sábado, 30 de março de 2013

Os caminhos atuais e os novos desafios da teologia da libertação


Os caminhos atuais e os novos desafios da Teologia da Libertação

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

            O ano de 2012 teve uma importância singular para a teologia da libertação. É o período de celebração dos quarenta anos de lançamento da clássica obra de Gustavo Gutiérrez sobre o tema. É um tempo que coincide também com a celebração dos cinquenta anos do início do Concílio Vaticano II (1962-1965). São dois eventos que marcaram a trajetória e os rumos da igreja católica. Para comemorar as datas o Instituto Humanitas da Unisinos (São Leopoldo, RS) convocou em outubro de 2012 a realização de um Congresso Continental de Teologia, que contou com importantes presenças da reflexão teológica latino-americana. Dentre as presenças de destaque, o teólogo Jon Sobrino, que abordou um tema de centralidade da teologia da libertação: o compromisso dessa teologia com Jesus e os pobres.
            A teologia da libertação nasce um pouco antes da Conferência de Medellin, ocorrida em setembro de 1968. Ela surge com esse nome em julho de 1968, por ocasião de uma conferência de Gustavo Gutiérrez em Chimbote (Peru), num encontro nacional de leigos, religiosos e sacerdotes. O livro, Teologia da Libertação, desse mesmo autor, vai ter sua primeira edição em 1972, abrindo um campo novo de reflexão teológica na América Latina. Como bem lembrou Gutiérrez, a teologia da libertação é um evento segundo e não primeiro, pois dá continuidade e expressão a um “fato maior” na vida da igreja latino-americana, que é a participação dos cristãos no processo de libertação. E uma participação que traduz um acontecimento histórico ainda mais vasto que é a “irrupção dos pobres”. Esse será o grande tema e mote da teologia da libertação: “o grito articulado do oprimido”, para utilizar a expressão de Leonardo Boff.
            Dentre as importantes contribuições fornecidas pela teologia da libertação podem ser elencadas: o acento no empenho libertador, o resgate da cidadania dos pobres, a abertura à positividade da política e o respeito ao universo simbólico-culturas dos pobres[1]. Junto com a reflexão teológica veio a importante experiência das comunidades eclesiais de base, que também se firmam nesse período como uma das grandes esperanças da igreja latino-americana. O processo irradiador dessa nova teologia não ocorreu sem resistências do magistério eclesial, sobretudo por volta de 1984, quando serão conhecidas as instruções da Congregação para a Doutrina da Fé sobre o tema, com as críticas ao que se denominou acento imanentista e unilateral sobre a ação libertadora e a utilização pouco crítica do instrumento de análise recolhido das diversas correntes do pensamento marxista.
            Apesar dessas dificuldades localizadas, a teologia da libertação firmou-se como uma das mais importantes contribuições da teologia para a igreja universal. Na bela imagem cunhada pelo teólogo italiano, Ernesto Balducci, as caravelas que outrora partiram para as Índias ocidentais retornam agora ao Primeiro Mundo com os novos anunciadores do Evangelho. São teólogos portadores de uma boa nova, que é a do  “privilégio dos pobres”, cuja grandeza tem seu fundamento teológico em Deus, como bem sinalizou o Documento de Puebla (1979), em seu número 1142[2].
            Ao retomar a discussão sobre a teologia da libertação, em nova introdução à sua obra clássica, Olhar longe[3], Gustavo Gutierrez fala nos novos desafios para a teologia da libertação, e menciona como temas que serão recorrentes aqueles relacionados às questões culturais, raciais e vinculadas à situação da mulher. Sublinha também que o diálogo realizado com grupos de cristãos de outros continentes, bem como os encontros que foram acontecendo ao longo dos anos, ajudaram a situar melhor aspectos que estavam obscurecidos na reflexão até então realizada. Menciona a importância do diálogo realizado com teólogos do Terceiro Mundo, e o desafio conexo de ampliar o quadro de compreensão do mundo do pobre. Isto foi também percebido pelos irmãos Leonardo e Clodovis Boff, na obra Como fazer teologia da libertação (Vozes, 1986). Trata-se da ideia de “alargar a concepção de pobre”, inserindo outros planos da opressão social, para além de uma compreensão exclusivamente classista do oprimido, envolvendo assim a questão dos negros, dos índios e da mulher.
