terça-feira, 20 de abril de 2010

Inculturação da fé e pluralismo religioso

Inculturação da fé e pluralismo religioso

 

Faustino Teixeira

                                    PPCIR-UFJF

 

Introdução

 

A expressão inculturação refere-se a um neologismo específico da linguagem cristã. Trata-se de um termo típico do linguajar teológico e de recente utilização no discurso missiológico. Embora tenha uma conotação antropológico-cultural, este termo distingue-se de outros típicos do léxico antropológico, como é o caso de aculturação, enculturação e transculturação .[1] Distingue-se também dos conceitos de adaptação e acomodação, vigentes em âmbito teológico na década de 50, com repercussões precisas no Concílio Vaticano II (1962-1965). A afirmação do novo conceito será fruto dos desdobramentos da elaboração teológico-missiológica ocorrida sobretudo na Ásia e na África. O Sínodo de 1974, sobre a evangelização no mundo de hoje, expressa já uma primeira transição, ao reconhecer cidadania para expressões como inserção, indigenização e encarnação. As intervenções dos Padres da Ásia e da África  foram incisivas no diagnóstico da falta de aculturação da mensagem eclesial em outros quadros culturais que não os ocidentais,  bem como no apelo em favor da justa autonomia e criatividade da igrejas particulares face aos novos desafios da pluralidade.

A partir da XXXII congregação geral da Companhia de Jesus, ocorrida nos anos de 1974-1975,  o termo inculturação passa a fazer parte do repertório usual da teologia e da pastoral. Uma referência importante foi a carta do então Superior Geral dos jesuítas, Pedro Arrupe, sobre a inculturação (1978):

 

A inculturação é a encarnação da vida e da mensagem cristãs em uma área cultural concreta, de modo que não somente esta experiência se exprima com os elementos próprios da cultura em questão (o que ainda não seria senão uma adaptação), mas que esta mesma experiência se transforme em um princípio de inspiração, a um tempo norma e força de unificação, que transforma e recria esta cultura, encontrando-se assim na origem de uma “nova criação”[2]

 

Nesta clássica definição de Arrupe aparecem de forma nítida três elementos essenciais da inculturação: a dimensão de encarnação da vida e da mensagem, a dimensão transformante e pascal e a dimensão pentecostal (re-criativa).

Com respeito ao Magistério pontifício, o termo será acolhido pela primeira vez em março de 1979, por ocasião da alocução de João Paulo II aos membros da Pontifícia Comissão Bíblica. A reflexão será retomada na exortação apostólica Catechesi Tradendae, em outubro de 1979, tornando-se, em seguida, de uso freqüente nos documentos da Igreja católica. Para João Paulo II, o termo inculturação “ exprime muito bem uma das componentes do grande mistério da Encarnação”, envolvendo igualmente o domínio da catequese:

 

A catequese tem de procurar conhecer essas culturas e as suas componentes essenciais; ela deve apreender as suas expressões mais significativas; e deve também saber respeitar os seus valores e riquezas próprias. É deste modo que ela poderá propor a tais culturas o conhecimento do mistério escondido e ajudá-las a que façam surgir da sua própria tradição viva expressões originais de vida, de celebração e de pensamento cristãos.[3]

 

Sob o influxo da reflexão antropológica, percebe-se hoje com clareza que cada sistema cultural tem sua lógica própria e articulada. Está superada aquela visão evolucionista e etnocêntrica que enquadrava os sistemas como sucessivos e não simultâneos, ocasionando graves distorções de enfoque. Apesar de recaídas esporádicas, tende-se atualmente a considerar como um fenômeno natural a diversidade das culturas. Mas é igualmente verdade que as culturas são dinâmicas e não estáticas, estando em contínuo processo de modificação. “Toda cultura é uma totalidade sensata, mas não uma grandeza fechada e intocável. A mudança de contexto com seus desafios ou o contato com outras culturas podem levá-la a transformações, acarretando aprofundamento ou enriquecimento de suas características próprias”[4]. Mediante o processo ativo da inculturação ocorre um contato que suscita mudança, mas sempre a partir de dentro da própria cultura.

