sexta-feira, 13 de novembro de 2020

O grande Sertão: Veredas na interpretação teatral de Bia Lessa - Uma resenha

 O Grande Sertão: Veredas na interpretação teatral de Bia Lessa – Uma resenha

 

 

Faustino Teixeira

 

Bem interessante o texto de Livia de Sá Baião (PUC/RJ) sobre o sertão de Bia Lessa, publicado na revista Eixo Roda. Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 283-306, 2019)

 

A autora tem como objetivo em seu trabalho "refletir sobre a releitura dramática que a diretora Bia Lessa fez da obra Grande Sertão: Veredas (GSV), de Guimarães Rosa” (BAIÃO, 2019, p. 283).

 

Reconhece a autora que a adaptação foi memorável: foram 4 meses de ensaios, e seis horas de ensaio por dia. A peça chegava inicialmente a durar 3 horas e 50 minutos, depois reduzida para 2 horas e 30 minutos. E uma convicção firme da diretora era manter-se fiel ao texto.

 

Como indica Livia, Rosa "escreve a partir da tradição oral (...). Rosa anotava o que ouvia de homens doutos, vaqueiros e sertanejos, registrava quadras, cantigas e histórias, perpetuava vozes no espaço branco do papel" (BAIÃO, 2019, p. 286). Rosa descreve o seu processo criativo comparando-se a um "feiticeiro da palavra", num processo alquímico (LORENZ, 1983, p. 85).

 

Os primeiros dois terços da peça, diz Livia, correspondem às primeiras 160 páginas do livro. É uma escritura que desafia o tempo. Ele deixa de ser simplesmente cronológico para assumir um lugar "individual, subjetivo e indivisível" (BAIÃO, 2019, p. 290). 

 

Bia Lessa conseguiu fazer "com que o jorro narrativo de 600 página" coubessem "no curto espaço do tempo cênico". Para os que não tinham familiaridade com o enredo, a peça não era fácil: "Para os que não conhecem o enredo, é muito difícil seguir e compreender integralmente o que está acontecendo no palco" (BAIÃO, 2019, p. 292).

 

E ali acontece muito coisa impressionante. Como sugere Artaud, uma peça verdadeira "perturba o repouso dos sentidos". E foi o que vimos nesse fantástico trabalho, que tive o prazer de assistir duas vezes: uma em Niterói e outra no Rio de Janeiro. GSV é um "monstro que permanece selvagem, até mesmo quando adestrado por competentes e exímios treinadores" (SANTIAGO, 2017, p. 96) (Silviano Santiago).

 

Em seu texto, Lívia faz menção a alguns momentos decisivos da peça, como a impecável cena da morte dos cavalos, interpretada magistralmente por Luisa Arraes. Ela “descreve os movimentos finais dos animais, a terrível imagem vai surgindo diante dos olhos da plateia, tendo apenas os atores agarrados aos andaimes ´sacolejados esgalopenado` como suporte para a ilusão” (BAIÃO, 2019, p. 297). Na peça, os corpos "transitam, num incessar devir, entre personagens masculinos e femininos, bichos, planta e pedras (...). Homens se metamorfoseiam em bezerro, cães, urubus, escorpiões, cactos e buritis" (BAIÃO, 2019, p. 295).

 

Bia Lessa consegue inserir o espectador no universo rosiano, "onde os dedos viram armas, patas, espinhos. Braços que abraçam, atiram, voam, nadam (...), onde os olhos de um cavalo têm muito mais a dizer do que a eloquência humana. Um mundo em que bois falam, burros se salvam onde homens se afogam e morros mandam recados que salvam os homens" (BAIÃO, 2029, p. 296).

 

Em carta de Rosa para sua tradutora inglesa, Harriet de Onís, em 1959, ele diz que o que procura fazer é "chocar, ´estranhar` o leitor, não deixar que ele repouse nas bengala dos lugares comuns". Diz que seu intuito é provocar o leitor a "enfrentar um pouco o texto, como a um animal bravo e vivo" (VERNALGIERI, 1993, p. 100). 

