Uma teologia de amor ao pluralismo religioso
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
Só mesmo quem acompanhou de perto a vida e obra de Jacques Dupuis pode se dar conta do significado e riqueza da sua instigante reflexão teológica e a atualidade de sua proposta. Falando a respeito de sua mais importante obra, “Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso”[1], o então presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso, Michael Fitzgerald assinalou que Dupuis “propõe reflexões teológicas sobre um tema importante e permanecerá provavelmente por longo tempo a obra de referência para o amanhã”[2].
Uma vocação para o diálogo
Jacques Dupuis nasceu no dia 05 de dezembro de 1923 na cidade de Charleroi, na Bélgica, de uma família católica. A sua motivação para a vida religiosa veio desde cedo, e de modo particular pelos jesuítas, tendo ingressado na Companhia de Jesus aos 17 anos, no dia 07 de setembro de 1941. Seus estudos superiores, em Letras e Filosofia, foram realizados na Universidade de Namur (Bélgica), e prolongados em Lovaina onde terminou sua licenciatura em Filosofia. Após o final do período de formação religiosa, com a idade de 25 anos, Dupuis decide ser missionário na Índia. Apos o consentimento de seus superiores, parte para a Índia no ano de 1948 e lá vai permanecer por 36 anos, até 1984. Sua rica e novidadeira experiência na Índia só será interrompida por um breve período, quando esteve em Roma para fazer o doutorado em teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana, onde desenvolveu sua tese sobre a antropologia religiosa de Orígenes, sob a orientação de A.Orbe[3]. Após o doutorado, em 1959, retornou a Kurseong para lecionar no estudantado dos jesuítas, responsabilizando-se pelos temas de cristologia e teologia sacramentária. Ao lado das atividades acadêmicas e de empenho na formação dos jovens seminaristas, Dupuis também marcou presença na assistência espiritual aos refugiados tibetanos (monges e leigos) que se deslocaram para a Índia. E aos poucos foi para ele se firmando o interesse pela questão teológica da inculturação e o respeito pelas tradições religiosas locais. Apaixonado pela Índia e sua magnífica tradição cultural e religiosa, Dupuis desvendava as lindas paisagens de sua região de motocicleta[4], e privilegiava permanecer sempre na Índia durante suas férias.
No período em que esteve na Índia, Jacques Dupuis dirigiu por 12 anos a prestigiosa revista Vidyajyoti Journal of Theological Reflection do Instituto de Estudos Religiosos de Nova Déli. Em razão de sua competência teológica e sensibilidade face às questões ligadas à inculturação, foi convidado a ser consultor teológico da Confêrencia Episcopal Indiana, tendo-a assessorado nos trabalhos do Sínodo dos bispos de 1974, sobre a evangelização no mundo contemporâneo. Respondendo ao convite feito em 1984 pelo Superior Geral da Companhia de Jesus, padre Peter-Hans Kolvenbach, Jacques Dupuis transfere-se para Roma, onde passa a ensinar na Pontifícia Universidade Gregoriana. O seu trabalho concentra-se na temática da cristologia. E começa na ocasião a trazer para os alunos a desafiante questão da relação de Jesus Cristo com as outras religiões, tema que se transformará em livro, no ano de 1989[5]. Neste livro, Dupuis reconhece que na abundante produção cristológica pós-conciliar, foram “raras as obras que se preocuparam em situar, de modo explícito e um pouco mais elaborado, o mistério de Cristo no mais amplo contexto das tradições religiosas da humanidade”[6]. As aulas de Dupuis alcançaram, rapidamente, um grande sucesso, despertando grande interesse e atenção dos alunos, que nele reconheciam a figura de um mestre. Passou a ser requisitado para o trabalho de orientação de inúmeras teses, que manifestam o impacto de sua presença naquela Universidade Pontifícia. Juntamente com a intensa atividade acadêmica e de orientação, assumiu a direção da revista Gregorianum, que ficou 18 anos sob sua responsabilidade (1985-2003). Exerceu ainda a função de teólogo consultor do Pontifício Conselho para o Dialogo Inter-Religioso, tendo sido o principal responsável pela redação de um dos mais abertos documentos pontifícios sobre o tema do diálogo do cristianismo com as religiões, denominado Dialogo e Anúncio, cuja publicação ocorreu em 1991[7].