 

1.    O duplo movimento da inculturação  

 

A emergência do conceito de inculturação na reflexão teológica traduz um considerável avanço com respeito ao projeto de simples adaptação, assim como expresso em documentos do Vaticano II, como a Ad Gentes 22. Como sublinham os bispos da África e de Madagascar, em documento de novembro de 1974, há que superar uma certa “teologia da adaptação” em favor de uma “teologia da encarnação”[5]. Há igualmente que ultrapassar a concepção que identifica a missão como implantação da Igreja, entendida como ação do exterior. “A Igreja não é nem sujeito nem objeto da inculturação. É do encontro entre o dinamismo do Evangelho e uma cultura particular que nasce uma nova Igreja que traduz uma nova figura histórica do cristianismo, uma criação inédita do Espírito de Cristo”[6]. O processo de inculturação envolve um duplo movimento, de ruptura e de continuidade. É ruptura enquanto implica uma proposta evangelizadora que é novidadeira. Mas há que ressaltar que esta proposta  ocorre no pleno respeito à liberdade do ouvinte; não pode significar imposição, mas deve acontecer no respeito das pessoas e das culturas, “detendo-se diante do sacrário da consciência”[7]. É continuidade enquanto resgata e acata os elementos próprios da cultura, favorecendo surgir de seu próprio interior “expressões originais” da  experiência cristã. Na dinâmica deste duplo movimento é que emerge o anúncio inculturado, não apenas inteligível, mas igualmente correspondente às aspirações e virtualidades da cultura ou tradição à qual se dirige, ou seja, como “a Boa-Nova que eles esperavam”.[8] Se não ocorre este esforço de inculturação, a evangelização deixa de ser o acontecimento de uma Boa Nova, e transforma-se em “falso escândalo de um veículo cultural estranho ou ultrapassado”[9].

 

2.    Os domínios da inculturação

 

A concreta inserção da Igreja numa dada área cultural implica um processo ativo de doação e enriquecimento, que envolve os diversos aspectos ou modalidades de vida, expressão, celebração e ensinamento do mistério da fé. Dentre as principais áreas de envolvimento da inculturação podem ser sublinhadas: a liturgia, a espiritualidade e a reflexão teológica. Já o Concílio Vaticano II, no Decreto sobre o ecumenismo, tinha indicado algumas pistas neste sentido, ao abordar a tradição litúrgica, espiritual e teológica dos orientais. No que tange à teologia dos orientais, este documento conciliar reconheceu a singularidade e riqueza da captação pelos orientais de “alguns aspectos do mistério revelado”, cuja apreensão e expressão pode revelar-se, às vezes,  de forma mais precisa da que ocorre entre os ocidentais (UR 17).

Esforços significativos de inculturação nestes três âmbitos aconteceram sobretudo nas Igrejas do terceiro mundo. Infelizmente, a criatividade das iniciativas implementadas nem sempre receberam o devido estímulo e apoio das instâncias romanas. No domínio da liturgia, o temor do sincretismo religioso, exerceu influxo decisivo no estabelecimentos de princípios e normas mais “seguras” para o exercício da inculturação. No documento da Congregação para o Culto Divino, sobre a liturgia romana e a inculturação (1994), fala-se a princípio na necessidade de inculturação, mas logo em seguida afirma-se a exigência da condução do processo em conformidade com a “unidade substancial do rito romano”, evitando-se todo e qualquer resquício de sincretismo religioso ou ambigüidade quanto aos lugares, objetos de culto, vestes litúrgicas, gestos, leituras e cantos bíblicos.[10] Algo semelhante ocorreu no campo da espiritualidade, com a carta da Congregação para a Doutrina da Fé, dirigida aos bispos da Igreja católica, acerca de alguns aspectos da meditação cristã (1989). Diante do risco de um “pernicioso sincretismo” na utilização de métodos orientais de oração no mundo cristão e nas comunidades eclesiais, o documento busca estabelecer “critérios seguros, de caráter doutrinal e pastoral, que permitam educar para a oração nas suas variegadas manifestações, permanecendo sempre na luz da verdade revelada em Jesus, segundo a genuína tradição da Igreja”[11]. Com a recente publicação da Declaração Dominus Iesus, da mesma Congregação romana, completa-se o fecho do enquadramento, agora no campo teológico. Com esta Declaração visa-se questionar as “teorias de índole relativista” que pretendem justificar um pluralismo religioso de princípio. Aponta-se, mais uma vez, o risco do subjetivismo e do ecletismo na pesquisa e produção teológica, da carência de “coerência e conexão sistemática” e da falta de “compatibilidade com a verdade cristã”. No cerne da preocupação do dicastério romano está a regulação das pesquisas no campo do diálogo inter-religioso e a confirmação da centralidade da Igreja católica quanto à plenitude dos meios de salvação. Sem desconhecer os elementos de religiosidade presentes nas outras tradições, o documento veda qualquer possibilidade de atribuição de origem divina às orações e ritos das outras religiões, bem como de sua eficácia salvífica.[12]