 

Sublinha ainda Livia: "As mudanças de personagens, o devir animal, os paus que viram pernas de cavalos, os dedos que viram armas, desvelam toda a teatralidade do teatro" (BAIÃO, 2019, p. 297).

 

Como gosta de sublinhar Bia Lessa em suas apresentações, "a palavra é apenas uma pequena parte do personagem. É o que dizia também Rosa: "o corpo não traslada, mas muito sabe, advinha se não entende" (BAIÃO, 2029, p. 299). A diretora exige tudo de seus personagens, uma entrega total: “Não se faz o Grande Sertão pela metade, ou estamos ou não estamos” (BAIÃO, 2019, p. 298).

 

Não foi tarefa fácil para Bia Lessa, mas o resultado alcançado foi magnífico, é o que acho depois de ter visto a peça com tanta atenção. A diretora estava diante de um dos mais impressionantes textos literários de todos os tempos. Como disse Rosa ao seu tradutor alemão: "A gente tem de escrever para setecentos anos. Para o Juízo Final" (ROSA, 2003, p. 234).

 

Referências Bibliográficas:

 

BAIÃO, Livia de Sá. O sertão de Bia Lessa. Eixo Roda, v. 28, n. 1, p. 283-306, 2019.

 

LORENZ, G. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, E. Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 62-97.

 

ROSA, J.G. Correspondência com seu tradutor alemão Cur Meyer-Clason. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

 

SANTIAGO, Silviano. Genealogia da ferocidade: ensaio sobre Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Recife: CEPE, 2017.

 

VERLANGIERI, I.V. Guimarães Rosa – correspondência inédita com a tradutora norte-americana Harriet de Onis. 1993. Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 1993.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Em torno ao livro de Marco Politi: Francisco, a peste e o renascimento

 Em torno ao livro de Marco Politi:

Francisco, a peste e o renascimento

 

Faustino Teixeira

PPCIR/UFJF

 

            Visando uma apresentação no meu curso de espiritualidade no Canal Paz e Bem, coordenado por Mauro Lopes, busquei fazer uma livre apresentação do último livro do vaticanista Marco Politi, publicado em 2020 com o título: Francesco, la peste, la rinascita[1]. Trata-se de um breve livro desse grande especialista de questões do Vaticano, que trabalhou por quase vinte anos no jornal La Repubblica e agora tem um blog no jornal Il Fatto Quotidiano. Publicou diversas obras importantes, dentre as quais: Sua santidade. João Paulo II e a história oculta de nosso tempo[2]; Francesco tra i lupi. Il segreto di una rivoluzione[3]; La solitudine di Francesco. Un papa profético, una chiesa in tempesta[4].

 

            O livro, objeto desta reflexão, é sintético, com 114 páginas, dos mais curtos publicados pelo autor. É, porém, de uma beleza impar, trazendo à tona o papel profético e missionarário do papa Francisco nesses duros tempos da epidemia do Covid 19. Busca nos mostrar o impacto que essa peste vem causando no mundo, e aproveita para lançar um grito de alerta para os rumos que o projeto humano vem tomando, de forma alarmante, na sua saga de correria e busca de progresso a todo custo. Francisco nos indica que “de uma crise como esta, não se sai igual, como antes. Se sai melhor ou pior”. 

 

            A Covid 19 não é a primeira peste que acometeu a humanidade e nem será a última. É o que tantos estudiosos vêm mostrando em suas pesquisas, alertando-nos sobre os riscos que corremos, sobretudos nesses tempos de avanço do Antropoceno, que é a nova época geológica marcada pela presença perturbadora do humano na Terra. É o tempo da “Terra perseguida pelo Homem”, como sinaliza Anna Tsing[5]. Estamos diante de uma grave crise ambiental e civilizacional, onde nos vemos envolvidos emocionalmente num sentimento difuso de “perda de mundo”, de “perda de orientação comum”, que nos coloca num duro sentimento de insegurança, de onde “aterrar” no meio de tanta neblina[6].

 

            Como dissemos antes, esta não é a primeira grande epidemia que estamos vivendo. Vale lembrar a peste negra, que nó século XIV matou cerca de 30 a 60% da população da Europa, e reduziu em mais de cem milhões a população mundial. Mais recentemente, a gripe espanhola, em 1918, que contaminou um quinto da população mundial e matou em menos de noventa dias um número maior de pessoas que todo o período da primeira guerra mundial, em torno de 20 a 50 milhões de pessoas[7].