            Outros desafios foram sendo elencados no projeto da teologia da libertação, como o relacionado com a ecologia. Leonardo Boff foi um dos pioneiros nesse trabalho de articulação do “grito do oprimido com o grito da Terra”[4]. Na introdução de sua obra sobre o tema, Boff assinala que não apenas os oprimidos devem se libertar, mas também a Terra que vem espoliada e que grita. O “Outro sofredor” não diz respeito apenas aos seres humanos, mas inclui também a Terra: “Todos somos reféns de um paradigma que nos coloca, contra o sentido do universo, sobre as coisas ao invés de estar com elas na grande comunidade cósmica”. E os humanos têm uma responsabilidade diante de tudo isso, com a abertura de consciência de que pertencem à vida, e não o contrário. Urge reagir contra a situação “mortífera” em que se vêem enredados. A diversidade a ser preservada não é apenas a humana, social ou cultural, mas também a diversidade ambiental[5]. Não há como excluir o ambiente da comunidade humana, e esta só se firma resguardando e protegendo o espaço onde ela cresce e se desenvolve.
            Firma-se também o desafio da espiritualidade libertadora. É outro dos campos sublinhados com ênfase por Gustavo Gutiérrez. Já na sua obra clássica, de 1972, tinha indicado a importância desse tema: uma espiritualidade da libertação (capítulo décimo). Retoma o tema em outra obra fundamental, Beber no próprio poço – Itinerário espiritual de um povo (Vozes, 1984). E ao tratar o tema das tarefas atuais da teologia da libertação, em artigo sobre as situações e tarefas da teologia da libertação[6], volta a falar no aprofundamento de tal desafio. Não há como viver a prática libertador sem um clima de gratuidade e despojamento. A gratuidade deve, sim, banhar e invadir todo o projeto de luta transformadora, de modo a evitar a hybris, a superioridade moral ou a arrogância de seus protagonistas. Como sublinha Gutiérrez, há que recuperar o espírito que envolve o seguimento de Jesus, a radicalidade que preside o dom da entrega ao outro, que brota da fonte da interioridade. É nesta profundidade que se situa a espiritualidade, e a partir da qual se delineia o projeto de amor ao próximo. Já dizia com acerto Teresa de Ávila em suas Moradas, que “o amor ao próximo nunca desabrochará perfeitamente em nós se não brotar da raiz do amor de Deus” (V Moradas  3,9). Uma das intuições chave da teologia da libertação foi ter percebido que “no coração mesmo da opção preferencial pelos pobres há um elemento espiritual de experiência do amor gratuito de Deus” (Gutiérrez).
            Outro “território novo e exigente” para a teologia da libertação relaciona-se com a questão da pluralidade religiosa. E, curiosamente, trata-se de um desafio que provém das nações mais pobres da humanidade. Pensar a pluralidade religiosa como um dom e um valor, inserir-se honestamente na prática de um diálogo interreligioso autêntico e produtivo, são desafios muito atuais para a teologia da libertação. Se há apenas uma terra e muitas religiões, como indicou Paul Knitter[7], as distintas tradições de fé são convocada a uma responsabilidade global, de luta contra o sofrimento humano e ecológico. Trata-se do nervo kairológico do diálogo interreligioso no tempo atual. Na busca de um novo “cruzamento” entre teologia da libertação e teologia do pluralismo religioso, a Comissão Teológica Latino-Americana da Associação de Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT/EATWOT) realizou um amplo projeto reflexivo que resultou numa série de cinco volumes sob o título geral “Pelos muitos caminhos de Deus”[8]. Foi a exitosa tentativa de desenvolver uma teologia pluralista libertadora, sempre partindo da perspectiva e da opção pelos pobres. Na avaliação feita por um dos responsáveis pelo projeto, José María Vigil, na apresentação do quinto e último volume da série, a teologia da libertação e a teologia do pluralismo religioso deixam de ser “duas desconhecidas”, testemunhando agora um fecundo e enriquecedor diálogo.
            Como se pode perceber, os desafios estão dados, e a teologia da libertação tem diante de si a grande tarefa de trilhar este novos caminhos com criatividade e ousadia. Apesar de alguns “profetas de desventuras” anunciarem prematuramente a morte da teologia da libertação, ela permanece viva e produtiva, abraçando com alegria novos e instigantes horizontes. Em sua recente conferência na Unisinos, Jon Sobrino assinala a importância de “prosseguir com o novo no pensar teológico”, com os desafios que vão se apresentando no tempo, mas mantendo sempre acesa a atenção para não se descuidar da “eterna fonte de água viva”, que é Jesus Cristo e de seus queridos privilegiados que são os mais pobres e excluídos.