 A nível mais oficial, o documento que tem balizado as atuais reflexões sobre o tema da inculturação é a carta encíclica Redemptoris Missio (RM), de João Paulo II. O documento reconhece a complexidade que envolve o processo de inculturação. Trata-se de algo que “requer um tempo longo” (n. 52), um processo difícil, que implica aprendizagem e capacidade de “tradução” da mensagem (n. 53); uma realidade que suscita uma expressão da experiência cristã “em modos e formas originais” (n. 53). Mas para a RM tal processo “não pode comprometer de modo nenhum a especificidade e a integridade da fé cristã” (n. 52), daí ter retomado dois princípios que devem guiar a inculturação: “a compatibilidade com o Evangelho e a comunhão com a Igreja universal”.[13]

É sugestivo perceber como estes dois princípios da inculturação reafirmados pela RM serão sempre sinalizados em documentos posteriores, de forma a relativizar o papel das Igrejas locais e acentuar a centralidade romana na definição da inculturação.[14] Um exemplo concreto neste sentido foi o documento final da IV Conferência do Episcopado Latino-americano (1992), também conhecido como documento de Santo Domingo. No documento aprovado pelos bispos,  a tarefa da inculturação estava nas mãos da Igreja local. Com a posterior revisão romana, acrescentou-se um novo parágrafo com a especificação dos critérios já estabelecidos na RM, onde se resguarda a harmonia com a Igreja universal.[15] Os mesmos critérios serão retomados  nas exortações apostólicas Ecclesia in Africa (1995) e Ecclesia in Asia (1999)[16].  

 

 

3.    Novas perspectivas para a reflexão

 

O tema da inculturação veio enriquecido nos últimos anos pelo desenvolvimento da reflexão teológica e antropológica, que facultou substancialmente uma ampliação de horizontes. No âmbito particular da teologia das religiões, vale assinalar o reconhecimento da singularidade e do valor do pluralismo religioso. Importantes teólogos desta área partilham a viva convicção de um pluralismo religioso de princípio, que deve ser acolhido como um fator positivo.[17] O pluralismo ganha a nível teológico uma plausibilidade “de direito”, deixando de ser visto como um dado conjuntural ou passageiro, uma ameaça ou expressão da  fragilidade missionária da Igreja. Trata-se, ao contrário, de um fenômeno rico e fecundo, que haure sua razão de ser no próprio desígnio de Deus, favorecendo a transparência de toda a “riqueza multiforme” de seu mistério. Tal consciência implica saber acolher a contingência e estar disponível ao enriquecimento permanente dos dons oferecidos por Deus mediante a experiência dos outros. O próprio João Paulo II, em atitude de grande abertura, reconheceu em sua encíclica sobre o empenho ecumênico que a Igreja católica pode ser enriquecida por certos aspectos do mistério cristão manifestados de forma mais eficaz em outras comunidades cristãs.[18]

Em sintonia com a valorização do pluralismo religioso, afirma-se igualmente o reconhecimento do valor irredutível e irrevogável das outras tradições religiosas, de algo que jamais será tematizado ou totalizado no cristianismo. As outras tradições religiosas são portadoras de um verdadeiro “patrimônio espiritual”, não podendo ser reduzidas a experiências “naturais” ou esforços simplesmente humanos. Elas são portadoras de dons singulares da sabedoria que o Deus multiforme “escondeu na criação e na história”[19]. Não se pode desconhecer a função catalizadora a ser exercida pelo cristianismo, que deve interrogar o interlocutor com respeito à sua própria verdade, mas por outro lado, ele deve igualmente “descobrir, em fidelidade à originalidade de sua religião, novas nuances e virtualidades, que se clarificam no diálogo com os outros”[20]. O processo de inculturação, que ocorre no desdobramento do contato evangelizador com uma nova cultura, não se reduz exclusivamente à expressão nova de uma mensagem singular, mas traduz igualmente a pontuação e desenvolvimento de aspectos inéditos da verdade, favorecidos pela realidade desta própria cultura.[21] É igualmente possível  que “certas riquezas da experiência religiosa vividas em outras religiões possam concorrer para uma melhor explicitação das riquezas mesmas do Evangelho”.[22]  