A afirmação acadêmica
Foi também intensa a produção teórica de Jacques Dupuis durante os anos em que se dedicou às leituras e pesquisas na sua área de interesse. Com base em recente livro organizado em sua homenagem, verifica-se a presença de inúmeros títulos, em torno de 271 escritos, entre livros e artigos. Há também que assinalar as inúmeras recensões por ele realizadas, que ultrapassam 560, muitas das quais publicadas na revista Gregorianum[8]. O livro que lhe deu projeção internacional foi “Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso”, publicado em 1997. Este livro nasceu sob o incentivo de Rosino Gibellini, que em carta ao autor sugeriu uma pesquisa mais abrangente sobre a questão da teologia das religiões, abordando não só seu aspecto histórico mas também teorético. E ofereceu para publicá-lo na coleção teológica sob sua responsabilidade, na editora Queriniana (Biblioteca de Teologia Contemporânea)[9]. E o livro de Dupuis seguiu de fato esta pista, subdividindo-se em duas partes, uma histórica e positiva e a outra mais sintética e temática. Na parte histórica, Dupuis traz à baila a memória cristã sobre o tema através dos séculos, buscando destacar as profundas mudanças ocorridas na avaliação realizada pela tradição cristã sobre as outras tradições religiosas. No final desta primeira parte, o autor lança sua proposta de uma reflexão mais séria sobre o pluralismo religioso, entendido agora como uma realidade de princípio ou direito[10]. Na parte temática, o autor busca desenvolver propriamente a sua proposta de uma teologia cristã do pluralismo religioso, tendo como chave interpretativa uma cristologia trinitária e do Espírito[11]. Segundo a avaliação de Rosino Gibellini, nesta obra de Dupuis acontecia um passo que era inovador na sua reflexão, pois superava uma perspectiva cristocêntrica inclusivista e, de forma argumentada e documentada, assumia um pluralismo inclusivo. Mas vai ser justamente este novo passo que irá suscitar toda a polêmica subseqüente.
O conteúdo do novo livro de Dupuis foi objeto de seus dois últimos cursos na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, no ano de 1997. E isto ocorreu num curso regular no terceiro ciclo (para alunos do mestrado e doutorado), e num seminário oferecido para alunos em fase de elaboração de seus trabalhos finais. O curso regular foi muito concorrido, como era comum nas aulas de Dupuis, com mais de duzentos alunos matriculados. Ao final do curso, como um brinde para o novo livro que tinha sido apresentado, Jacques Dupuis foi efusivamente aplaudido de pé por todos os alunos. Mas o que vinha pela frente era bem mais nebuloso.
No final de 1997 o livro teve dois lançamentos. Primeiramente na França, em 27 de outubro, no Instituto Católico de Paris, envolvendo um debate público que contou com as presenças dos teólogos Joseph Doré e Claude Geffré. Comemorava-se com o lançamento o sucesso da Coleção “Cogitatio Fidei”, dirigida por Geffré, que chegava com a tradução do livro de Dupuis ao seu número 200. O acontecimento foi registrado pela revista La Vie Spirituel, que resumiu as intervenções de Jacques Dupuis e Claude Geffré[12]. Em 22 de novembro foi a vez do lançamento na Itália, na Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG-Roma). A promoção foi da própria Universidade, em parceria com a Associação Teológica Italiana (ATI). O lançamento foi presidido pelo então reitor da Universidade, o padre Giuseppe Pittau. Participaram ainda como conferencistas o então Secretário do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso, Michael Fitzgerald, e os professores Giacomo Canobbio (então presidente da ATI) e Geraldo O´Collins (PUG). Durante as intervenções todos, indistintamente, saudaram a importância da obra e a seriedade das reflexões do autor. O professor G. Canobbio, em particular, sublinhou a importância da obra como referencial duradouro, “não apenas pelo interesse do argumento, mas igualmente pelas soluções propostas a um dos problemas mais espinhosos da teologia atual”[13].