 

            Tanto a gripe espanhola como a Covid 19 evidenciou-nos de forma crua a desigualdade social, sobretudo nos países do Terceiro Mundo. No caso brasileiro, como sinalizou Schwarcz e Starling, estas infecções escancararam a desigualdade, “atingindo de modo mais duro as regiões e vizinhanças que contavam com menos equipamentos urbanos; em geral os subúrbios e periferias das grandes cidades e localidades carentes”[8].

 

O livro de Politi

 

O livro apresentado tem quatro capítulos que tratam os temas: Um papa na tempestade; Olhando aquelas fossas comuns; Ou a bolsa ou a vida; Ressurgir e mudar. Vamos acompanhar aqui a reflexão de Politi na sequência mesma dos capítulos apresentados, com algumas considerações extras, objeto de nosssa reflexão pessoal.

 

1. Um papa na tempestade

 

            O relato de Politi se inicia com a contundente cena do papa Francisco, com sua veste branca, que caminha vagarosamente na Praça de São Pedro, sob uma chuva leve e dolorosa. O adro da Basílica de São Pedro estava vazio naquele entardecer do dia 27 de março de 2020, uma sexta feira. O mote escolhido pelo papa para anunciar sua oração diante da praça vazia vinha do evangelho de Marcos: “Ao entardecer...” (Mc 4,35). Podemos ler a mensagem no site do Vaticano, que é de uma beleza impar:

 

“Desde há semanas que parece o entardecer, parece cair a noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo dum silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos. À semelhança dos discípulos do Evangelho, fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda.. Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados...”[9].

 

                  Como relata a página do Vaticano, foi um extraordinário momento de oração em tempo de epidemia. Naquela tarde fria, Jorge Mario Bergoglio achega-se solitário ao lugar sagrado do adro da Basílica de São Pedro, agora abandonado e esvaziado, e avança com seus passos lentos e sofridos. Reforça em sua oração, que é mais um grito, que a tempestade assolou o país, uma convulsão “inesperada e furibunda”, evidenciando que todos se encontram juntos no mesmo barco, padecendo da mesma fragilidade e desorientação. Em sua fala, Francisco assinala que “a tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábito e prioridades”[10]. Com a epidemia, continua o papa, “caiu a maquiagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso eu”[11].

 

            Como indica Politi, o cenário italiano era mesmo desolador naquela ocasião. O país contava com 66.000 contagiados e 9.134 mortos, e o mundo com 600.000 contaminados. Tudo se refletia nas imagens televisivas, que mostravam  para um público perplexo as cenas dos caminhões militares levando em cortejo os caixões lacrados, de mortos que foram privados de uma cerimônia de adeus. 

 

            A igreja católica tinha, provisoriamente, saído da cena pública, para a tristeza de muitos. A mesma igreja que em outras ocasiões soube se colocar com grandeza diante da dor e da morte. Não há ressurreição sem sepulcro, como lembrou Politi. Naquele momento de dor, a Itália e a Europa partilhavam estarrecidas as cenas ininterruptas de contagiados e cadáveres, e a igreja, impassível, não podia manifestar sua presença e solidariedade nos espaços dos púlpitos. Por tanto tempo, na modernidade, a morte era vista como uma “indesejada”, e os meios modernos sabiam bem como evitar o contato com ela, que tinha sido simbolicamente afastada, dizendo sempre respeito aos “outros”[12]. Agora não, não havia jeito de esconder sua presença real, e nem escamotear dos olhos o adeus que acabava ocorrendo no polido espaço dos hospitais e casas de repouso.