Com respeito ao aporte da antropologia, há que sublinhar o aprofundamento da questão da cultura, de sua lógica própria e de seu traço dinâmico; o reconhecimento da diversidade das culturas como fenômeno natural; a crítica do etnocentrismo e o desafio da relativização. Pode-se acrescentar ainda as importantes reflexões feitas nesta área sobre a reformulação da problemática do sincretismo. De acordo com o novo tratamento, o sincretismo deixa de ser diretamente identificado com mistura, confusão, paralelismo ou empréstimo, e passa a ser considerado como uma realidade “universal dos grupos humanos quando em contato com outros”. Trata-se da transformação de elementos da identidade em razão do encontro com a alteridade, de uma “tendência a utilizar relações apreendidas no mundo do outro para ressemantizar o seu próprio universo”[23]. A questão do sincretismo, como apresentada nesta nova reflexão antropológica, aproxima-se muito do conceito teológico de inculturação. Muitos teólogos tendem hoje a reconhecer que o cristianismo “pode receber de outras culturas e de outras religiões elementos que iluminem sua própria identidade”[24], abrindo-se, assim, à uma recepção mais positiva do conceito de sincretismo e de seu significado.  Como expressou recentemente o teólogo Mário de França Miranda: “Sem renunciar à preocupação teológica com a identidade da experiência salvífica cristã, podemos ver o sincretismo como parte do processo de inculturação da fé.”[25]

 

4.    A inculturação como interpretação criadora

 

A inculturação não constitui uma mera adaptação, nem se resume a uma tradução da mensagem evangelizadora. Ela implica sempre uma reinterpretação criadora, o choque de um encontro criador. De acordo com um dos estudiosos mais originais sobre o tema, o teólogo Claude Geffré, “é necessário reagir contra a linguagem e a idéia de uma simples adaptação. Crer que se possa traduzir um mesmo conteúdo de fé numa outra língua sem proceder a uma reinterpretação do conteúdo, é permanecer no nível de uma adaptação e de uma concepção superficial e instrumental da linguagem”.[26]  

Todo processo de inculturação pressupõe o “risco de uma certa reinterpretação”. A verdade de qualquer religião, incluindo também o cristianismo, não pode ser identificada com um corpo estático de proposições imutáveis, mas está aberta a novos e inusitados dinamismos hermenêuticos. “A religião não é uma simples mensagem à qual se deve crer, mas uma experiência de fé reproposta  como mensagem”.[27] A inculturação do cristianismo pressupõe e exige a reatualização da experiência cristã fundamental no novo contexto histórico e cultural  onde é convocada a atuar. Desta reatualização resulta uma “nova figura histórica do cristianismo”[28].

 

5.    Inculturação e Diálogo Inter-Religioso

 

O empenho em favor da inculturação exige um conhecimento aprofundado da cultura com a qual a mensagem cristã estabelece relação. E uma vez que tal cultura é em geral portadora de valores religiosos, ou por eles inspirada, torna-se imprescindível um sincero e aberto diálogo também no campo inter-religioso.[29] O diálogo verdadeiro com o outro constitui o itinerário essencial para a compreensão da própria identidade. A passagem pela verdade do outro confere um significado novo e mais aprofundado para a verdade testemunhada. Para Panikkar, “aquele que não conhece senão sua própria religião, não a conhece verdadeiramente”[30]. A auto-suficiência no campo religioso vem identificada por Thomas Merton como uma “heresia do individualismo”. Para este místico, a realidade do eu se afirma em maior profundidade na medida em que manifesta a capacidade de acolhida e de afirmação dos outros. Em texto de grande abertura sinalizava: “serei melhor católico, se puder afirmar a verdade que existe no catolicismo e ir ainda além”[31].