Os passos de um processo
No ano de 1998 começam a aparecer as manifestações mais críticas, sinal de que o livro estava produzindo “dissonâncias cognitivas” e sendo mal digerido por setores mais resistentes ao avanço da reflexão teológica nessa espinhosa área do diálogo do cristianismo com as outras religiões. Em 14 de abril, o jornal italiano Avvenire publicava em página inteira uma resenha critica feita por Inos Biffi[14]. O autor rebatia as teses de Dupuis e sustentava que as afirmações fundamentais que guiavam o volume e suas conclusões eram inaceitáveis tanto do ponto de vista teológico como do perfil da fé cristã. Duas questões em especial causavam dificuldade para o autor: a tese do pluralismo religioso de princípio e a proposta de reflexão sobre a unicidade relacional de Jesus, com base na cristologia trinitária defendida por Dupuis. Esta cristologia trinitária vem apressadamente identificada por Biffi com o “teocentrismo”. O artigo causou um mal-estar, sobretudo em razão de algumas afirmações de teólogos pluralistas impropriamente atribuídas a Dupuis. Em carta ao jornal Avenire, o então reitor da PUG, Giuseppe Pittau, solicitou uma retratação das injustiças cometidas na redação do artigo. Esta carta, porém, nunca foi publicada.
Em julho de 1998, o teólogo jesuíta Giuseppe de Rosa publica um artigo na revista La Civiltà Cattolica tecendo novas críticas ao livro de Jacques Dupuis. Após fazer uma apresentação detalhada e precisa sobre o conteúdo das duas partes da obra, este autor aponta ao final de seu artigo algumas indagações teológicas. Sua maior interrogação diz respeito à adequação ou não das posições defendidas por Dupuis com os dados do Novo Testamento e da Tradição cristã mais autorizada. O autor desenvolve suas questões em quatro itens específicos. Em primeiro lugar, uma questão relacionada ao lugar concedido por Dupuis à centralidade histórica do evento Cristo. Em que medida as afirmações de Dupuis sobre o caráter decisivo da auto-manifestação de Deus em Jesus Cristo não entrariam em tensão com outras passagens que tenderiam a amenizar ou mesmo sacrificar o alcance anteriormente concedido. De Rosa assinala em particular, sua dificuldade de entender a restrição feita por Dupuis ao caráter absoluto de Jesus. Em segundo lugar, uma questão relacionada à sua cristologia trinitária. Para De Rosa, a tese de Dupuis não explicita de forma clara o nexo existente entre a ação do Verbo e do Espírito com respeito a Jesus; em particular a ação antes e depois da encarnação[15]. O autor reage ainda contra a idéia de “complementaridade” de revelações proposta por Dupuis, na medida em que a mesma correria o risco de nivelar as outras revelações com a revelação bíblica. Em terceiro lugar, De Rosa sublinha que Dupuis, não teria dado o justo relevo à mediação da Igreja na obra da salvação. Em quarto lugar, vem questionado o lugar limitado concedido em sua obra ao anúncio do Evangelho. Se as outras tradições religiosas já fazem parte do Reino de Deus, como justificar o mandato evangélico que a todos convoca ao discipulado de Cristo ? Para De Rosa, estes e outros interrogativos podem ser apontados na obra de Dupuis, tornando-a, assim, “problemática” e “provocativa” em torno de um tema de grande importância como este do pluralismo religioso como dado de princípio[16].
A resenha crítica de Giuseppe de Rosa era já uma “senha” de que alguma coisa estava em curso com respeito ao livro de Dupuis. E, de fato, quando ela saiu publicada já tinha sido aberta uma investigação a respeito por parte da Congregação para a Doutrina da Fé (CdF). Em assembléia ordinária da CdF, realizada em 10 de junho de 1998, decide-se pela “contestação” da mencionada obra, o que significou o início de um longo e doloroso processo de clarificação que teve a duração de quase trinta meses, cujos resultados são hoje conhecidos[17]. O cardeal Ratzinger, então Prefeito da CdF, escreve ao Geral dos Jesuítas, pe. Peter-Hans Kolvenbach, informando-lhe sobre a decisão tomada, e Jaques Dupuis toma ciência desta carta ao final de setembro do mesmo ano. Em entrevista concedida a Johns Jay, Dupuis relata o ocorrido:
“O documento oficial me acusava de graves erros contra a fé. Diz expressamente que ´neste livro há graves erros contra elementos essenciais da fé divina e católica`. E mencionava especificamente as doutrinas sobre a Encarnação, a Trindade, a Revelação... E deram-me 10 páginas de perguntas para responder; tinha que fazê-lo em três meses e no mais estrito segredo. Só tinha direito a pedir conselhos a um teólogo cujo nome, entretanto, tinha que ser aprovado pelo padre Geral”[18]
E tudo isso ocorreu quase às vésperas do início do ano letivo da Universidade. Inagurava-se, assim, um período de “silêncio obsequioso”, em que Jacques Dupuis não poderia abordar os pontos controvertidos e contestados de sua obra. Dentre as cadeiras previstas para Dupuis no semestre que se iniciava, uma delas dedicava-se ao tema da cristologia, e era ele o professor responsável. Este seria o seu último curso na Gregoriana, em razão de já ter alcançado na ocasião a idade limite (75 anos) para sua aposentadoria compulsória na Universidade. Uma vez definidas as restrições ao livro, Dupuis decidiu, sob orientação de Kolvenbach, não mais oferecer o curso previsto, e o decano da Faculdade de Teologia da Gregoriana afixou no átrio da Universidade as razões motivadoras do cancelamento do mesmo. Como se poderia imaginar, o impacto causado pela constrangedora situação foi muito grande[19].