 

            Sob o baldaquino branco, Francisco olha para o vazio, desprovido daquele sorriso que caracteriza o seu pontificado de alegria evangélica. O sorriso desaparece naquele momento sombrio. O clima é de dor: “pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-nos os olhares”. O que se vive é um momento diferente, de “perda de mundo”. O papa convoca a um novo despertar, tendo como âncora a cruz, aquela mesma cruz que hoje está na igreja de São Marcelo, e que foi levada em procissão por ocasião da grande peste de 1522. Na cruz, diz Francisco, “fomos curados e abraçados, para que nada e ninguém nos separe” do amor redentor do Senhor. Há um anúncio que salva, diz Francisco em sua mensagem, o anúncio de que “Ele ressuscitou e vive ao nosso lado”[13]. Abraçar a cruz, continua Francisco, é abrir espaço para “a criatividade que só o Espírito é capaz de suscitar”, e recuperar a coragem necessária para possibilitar “novas formas de hospitalidade, de fraternidade e solidariedade”[14].

 

            Francisco fala na ocasião com voz serena, calma, dolorida, e transforma o vazio da praça “em espaço para o qual se converge uma multidão de sedentos de acolhida e fidelidade”. Suas palavras estavam sendo ouvidas pelos meios de comunicação italiano, mas também mundial. Só na Itália, 17 milhões de ouvintes, colados à TV para ouvir a voz de Francisco. O grito de Francisco era o mesmo que já tinha repetido diversas vezes antes: como permanecer saudáveis num mundo adoentado? Não é um papa qualquer, mas alguém experimentado na vida, que conhece de perto o seu odor, como o odor do desespero, desde aquele momento crucial em Lampeduza, diante da dor dos refugiados, onde começou na prática o seu pontificado. É alguém que vem do “fim do mundo” e conhece os “nós da história”[15].

 

            O mantra de Francisco, também presente na Fratelli tutti(FT), sua encíclica sobre a fraternidade e a amizade social (2020), é que “ninguém se salva sozinho”. Sozinhos só somos capazes de afundar.[16]Daí sublinhar com energia o desafio perene do “cultivo da amabilidade” e da “hospitalidade”, que é o dom “do encontro com a humanidade mais além do próprio grupo”, a capacidade de “transcender a si mesmo em uma abertura aos outros” (FT 90 e 222). Na mesma encíclica, Francisco tinha mencionado a alegria de ter ao lado “o milagre de uma pessoa amável, que deixa de lado as suas preocupações e urgências para prestar atenção, oferecer um sorriso, dizer uma palavra de estímulo, possibilitar um espaço de escuta no meio de tanta indiferença” (FT 224). Ali na cerimônia de São Pedro, Francisco recorda que essas pessoas comuns, capazes de gestos tão  nobres, são pessoas habitadas pelo Espírito. São pessoas “que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo. São elas “que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da imprensa, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreendem que ninguém se salva sozinho”[17].

 

2. Olhemos aquelas fossas comuns

 

            Nesse segundo capítulo, Politi lembra dos bonitos esforços que vêm ocorrendo por toda Itália, em dioceses sensíveis, em gestos de acolhida e cuidado com aqueles que foram contaminados pela peste. Recorda as iniciativas positivas realizadas nas dioceses de Bergamo e Roma, e também no incansável trabalho realizado pela Caritas[18]. São pessoas diversas, que se tocam pela dor do outro, como o samaritano da parábola de Lucas (Lc 10,29-37), e se derramam em amor (FT 63s). Diz Francisco em outro momento de seu pontificado que o amor foi o caminho indicado por Jesus para a realização das Bem-Aventuranças. Ele é o “único modo de amar a Deus”[19].

 

            A irradiação da Covid 19 na Itália não poupou a presença dos leigos, religiosos e sacerdotes. Na ocasião da mensagem de Francisco em São Pedro, já tinham falecido 121 sacerdotes vítimas da peste. Em homilia feita por Francisco na casa Santa Marta, no início de abril de 2020, ele enfatiza que Deus não se esquece jamais dos seres humanos. O único momento em que se esquece é apos perdoar os pecados: “depois de ter perdoado ele perde a memória, e não recorda os pecados”[20]. É Deus quem levanta os caídos e vem em ajuda dos fragilizados facultando um olhar diferencial para “contemplar os sinais de seu amor disseminado no nosso cotidiano”[21].