O diálogo inter-religioso é sobretudo um ato espiritual de acolhida, respeito e aprendizado, mas também de comunicação e partilha de vida, experiência e reflexão: um “intercâmbio de dons”[32]. Não se trata de diálogo com estranhos, mas com amigos que partilham de uma mesma viagem fraterna rumo ao horizonte querido por Deus. Em documento da primeira Assembléia Plenária da Federação das Conferências Episcopais da Ásia (Taiwan – 1974), os bispos de 14 Conferências Episcopais de 18 países da região, revelaram de forma bem singela as implicações deste diálogo:

 

Somente dialogando com estas religiões poderemos descobrir ‘as sementes da Palavra de Deus’. Este diálogo nos permitirá tocar com as mãos as expressões e a realidade do ser mais íntimo de nossa gente, e nos colocar em condições para encontrar modos autênticos de viver e expressar a nossa mesma fé cristã. O diálogo nos possibilitará igualmente descobrir muitas riquezas de nossa própria fé, que talvez não pudéssemos jamais perceber. E assim, ele poderá tornar-se uma amigável participação na busca de Deus e da irmandade entre os seus filhos[33]

 

Muitas das resistências oferecidas pelas outras tradições culturais e religiosas à dinâmica da inculturação, refere-se à desconfiança ou suspeita face ao que consideram uma estratégia do cristianismo para melhor se impor em terras estrangeiras. Tende-se a suspeitar que sob a face de abertura do que se apresenta como inculturação esteja sendo dissimulada uma estratégia de dominação. Quando fortalecido e impulsionado pelo diálogo inter-religioso, o processo de inculturação permanece aberto ao dado da recriação permanente e da ressemantização do sentido, para além da lógica de uma mera adaptação ou tradução. Para evitar certos desgastes, os teólogos asiáticos preferem adotar a palavra “interculturação”, em vez de inculturação, justamente para evidenciar a dinâmica de mútua fecundação que deve ocorrer na experiência dialogal do pluralismo. Para eles, a interculturação implica uma nova acolhida, para além de uma aproximação tangencial da realidade do outro. Trata-se de um ato religioso “que interpela os dois parceiros de uma maneira radical, convidando-os a uma nova compreensão de si mesmos, a um processo contínuo de reinterpretação”[34].  

Alguns desafios permanecem abertos, quando se aprofunda a questão da inculturação e do diálogo inter-religioso. Um deles refere-se aos desdobramentos que acompanham a real abertura à fé dos outros. Quais as implicações presentes no esforço de compreensão, de empatia e de simpatia interior que devem acompanhar a dinâmica dialogal ? Como articular uma abertura verdadeira ao desafio do outro com a identidade particular ? Alguns missionários ou místicos cristãos conseguiram avançar tremendamente neste desafio do mistério do outro, buscando colher a experiência da alteridade a partir de dentro. Entre os casos mais recentes, pode-se citar o exemplo de Henry Le Saux (1910-1973), um monge beneditino que viveu a radicalidade de uma experiência de união entre a “não dualidade” indiana e a mística cristã; alguém que aceitou viver por 25 anos a tensão irredutível de uma comunhão, para além das conciliações teóricas. Em carta escrita em 1970, ele dizia: “a melhor coisa é ainda, creio, manter, embora em extrema tensão, estas duas formas de uma ‘fé’ única, até que apareça a aurora”[35]. Outros tantos exemplos podem ser apontados neste sentido[36], levantando uma questão bem concreta: em que medida é possível alguém partilhar duas fés religiosas diferentes ? Trata-se da delicada questão da dupla pertença. Avaliando esta questão, o teólogo Jacques Dupuis sinaliza que a-priori “parece impossível que tal envolvimento absoluto possa se dividir, por assim dizer, entre dois objetos”. Mas afirmar uma radical impossibilidade de um cristianismo partilhado “seria contradizer a experiência, já que tais casos não são raros nem desconhecidos”[37]. Em perspectiva semelhante, Claude Geffré admite a possibilidade de uma dupla pertença, entendida como assunção de elementos desconhecidos ao cristianismo histórico, seja a nível da experiência espiritual, da disciplina corporal e mental da ascese, bem como na ordem dos gestos de adoração e de louvor.[38]

 

Conclusão

 

Em todo o andamento da reflexão pôde-se perceber a complexidade que envolve o tema da inculturação, bem como os desafios que permanecem em aberto. A inculturação implica aprendizado, mas também a oferta de uma mensagem evangelizadora. Mas para que seja realmente uma Boa Nova, esta mensagem deve significar um dom que enriquece a realidade do outro: uma fonte de irrigação, que alimenta sem abafar a singularidade do outro. Este movimento que faculta o dom é motivado por uma experiência profunda de amor, que busca partilha, e não simplesmente decorrência de um mandato: “na medida em que a Igreja e os cristãos têm um amor profundo pelo Senhor Jesus, o desejo de compartilhá-lo com os outros é motivado (...) por este mesmo amor”[39].

