terça-feira, 20 de abril de 2010

O despertar para o "ponto virgem"

O despertar para o “ponto virgem”

 

Faustino Teixeira

 

         Nós brasileiros vivemos tempos de grande insegurança e desencanto. É lamentável a situação em que chegamos, marcada pelo desgaste dos valores mais essenciais e pela afirmação da cidadania da indiferença, que se revela letal para os caminhos do futuro. São tempos de intransparência e de exercício nihilista altamente preocupantes. Habermas dizia que “quando secam os oásis utópicos estende-se um deserto de banalidade e perplexidade”. Mas, felizmente, vozes dissonantes vêm marcando sua presença contestadora, e anunciando a convocação de um novo modo de ser, de uma nova espiritualidade. São vozes que acreditam na potencialidade do humano, no vigor da hospitalidade e cortesia, da solidariedade e compaixão, na possibilidade de um horizonte de paz. A crescente atenção para com a espiritualidade, não é algo que toca exclusivamente os religiosos, mas todos aqueles que acreditam nos valores fundamentais que habitam o núcleo do ser humano, e que expressam a dinâmica de simplicidade, de delicadeza e cuidado com toda a criação.

 

         Temos que recuperar a memória de tantos “amigos de Deus” que nos ajudam a manter o nosso olhar voltado para esta dimensão interior e profunda do ser humano, e que mantêm viva esperança de oxigenar de sentido uma história que se vê ameaçada pelo fascínio do mal, pela indiferença e brutalidade gratuitas. A espiritualidade é algo essencial para todos nós, que nos acende para dimensões esquecidas ou adormecidas. Com ela nasce uma renovada alegria no coração, uma fecunda vontade de se abrir à vida, de afirmar a vida, de ouvir as vozes que vêm do Real, de escutar o clamor que vem do outro.

 

         Um desse “amigos de Deus” que precisam ser acolhidos nesse nosso momento atual é Thomas Merton (1915-1968), que foi uma das figuras mais conhecidas e influentes da igreja católica no século XX, e também uma das mais contestadas. Sobre ele acaba de sair publicado na espanha um livro maravilhoso, organizado por Jonathan Montaldo: Un año con Thomas Merton. Meditaciones de sus “Diários”. Santander: Sal Terrae, 2006 (379pp). Poucos contemplativos tiveram um tal impacto na igreja e na sociedade. É difícil encontrar alguém que conseguiu traduzir de forma tão bonita e rica o significado de uma vida espiritual. Para ele, o autêntico contemplativo, nunca está desligado do tempo, mas profundamente inserido em seu coração. Trata-se de alguém que assume viver a experiência integral da vida, que acende no coração uma atenção especial para com tudo o que existe, e que vive, simplesmente, a vida em sua profundidade, como o peixe na água. Em seu diário dizia: “A única coisa necessária é uma verdadeira vida interior e espiritual, um crescimento verdadeiro, por minha conta, em profundidade, numa nova direção (...). Minha obrigação é não parar de avançar, crescer interiormente, rezar, livrar-me de apegos e desafiar os medos, aumentar minha fé, que tem sua própria solidão, procurar uma perspectiva inteiramente nova e uma nova dimensão em minha vida” (setembro de 1959).

 

         O radical despertar para o sentido da vida foi se firmando para Merton no aprendizado do silêncio da floresta, sobretudo nos últimos anos de sua vida, enquanto eremita na abadia trapista de Gethsemani. Uma experiência que viveu com todo o seu ser. E curiosamente, quanto mais vivia a unificação interior, mais dilatava o seu coração e sua abertura para os outros e para o universo inteiro. Em certo momento de sua vida, em Lousiville, se dá conta que a verdadeira vida contemplativa não pode significar separação do mundo, e que sua solidão vem animada por uma responsabilidade social: que ela não lhe pertence. Nessa ocasião percebeu de forma súbita e iluminada, como se captasse a beleza do coração de todos os seres humanos, que era um com eles. De que não eram seres estranhos à sua vida espiritual, mas que ocupavam nela um lugar central. Em lance que não passou de um átimo, penetrou na profundeza do coração dos irmãos humanos, naquele ponto que poucos alcançam, no cerne da realidade de cada um. E indagou: “Se ao menos todos eles pudessem ver-se como realmente são. Se ao menos pudéssemos ver-nos uns aos outros deste modo, sempre. Não haveria mais guerra, nem ódio, nem crueldade, nem ganância... Suponho que o grande problema é que cairíamos todos de joelhos, adorando-nos uns aos outros”. Foi o ponto de partida para uma nova percepção de Merton, quando então pôde captar a força da presença e gratuidade de Deus no íntimo de cada um.

 

 Ao se aproximar da cavidade secreta do coração, que é o ponto de contato com o divino, Merton viveu uma tal experiência de liberdade interior, que no seu olhar ampliado soube reconhecer o segredo e o valor da alteridade. Na sua relação com a natureza pôde perceber o significado mais profundo do que denominou “ponto virgem” (le point-vierge), que seria o “momento mais maravilhoso do dia”, quando “a criação em sua inocência pede licença para ´ser`de novo, como foi, na primeira manhã que uma vez existiu”. O “ponto virgem” acontece quando a aurora se anuncia, quando ocorrem os primeiros trinados dos pássaros, num “céu ainda desprovido de luz real”. É como se, despertados pelo sim de Deus, tomassem a coragem para “ser” de novo. Trata-se de um “momento de pasmo e inexprimível inocência”, e para todo aquele que está atento traduz a porta de entrada para o vasto e aberto  segredo da gratuidade. Mas nem sempre se presta atenção para o que isto significa, pois o olhar não está educado para esta mirada. No “ponto virgem” habita o “paraíso de simplicidade, de autoconsciência – e de esquecimento de si -, liberdade e paz”. É nesse ponto “cego e suave” que se criam as condições para a sabedoria e o conhecimento de si e para a singular acolhida do outro. Na visão de Merton, é do coração da floresta, de sua “quentura escura” que brota “o segredo que só se ouve em silêncio, mas que está na raiz de todos os segredos sussurrados na cama, em todo o mundo, por todos os que estão se amando”. Esse ponto vazio, que habita o centro de nosso ser, “é o centro de todos os demais amores”. É nele que habita a centelha que está na raiz de toda busca autêntica, e que pertence inteiramente ao Mistério sempre maior, que nós cristãos identificamos como Deus.

 

         Nada mais essencial em nosso tempo sombrio do que saber cultivar o exercício de uma espiritualidade autêntica, de buscar encontrar este pontinho de nada que revela um sentido esquecido e abre portas fundamentais para a percepção do Real. Para além da lógica do mercado, marcada pela competição, pela produtividade, pela vontade de poder, pela ganância e egoísmo, existe um outro horizonte, onde o que é gratuito fala mais forte, e onde o humano pode brilhar com mais autenticidade. Como Merton assinalou, não há programa definido para esta ampliação do olhar, mas há que estar desperto para a sua irrupção. É algo que é dado de graça, e que se revela a cada momento pois está em toda parte. Como assinala Rûmî, um dos grandes místicos sufis, que estaria completando 800 anos neste ano, “Não busques a água; mostra apenas que estás sedento, e a água jorrará ao teu redor”.

 

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