Uma Notificação em curso
Seguindo a linha habitual dos processos de investigação da CdF, toda a dinâmica de comunicação foi estabelecida através de contato com o superior de Dupuis, num processo meio despersonalizado, já que Dupuis nunca era pessoalmente citado, mas sempre tratado como “o mencionado religioso”. O teólogo escolhido por Dupuis para aconselhamento foi Geraldo O´Collins, professor da Gregoriana, que sempre esteve ao seu lado e em sua defesa. Em resposta às indagações da CDF, Dupuis enviou um documento de 188 páginas em dezembro de 1998. Ele relata que após o envio seguiu-se um período doloroso de sete meses de silêncio, que só foi rompido ao final de julho de 1998, quando suas respostas foram consideradas insatisfatórias na carta enviada pelo cardeal Ratzinger a Kolvenbach. Uma nova lista de erros foi então apresentada em 10 páginas, dando-se um novo prazo de três meses para a resposta do envolvido. No início de novembro de 1999, Dupuis envia mais 60 páginas de elucidação das questões levantadas. E, mais uma vez, um difícil silêncio envolveu o processo. Em seu relato, Dupuis fala em “agonizante período de silêncio”, que durou cerca de 10 meses. Só em setembro do ano seguinte é que ele toma ciência de uma minuta de notificação sobre o seu livro, sendo convocado para uma reunião oficial com membros da CdF. A reunião foi programada para o dia 04 de setembro de 2000, e dela participaram Jacques Dupuis, acompanhado de seu superior, Peter-Hans Kolvenbach e seu assessor Geraldo O´Collins. De parte da CdF estavam presentes o seu Prefeito, Joseph Ratzinger e o Secretario Tarcisio Bertone[20]. Conforme o relato de Dupuis, foi uma sessão “muito intensa”, que levou cerca de duas horas, onde ele mesmo falou pouco, dando mais espaço para os testemunhos de Kolvenbach e O´Collins. Este último buscou argumentar junto aos representantes da CdF que os erros atribuídos ao livro não estavam realmente no livro, provocando assim um falso julgamento sobre a obra em questão. Apesar das argumentações em contrário, o cardeal Ratzinger pediu a Dupuis para assinar o texto da notificação, mas ele recusou. E o fez em razão do texto apresentado indicar que o livro continha “graves erros”, sendo que ele não se reconhecia nos erros a ele imputados[21]. Uma nova minuta foi apresentada a Dupuis depois de três meses, no dia 06 de dezembro de 2000. Na nova versão da notificação não se fala mais em “graves erros”, mas em “ambigüidades” que podiam conduzir o leitor ao erro[22]. Como não havia possibilidade de qualquer nova alteração do texto, Dupuis decide assinar a notificação. E argumenta em seu relato: “Aceitei assinar a notificação não porque tivesse mudado de opinião, mas por um motivo humano. Era a única maneira de poder continuar com minha investigação teológica”[23].
A publicação da Notificação ao livro de Jacques Dupuis ocorreu em 26 de fevereiro de 2001 no jornal L´Osservatore Romano, tendo sido assinada por Joseph Ratzinger e Tarcisio Bertoni em 24 de janeiro de 2001, depois de aprovada por João Paulo II. Em artigo ilustrativo da CdF a respeito da Notificação, tornado público um pouco depois, assinalou-se: “A Congregação para a Doutrina da Fé considerou ser necessário publicar a Notificação com a finalidade concreta de oferecer aos leitores um critério seguro de avaliação doutrinal. De fato, uma atenta leitura do livro faz emergir algumas ambigüidades e dificuldades sobre pontos doutrinais de grande relevo, que podem induzir o leitor em opiniões errôneas ou perigosas”[24]. As ambigüidades ou dificuldades percebidas pela CdF no livro de Dupuis resumem-se a cinco pontos: a questão da mediação salvífica única e universal de Jesus Cristo; da unicidade e plenitude da revelação de Jesus Cristo; da ação salvífica universal do Espírito Santo; da ordenação de todos os homens à Igreja; do valor e função salvífica das tradições religiosas[25].