Os cristãos não devem omitir no trabalho de inculturação o dom de Jesus Cristo, mas o modo e a forma de apresentá-lo aos outros não pode significar um “obstáculo para o diálogo com os irmãos”[40]. Daí a preocupação presente entre os participantes do Sínodo da Ásia com a pedagogia da apresentação de Jesus Cristo, com a redescoberta de sua fisionomia asiática. Falou-se na importância da atenção aos métodos narrativos, que estão melhor sintonizados com as formas culturais asiáticas; bem como na necessidade de abertura aos “novos e imprevistos caminhos pelos quais o rosto de Jesus possa ser apresentado aos habitantes da Ásia”. Imagens significativas foram sugeridas: Jesus como mestre de sabedoria, libertador, médico, guia espiritual, ser iluminado, amigo, compassivo do pobre, bom pastor etc.[41] Esta preocupação dos asiáticos com a pedagogia da inculturação deve animar a todos os que estão empenhados com a questão, seja onde for, com os desafios peculiares que cada região apresenta.

O primeiro e grande agente da inculturação é o Espírito Santo, como foi bem lembrado durante todo o Sínodo da Ásia (1998). Este Espírito é que guia a todos para as surpresas da verdade de Deus: “ele se encontra já em certa medida presente, dando aos homens e mulheres de coração sincero a força para vencerem o mal e as insídias do maligno e oferecendo a todos, embora de um modo que só Deus conhece, a possibilidade de terem parte do Mistério pascal”[42]. Os evangelizadores não podem jamais perder de vista que o seu anúncio nunca ocorre num vácuo soteriológico, mas num espaço já habitado pela presença silenciosa do Espírito, que atua mesmo antes da ação da Igreja se iniciar. Um sinal desta presença já ocorre na prática sincera das próprias tradições religiosas.[43]



[1] Para tais distinções, cf. Marcelo de Carvalho AZEVEDO. Inculturação. In: R.LATOURELLE & R. FISICHELLA (Dir.). Dicionário de teologia fundamental. Petrópolis/Aparecida: Vozes/Santuário, 1994, p. 464; Id. Comunidades eclesiais de base e inculturação da fé. São Paulo: Loyola, 1986, p. 263-265.

[2] Pedro ARRUPE. Ecrits pour évangelizer. Paris: DDB, 1985, p. 169-170.

[3] JOÃO PAULO II. A catequese hoje – Exortação apostólica Catechesi Tradendae. 12 ed. São Paulo: Paulinas, 2000, n. 53 (p. 61).

[4] Mário de França MIRANDA. Inculturação da fé e sincretismo religioso. REB, vol. 60, fasc. 238, 2000, p. 286.

[5] Documentation Catholique, n. 1664, 1974, p. 975. Na mesma linha de reflexão vai a intervenção do teólogo jesuíta Soosai Arokiasamy, componente do setor teológico da Federação Asiática dos Bispos (FABC), por ocasião da VII Assembléia plenária da FABC (janeiro de 2000): “A inculturação não deveria significar simplesmente uma adaptação, uma tradução ou uma diferente expressão da única fé, mas um verdadeiro ‘evento, uma encarnação da Palavra que cresce e frutifica na vida de um povo’”: Vescovi dell’Asia. Rinnovamento e missione. Il Regno-Attualità, 4, 2000, p. 123.

[6] Claude GEFFRÉ. Mission et inculturation. Spiritus, n. 109, 1987, p. 413.

[7] JOÃO PAULO II. Sobre a validade permanente do mandato missionário. Petrópolis: Vozes, 1991, n. 39 (Carta Encíclica Redemptoris Missio).

[8] PONTIFÍCIO Conselho para o Diálogo Inter-religioso. Diálogo e anúncio. Petrópolis: Vozes, 1991, n. 70e.

[9] Claude GEFFRÉ. Mission et inculturation. Art.cit., p. 419.

[10] CONGREGAÇÃO  para o Culto Divino. A liturgia romana e a inculturação. São Paulo: Paulinas, 1994, ns. 36, 47 e 48. A propósito, cf. também: Michael AMALADOSS. À la rencontre des cultures. Paris: Les Éditions de l’Atelier/Éditions Ouvrières, 1997, p. 21-23.