Bibliografia:

BOFF, Leonardo. Ecologia. Grito da terra, grito dos pobres. 3 ed. São Paulo: Ática, 1999.
BOFF, Leonardo & BOFF, Clodovis. Como fazer teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1986.
GIBELLINI, Rossino. Prospettive teologiche per il XXI secolo. Brescia: Queriniana, 2003.
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação. Perspectivas. São Paulo: Loyola, 2000.
_____. A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981.
_____. Beber no próprio poço. Itinerário espiritual de um povo. Petrópolis: Vozes, 1984.
TORRES, Fernado et al. Teologia da libertação e educação popular. São Leopoldo: Ceca/Cebi/Celadec, 2006.

(Publicado na Revista Novamerica, n. 137 jan-mar 2013, p. 18-21)
           


[1] Faustino Teixeira. Teologia da libertação: eixos e desafios. In: Fernando Torres et al. Teologia da libertação e educação popular. São Leopoldo: Ceca/Cebi/Celadec, 2006, p. 40-49.
[2] Veja também: Gustavo Gutiérrez. A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 210-213.
[3] Gustavo Gutiérrez. Teologia da libertação. São Paulo: Loyola, 2000, p. 11-54 (Olhar longe – Introdução à nova edição).
[4] Leonardo Boff. Ecologia. Grito da terra, grito dos pobres. 3 ed. São Paulo: Ática, 1999.
[5] Eduardo Viveiros de Castro. Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2007, p. 256-257.
[6] Gustavo Gutiérrez. Situazione e compiti della teologia della liberazione. In: Rosino Gibellini (Ed.). Prospettive teologiche per il XXI Secolo. Brescia: Queriniana, 2003, p. 108-111.
[7] Paul Knitter. Una terra molte religioni. Dialogo interreligioso e responsabilità globale. Assisi: Cittadella  Editrice, 1998.
[8] ASETT (Org.). Pelos muitos caminhos de Deus. Goiás: Rede, 2003; Luiza E. Tomita & Marcelo Barros & José María Vigil. Pluralismo e libertação. São Paulo: Loyola, 2005; Luiza E. Tomita & José María Vigil & Marcelo Barros. Teologia latino-americana pluralista da libertação. São Paulo: Paulinas, 2006; José María Vigil & Luiza E. Tomita & Marcelo Barros. Teologia pluralista libertadora intercontinental. São Paulo: Paulinas, 2007; José María Vigil. Por uma teologia planetária. São Paulo: Paulinas, 2011.