 

            Sabemos que no coração de sua trajetória apostólica, Francisco coloca o diálogo como ponto medular. Diálogo que não esvazia a identidade, mas a enriquece com o dom novidadeiro do Mistério que brilha no rosto do outro. É o primeiro a reconhecer com alegria que nenhum povo, cultura ou religião é capaz de obter tudo no seu repertório particular, mas que necessita do outro para compor a bela sinfonia do Mistério de Deus. É a partir do encontro com o outro que “cada um pode reconhecer melhor as peculiaridades de sua própria pessoa e cultura: as suas riquezas e possibilidades” (FT 147-148). Nessa trajetória dialogal ocupa um lugar de destaque o documento Fraternidade humana para a paz mundial e a convivência humana, assinada em Abu Dhabi por Francisco e o grande imã da mesquita de Al-Azhar, Ahmal al Tayyeb, em fevereiro de 2019. É um documento firme em defesa da paz e crítico a todo fundamentalismo[22]. Da iniciativa conjunta nasceu um importante comitê islamo-cristão, que convocou uma jornada de oração e jejum para o dia 14 de maio de 2019, visando o clamor sagrado em favor do fim da epidemia. Foi uma jornada especial, com uma particularidade singular. Manteve-se aberta aos não crentes. Como indicou Politi, “os crentes de todas as religiões rezarão, os não crentes farão uma pausa para um ´pensamento espiritual, uma reflexão sobre a condição humana`”[23].

 

            Francisco adere com alegria à iniciativa do comitê. Em homilia realizada em Santa Marta, no dia 14 de maio de 2019, ele fala desse conjugar de esforços espirituais contra a pandemia. Assinala que talvez alguns vejam no fato uma expressão de relativismo religioso, mas, em verdade, é um modo autêntico que cada um tem de orar como sabe ou pode, assim como vivenciou em sua cultura concreta. O importante, diz Bergoglio, é que estejamos rezando não uns contra os outros, mas todos juntos, como humanos e irmãos[24].

 

            Se as estatísticas italianas falam de um aumento do ateísmo entre os jovens de 18 a 34 anos de idade na Itália, ou seja, de uma crença sem pertença, há, por outro lado, o crescimento de uma pertença sem crença, ou seja, a afirmação de um catolicismo identitário rígido, onde a pertença superficial vem desacompanhada de uma fé vivida. E isto é muito sério, confirma Francisco na homilia já citada[25].

 

  

3. Ou a bolsa ou a vida

 

            Nesse capítulo, Politi inicia falando da pandemia que “envenena o ânimo da sociedade”. É algo que produz “medo” em Francisco: “A me fa paura”. Os danos da Covida 19 se fazem sentir por toda a parte. Em toda a Europa, na Ásia, na África e nas Américas. Em todo canto as família vão fazer a experiência de perder os seus queridos “antes do tempo”. É uma pandemia que vai igualmente provocar um espantoso aumento dos mais pobres.

 

            Politi fala dos países que adotaram o negacionismo como estratégia. É o caso dos Estados Unidos de Donald Trump e do Brasil de Jair Bolsonaro. Sobre o Brasil, Politi demora-se na reflexão, mostrando o polo de tensão entre a visão do presidente negacionista e a comunidade científica, nacional e internacional. É alguém que inconsequentemente escolheu como caminho o laissez-faire. O ritmo de crescimento da pandemia no Brasil vem sendo espantoso. O caso da Amazônia é particularmente triste. A mortalidade entre os índios “é o dobro da média da população brasileira”. É um risco doloroso para os 900.000 indígenas brasileiros[26]. Em seu livro sobre a questão da morte dos indígenas brasileiros pela Covid 19, a antropóloga Aparecida Vilaça relata que a epidemia já chegou às aldeias de mais de setenta povos indígenas de diferentes regiões do Brasil, sendo os locais mais afetados as áreas do Alto Solimões e Alto Rio Negro, no oeste de Manaus[27].