[11] CONGREGAÇÃO para a Doutrina da Fé. Alguns aspectos da meditação cristã. Petrópolis: Vozes, 1990, n. 5. Ver também n. 12.

[12] CONGREGAÇÃO para a Doutrina da Fé. Declaração Dominus Iesus. São Paulo: Paulinas, 2000, n. 21. Ver também, n. 7.

[13] JOÃO PAULO II. Sobre a validade permanente do mandato missionário. Petrópolis: Vozes, 1991, n. 54 (Carta Encíclica Redemptoris Missio). Os dois princípios elencados foram retomados da exortação apostólica Familiaris consortio, n. 10, de 22/11/1981.

[14] Com respeito ao tema da inculturação, a encíclica RM permanece ainda bem tímida, revelando, como apontou Claude Geffré, um “inconsciente eurocentrismo”: “fala-se justamente de ‘compatibilidade com a Igreja universal. Mas esta ‘Igreja universal’ identifica-se quase espontaneamente com os dicastérios romanos”: Claude GEFFRÉ. L’evoluzione della teologia della missione dalla Evangelii Nuntiandi alla Redemptoris Missio. In: G. COLZANI et al. Le sfide missionarie del nostro tempo. Bologna: EMI, 1996, p. 80-81.

[15] José Oscar BEOZZO. Inculturação, evangelização e libertação em Santo Domingo. REB, vol. 53, fasc. 212, 1993, p. 817.

[16] JOÃO PAULO II. Ecclesia in Africa. Petrópolis: Vozes, 1995, n. 62; Id. Ecclesia in Asia. In: Sedoc, vol. 32, fasc. 278, n. 22, 2000. Com respeito à primeira exortação, depois de se sublinhar os dois critérios da inculturação, acrescentou-se um traço da Propositio 31, que alertava sobre o “cuidado de evitar qualquer sincretismo”. Para o cardeal Jozef Tomko, atual prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos, tal acréscimo significou uma “sábia advertência” dos bispos africanos, no sentido de uma “sã inculturação”: La missione verso il terzo millenio. Roma/Bologna: Urbaniana University Press/Dehoniane, p. 270-271.

[17] Em particular: Jacques DUPUIS. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 526-528; Edward SCHILLEBEECKX. Umanità la storia di Dio. Brescia: Queriniana, 1992, p. 217; Claude GEFFRÉ. Profession Théologien. Paris: Albin Michel, 1999, p. 137-138; Id. Le pluralisme religieux et l’indifférentisme, ou le vrai défi de la théologie chrétienne. Revue Théologique de Louvain, 31 anné, fasc. 1, 2000, p. 15; Michael AMALADOSS. Rinnovare tutte le cose. Roma: Arkeios, p. 126.

[18] JOÃO PAULO II. Carta encíclica sobre o empenho ecumênico.  São Paulo: Paulus, 1995, n. 14 (Ut Unum Sint ). “Não é raro o Espírito de Deus, que ‘sopra onde quer’ (Jo 3,8), suscitar na experiência humana universal, não obstante as suas múltiplas contradições, sinais de sua presença, que ajudam os próprios discículos de Cristo a compreenderem mais profundamente a mensagem de que são portadores.”: JOÃO PAULO II. Carta apostólica Novo Millenio Ineunte, n. 56, jan. 2000. http://www.vatican.va.

[19] SECRETARIADO para os Não-Crentes. O cristianismo e as outras religiões. Sedoc, vol. 17, fasc. 176, n. 22, 1984 (Documento Diálogo e Missão).

[20] Claude GEFFRÉ. Profession Théologien. Op.cit., p. 165.

[21] Michael AMALADOSS. Théologie indienne. Etudes, n. 3783, 1993, p. 342.

[22] Id. Mission et inculturation. Art. cit., p. 422. Na defesa de semelhante tese, o teólogo Justin Ukpong questionou os  Lineamenta do Sínodo africano: “no texto a inculturação é entendida, antes de mais nada, em termos de o Evangelho influenciar as culturas, sem considerar o fato de que ela envolve também o trazer novas dimensões para a compreensão do Evangelho”: Justin S. UKPONG. Uma análise crítica dos Lineamenta para o Sínodo especial africano. Concilium, vol. 239, fasc. 1, 1992, p. 87. Ver ainda: Jacques DUPUIS. Gesù Cristo incontro alle religioni. 2 ed. Assisi: Cittadella Editrice, 1991, p. 245.

