terça-feira, 20 de abril de 2010

A contribuição das religiões: uma visão ecumênica

A CONTRIBUIÇÃO DAS RELIGIÕES: Uma visão ecumênica

 

Faustino Teixeira

PPCIR/UFJF

 

A minha participação nessa mesa sobre a contribuição das religiões é favorecer um olhar “ecumênico” sobre esta questão tão contundente no tempo atual. Como situar a presença positiva das religiões num tempo marcado pelas afirmações identitárias agressivas, pelo acirramento dos fundamentalismos e a resistência aos apelos da diversidade.

 

 

1. As religiões na berlinda

 

Os ataques de 11 de setembro de 2001 desencadearam em muitos paises uma onda singular de extremismo anti-religioso. Vale recordar a publicação de algumas obras como: “Deus, um delírio” (Richard Dawkins. São Paulo: Companhia das Letras, 2007); “Deus não é grande” (Cristopher Hitchens. São Paulo: Ediouro, 2007) e “Tratado de ateologia” ( Michel Onfray. São Paulo: Martins Fontes, 2007).

 

Na visão de Dawkins, “até mesmo a religião amena e moderada ajuda a proporcionar o clima de fé no qual o extremismo floresce naturalmente. (...) Os ensinamentos da religião ´moderada`, embora não sejam extremistas em si mesmos, são um convite aberto ao extremismo”[1].  Esse autor diz ainda que “a fé religiosa é um silenciador especialmente potente do cálculo racional, que normalmente parece sobrepujar todos os outros”[2].

 

Temos que reconhecer que esse início de século XXI começou com “crepúsculo e obscuridade”. É o que afirmou Hobsbawm em seu livro-biografia[3]. O quadro do tempo atual é revelador de um espectro de violência e fascínio do mal. Um cenário que se revela ainda mais doloroso ao se perceber a presença e o lugar das religiões nos embates e conflitos contemporâneos. Desde as últimas décadas tem-se verificado um “surpreendente surto de violência condicionada pela religião.” Trata-se de uma realidade que tem levado alguns intelectuais a sinalizar a impossibilidade de uma aproximação ou congraçamento dos seres humanos através das religiões e a proclamar a vinculação entre religião e violência. O Prêmio Nobel, José Saramago, chegou a afirmar que dentre as formas mais criminosas e absurdas  de mortes que ocorrem em nosso tempo destaca-se aquela que “tem mandado matar em nome de Deus”[4]. Mas em alguns casos, como na reação desencadeada após a derrubada das torres gêmeas, os traços de violência “civil” foram muito impressionantes. Em recente entrevista, o historiador Eric Hobsbawm assinalou:

Se olharmos para o número de pessoas mortas não só pela Al Qaeda, mas por todos os terroristas e homens-bomba até hoje, em termos absolutos, é algo muito pequeno. Em termos militares, então, é negativo. É um erro achar que a Al Qaeda é uma ameaça ao mundo.A reação a Al Qaeda, essa sim, tem sido muito mais perigosa. Não só porque está produzindo uma enorme intervenção militar em lugares em que não deveria haver nenhuma intervenção militar. Mas também porque está sendo responsável pela diminuição séria do respeito aos direitos humanos no Ocidente. É claro que seria ridículo não levar Al Qaeda a sério. Mas bombardear países não é o modo de lidar com esse tipo de problema. Nunca foi. A questão deve ser resolvida pelos meios tradicionais aplicados no passado, contra o IRA (Exército Republicano Irlandês) e outros grupos terroristas. Por meio de estratégias de investigação policial, da infiltração, de ações localizadas. Trata-se de um problema policial, não militar[5].

Há um traço de ambigüidade ou enigma que atravessa todas as religiões, implicando a presença de um dualismo que pode possibilitar tanto a afirmação da humanidade, como o acirramento da violência. Em razão de sua inserção histórica, as religiões podem, contrariando a sua motivação original, exercer uma “instrumentalização do sagrado” em favor da afirmação de seu poder particular com respeito aos outros.

 

O grande, difícil e arriscado desafio do diálogo inter-religioso consiste em apontar e demonstrar a possibilidade de um horizonte de conversação alternativa: de indicar que a violência religiosa não faz parte da essência da religião, mas constitui um desvio ou traição do dinamismo mais profundo que anima a relação do ser humano com o Mistério maior. Como diz o teólogo belga Edward Schillebeeckx, “a relação autêntica com o Absoluto como tal não é violenta sob nenhum aspecto, antes pelo contrário. Ela desperta a coragem inabalável para produzir mais humanidade em todos os setores da vida”[6].