Para a surpresa de Dupuis, no texto da Notificação publicada estava um parágrafo que não tinha sido apresentado antes, por ocasião de sua assinatura. E ali se dizia: “Com a assinatura do texto, o Autor comprometeu-se a aderir às teses enunciadas e a ater-se para o futuro, na sua atividade teológica e nas suas publicações, aos conteúdos doutrinais indicados na Notificação, cujo texto deverá ser incluído também em eventuais reimpressões ou reedições do livro em questão, e nas relativas traduções”[26]. Isto foi para Dupuis um motivo a mais de aborrecimento. Ele comentou depois em entrevista que ao assinar o texto havia se comprometido a “levar em conta” o documento. Mas no parágrafo acrescentado exigia-se dele mais do que lhe havia sido apresentado como exigência. Foi o desfecho de um difícil período para Dupuis, que ele mesmo identificou como “demasiado duro”, tenso e traumático.
Novos desdobramentos
A produção de Jacques Dupuis não se interrompeu durante todo o processo. Esclarecimentos sobre a sua posição teológica foram publicados em três artigos importantes, dois dos quais em revistas européias[27]. São artigos preciosos para situar devidamente a reflexão de Dupuis. Ele publicou também outro livro, que foi concluído no final de março de 2000: O cristianismo e as religiões[28], redigido de forma mais fácil e ágil com o intuito de atingir um público maior. Trata-se de um livro que apresenta alguns capítulos novos e outros reorganizados, sendo o número de notas reduzido ao essencial. O livro vem acompanhado de um post scriptum onde Dupuis faz referência a dois documentos da CdF que se tornaram públicos depois que ele tinha concluído o seu trabalho: a Declaração Dominus Iesus e a Notificação a respeito de seu livro anterior. E Dupuis assinala a clara conexão entre estes dois documentos: “A Notificação, como é explicitamente dito numa nota, ´inspira-se nos princípios indicados na Declaração (Dominus Iesus) para a avaliação da obra do padre Dupuis`”[29]. De forma autêntica e corajosa, Dupuis defende no seu post scriptum o direito à manutenção de um “modo diferente de expressar a doutrina”, ou seja, a razoabilidade de “uma distinta percepção da mesma fé num diferente contexto”[30]. Ele não nega o valor dos documentos da CdF, enquanto expressão de uma legítima “perspectiva dogmática”, mas exclui a possibilidade de considerá-los exclusivos, abrindo, assim, a plausibilidade de outras visadas, entre as quais situa a sua abordagem cristológica trinitária e pneumatológica. Com a tranquilidade de um pensador amadurecido conclui: “Afirmações absolutas e exclusivas sobre Cristo e sobre o cristianismo que reivindicassem a posse exclusiva da auto-manifestação de Deus ou dos meios de salvação distorceriam e contradiriam a mensagem e a imagem cristãs”[31].
Deve-se sublinhar que ao longo de todo o seu processo, Jacques Dupuis contou com o apoio de muitos religiosos e teólogos de todas as partes do mundo. Vale registrar o apoio que recebeu de figuras importantes como o seu superior, pe. Peter-Hans Kolvenbach[32]; o Arcebispo emérito de Viena, Franz König[33]; o Arcebispo de Calcutá, Henry D´Souza; o Provincial da Índia, Lisbert D´Douza[34], e tantos outros teólogos, entre os quais merece destaque especial o seu companheiro da Pontifícia Universidade Gregoriana, Gerald O´Collins[35].
