia, em razão da diminuição do número de conversões. O hinduísmo e o budismo tendem a manter sua estabilidade, ainda que determinadas práticas relacionadas a tais tradições, como a meditação, venham reforçadas e ampliadas sobretudo no Ocidente e na América Latina. O mesmo ocorre com o judaísmo. E a conclusão que ele aponta é interessante e coincidente com a expressa por pesquisadores brasileiros: “As religiões continuarão  se transformando e sofrendo os efeitos da modernidade, notavelmente a individualização e a globalização”, e os indivíduos a elas filiados viverão sua pertença de forma bem diferenciada com respeito ao passado, fabricando “o seu próprio dispositivo de sentido, às vezes sincrético, às vezes em bricolagem” (Lenoir, 2012).


2)    As religiões têm se tornado mais abertas ao diálogo ou, ao contrário, mais fechadas? Por quê?

De forma curiosa, a afirmação do pluralismo moderno – como vem mostrando Peter Berger -, engendra não apenas a possibilidade dialogal, como poderia se prever, mas também – e vivamente -, a “redescoberta das heranças confessionais” (Berger, 1985, p. 159). Pode-se até encontrar nos tempos atuais núcleos ou segmentos religiosos mais abertos e disponíveis à acolhida dialogal. Berger nomina-os de “virtuosos do pluralismo”, por lidarem de forma mais tranquila com os desafios que envolvem a conversação interreligiosa e o diálogo. Mas na verdade, a maioria das pessoas e dos grupos religiosos tem enorme dificuldade com o pluralismo e com os possíveis efeitos relativizadores que envolvem sua perspectiva. Esses núcleos sentem-se inseguros num mundo percebido como confuso e cheio de possibilidades interpretativas. Diante do risco da relativização, a emergência de um fascínio pelos sistemas absolutos e pelos caminhos fundamentalistas. Vejo como um traço do tempo atual, não tanto a busca dialogal, mas a afirmação das certezas identitárias e o enrijecimento das perspectivas religiosas nos muros protetores das ortodoxias. Isso é muito triste.

3)    Quais algumas das dificuldades que você percebe no processo de abertura ecumenica, e que pistas possíveis se anunciam para a sua superação?


Em entrevista publicada no IHU-Online da Unisinos, de 24 de setembro de 2012, o teólogo jesuíta Roger Haight assinalou que entre alguns dos desafios enfrentados pela perspectiva cristã nesse momento pós-moderno está o ecumenismo. Lamenta que ele vai perdendo força justamente no momento em que mais se faz necessário. E sinaliza: “Somos incapazes de imaginar estruturas eclesiais que preservem nossa unidade real ao mesmo tempo em que respeitem tradições espirituais cristãs autônomas diferentes” (Haight, 2012, p. 19). Tendo por base a conjuntura católico-romana, constato que os últimos 35 anos foram bem reticentes a uma dinâmica ecumênica prometedora. Acredito que alguns documentos do magistério católico, como a Dominus Iesus, acabaram provocando uma inibição na caminhada ecumênica. Isso foi reconhecido por autoridades do magistério, como Walter Kaspers, que na ocasião da publicação da Declaração, em 2000, ocupava o cargo de Secretário do Pontifício Conselho  para a Promoção da Unidade dos Cristãos. Em artigo de 2001, Kaspers expressa seu descontentamento com o tom e o estilo do documento da Congregação para a Doutrina da Fé. Sublinha que a Declaração suscitou dúvidas sobre o real empenho ecumênico da Igreja católica, provocando desilusões e ferindo muitas pessoas, entre as quais ele mesmo (Kaspers, 2001, p. 128). Em ocasião anterior, o mesmo Kaspers já havia tensionado com o cardeal Joseph Ratzinger a respeito de temas relacionados à Igreja, que envolviam, a seu ver, o risco de uma acentuação do centralismo romano (Kaspers, 2012, p. 439). Em livro-entrevista, publicado em 2008, Kasper havia sublinhado os acentos diferenciados que marcavam os dois dicastérios romanos: a Congregação para a Doutrina da Fé e Conselho para a Unidade dos Cristãos. E dizia: “Conservar a integridade e a pureza da fé é uma coisa, colocar a fé em diálogo com outras tradições eclesiais é uma outra. Entre as duas não há contraste, mas acentos diversos e diversos modos de olhar” (Kasper; Deckers, 2009, p. 176). Enquanto o primeiro pensa e fala em termos magisteriais, o segundo em termos dialogais  Em linha de descontinuidade com a posição teológica de Ratzinger, Kaspers mantinha e mantém a defesa do título de igreja às comunidades protestantes (Kaspers, 2012, p. 262). Pistas de abertura foram dadas por documentos essenciais como a carta encíclica Ut unum sint (1995), sobre o empenho ecumênico, publicada no pontificado de João Paulo II, em cuja redação teve um importante papel o teólogo dominicano Jean-Marie Roger Tillard (1927-2000). De forma arrojada, o documento sublinha que “para além dos limites da Comunidade Católica, não existe o vazio ecclesial” (n. 13), e as outras Comunidades podem inclusive revelar de forma ainda mais eficaz “certos aspectos do mistério cristão” (n. 14). O espírito essencial do ecumenismo está na perspectiva dialogal, entendida como “intercâmbio de dons”. Trata-se de um caminho “irrevogável”, que se distancia radicalmente de uma perspectiva de anexação das outras Igrejas a uma Igreja específica, envolvendo antes as Comunidades dialogais na experiência de realização da comunhão e da unidade, no profundo respeito às diversidades (Kaspers, 2001, p. 130). E de uma unidade que vai sendo tecida ao longo do processo de interlocução criativa.