 

2. As religiões e o desafio da paz mundial

 

Por ocasião da reunião do Parlamento das Religiões Mundiais, realizado na cidade de Chicago (1993), firmou-se uma importante declaração em favor de uma ética mundial. Diante da difícil situação mundial (conflitos sociais, raciais, étnicos, do crime organizado, da violência institucionalizada) e a constatação da presença de segmentos religiosos no fomento de agressões, ódios e hostilidades xenófobas, firmou-se um compromisso fundamental em favor de uma cultura da não violência, da solidariedade, da tolerância e da paridade dos direitos. Afirmou-se na declaração que a humanidade necessita não apenas de reformas sociais e ecológicas, mas também de “renovação espiritual”[7]. As religiões têm um lugar importante na afirmação do respeito e cuidado para com a comunidade da vida. Em razão de seu capital simbólico e de suas forças espirituais”, as religiões podem conferir aos seres humanos uma fidelidade de fundo e um horizonte de sentido. Mas para que isto possa ocorrer, faz-se necessário a paz entre as religiões, e o diálogo entre as religiões. Como vem sublinhando o teólogo Hans Küng, não pode haver paz no mundo sem paz entre as religiões. O grande desafio desse nosso século XXI é o DIÁLOGO em favor da paz. E a paz significa “a plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e a totalidade maior da qual somos parte”[8].

 

3. O toque sutil da espiritualidade

 

O grande místico capadócio cristão, Gregorio de Nissa (séc. IV), dizia que a natureza de Deus é inacessível aos seres humanos e às religiões. Temos acesso apenas ao seu “perfume difuso” no âmbito da criação e da história. É esse perfume que exala das pessoas espirituais, dos assim chamados “amigos de Deus”, que mantêm acesa a nossa mirada para o mistério maior e para a afirmação do humano.

 

Mais importante do que a fixação nas religiões, é o incremento da espiritualidade, que está relacionada com qualidades essenciais do espírito, tais como amor e compaixão, paciência, hospitalidade, cortesia e delicadeza. E as pessoas são capazes de recorrer a tais valores mesmo não pertencendo a determinado sistema religioso. O grande líder tibetano, Dalai Lama, vem sinalizando nos últimos anos a importância do incremento dessas qualidades do espírito humano. Mostra-se otimista com respeito à capacidade dos indivíduos poderem desenvolvê-las, até mesmo em alto grau, mesmo fora de uma específica inserção religiosa. E não vê como dispensar essas qualidades espirituais básicas para a construção de um novo milênio distinto[9].

 

Torna-se hoje essencial o despertar para o senso espiritual. Dizia Gandhi, que “um homem com intensa espiritualidade pode, sem palavras nem gestos, tocar o coração de milhões de pessoas que nunca o viram e que ele nunca viu”. E é este senso espiritual que traduz a verdade de uma religião. Para Gandhi, “a comprovação real da verdade de uma religião é a fragrância de espiritualidade, do amor, do contentamento, da paz reais”, que ela é capaz de inspirar[10].

 

Para finalizar, gostaria de concluir minha participação com uma citação de um dos grandes personagens do diálogo inter-religioso contemporâneo. Trata-se do místico catalão, Raimon Panikkar, hoje com 88 anos. Perguntado sobre o espaço existente para o diálogo no tempo atual, ele respondeu: “há o espaço por nós dedicado”. E o espaço começa pela escuta. A seu ver, as religiões deveriam estar voltadas sobretudo para a sua conversão pessoal: “concentrar-se menos sobre o nirvana, a salvação, o céu, e assim por diante, para dedicar-se ao esforço comum em favor da cura das feridas humanas: curar a humanidade de suas pragas históricas”[11]. E isso significa afirmar a excelência de uma cultura da paz.

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[1] Richard DAWKINS. Deus, um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 388 e 392.

[2] Ibidem, pp. 392-393. Esta posição de Dawkins, vem sendo questionada por muitos autores, que a consideram mais um “libelo político” do que ciência. Veja a crítica tecida ao livro por Luis Felipe Pondé (PUC/SP):

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0109200719.htm

[3] Eric HOBSBAWM. Tempos interessantes. Uma vida no século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 448.

[4] José SARAMAGO. O fator Deus. FolhaOnline, 19/09/2001:

http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u29519.shtml

[5] Entrevista publicada na FolhaOnline, em 30 de setembro de 2007:

http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u332395.shtml (acesso em 05/03/2008).

[6] Edward SCHILLEBEECKX. Religião e violência. Concilium, v. 272, n. 4, 1997, p. 171.

[7] Hans KÜNG & Karl-Josef KUSCHEL. Per un´etica mondiale. La dichiarazione del Parlamento delle religioni mondiali. Milano: Rizzoli, 1995, p. 24.

[8] A carta da terra. In: Leonardo BOFF. Do iceberg à arca de Noé. O nascimento de uma ética planetária. Rio de Janeiro: Garamond, 2002, p. 158.

[9] DALAI LAMA. Uma ética para o novo milênio. Rio de Janeiro: Sextante, 2000, pp. 32-33.

[10] Mohandas Karamchand GANDHI. Gandhi e o cristianismo. São Paulo: Paulus, 1996, pp. 131-132.

[11] Bruneto SALVARANI. Raimon Panikkar, in cerca di Dio vivendo a cavalcioni:

http://www.stpauls.it/jesus06/0612je/0612je56.htm (acesso em 05/03/2008)

(Publicado no livro: Fátima Bayma de Oliveira et al. Desafios da gestão pública de segurança. Rio de Janeiro: FGV/FAPERJ, 2009, pp. 175-179)

 

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