domingo, 23 de maio de 2021

Ingmar Bergman e os focos de felicidade

 Ingmar Bergman e os focos de felicidade


Faustino Teixeira

 

Nós, os apaixonados por cinema, curtíamos – e quanto – as crônicas do crítico José Carlos Avellar no Jornal do Brasil. Clássica sua crônica no JB sobre o filme “Gritos e Sussurros” em 02 de novembro de 1974. Esse filme foi produzido em 1972, a cores, com as presenças de Liv Ullmann, Ingrid Thulin, Harriet Anderson e Kari Sylwan. A fotografia, premiada no Oscar em 1974, é de Sven Nykvist. Será o tema do meu curso de espiritualidade no Paz e Bem de 09 de junho às 17:00, com o debatedor Angelo Atalla.

 

Os temas que envolvem a filmografia de Bergman são pesados, trazendo à tona questões perturbadoras como a morte, a dor, a solidão e o sofrimento. Como diz o cavaleiro Antonius Blok, no “Setimo selo”, referindo-se à “indesejada das gentes” (morte), “um dia, quando nos encontramos diante do último momento da vida, temos de ficar de pé e olhar para esta escuridão”.

 

Como diz José Carlos Avellar, “não é de todo má ideia assustar alguém de quando em quando. Assustadas as pessoas pensam. E quando pensam ficam um pouco mais assustadas”. É forte e potente a oração do padre em cena de “Gritos e Sussurros”. 

 

No filme “Gritos e Sussurros, as três irmãs estão voltadas para seus mundos pessoais, interiores, e a irmã moribunda não consegue receber a acolhida que precisa, a não ser pela empregada religiosa, Anna. O cenário do filme é impressionante, com o tom forte e agressivo do vermelho, que “afoga cada personagem nessa imensidão íntima, partindo de um close para uma explosão carmim nos rostos meio-escurecidos, toda vez que uma mudança de ato acontece”.

 

Porém, o mais interessante na técnica de Bergman é deixar transparecer em seus filmes “instantes de felicidade”. Em meio ao ritmo da melancolia e da inevitabilidade da morte, como em “Sétimo Selo” e “Gritos e Sussurros”, há momentos preciosos onde ocorrem “área de escape frente à brutal insensatez da vida”. São momentos de “suspensão” da asfixia em que tais filmes nos envolvem. Como diz o crítica Marcelo Müller, crítico de cinema, “é como se Bergman, exatamente nessas passagens, afirmasse que, a despeito de tudo que nos incomoda, a vida merecesse ser vivida, mesmo que reduzida a um breve instante”. São “pontos de júbilo” nos filmes, como a linda cena em “Sétimo Selo”, entendida como “paragem segura de alegria”, o cavaleiro relaxa junto com o casal de artistas e seu filhinho, numa “celebração” com morangos silvestres e leite fresco. Todos ali, deitados e alegres sobre a relva: “A simplicidade do gesto de seus anfitriões, a conversa que se desloca da praga e recai sobre sentimentos singelos, a ternura prevalente como que criando uma redoma a protege-los de tudo e de todos por alguns minutos”. A maravilhosa cena nos indica que nem tudo são “nuvens carregadas” ou sufocantes inquietudes.

 

De forma semelhante, em “Gritos e Sussurros”, o instante de felicidade ou êxtase ocorre na lembrança de Agnes que capta um fragmento de felicidade transbordante: “Ela se recorda da vem em que, ao lado das irmãs e da empregada/amiga que lhe era tão cara, caminhou numa tarde de verão, despreocupadamente, pelos jardins da propriedade, nesse pequeno intervalo se esquecendo das dores impingidas pela doença fatal que lhe corroía a carne, o humor e a personalidade”. Tudo isso são “pontos de júbilo” que temperam a dor das cenas, nesse cineasta marcado pela paixão do instante. 

 

Como mostra José Carlos Avellar, quanto “maior o desespero, maior se torna a intensidade do pequeno instante de satisfação que nada pode quebrar ou impedir. Por mais insensata que seja a existência um só instante em que a vida se libera sem impedimentos é maior que todo o sofrimento”. Bergman quer nos dizer com esses pequenos detalhes que “a vida vale ser vivida, mesmo que restrita a pontos de fuga que nos tornam felizes”.