É evidente que Dupuis saiu bem desgastado de todo esse processo que se iniciou em junho de 1998 e só se concluiu em fevereiro de 2001, com a publicação da Notificação sobre a sua obra. Na ocasião teria dito em entrevista coletiva: “Finalmente encontro a minha liberdade”. Ele mesmo relata como foram anos difíceis e duros, envolvendo muito sofrimento e tensão. Não é fácil para um teólogo, movido por semelhante amor a Jesus Cristo e a Igreja, ver sua obra apresentada como problemática para a fé cristã e responsável pela indução a “opiniões errôneas ou perigosas”. Não há quem consiga manter a paz e a tranqüilidade num tal clima de desconfiança. E o mais problemático é que tais desconfianças vão se propagando como ondas, abafando ou cerceando o livre trabalho acadêmico e a sua divulgação. Novas dificuldades surgiram na seqüência dos acontecimentos. O teólogo estava para publicar novo livro, que sairia em francês por uma editora canadense, quando encontrou barreira entre os revisores da Companhia de Jesus, que negaram o Nihil obstat à obra. Esta permanece inédita. Estava também em seu projeto a elaboração de um livro tratando a questão de Jesus Cristo ao encontro das culturas, que seria a coroação de sua trilogia envolvendo o tema da teologia das religiões. Não pôde, porém, concluir o seu importante trabalho, já que veio a falecer improvisamente no dia 28 de dezembro de 2004, quando estava preparando o seu discurso de agradecimento ao doutorado honoris causa concedido por uma universidade do Canadá.
Seguindo as trilhas que são comuns a muitos místicos, Jacques Dupuis soube ousar para além das malhas da ortodoxia, soube avançar pelos caminhos inusitados do mistério sempre maior, não se detendo timidamente diante das diferenças. Um sonho mais nobre movia os seus passos, de mostrar com clareza e ternura que é Deus mesmo quem busca os seres humanos, assim como a água busca o sedento. Sua vida e reflexão foram gestos de sintonia com o mistério misericordioso e envolvente de um Deus que é surpresa e gratuidade. E, na mesma linha da aporia presente na trajetória de tantos místicos, sua generosa e terna abertura aos outros atraiu as severas reservas dos guardiões da identidade. Na verdade, aqueles que mais amam são os que atraem para si as mais duras desconfianças e rancores dos exotéricos.
Obs: publicado no livro: Afonso Maria Ligorio SOARES (Org.). Dialogando com Jacques Dupuis. São Paulo: Paulinas, 2008, pp. 181-202
[1] Jacques DUPUIS. Verso una teologia cristiana del pluralismo religioso. Brescia: Queriniana, 1997 (com tradução brasileira: Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso: São Paulo: Paulinas, 1999). Este livro encontra-se já na quarta edição italiana e inglesa (Orbis Books), na segunda edição francesa (Cerf), tendo também uma tradução para o espanhol (Sal Terrae).
[2] Michael FITZGERALD. Dialogue and Proclamation. In: Daniel KENDALL & Gerald O´COLLINS (Eds). In: Many and Diverse Ways: In Honour of Jacques Dupuis. New York: Orbis Books, 2003, p. 181.
[3] Jacques DUPUIS. L´Esprit de l´homme: étude sur l´antropologie religieuse d´Origène. Paris: Desclée de Brouwer, 1967. Dupuis tinha concluído antes sua licenciatura em Teologia na cidade de Kurseong, no Hilamalaia (Índia), onde também se ordenou padre jesuíta, no ano de 1954.
[4] Ele relatava a seus alunos em Roma diversos episódios de seus passeios e viagens de motocicleta, entre as quais destaca a ocasião em que levou Thomas Merton em sua viagem no Himalaia, um pouco antes de seu trágico falecimento.
[5] Jacques DUPUIS. Jésus-Christ à la rencontre des religions. Paris: Desclée, 1989 (com tradução italiana no mesmo ano).
[6] Jacques DUPUIS. Gesù Cristo incontro alle religioni. 2 ed. Assisi: Cittadella Editrice, 1991, p. 14.
[7] Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso. Diálogo e Missão. Petrópolis: Vozes, 1991. O complexo e polêmico processo redacional deste documento, que envolveu 5 elaborações, vem descrito por Dupuis no artigo: A Theological Commentary: Dialogue and Proclamation. In: William R. BURROWS (Ed.). Redemption and Dialogue. Reading Redemptoris Missio and Dialogue and Proclamation. New York: Orbis Books, 1993, pp. 119-158 (ver em particular as pp. 136-137).
[8] Daniel KENDALL & Gerald O´COLLINS (Eds). Many and Diverse Ways, op.cit.
[9] Rosino GIBELLINI. In memória del padre Jacques Dupuis – teólogo fedele e coraggioso: http://www.queriniana.it/teologia.asp?IDTeologia=39 (acessado em 01/09/2006).