4.    O diálogo entre as igrejas tem ocorrido com certa frequência, em menor ou maior escala, aqui no Brasil, mas o diálogo com outros grupos ainda engatinha. O que pode ser feito, por exemplo, para que as igrejas comecem a dialogar mais com grupos como os muçulmanos, judeus, religiões de matrizes africanas, etc.?

De fato, o diálogo ecumênico envolve dificuldades menores para a sua realização. Ele tem uma história de décadas e bem firmada, apesar de também envolver resistências bem concretas. Esse diálogo, como mostrou Claude Geffré, favoreceu a superação de certo modelo de absolutismo católico, abrindo espaços para o diálogo com as outras tradições religiosas (Geffré, 2006, p. 135). É um diálogo que tem como regra áurea a busca da unidade na diversidade. Já o diálogo interreligioso volta-se para um horizonte mais amplo, marcado pela aspiração a uma Realidade Última, nem sempre nomeada. É um diálogo que tem como base comum o empenho em favor da superação do sofrimento humano e de afirmação da dignidade da criação. Tenho defendido a ideia de que o verdadeiro diálogo interreligioso pressupõe o reconhecimento da “dignidade da diferença” e a abertura para um pluralismo de princípio. Não se pode entrar no diálogo com uma convicção enrijecida, como se só um dos interlocutores fosse animado pela presença substantivo do Mistério Maior. Há que respeitar a dignidade de convicção dos interlocutores, de forma a favorecer um real intercâmbio de dons. Não serve de ajuda alguma ao diálogo estabelecer diferenças qualitativas entre os interlocutores, como se os outros fossem portadores de “crenças” e só os cristãos depositários da autêntica “fé”. Daí se falar hoje em dia do desafio de um “diálogo entre fés”, visto como mais apropriado para o diálogo entre alteridades dignamente reconhecidas.

5)    O crescimento dos grupos pentecostais constitui ameaça ou oportunidade para o diálogo ecumênico? Por quê?

O verdadeiro ecumenismo não pode ser excludente, deve envolver igualmente os grupos pentecostais. Estudiosos do movimento evangélico, como Waldo Cesar e Richard Shaull, que se dedicaram ao final da vida ao significado da experiência pentecostal,  pontuaram a força de penetração do pentecostalismo nos meios populares. Trata-se para os fiéis de uma experiência espiritual muito importante, de recomposição da subjetividade; uma oportunidade fascinante de reconstrução e potenciamento de identidades dilaceradas pela pobreza e exclusão. Com o movimento pentecostal novas relações humanas foram tecidas, laços de confiança estabelecidos e uma importante geração de auto-estima firmada, o que é essencial para qualquer empreendimento transformador. Richardo Shaul fala em “reconstrução da vida no poder do espírito”. Acentua em seu livro que “os pentecostais estão criando novas relações humanas em comunidade no mais baixo nível da sociedade”, podendo exercer um papel importante nas mudanças que se fazem necessárias (Cesar; Shaull, 1999, p. 266-267).

6)    Como você encara o papel do CONIC no contexto religioso brasileiro?


Vejo o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) como um importante instrumento de discussão e ampliação da temática ecumênica no âmbito das Igrejas cristãs, com o desafio de provocar cada vez mais essas comunidades  a ampliarem seus horizontes dialogais, no profundo respeito à dignidade dos outros. Essa “associação fraterna de Igrejas” que se unem no seguimento de Jesus tem por vocação essencial o projeto de firmar a dinâmica de uma unidade que respeite a diversidade. Trata-se também do desafio de deixar-se habitar por um “ecumenismo espiritual”, pontuado pela humildade e abertura, pela kênose e compaixão. Isso significa um movimento de despojamento para deixar que ação do Espírito atue, desvendando os caminhos essenciais a serem seguidos. E sobretudo um caminho de solidariedade aos outros, de abertura hospitaleira, de atenção e cuidado aos caminhos inusitados e supreendentes da ação misteriosa de Deus na história. É mediante um tal despojamento que se instaura o clima necessário para uma ação de transformação nas Igrejas e na sociedade.