sábado, 23 de março de 2013

A teologia da libertação pluralista para além do inclusivismo


A teologia da libertação pluralista para além do inclusivismo

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF

Introdução

            Em 1995, o teólogo Paul Knitter lançou um importante livro tratando o tema do diálogo interreligioso e a responsabilidade global[1]. Indica ali que a “dor do mundo” constitui o grande desafio interreligioso e o ponto comum que convoca a consciência ética de todos em favor de uma responsabilidade global. Propõem em sua obra um “diálogo correlacional e globalmente responsável” entre as religiões do mundo, entendido como o caminho necessário para um diálogo pluralista e libertador. Para esse trabalho, identifica uma rica proximidade entre as propostas defendidas pela teologia do pluralismo religioso e a teologia da libertação. São teologia que se complementam: uma se debruça sobre o “outro religioso” e a outra sobre o “outro sofredor”. Sinaliza que o desafio dialogal pressupõe a inclusão desses dois “outros”. E indica ainda que essa categoria “outro sofredor” envolve não apenas os seres humanos, mas igualmente todos os habitantes da terra, e a Terra mesma. Daí se falar em “libertação eco-humana”.
            Essa perspectiva teológico-dialogal veio enriquecida pelo amplo projeto da Comissão Teológica Latino-Americana da ASETT/EATWOT, intitulado: “Pelos muitos caminhos de Deus”. O projeto, iniciado em 2003, envolveu a produção de cinco livros: “Desafios do pluralismo religioso à teologia da libertação” (2003); “Rumo a uma teologia cristã latino-americana do pluralismo religioso” (2004); “Teologia latino-americana pluralista da libertação” (2005); “Teologia pluralista libertadora intercontinental” (2006); “Por uma teologia planetária” (2010). Como sublinhou José Maria Vigil, o grande idealizador do projeto, a intenção motivadora desse trabalho, desde o início, foi a de “tentar cruzar a teologia da libertação com a teologia do pluralismo religioso”. No início do trabalho, como lembra Vigil, essas duas teologia encontravam-se distanciadas uma da outra, voltadas para o seu âmbito específico. Ao final do projeto, elas deixam de ser “duas desconhecidas” e iniciam um intercâmbio criativo, propiciando horizontes desafiantes e novidadeiros para a reflexão comum.
            Já se pode falar hoje em dia de um projeto de “teologia latino-americana pluralista da libertação”, envolvendo vários autores do continente, com abordagens singulares e provocadoras. Nesse breve ensaio, visa-se trabalhar a delicada questão do desafio “correlacional” da teologia da libertação, em seu projeto de acolhida do pluralismo religioso e de percepção da “dignidade da diferença”. Como sublinha Knitter,

“um diálogo ´correlacional` das religiões afirma a pluralidade de religiões, não porque a pluralidade é boa em si mesma, mas porque é uma realidade de vida e a matéria do relacionamento. O modelo correlacional busca promover relações de diálogo autênticas e verdadeiramente mútuas entre as comunidades religiosas do mundo, análogas ao tipo de relações que buscamos alimentar entre os nossos amigos e colegas”[2].

                  Como foco da reflexão, as dificuldades ainda presentes no âmbito da teologia da libertação no sentido da afirmação de uma perspectiva de acolhimento do pluralismo religioso de princípio, que é base fundamental para o exercício de uma autêntica correlacionalidade interreligiosa.

