terça-feira, 20 de abril de 2010

Uma chance para a paz: a viagem de Bento XVI na Turquia

Uma chance para a Paz: a viagem de Bento XVI na Turquia


Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF



Retomando um belo poema de Marco Lucchesi, a tarefa mais importante de Bento XVI em sua peregrinação à Turquia é a de mostrar que o apelo do Todo vai no sentido de “profundas harmonias”, de mostrar com viva voz que o maior risco do ser humano quando desatende a tal apelo é dissolver-se e consumir-se.

Em autobiografia publicada em 2002, o historiador inglês Eric Hobsbawm assinalava que o século XXI “começa com crepúsculo e obscuridade”. Vivemos tempos difíceis nesta virada de milênio e acompanhamos com preocupação o acirramento da violência étnico-religiosa, o crescimento dos fundamentalismos e integrismos e a exacerbação etnocêntrica. Esse clima de insegurança tem favorecido a afirmação de teses como a do “choque de civilizações”, que justificam todas as insanidades cometidas em nome da “perseguição implacável ao terrorismo”. Como bem mostrou Edward Said, “o terrorismo se tornou um tipo de filme criado desde o fim da Guerra Fria pelos estrategistas políticos de Washington (...) para manter a população com medo, insegura, e justificar o que os Estados Unidos querem fazer globalmente”. Mas não é, certamente, esse o caminho mais indicado para a afirmação da paz. Ao discursar na 53ª Assembléia Geral da ONU, em setembro de 1998, o então presidente da República Islâmica do Irã – Muhammad Khatami – propunha um paradigma civilizacional distinto: “Esperemos que no século XXI o recurso da força e da violência já não seja enaltecido, e que a essência do poder político seja a compaixão e a justiça, manifestada expressamente no ´diálogo entre as civilizações`”.

A viagem do papa Bento XVI na Turquia traduz uma chance única de aposta neste paradigma do “diálogo” como caminho para o futuro da humanidade. Mas esta viagem ocorre numa atmosfera embaçada, em razão de fatos que envolveram a atuação de Ratzinger nesses últimos anos. Sua resistência à entrada da Turquia na União Européia, em 2004, quando era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF); e sobretudo o discurso na Universidade de Regensburg, em setembro de 2006, quando, ao citar uma passagem polêmica sobre Maomé, tomada do diálogo do imperador bizantino Manoel II Paleólogo com um persa, acabou provocando conturbada reação no mundo muçulmano.

Não há ainda muita clareza com respeito à estratégia geopolítica de Bento XVI com respeito ao mundo islâmico. É motivo de preocupação do papa o crescimento atual do islamismo, que já ultrapassa o número de católicos em âmbito mundial, alcançando a cifra de 1,3 bilhões de adeptos. No período de sua atuação junto à CDF, reagiu de forma vigorosa contra aqueles que defendem um “pluralismo religioso de princípio” e manteve acesa a lógica expansionista da igreja católico-romana. Trata-se de uma lógica que enfatiza o anúncio missionário dirigido universalmente. Ao presidir a missa que antecedeu a primeira votação do conclave – “pro eligendo romano pontifice” (abril de 2005) – o cardeal Ratzinger denunciou a “ditadura do relativismo” que estaria envolvendo o “pequeno barco” do pensamento cristão, e enfatizou a importância de se assumir uma “fé clara, de acordo com o Credo da Igreja”. Na lógica desta clara afirmação identitária, o diálogo inter-religioso, e em particular, o diálogo com o Islã ganha uma complexidade particular. Ao tratar do tema num de seus livros-entrevista – “O sal da terra” (1996) – o cardeal Ratzinger sublinhou que “o problema do diálogo com o Islã é naturalmente muito mais complicado do que ocorre no diálogo entre os cristãos”. E isto também, a seu ver, em razão da maneira “totalizante” como o Islã pensa a realidade da vida e da sociedade, bem como sua crescente consciência de poder oferecer uma “base espiritual válida para a vida dos povos”.