Referências:

BERGER, Peter. O dossel sagrado. São Paulo: Paulinas, 1985.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A emergência do indivíduo e as novas formas de viver a religião. IHU-Online, n. 401, Ano XII, 3/09/2012, p. 54-58.
CESAR, Waldo & SHAULL, Richard. Pentecostalismo e future das igrejas cristãs. Petrópolis/São Leoldo: Vozes/Sinodal, 1999.
FOLLMANN, José Ivo. Trânsito religioso e o “permanente peregrinar”. IHU- Notícias,14/09/2012:
GEFFRÉ, Claude. De babel à pentecôte. Essais de théologie interreligieuse. Paris: Cerf, 2006.
HAIGHT, Roger. “A Igreja institucional permanece escandalosamente inalterada”. IHU-Online, n. 403, Ano XII, 24/09/2012, p. 18-21.
JOÃO PAULO II. Ut Unun Sint. Carta encíclica sobre o empenho ecumênico. São Paulo: Paulus, 1995.
KASPER, Walter. Chiesa cattolica. Essenza-realtà-missione. Brescia: Queriniana, 2012.
KASPER, Walter. L´unica Chiesa di Cristo. Il Regno-attualità, n. 4, 2001, p. 127135.
KASPER, Walter & DECKERS, Daniel. Al cuore della fede. Le tappe di una vita. Milano: San Paolo, 2009 (edição alemã original de 2008).
LENOIR, Frédéric. As metamorfoses da fé. IHU-Notícias, 22/09/2012:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/513825-as-metamorfoses-da-fe.Acesso em 25/09/2012.
SANCHIS, Pierre. Pluralismo, transformação, emergencia do indivíduo e de suas escolhas. IHU-Online, n. 400, Ano XII, 27/08/2012, p. 5-7.

(Publicado em:



segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Deus e o Diabo nas trilhas do Grande Sertão