A força do referencial inclusivista

            Não há dúvida sobre a vigência substantiva do paradigma inclusivista na reflexão teológica contemporânea. É um traço que permanece aceso, embora já se perceba nuances diferenciadas na concepção inclusivista, envolvendo modelos diversificados de abordagem das religiões no plano da salvação.  Tendo em vista a tradição cristã, constata-se uma nova sensibilidade para com a diversidade religiosa, mas com a firme convicção da centralidade crística. Isso ocorre no protestantismo, dado o influxo exercido pela teologia barthiana, que opera uma nítida oposição entre revelação e religião[3]. Em sua Dogmática, Karl Barth assinala que “extra Christum nulla salus”. A ênfase vem dada à salvação operada por Cristo, ou seja à pertença crística, reconhecida e confessada pela igreja[4]. Trata-se de uma perspectiva que, em geral, foi seguida pelas grandes Dogmáticas protestantes. Também no catolicismo, manteve-se essa centralidade crística, acrescida da ideia da necessidade da igreja para a salvação.
            O olhar atento para a teologia católica nos anos que precedem o Concílio Vaticano II (1962-1965), faculta uma clara percepção de um cristocentrismo eclesiocentrado. A atmosfera teológica do período vinha pontuada pelo influxo da encíclica Mystici Corporis, de Pio XII (1943), que identificava a igreja católica com o corpo místico de Cristo (DzH 3802)[5]. Na visão de Pio XII, a igreja católica “é na terra como outro Cristo” (DzH 3813). Ela vem habitada pelo “Espírito de Cristo”, sendo ele o princípio de sua ação vital. Este Espírito que atua na igreja, “recusa habitar com a graça santificante nos membros totalmente cortados do corpo” (DzH 3808)[6]. Segundo a encíclica, aqueles que não pertencem ao “conjunto visível” da igreja católica “não podem estar seguros de sua eterna salvação”, mas encontram-se, por desejo e voto inconsciente, “ordenados ao Corpo místico do Redentor” (DzH 3821)[7].
            A visão eclesiológica inclusivista firma-se no período com a clássica obra de Henri de Lubac, Catholicisme, les aspects sociaux du dogme[8], cujo sétimo capítulo foi dedicado ao tema da “salvação pela Igreja”. Com base no pensamento dos padres da Igreja, De Lubac opta por uma “fórmula mais positiva” e menos severa para o tradicional axioma católico: “extra Ecclesiam nulla salus”. Fala-se agora em “salvação pela Igreja”. Retoma-se o tema da universalidade da graça do Cristo, com base em Tomás de Aquino, admitindo-se sua presença nas “almas de boa vontade”. Mesmo com esta “positividade” mantém-se firme a posição tradicional de que “só” pela igreja ocorre o processo salvífico[9]. Admite o teólogo que fora do cristianismo pode ocorrer, por exceção, experiências de elevação espiritual, mas que permanecem limitadas, necessitando da fecundação propiciada pelo cristianismo[10]. O teólogo francês reforça a importância do trabalho missionário da igreja, no sentido da convocação de uma pertença explícita. Reagindo aos que defendem a ideia da suficiência de um “cristianismo implícito”, reitera a importância do reconhecimento expresso desse sobrenatural anônimo na profissão de fé cristã[11].
            No esquema sobre a Igreja, apresentado aos padres conciliares na sessão de abertura do Vaticano II, em 1962, aparecia a identificação entre a igreja católica romana e o Corpo místico de Cristo, como expresso por Pio XII na Mystici Corporis (1943) e na Humani Generis (1950). Esse esquema, apresentado pela comissão preparatória, foi contestado pelos padres conciliares, passando por importante revisão ao longo das sessões conciliares. O resultado a que se chegou no concílio sobre esse controvertido tema está expresso na Constituição Dogmática Lumen Gentium 8:

“Esta Igreja (de Cristo), constituída e organizada neste mundo como sociedade, subsiste na Igreja católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos bispos em comunhão com ele, embora fora de sua estrutura se encontrem numerosos elementos de santificação e de verdade, os quais, por serem dons pertencentes à Igreja de Cristo, impelem para a unidade católica” (DzH 4119)

                  Verifica-se uma nítida mudança com respeito ao posicionamento até então vigente, que identificava a Igreja de Cristo com a Igreja católica romana. Deixa-se de usar a expressão “é” (est) e adota-se a expressão “subsiste” (subsistit). Segundo Francis Sullivan, esta decisão conciliar traduz a convicção de “não mais afirmar aquela absoluta e exclusiva identidade entre a Igreja de Cristo e a Igreja católica até então sustentada nos esquemas precedentes”, abrindo assim espaço para o reconhecimento de eclesialidade no mundo não católico[12].
            O tradicional axioma “extra Ecclesiam nulla salus” não vem formulado explicitamente pelo Concílio Vaticano II, mas fala-se, sim, em necessidade da igreja para a salvação, como expresso no Decreto sobre o ecumenismo, Unitatis Redintegratio: “Só pela Igreja católica de Cristo, que é o meio geral de salvação, pode ser atingida toda a plenitude dos meios salvíficos” (DzH 4190)[13]. Com toque de positividade, o Concílio retoma o tema da universalidade da salvação e da operação invisível da graça entre aqueles “de boa vontade”. Indica na Lumen Gentium 16 que

Não nega a divina Providência os auxílios necessários à salvação aos que, sem culpa, não chegaram ainda ao conhecimento explícito de Deus e se esforçam, não sem o auxílio da graça, por levar uma vida reta. Tudo quanto de bom e verdadeiro neles há, é considerado pela Igreja como preparação para o Evangelho e dado por Aquele que ilumina todos os homens, para que possuam finalmente a vida” (DzH 4140).