O papa Bento XVI tem uma preocupação muito viva de resguardar o patrimônio da identidade cristã da Europa, que chega ao início do século XXI com 27,04% de adeptos: uma situação diversa com respeito ao início do século, quando os cristãos somavam 67,8%. Há também uma inquietação com respeito à crescente afirmação da laicidade e da indiferença religiosa no Velho Continente, mas igualmente com a presença irradiadora do Islã, que vai se tornando importante força religiosa em países como a França, Itália, Inglaterra e Alemanha. Na visão do papa Ratzinger, o futuro da Europa pode ser sombrio, como o previsto por Oswald Spengler, a não ser que se retome e resguarde a “herança do cristianismo ocidental”, com suas certezas e valores essenciais.

Não é o primeiro papa que visita a Turquia. Eugênio Roncalli (depois papa João XXIII) foi delegado apostólico em Istambul durante a Segunda Guerra Mundial. O papa Paulo VI visitou o país em 1967, e João Paulo II em 1979. A visita de Bento XVI começa no dia 28 de novembro e estende-se até o dia 1º de dezembro. Na concorrida agenda papal, um lugar especial vem dedicado a Istambul, onde Bento XVI passará quase três dias. Estão previstos dois contatos importantes: com o Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu I, e Ali Bartakoglu, a máxima autoridade muçulmana do país. Deverá também ocorrer uma visita à Grande Mesquita Azul. O encontro com a autoridade islâmica reveste-se de uma importância particular, em razão dos recentes acontecimentos que abalaram a credibilidade da igreja católico-romana com parte significativa do mundo muçulmano. Espera-se que o papa tenha a devida sensibilidade e cortesia de um peregrino da paz, como já anunciou na oração do Angelus de 26 de novembro. Na visita de João Paulo II a Ankara, em novembro de 1979, veio reforçada a “estima” pelos muçulmanos, que partilham com os cristãos a fé no mesmo Deus, vivente e misericordioso. E espera-se que isto aconteça de forma renovada com Bento XVI.

Como ilustrou o vaticanista Henri Tincq, a Turquia tem um valor simbólico especial, mas também doloroso. Ela é “o berço das piores fraturas étnico-religiosas da história”. Foi em Contantinopla (hoje Istambul) que se processou a primeira grande divisão no mundo cristão, com o cisma entre igreja oriental e ocidental no ano de 1054; foi também ali que ocorreu a vitória dos muçulmanos sobre os bizantinos, em 1453, quando se firma o Islã como uma força imperial de visibilidade mundial. A cidade foi também palco no início do século XX de um dos movimentos mais fortes de laicização, promovido por Atatürk, que extingue o califado otomano de Istambul, substituindo-o por uma república nacionalista turca e laica. Foi um fenômeno que gerou a reação fundamentalista, expressa por exemplo, na criação dos Irmãos Muçulmanos.

O modelo a ser seguido por Bento XVI em sua viagem não deve ser o do imperador bizantino Manuel II Paleólogo, que em 1391 traçou em Ankara – no diálogo com o ilustrado persa – um perfil tão preconceituoso e negativo com respeito a Maomé, passando a imagem do Islã como uma religião violenta. Mas o exemplo deve ser tomado do cardeal católico, Nicolau de Cusa, que, logo após a queda de Constantinopla, em vez de reagir com a violência que se esperava, escreveu um dos livros mais significativos de defesa da paz entre as religiões: “De pace fidei” (1453). Traduzindo uma sensibilidade dialogal única e antecipadora, Nicolau de Cusa revela a imagem de um Deus que é portador da vida e não da morte, de um mistério que subjaz diversificadamente nos ritos das religiões, que vem nomeado distintamente, mas que permanece inefável no seu mistério de acolhida e misericórdia. No início de sua obra indica, com acerto, que a causa maior dos conflitos e acirramento do ódio entre os povos deve-se à surdez diante do apelo que vem do alto. Retomando um belo poema de Marco Lucchesi, a tarefa mais importante de Bento XVI em sua peregrinação à Turquia é a de mostrar que o apelo do Todo vai no sentido de “profundas harmonias”, de mostrar com viva voz que o maior risco do ser humano quando desatende a tal apelo é dissolver-se e consumir-se.

(Publica na Agência Carta Maior - 2006)

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