terça-feira, 13 de abril de 2010

Como as pombinhas de San Nicolás

Como as pombinhas de San Nicolás

 

Faustino Teixeira

 

 

No prólogo do belo livro de Ernesto Cardenal, onde trata a Vida no amor, Thomas Merton sublinhava o singular itinerário espiritual desse poeta místico nicaragüense, que tinha sido seu estudante e noviço no mosteiro trapista de Gethsemani. Na visão de Merton, Cardenal era já um “mestre” na vida espiritual[1]. Essa qualidade peculiar da vida e pensamento de Cardenal vem sendo descoberta e destacada por estudiosos como Luce López-Baralt. Ela destaca que “estamos diante do fundador da literatura mística hispanoamericana e frente a um dos místicos cristãos mais originais do século XX”[2].

 

Ernesto Cardenal, que ficou mais conhecido como um “poeta revolucionário”, nasceu na Nicarágua em 1925. Sua vida e ação política em favor do sandinismo brotam, na verdade, de uma profunda introspecção espiritual, que confere sentido maior ao seu compromisso em favor dos pobres. Mas quero dedicar-me aqui à faceta menos conhecida de seu pensamento, que resgata o poeta e contemplativo enamorado, talvez um dos poetas que tenha cantado de forma mais substantiva o encontro com Deus, na linha de João da Cruz e Teresa de Ávila.

 

Um passo importante em seu itinerário, que antecede sua militância em Solentiname, foi sua decisão de ingressar no mosteiro de Gethsemani, em 1957, depois de uma dramática conversão ocorrida um ano antes. No ano de 1956, ao meio dia de um 2 de junho, estava Cardenal numa livraria de Manágua, quando se vê despertado pelas estridentes sirenes da caravana de Somoza, na avenida Roosevelt. Em sua mente ocorreu, instantaneamente, uma superposição do ditador e de Deus, como se formassem uma única figura. O sentimento que adveio em seguida, do mais fundo da alma, foi um clamor, como o do salmista: “Das profundezas clamo a ti, Iahweh” (Sl 130). Foi então que se “rendeu a Deus”. Essa experiência íntima ficou guardada em seu coração por muito tempo, sendo revelada no livro de memórias, publicado em 2005. Fala também dela no delicado livro de poemas, telescopio en la noche oscura (1993):

 

Cuando aquel mediodía del 2 de junio, un sábado,

Somoza García pasó como rayo por la Avenida

Roosevelt

sonando todas las bocinas para espantar el tráfico,

en esse mismo instante, igual que su triunfal caravana

así triunfal tú también entraste de pronto dentro de

y my almita indefensa queriendo tapar sus vergüenzas

Fue casi violación,

pero consentida,

no podía ser de otro modo,

y aquella invasión del placer

hasta casi morir,

y decir: ya no más

que me matás[3]. 

 

O encontro com Deus pegou Cardenal despreparado. Como ele mesmo relata, não estava ainda enamorado. Foi, porém, um encontro fulminante. Os mais fortes encontros amorosos com Deus acontecem assim, de forma inesperada e impetuosa. E nem todos estão preparados para participar dessa secreta presença do Amado. O grande místico Bernardo de Claraval dizia num de seus sermões sobre o Cântico dos Cânticos, que a introdução na “câmara secreta” do Amado tem uma duração bem definida: “rara hora et parva mora” (rara hora e breve tempo). Daí o significado especial do tempo que marcou o encontro: 2 de junho. Não mais um tempo de duração profana, homogêneo e contínuo, mas um tempo que marca uma ruptura, um tempo “mítico primordial" que pontua um evento sagrado.