                  O Concílio sinaliza que Deus mesmo pode levar ao encontro do Mistério “todos os homens de boa vontade, em cujos corações atua, de maneira invisível, a graça” (GS 22 - DzH 4322)[14]. Mas mantém viva a ideia de um acabamento ou aperfeiçoamento cristão da busca humana, realizada fora ou no interior das religiões. A Lumen Gentium fala em “preparação evangélica” (LG 16), a Gaudium et Spes fala em “associação” ao mistério pascal por caminhos conhecidos por Deus (GS 22), a Ad Gentes fala que o que há de bom semeado entre os homens e nos ritos e culturas dos povos deve ser “sanado, elevado e consumado para a glória de Deus, confusão do demônio e felicidade do homem” (AG 9).
            O Concílio, ao adotar o tema da “preparação evangélica”, típica da teologia do acabamento, recebe um nítido influxo de Henri de Lubac. Como sublinha com razão Ilaria Morali, foi esse teólogo que lançou essa temática nos anos precedentes ao Concílio Vaticano II e contribuiu para “a fixação dos motivos teológicos” que estão na base da discussão conciliar sobre a questão salvífica das religiões não cristãs. Foi árduo o seu trabalho contra as pressões em favor da declaração do valor salvífico das religiões não cristãs[15]. Em seu diário do Concílio, em passagem datada de abril de 1965,  Henri de Lubac relata uma reunião do Secretariado para os Não Cristãos onde foi tratado o tema da salvação dos não cristãos. Sublinha que o papa (Paulo VI) havia convocado os membros desse secretariado para um sério estudo dessa questão. Ele se inquietava com as teorias lançadas por certos teólogos que defendiam a ideia de que o cristianismo seria apenas uma “via extraordinária de salvação”[16].
            Na visão de Pietro Rossano, que exerceu em 1973 o cargo de secretário no Secretariado para os Não Cristãos – órgão criado por Paulo VI em maio de 1964 -, o Concílio Vaticano II situou-se numa clara linha cristocêntrica: “Para o cristão está fundamentalmente claro que o único caminho de salvação é Cristo. As religiões podem situar-se nesse caminho na medida em que acolham e expressem sua influência e sua iluminação”[17]. Permanece também vigente a ideia da necessidade da igreja para a salvação e a compreensão das religiões como “marcos de espera”  para a sua plena realização no cristianismo. O magistério católico seguiu essa perspectiva em documentos posteriores ao Concílio Vaticano II, como a Evangelii Nuntiandi (Paulo VI), a Redemptoris Missio (João Paulo II), e a Dominus Iesus (Congregação Para a Doutrina da Fé)[18].
           
A teologia da libertação e as religiões

            Muitos teólogos da libertação foram formados nesse horizonte teológico renovador que suscitou experiências novidadeiras como a do Vaticano II. É verdade que a perspectiva latino-americana facultou uma visada distinta nessa teologia que se firma no final da década de 1960. A teologia da libertação mostra nuances diferenciadas com respeito à teologia europeia. Como mostrou com pertinência Jon Sobrino, “a diferença mais fundamental entre ambas teologias consiste no fato da teologia latino-americana tratar de responder a uma nova problemática, que não é isoladamente a do sentido da fé, mas a do sentido da situação real da América Latina, na qual apresenta-se também o problema do sentido da fé”[19]. O grande desafio que se apresenta na ocasião à teologia da libertação não é tanto o do “ateísmo”, ou da retomada de uma fé que se vê ameaçada pela secularização, mas a do “não-homem”, ou seja a dura realidade da miséria e da exclusão dos pobres. Esse desafio vem nomeado como o “mundo do outro”, entendido claramente como o “mundo do pobre” ou do “oprimido”[20].
            Na perspectiva da teologia da libertação, o outro por excelência, o verdadeiramente próximo era o empobrecido. Particularmente no seu início, a esta teologia situou como traço central a questão da classe, do pobre e da luta social e política. O tema preponderante era o da libertação. O envolvimento dos “outros religiosos” não entrava no foco de abordagem ou de interesse naquele momento inicial. Para assegurar o traço “específico” e “autóctone” da reflexão teológica latino-americana deixou-se de considerar o tema das religiões, com a concentração na questão dos pobres. Como sublinha Carlos Palácio,