 

            Apesar do imenso contágio mundial que vem acompanhando a epidemia, segmentos do episcopado católico mantém sua resistência ao trabalho exercido por Francisco nesse campo. É o caso de Carlo Maria Viganò, um dos mais violentos críticos a Francisco[28]. Como mostra Politi, “Bergoglio conhece bem a aliança entre os ultra-conservadores da igreja com a direita política e econômica dos Estados Unidos”. E cita uma reação de Francisco a respeito, durante um voo a Moçambique, em setembro de 2019: “É uma honra para mim ser atacado pelos americanos”[29]. Francisco manifesta seu temor a tudo o que circunda a política exterior de Trump com respeito à China e à Organização Mundial da Saúde. E a ideia recorrente, defendida por Trump, é a de que o Covid 19 é um “vírus chinês”. 

 

4. Ressurgir e mudar

 

            No último capítulo do livro, Politi lança uma pitada de esperança nesses tempos tão sombrios. Ressalta a missão de Francisco em exortar os fiéis a todo custo para assumirem sua responsabilidade social no momento presente. Sabe que os ventos não são favoráveis, sobretudo nesse campo da solidariedade[30]. Manifesta também sua preocupação com uma cultura do descarte, que lança os idosos em labirintos sombrios. Assim como os mais pobres, os idosos são os que mais sofrem, sinaliza Francisco, em linha de continuidade com o que disse também na Fratelli tutti 35. Para a sociedade de mercado, da produção acelerada, os mais idosos são peso morto e objeto de absoluto descaso.

 

            Francisco lança um grito contra a indiferença, realçando a igualdade de todos no âmbito da fragilidade em tempos da pandemia: “Todos somos vulneráveis, frágeis, e temos  necessidade de cura”. A tarefa do cristão, lembra Francisco, é semelhante ao do samaritano relatado por Lucas, que acolhe a fragilidade do outro e a ele presta o cuidado e o socorro[31]. Nada mais triste, continua Francisco, do que constatar a enfermidade de uma sociedade que “procura construir-se de costas para o sofrimento” (FT 65).

 

            Daí o desafio de um renascimento, de uma ressurgência, para usar uma expressão de Anna Tsing. O tempo não é de indiferença, mas de superação e reerguimento. Novas palavras são lembradas por Francisco, retomando valores essenciais esquecidos na sociedade do mercado e do lucro: olhar, escutar, condividir, colaborar e construir[32]. O convite de Francisco é o de descer ao fundo do poço, de poder observar de perto suas paredes e a água circundante, verificando com cuidado as precauções tomadas pelo construtor para que ninguém caísse ali. Reconhece Francisco que o pecado mais grave é aquele que nos defende de romper as barreiras e sair de si mesmo. Seu temor é que essa dor planetária, descuidada, acabe se transformando em ira explícita. O caminho político escolhido, que vem causando desocupação, exclusão e marginalização, pode ser surpreendido com respostas inusitadas e explosivas[33]. É o que lembrou igualmente Guimarães Rosa em seu romance Grande Sertão: Veredas, através da voz de Riobaldo: “De homem que não possui nenhum poder nenhum, dinheiro nenhum, o senhor tenha todo medo!”[34].

 

            Em linha de sintonia com muitos pensadores contemporâneos, críticos do Antropoceno, Francisco convoca a uma “profunda revisão das concepções de mundo” vigentes, dessa “rapidación” em curso. Sublinha que é o momento propício para “ver” os pobres, de acudir os pobres, de ressaltar sua dignidade única. E também de cuidar da casa comum. É tempo para uma “espiritualidade ecológica”, desperta e atenta. Trata-se de responder ao duplo clamor: da Terra e dos pobres[35].

 

            Na reflexão de Politi, Francisco capta três grandes contradições que atormentam o nosso tempo: a desigualdade, as novas escravidões e a ruína da natureza[36]. Daí a importância de uma nova sensibilidade e de uma escuta responsável desse grito que clama aos céus, um grito contra a “globalização da indiferença”, que já tinha sido apontado no início do pontificado de Francisco, em Lampeduza[37].