[23] Pierre SANCHIS. Pra não dizer que não falei de sincretismo. Comunicações do ISER, n. 45, 1994, p. 7; Id. Inculturação ? Da cultura à identidade, um itinerário político no campo religioso: o caso dos agentes de pastoral negros. Religião e Sociedade, vol. 20, fasc. 2, 1999, p. 65.

[24] Mário de França MIRANDA. Inculturação da fé e sincretismo religioso. Art.cit., p. 286.

[25] Ibidem, p. 289.

[26] Claude GEFFRÉ. La rencontre du christianisme et des cultures. Revue d’Etique et de Thélogie Morale – Le Supplément, n. 1, 1995, p. 86.

[27] Edward SCHILLEBEECKX. Il Cristo:  la storia de una nuova prassi. Brescia: Queriniana, 1980, p. 59.

[28] Claude GEFFRÉ. La rencontre du christianisme et des cultures. Art.cit., p. 87. João Paulo II fala da “beleza deste rosto pluriforme da Igreja” como um “ícone apenas esboçado do futuro que o Espírito de Deus nos prepara”: Novo Millennio Ineunte, n. 40.

[29] A.A. Roeste CROLLIUS. Inculturazione. In: PONTIFICIA Università Urbaniana. Dizionario di missiologia. Bologna: EDB, 1993, p. 282-283. Ver também: Francis ARINZE. A la rencontre des autres croyants. Paris: MédiasPaul, 1997, p. 81; COMISSÃO Teológica Internacional. O cristianismo e as religiões.  São Paulo: Loyola, 1997, n. 26.

[30] Raimon PANIKKAR. Entre Dieu et le cosmos. Paris: Albin Michel, 1998, p. 74.

[31] Thomas MERTON. Reflexões de um espectador culpado. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 166.

[32] JOÃO PAULO II. Ut Unum Sint. São Paulo: Paulus, 1995, n. 28.

[33] L’evangelizzazione dell’Asia oggi. In: Documenti della Chiesa in Asia. Bologna: EDB, 1997, p. 63.

[34] COMUNICADO final do 13 Encontro anual da Associação dos Teólogos Indianos. La Documentation Catholique, n. 2028, 1991, p. 504 n. 23. Ver também: Pierre de CHARENTENAY. D’une inculturation à une autre. Études, vol. 380, fasc. 2, 1994, p. 211-212. Partindo do modelo da inculturação, o teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga fala em “inreligionação”, no sentido de evidenciar que o cristianismo, em seu processo de encarnação, assume não apenas os elementos culturais autóctones, mas igualmente os religiosos. O diálogo não pode pretender anular a verdade de revelação presente na religião do outro, mas “vivificá-la e complementá-la com sua própria contribuição (ao mesmo tempo em que se enriquece e completa com os elementos que essa lhe fornece)”: Um Deus para hoje. São Paulo: Paulus, 1998, p. 37-38.

[35] In Jacques DUPUIS. Gesù Cristo incontro alle religioni. 2 ed. Assisi: Cittadella Editrice, 1991, p. 101. Para Henri Le Saux (Abhishiktananda), viver em profundidade um encontro com a Índia significava ir além das tentativas de adaptação exterior das formas de vida e de liturgia, ou dos esforços teológicos de diálogo inter-religioso. Para ele, era necessário ir além, unindo em sua vida pessoal as duas experiências: Ibidem, p. 95.

[36] Podem ser igualmente citados os exemplos de Beda Griffiths, Cornelius Tholens e, no Brasil, François de l’Espinay, que viveu nos últimos anos a paradigmática experiência de “ministro de Xangô”, associada ao seu ministério de padre católico.

[37] Jacques DUPUIS. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. Op.cit., p. 518.

[38] Claude GEFFRÉ. Profession Théologien. Op.cit., p. 242.

[39] Diálogo e Anúncio, n. 83.

[40] Ut Unum Sint, n. 36.

[41] Ecclesia in Asia, n. 448-450.

[42]Ibidem, n. 21.

[43] Diálogo e Anúncio, n. 68 e 29.

(Publicado no livro: Sinivaldo S. Tavares (Org.). Inculturação da fé. Petrópolis: Vozes,  2001, pp. 82-94)

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