“houve não poucas resistências a enveredar por esses novos caminhos, por violentar os temas, reduzindo-os de alguma forma à questão dos pobres. É a impressão que dava, em um primeiro momento, a tentativa de revitalizar a ´opção pelos pobres` com a problemática do negro, do índio ou da mulher. Ou, de forma mais explícita, não reconhecendo a relevância de outras perspectivas aparentemente não libertadoras, como a da modernidade, a das culturas ou a das religiões”[21]

            A abertura ao tema das religiões foi ocorrendo progressivamente, no processo mesmo de imersão dos teólogos na vida das comunidades, quando se acendeu a consciência de que esse tema da “diversidade do outro” era também substantivo e essencial[22].
            Em linha de continuidade com a perspectiva firmada no Concílio Vaticano II, a teologia da libertação, em seu momento fundacional, estava também marcada pelo referencial inclusivista. O olhar atento para algumas das produções teológicas daquele período faculta perceber a dimensão cristocêntrica e, de certa forma, eclesiocêntrica de seus autores. Há que reconhecer, porém, que esta perspectiva vem ampliada com o horizonte mais amplo do reino de Deus, sempre muito nuclear na teologia da libertação. A igreja vem sempre situada diante desse horizonte maior, como a “parte do mundo que se coloca a serviço do Reino para que se antecipe mais plenamente no mundo”[23].
            A dinâmica inclusivista está irradiada nos diversos textos fundadores da teologia da libertação. Na obra nuclear de Gustavo Gutiérrez, Teologia da libertação (1972), ele fala de uma “história cristofinalizada” e da igreja como “sacramento universal da salvação”, retomando a imagem consagrada no Vaticano II. Indica que a igreja é “a humanidade própria atenta à palavra, povo de Deus que vive na história e orienta-se para o futuro prometido pelo Senhor; é como dizia Teilhard de Chardin, a ´porção reflexivamente cristificada do mundo`”[24]. Uma semelhante centralidade concedida à igreja verifica-se na tese doutoral de Leonardo Boff, defendida em Munique, na Alemanha, em 1969 e publicada como livro em 1972[25]. Em sua tese, Boff reconhece a significação salvífica legítima das religiões com base nas reflexões de Heinz Robert Schlette, mas mantém acesa a ideia tradicional da “necessidade da Igreja visível para a salvação”[26]. O autor não desconhece a presença visível do universale sacramentum salutis nas religiões, mas indica que sua “plenitude” ocorre de forma institucionalmente perfeita na igreja. Ele reconhece que a salvação está em operação nas religiões, e não apesar delas, mas de forma limitada, já que a Igreja de Cristo manifesta-se ali  “de um modo imperfeito”[27].  Essa essencialidade da igreja para a salvação é sublinhada por diversos outros autores ligados à teologia da libertação. Juan Luis Segundo fala da “mediação universal da Igreja de Cristo” e do lugar culminante da igreja no âmbito da evolução[28] e Clodovis Boff fala na igreja como ponto culminante da densificação do Reino[29].
            Não se pode relativizar o enorme peso dos argumentos doutrinais tradicionais consagradas no itinerário da igreja católico romana ao longo destes dois milênios. Não é tarefa muito fácil o exercício hermenêutico de ampliar a compreensão de certas perspectivas fixadas como sólidas e irrenunciáveis. Isso ocorre sobretudo nos campos da cristologia e da eclesiologia. De fato, a busca de fidelidade ao passado acaba sendo preponderante e o “terror, em face do risco inerente a qualquer interpretação, provoca a repetição das fórmulas tradicionais”[30]. Esse “embaraço eclesiológico” também incidiu na teologia da libertação, ou seja, a dificuldade real de fazer avançar uma reflexão eclesiológica para além dos limites definidos pela reflexão magisterial tradicional. Um exemplo pode ser destacado na obra de Elias Wolff sobre a caminhada do ecumenismo no Brasil. Quando ele aborda a questão da diversidade religiosa, busca reiterar uma posição distinta daqueles que defendem um “macroecumenismo”, e o faz em razão da defesa de um “específico cristão”. Afirma que “há verdades que a partir de Jesus Cristo não podem ser renunciadas e que são constitutivas da unicidade e universalidade salvífica que Ele propõe”[31]. Em nome de um cristocentrismo reage-se também contra um “pluralismo de princípio”. Com base numa compreensão da completude da revelação em Jesus Cristo, defende-se a ideia de que as religiões não podem “completar o que faltou em Jesus Cristo”, pois a economia cristã já se completou com ele (DV 4), mas sim a “apropriação” da verdade última sobre Deus já definida no único desígnio salvífico de Deus[32].