[10] Jacques DUPUIS. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 282.
[11] Para uma resenha mais ampla desta obra cf. Faustino TEIXEIRA. Panorâmica das abordagens cristãs sobre as religiões. A propósito de um livro (I). Perspectiva Teológica, v. 30, n. 80, 1998 (para a primeira parte histórica); Id. Para uma teologia cristã do pluralismo religioso. A propósito de um livro (II). Perspectiva Teológica, v. 30, n. 81, 1998 (para a segunda parte).
[12] O resumo das intervenções saiu com o título: Vers une théologie du pluralisme religieux: a l´ocasion du 200e numéro de la collection “Cogitatio Fidei”. La Vie Spirituelle, v. 151, n. 724, 1997, pp. 573-586.
[13] Alguns passos de sua intervenção foram retomados pelo autor em trabalho publicado: Giacomo CANOBBIO. Note a margine dell´opera di J.Dupuis. Rassegna di Teologia, v. 38, n. 6, 1997, p. 834.
[14] Inos BIFFI. Il monopolio della grazia. Avvenire, 14 aprile, 1998, p. 20.
[15] Preocupação semelhante foi expressa pelo teólogo Giacomo Canobbio em sua reflexão sobre o livro de Dupuis. Levanta a questão da pertinência em se falar da ação de um Lógos Ásarkos (Logos não encarnado) que continuaria atuante mesmo depois do evento-Cristo. Cf. Giacomo CANOBBIO. Note a margine dell’opera di J.Dupuis, p. 837.
[16] Cf. Giuseppe de Rosa. Una teologia problematica del pluralismo religioso. La Civiltà Cattolica, quaderno 3554, 1998, pp. 129-143. Outra recensão crítica, bem na linha da “teologia do acabamento” foi feita pelo comitê de redação da revista dirigida pelos frades dominicanos: S-T.Bonino et al. “Tout récapituler dans le Christ”. À propos de l’ouvrage de Jacques Dupuis, Vers une Théologie Chrétienne du Pluralisme Religieux. Revue Tomiste, v. 98, n. 4, 1998, pp. 591-630.
[17] Jacques Dupuis descreve os dolorosos passos desse longo processo em livro de entrevista que não foi até o momento publicado, como indicado nas reflexões de Zizola e Gibellini: Giancaro ZIZOLA. Benedetto XVI. Un sucessore al crocevia. Milano: Sperling & Kupfer Editori, 2005, 310; Rosino GIBELLINI. In memória del padre Jacques Dupuis (cf. nota 9). Mas vale assinalar a importante entrevista concedida por Dupuis a Johns Jay, redator da “Indians Currents”, no dia 17 de março de 2001, onde também relata pormenorizadamente o ocorrido: Conversaciones con... Denegada la justicia, la verdad se desvela con retraso. Entrevista ao P.Jacques Dupuis: http://www.iglesiaviva.org/n208-2.htm.
[18] Conversaciones con... http://www.iglesiaviva.org/n208-2.htm.
[19] Um dos traços mais característicos de Dupuis era a sua honestidade intelectual. Não podia ensinar o que não pensava. Ele mesmo assinala em seu depoimento: “Não posso ensinar sem dizer o que penso. Não posso crer numa coisa e ensinar outra”. Isto ele disse diversas vezes aos estudantes que a ele estavam mais próximos. Daí sua decisão de não lecionar no novo semestre letivo, que começaria na metade de outubro de 1999. Cf. Conversaciones con... http://www.iglesiaviva.org/n208-2.htm.
[20] A reunião aconteceu num contexto já marcado pela presença da Declaração Dominus Iesus, sobre a unicidade e universalidde salvífica de Jesus Cristo e da Igreja, que foi assinada pelo cardeal Ratzinger em 6 de agosto de 2000, mas publicada em 05 de setembro de 2000, um dia depois do colóquio de Dupuis com Ratzinger. E isto é sugestivo.
[21] Conversaciones con... http://www.iglesiaviva.org/n208-2.htm. E também: Giancaro ZIZOLA. Benedetto XVI, pp. 310-311. Conforme indica Zizola em seu relato, o cardeal Ratzinger tinha pressa em concluir o processo. Mas Dupuis insiste em afirmar na reunião que aquilo que se contesta como erro seu não passa de reprodução de teses de outros autores que ele reporta no livro, sem porém assumí-las: “Folheia o seu livro sob os olhares de Ratzinger e, com suavidade gandhiana, busca fazê-lo compreender onde os Infalíveis enganaram-se”: ibidem, p. 311.