 

Para Cardenal, a experiência foi decisiva para a sua opção de entrar na Trapa. Ela significou um “encontro amoroso com Deus. A revelação de Deus como amor”. Isso mudou sua vida radicalmente. Depois veio o contato com Thomas Merton, que só conhecia nos livros de poesia, quando ainda era estudante na Universidade de Columbia. Os dois tinham muita coisa em comum: eram poetas contemplativos, formados na mesma Universidade, com dinâmica semelhante de conversão. A comunhão acontecia também na admiração pela natureza, na causa comum em favor do amor e na luta pacifista. A rica correspondência entre os dois, que durou até a morte de Merton (1968), revela laços de uma união profunda e crescente.[4] Um dos aprendizados decisivos recebidos de Merton em sua experiência trapista, foi a percepção da vida contemplativa inserida no tempo. A forma de levar a formação monástica no período em que Merton era mestre dos noviços revelava-se especial: buscava uma pedagogia que não matava o que de autêntico existia entre os seus orientandos. Trata-se de uma vida espiritual integrada no tempo. Na visão de Cardenal, o que Merton deixou como legado foi um ensinamento único: que “a vida espiritual não estava separada de nenhum outro interesse humano” e que a vida mesma era a única vida espiritual que se podia ter[5]. A questão era simplesmente “abrir os olhos” e perceber a presença de Deus embebida nas coisas. A vida contemplativa não envolvia tantas complicações, sendo algo simples e singelo: “A vida de contemplativo era simplesmente viver, como o peixe na água”[6].

 

Por razões de saúde, Cardenal teve que deixar Gethsemani em julho de 1959. Com sua saída nasce a oportunidade de fundação de uma comunidade contemplativa renovada na Nicarágua, o que ocorreu em 1966, com a fundação em Solentiname, um retirado arquipélago no Lago da Nicarágua. Era uma idéia já almejada por Merton, mas ele não obteve licença para realizá-la. Na nova experiência, Cardenal abole as estruturas monásticas tradicionais e abre um espaço singular para as artes. Era um projeto de cristianismo simples no contexto centroamericano. Com os camponeses de Solentiname antecipou traços que serão singulares na teologia da libertação e nas comunidades eclesiais de base[7]. Sua experiência contemplativa, gestada entre os trapistas, ganha agora realização terrenal, no “amor transcendido ao próximo”. É nessa comunidade religiosa, que depois sofrerá violenta repressão dos somosistas, que se reforça o processo de radicalização política de Cardenal. Ali aprendeu a lição cristã fundamental do amor desinteressado aos outros, mas sobretudo aos mais excluídos, e também o ensinamento de que a palavra de Deus não é apenas para ser ouvida mas também praticada: dar de comer e beber aos famintos e sedentos,  dar de vestir ao nu e acolher aos forasteiros (Mt 25).

 

A revolução sandinista não vingou, para o desencanto de Cardenal, que relata todo o processo em livro de memória[8]. Mas permanece viva a “abismal compaixão humana do poeta”, e seu amor universal que abraça o inteiro cosmos. Desde o início de sua trajetória existencial, Cardenal entende o universo inteiro “sub specie aeternitatis”. A amplitude desse amor vem agora expressa em duas obras fundamentais que marcam o novo período: Cántico Cósmico (1989) e Telescopio en la noche oscura (1993). O doloroso vazio espiritual que acompanha a derrota e crise do sandinismo  provoca a inspiração do poeta, que reacende sua poemática mística nesses livros de especial grandeza. O Cántico Cósmico é uma verdadeira “épica astrofísica”, coroada com sublimes cantigas onde se celebra a união transformante com Deus. Vale registrar a beleza única da cantiga 42, onde o poeta sinaliza a força dessa comunhão:

 

Yo tuve una cosa con él y no es un concepto.

Su rostro en mi rostro

y ya cada uno no dos

sino un solo rostro[9].

 

O poeta místico busca romper com o “eu” que atormenta a celebração de amor com o Tu do Amado, e descobre maravilhado que no centro de seu ser existe um “Outro” que é a razão da sua vida:

 

El que un día tú y yo nos acariciemos

como lo hacen con ojos cerrados, gimiendo, los amantes,

en un lugar infinito y una fecha eterna

pero tan real como decir esta noche a las 8[10].