 

            Obstáculos difíceis, porém, surgem por todo canto, no ataque aos pronunciamentos, viagens e gestos de Francisco. Os adversários crescem em força e popularidade, acentuando ainda mais a solidão de Francisco, que corajosamente se move entre os lobos. Sobre essa oposição debruça-se Politi no final de seu livro, sobretudo dos ultra-conservadores[38]. Francisco, porém, segue em frente olhando corajosamente para o alto. Deixa as preocupações maiores aos pés de São José dormente, cuja imagem o acompanha em seu quarto. Preocupações que se revertem em bilhetes para o santo. E depois dorme tranquilo. Como Riobaldo Tatarana, Francisco faz de sua vida um ato de coragem crescente, e de entrega ao poder sanador das rezas. E reage profeticamente: “Quando vejo cristãos muito arrumadinhos, que angariam a posse da verdade, da ortodoxia e da doutrina verdadeira, e são incapazes de sujar as mãos para ajudar os outros a levantarem (...). Quando vejo esses cristãos digo: vocês não são cristãos, mas teístas com água benta cristã, mas não chegaram ainda ao cristianismo”[39].

 

            Como mostra Politi, Francisco é otimista e acredita com fidelidade num plano de ressurgência. Uma ressurreição é possível, como revelou poeticamente a uma revista católica espanhola, no dia de Páscoa. Segundo Francisco, “a experiência da pandemia fez ruir fronteiras e dissolver todos os discursos fundamentalistas em presença da fragilidade de todos nós”. Como lição, o desafio de poder retomar o “protagonismo de uma história comum e de responder juntos a tantos males que afligem milhões de irmãos em todo o mundo”[40].

 

            

 

 

            

 

 

            

 



[1]Editora Laterza de Bari (Itália), 2020.

[2]Em parceria com Carl Bernstein. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996.

[3]Bari: Laterza, 2014.

[4]Bari: Laterza, 2019.

[5]Anna TSING. Viver nas ruínas. Paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019.

[6]Bruno LATOUR. Onde aterrar?  Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

[7]Lilia M. SCHWARCS & Heloisa STARLING. A bailarina da morte. A gripe espanhola no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 13.

[8]Ibidem, p. 320.

[10]Ibidem.

[11]Ibidem.

[12]Marco POLITI. Francesco, la peste, la rinascita. Bari: Laterza, 2020, p. 5.

[14]Ibidem.

[15]Marco POLITI. Francesco, la peste, la rinascita, p. 14.

[16]Fala disto na oração no adro de São Pedro, já lembrada, e também na FT 32.

[18]Marco POLITI. Francesco, la peste, la rinascita, p. 26-28.

[19]Papa FRANCESCO & Eugenio SCALFARI. Dialogo tra credenti e non credenti. Milano: Einaudi/La Repubblica, 2013, p. 56.

[20]Marco POLITI. Francesco, la peste, la rinascita, p. 32.

[21]Ibidem, p. 34.

[23]Marco POLITI. Francesco, la peste, la rinascita, p. 39.

[24]Ibidem, p. 40.

[25]Ibidem, p. 40 e 44.

[26]Ibidem, p. 65.

[27]Aparecida VILAÇA. Morte na floresta. São Paulo: Todavia, 2020, p. 7.

[28]Viganò acaba de lançar um manifesto crítico à encíclica de Francisco, Fratelli tutti, de modo particular sua visão em torno das outras tradições religiosas: 

http://santamariadasvitorias.org/arcebispo-vigano-aprofunda-o-seu-pensamento-sobre-fratelli-tutti/

[29]Marco POLITI. Francesco, la peste, la rinascita, p. 75.

[30]Ibidem, p. 82.

[31]Ibidem, p. 84.

[32]Ibidem, p. 85. 

[33]Ibidem, p. 87.

[34]João GUIMARÃES ROSA. Grande sertão: veredas. 22ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 280.

 

[35]Papa FRANCISCO. Laudato si. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015, n. 49.

[36]Marco POLITI. Francesco, la peste, la rinascita, p. 95-96. 

[37]Ibidem, p. 96. 

[38]Ibidem, p. 111-112.

[39]Ibidem, p. 112-113 (aqui Politi faz menção às palavras de Francisco aos capelães do cárcere de Padova, tomados do livro de Francesco Pozza: Io credo, noi crediamo. Rizzoli, 2020.

[40]Francisco. Lettera a Vida Nueva, 17/04/2020. Apud. Marco POLITI. Francesco, la peste, la rinascita, p. 113.