[22] No texto final da Notificação, assinada pelo cardeal Joseph Ratzinger e por Tarcísio Bertone, indica-se que “o livro contém notáveis ambigüidades e dificuldades em pontos doutrinais de alcance relevante, que podem induzir o leitor em opiniões errôneas ou perigosas”: Congregação para a Doutrina da Fé. Notificação a propósito do livro de Jacques Dupuis “Para uma teologia cristã do pluralismo religioso” (Ed. Queriniana, Brescia, 1997):
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20010124_dupuis_po.html (acessado em 02 de setembro de 2006).
[23] Conversaciones con... http://www.iglesiaviva.org/n208-2.htm.
[24] CdF. Artigo ilustrativo da notificação a propósito do livro de Jacques Dupuis: “para uma teologia cristã do pluralismo religioso”:
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20010312_dupuis-2_po.html (acessado em 04 de setembro de 2006).
[25] Ver a respeito: Faustino TEIXEIRA. Dominus Iesus em ação: a Notificação sobre o livro de Jacques Dupuis. REB, v. 61, n. 242, 2001, pp. 425-429.
[26] CDF. Notificação a propósito do livro de Jacques Dupuis:
[27] Jacques DUPUIS. La teologia del pluralismo rivisitata. Rassegna di Teologia, v. 40, n. 5, settembre/ottobre, 1999, pp. 667-693 (artigo escrito sob incentivo do presidente da ATI com o objetivo de responder às questões e observações críticas tecidas contra o seu livro, que era objeto de investigação da CdF); Id. The Truth Wil Make You Free: The Theology of Religions Revisited. Louvain Studies, n. 24, 1999, pp. 211-263. E um terceiro artigo, ainda inédito: Religious pluralism. A provisional Assesment.
[28] Jacques DUPUIS. Il cristianesimo e le religioni. Dallo scontro all´incontro. Brescia: Queriniana, 2001 (com tradução brasileira: O cristianismo e as religiões. São Paulo: Loyola, 2004).
[29] Jacques DUPUIS. Il cristianesimo e le religioni, p. 480 (na tradução brasileira, este post scriptum transformou-se em prefácio do autor).
[30] Ibidem, p. 484.
[31] Ibidem, p. 485 (a tradução foi aqui tomada da edição brasileira, p. 15).
[32] Como assinala Zizola, os jesuítas sentiram-se “diretamente tocados neste processo. E isso diz respeito não só a um autor jesuíta, mas a Companhia como tal, que integrou o diálogo inter-religioso nas suas constituições e deliberações, por ocasião de sua última congregação geral”: Giancarlo ZIZOLA. Benedetto XVI, p. 313 (e também p. 314).
[33] Cf. The Tablet, 16 de janeiro de 1999: Il Regno-Attualità, v. 4, n. 831, p.87; Il Regno-Attaualità, v. 8, n. 835, 1999, p.265; Adista, n. 10, 1 febbraio 1999, pp. 2-4 (supplemento al n. 5545); Sedoc, v. 31, n. 274, 1999, pp. 644-647. A defesa de Dupuis, feita pelo cardeal König, que havia sido no passado Presidente do Secretariado para os não Crentes, provocou uma polêmica com o cardeal Ratzinger, que reagiu às criticas no mesmo periódico inglês The Tablet (que publicou em março de 1999 a carta que Ratzinger havia escrito para König). Sobre esta questão cf. Giancarlo ZIZOLA. Benedetto XVI, pp. 314-323.
[34] Adista, 29 marzo 1999, pp. 4-5.
[35] Abrindo um grande leque de resenhas favoráveis à obra questionada de Dupuis, Gerald O´Collins publicou o seu trabalho no periódico inglês The Tablet (em janeiro de 1988), e sua avaliação positiva da obra vai chamar a atenção do cardeal König. Mais recentemente, este teólogo volta a refletir sobre o tema em artigo: Jacques Dupuis´s contributions to interreligious dialogue. Theological Studies, v. 64, n. 2, june 2003, pp. 388-397. A respeito de outras reações de teólogos cf. Rosino GIBELLINI. In memória del padre Jacques Dupuis (veja nota 9).
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