 

Assim como o ferro dos trilhos é o mesmo que corre no sangue, também o Amado penetra as entranhas mais secretas do poeta, que celebra com alegria essa união:

 

Somos como esas dos palomitas de San Nicolás

que cuando una se corre

       la otra va detrás

y cuando ésta el que huye

       aquélla la sigue

pero nunca se aleja la una de la otra

         siempre están en pareja.

Cuando vos te me vas

       Yo voy detrás de vos

y cuando yo soy quien me voy

vos vas detrás.

Somos como esas dos palomitas

                        De San Nicolás[11].

 

Dando continuidade ao seu Canto Cósmico, Cardenal publica o belo poemário do Telescópio en la noche oscura, escrito entre os anos de 1992 e 1993. Como indica López-Baralt, trata-se de um “grito” do poeta, que ressurge vivo de um estado de secura espiritual, e que mantém viva a esperança de que mesmo na obscuridade noturna é possível “aproximar-se da luz ultra terrenal das estrelas graças à privilegiada mirada de um simbólico telescópio”[12]. Tendo renunciado ao amor efêmero, encontra agora o poeta um amor que não envelhece jamais. O “romântico enamorado” percebe-se escolhido. Descobre que nasceu para um “amor extremista” e a ele dedica sua vida:

 

Aquella noche en la Isla de Vancouver

Abrí la ventanita del motel

ya al ver las estrellas

casi lloré.

Eran tantas esa noche

Y me besabas con todas ellas[13].

 

Esse grande poeta e místico nicaragüense, nem sempre compreendido na sua profundidade, permanece como um sobrevivente a anunciar uma esperança renovadora para o presente. São poucos os místicos que viveram tão intensa e ardorosamente o encontro amoroso com Deus, conjugado com uma delicadeza e cuidado especial para com os mais sofridos de nosso tempo. Há ainda um espaço aberto para reconhecer essa dimensão essencial de originalidade de um pensamento que é singular e criativo, pontuado por grande liberdade imaginativa e densidade espiritual,  que retoma o grande filão de livros essenciais como o “Cântico Espiritual” de João da Cruz, as “Moradas” de Teresa de Ávila e o “Meio Divino” de Teilhard de Chardin.

 

(publicado em amaivos.uol.com.br)



[1] Thomas MERTON. Prólogo. In: Ernesto CARDENAL. Vida en el amor. 2 ed. Madrid: Trotta, 2001, p. 16 (com tradução brasileira de Thiago de Melo: Vida no amor. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979).

[2] Luce LÓPEZ-BARALT. El cântico espiritual de Ernesto Cardenal. In: ____. & Lorenzo PIERA (Eds). El sol a medianoche. La experiencia mística: tradición y actualidad. Madrid: Trotta, 1996, p. 26.

[3] Ernesto CARDENAL. Telescopio en la noche oscura. Madrid: Trotta, 1993, pp. 67-68; Id. Vida perdida. Memórias 1. Madrid: Trotta, 2005, pp. 77-78.

[4] Thomas MERTON & Ernesto CARDENAL. Correspondencia (1959-1968). Madrid: Trotta, 2003.

[5] Ibidem, p. 34.

[6] Thomas MERTON. Vida perdida, p. 144.

[7] Sobre a experiência de Solentiname ver: Ernesto CARDENAL. El evangelio en Solentiname. Madrid: Trotta, 2006; Id. Las insulas extrañas. Memórias 2. Madrid: Trotta, 2002.

[8] Ernesto CARDENAL. La revolución perdida. Memórias 3. Madrid: Trotta, 2004.

[9] Ernesto CARDENAL. Cántico Cósmico. 3 ed.  Madrid: Trotta, 1999, p. 385 (com tradução brasileira de Thiago de Melo: Cântico Cósmico. São Paulo: Hucitec, 1996).

[10] Ernesto CARDENAL. Cántico Cósmico, p. 389.

[11] Ibidem, p. 391.

[12] Luce LÓPEZ-BARALT. Prólogo. In. Ernesto CARDENAL. Telescopio en la noche oscura, p. 19.

[13] Ernesto CARDENAL. Telescopio en la noche oscura, p. 59.

 

 

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