Deus e o diabo nas trilhas do Grande Sertão

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

            Um dos mais fascinantes temas presentes no livro de Guimarães Rosa, “Grande Sertão:Veredas” refere-se à tensão entre o bem e o mal. Em todo o precioso relato de Riobaldo a grande dúvida que o acompanha, da primeira à última página é: “o diabo existe e não existe”. Em precioso trabalho sobre o livro, a filósofa mineira Sônia Viegas busca refletir sobre “A vereda trágica do Grande Sertão: Veredas” (Viegas, 2009). Curiosa essa presença da figura do demônio na tradição ocidental desde os fins da Idade Média. Trata-se de algo que se relaciona com a polêmica religiosa, não há dúvida, mas de forma ainda mais substantiva, como lembrou Pierre Francastel, “à descoberta que o homem faz de si mesmo”. Nessa obra de Guimarães Rosa, vislumbra-se essa atmosfera sombria nas marchas e contramarchas do jagunço Riobaldo em busca de seu lugar no mundo. É um “espírito estranhamente místico, oscilando entre Deus e o Diabo” (Proença, 1958, p. 6).
            O sertão aparece na obra de Rosa como um espaço de indefinição, incerteza e carência. Um lugar marcado por surpresas e ameaças. Um terreno que é também perigoso, onde rege uma regra certeira: “Ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa...” (Rosa, 1980, p. 374). E ele toma conta de tudo e envolve as pessoas: “O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca” (Rosa, 1980, p.443). É um espaço marcado por lutas, sofrimentos e dores, como na passagem onde Riobaldo fala do triste espetáculo da epidemia da varíola e do perigo que ronda essa “grande doença”. Diante dele, e de tantos outros que povoam o sertão, acende-se a sede alternativa de um outro destino: “Eu queria poder sair depressa dali, para terras que não sei, aonde não houvesse sufocação em incerteza, terras que não fossem aqueles campos tristonhos” (Rosa, 1980, p. 297).
            Naquele chão de inacabamento e ebulição nascem indistintamente, com igual formato de ramos e folhas, a mandioca mansa que dá vida e a mandioca brava que mata (Rosa, 1980, p. 11). Naquele campo das Gerais, junto com a sedução da terra a presença misteriosa do Demo, que convive intimamente com os jagunços e que, de certa forma, habita o seu interior, como bem expressa um provérbio sertanejo: “o diabo não existe, por isso ele é tão forte”. Já dizia igualmente Baudelaire que “la plus belle ruse du Diable est de nous persuader qu´il n´existe pas”. Ele está sempre aí, “na rua, no meio do redemoinho”. E sua figura vem apresentada com variados nomes: o Tal, o Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Duba, o Rapaz, o Tristonho, o Pai da Mentira, o Bode Preto, o Morcegão, o Xú, e assim por diante (Rosa, 1980, p. 33 e 317).
            O sertão é um mundo do “fabuloso”, cosmos-caos, onde o ser humano pode “encontrar-se ou perder-se” (Viegas, 2009, p. 381). O inferno está sempre ali, à disposição, “é um sem-fim que nem não se pode ver”. Mas o jagunço quer um horizonte diferente, ele “quer Céu”, pois quer  “um fim com depois dele a gente tudo vendo” (Rosa, 1980, p. 49). A vida desvela-se nas incertezas desse cotidiano ameaçado por todas as intempéries. O espetáculo mesmo da vida é “perigoso” e requer sempre vigilância. Mas há algo de bonito nisso: “As pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior” (Rosa, 1980, p. 21).
            Há que lutar contra este vazio. E curiosamente, a condição absurda transforma-se em propícia oportunidade para o mais forte exercício da reação. O jagunço é alguém que pertence “a uma raça diferente”, pontuada pela coragem e tenacidade. Ele “vai ao encontro das intempéries humanas e naturais, com elas digladia de igual para igual” (Viegas, 209, p. 358). É uma luta em favor da “recondução das coisas a si próprias”. O sentimento de impotência não esvazia ou enfraquece a vontade de transformação, da busca de um sentido pelo qual vale a pena lutar. Há que ter coragem, repete Riobaldo diversas vezes em sua peregrinação. Como assinala, “o espirito da gente é cavalo que escolhe estrada: quando ruma para a tristeza e morte vai não vendo o que é bonito e bom” (Rosa, 1980, p. 143). Mesmo sabendo que a vida é ingrata, o jagunço consegue vislumbrar um além, ele “transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero” (Rosa, 1980, p. 169). Reconhece que o caminho é “resvaloso”, que vai envolver quedas, mas nada que impeça a coragem de levantar e continuar no mutirão da vida, dando batalha. Assim é o correr da vida, ela “embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem” (Rosa, 1980, p. 241).
            Como jagunço experimentado, Riobaldo vigia com atenção, evitando o risco maior de ser selado pelo diabo. Para isso “carece de ter muita coragem”. Mas com Deus, tudo fica mais fácil, é o que se percebe em todas as falas do personagem. Com Deus “é menos grave se descuidar um pouquinho”, com ele, emerge um “encoberto poder”, ele é “alegria e coragem”, é “bondade adiante”. O medo ronda o sertão, não há dúvida, mas com Deus tudo se aquieta e suspende. O medo ameaça, e é um medo de todos, por isso “é preciso de Deus existir a gente, mais; e do diabo divertir a gente com sua dele nenhuma existência” (Rosa, 1980, p. 237). Não há no mundo popular a hipótese da ausência da religião, ela é a porta de entrada da consciência, ela “dá nome a todas as coisas e torna, até mesmo o incrível, possível e legítimo. Para os efeitos da vida, ela pretende envolver o repertório mais abrangente das questões e fazer as respostas mais essenciais (...)” (Brandão, 1980, p. 16-17). Daí a estupefação de Riobaldo diante da descrença de um doutor rapaz de Arassuaí, que afirmara que “Deus não há”. Isso é inimaginável para Riobaldo e todo o meio popular. Sua reação é imediata: “Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra” (Rosa, 1980, p. 48).
            Há que beber da água de toda religião, “muita religião, seu moço!”. Como indica Riobaldo, é a “reza que sara da loucura”, daí não perder ocasião de religião, vivendo intensamente a presença de Deus, ainda que devagarinho. Na verdade, diz o jagunço, “Deus a gente respeita, do demônio se esconjura e aparta” (Rosa, 1980, p. 170). Na luta entre Deus e o Diabo, o primeiro sai sempre vencendo, pois sua artimanha é inigualável, é o que ensina Riobaldo: “Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre” (Rosa, 1980, p. 21).
            Na linda dedicatória de seu livro sobre o Grande Sertão: Veredas, endereçada às suas filhas, Sônia Viegas sublinha que “todo oceano é feito de esperança para o corpo que se faz navio”. No itinerário épico de Riobaldo Tatarana está implícito um convite que é para todos, o de conquistar um lugar no mundo, com firmeza e coragem. E também a esperança da presença de um “poder humano para além da fatalidade cega, das forças poderosas e arbitrárias” (Viegas, 2009, p. 358).

Bibliografia

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo. São Paulo: Brasiliense, 1980.
FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1973.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 14ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
PROENÇA, Manoel Cavalcante. Trilhas no Grande Sertão. Rio de Janeiro: MEC, 1958.
SILVA, Dora Ferreira da. O demoníaco em Grande Sertão: Veredas. Dialogo, n. 8, 1957.
VIEGAS, Sônia. Escritos. Filosofia viva. Belo Horizonte: Tessitura, 2009.