A teologia da libertação desafiada pelo pluralismo religioso

            A partir do final da década de 1980, a teologia de libertação desperta para uma nova sensibilidade para com a questão das religiões, passando então a responder de forma mais amadurecida e autônoma ao desafio da acolhida da diversidade. Vale destacar a importância da provocação que veio de teólogos da Ásia, entre os quais Aloysius Pieris, no sentido de alargar o olhar da teologia latino-americana visando a inclusão em seu projeto dos “outros” religiosos. Uma tal abertura seria um fator decisivo de enriquecimento não só na compreensão da dinâmica reveladora de Deus, como também de enriquecimento da perspectiva da libertação. Rompendo uma “divisão de trabalho” que delegava aos teólogos das religiões a tarefa de lidar com o pluralismo religioso, e aos teólogos da libertação, a questão mais geral do sofrimento e da injustiça, firma-se a partir desse período um desafio de trabalho comum, irmanando teólogos das religiões (e do pluralismo religioso) e teólogos da libertação. São, na verdade, teologias que necessitam uma da outra, como bem sinalizou Paul Knitter:

“Nos últimos anos, porém, está ficando claro como as duas teologias precisam urgentemente uma da outra. Os teólogos da libertação estão percebendo que a libertação econômica, política e especialmente nuclear é uma tarefa grande demais para uma única nação, cultura ou religião. Torna-se necessário compartilhar, em âmbito intercultural e interreligioso, a teoria da práxis da libertação. E os teólogos das religiões estão percebendo que um diálogo entre as religiões que não promova o bem-estar de toda a humanidade não é diálogo religioso”[33].

            Ao tratar das grandes provocações que se colocam para a teologia da libertação no século XXI, Gustavo Gutiérrez situa o tema pluralismo religioso. Sublinha ser esse um “território novo e exigente”, que deve ser objeto não apenas de uma reflexão teórica, mas que exige uma prática viva de diálogo interreligioso. E esse apelo em favor da acolhida do pluralismo religioso vem justamente das nações mais pobres da humanidade, o que indica sua sintonia com a própria teologia da libertação[34].
            Acolher o pluralismo religioso e reconhecer teologicamente a dignidade da diferença não são tarefas simples para a teologia. É um trabalho que envolve mudanças no tratamento de algumas questões tradicionais nos campos da revelação, cristologia, eclesiologia, missão etc. Tem razão Libânio ao assinalar que o diálogo interreligioso “caminha por vias mais difíceis” e que a questão do pluralismo religioso de direito é aguda e tem vivas consequências teológicas[35]. Repensar a teologia na perspectiva do pluralismo religioso pressupõe uma “virada hermenêutica”, mas não há como se desviar desse desafio, já que ele estará “no horizonte da teologia do século XXI”[36]. É a reconsideração ou reexame do núcleo “duro” da tradição que causa maior dificuldade e provoca a resistência de muitos, inclusive dentro da teologia da libertação. De fato,

“A TL latino americana clássica tem sido construída sobre o paradigma do inclusivismo/cristocentrismo. Recorra-se a qualquer tratado de cristologia da TL e será possível ver que, mesmo que nunca se coloque no paradigma exclusivista, em momento algum é questionado o paradigma inclusivista. É verdade que a TL é muito generosa em reconhecer a presença de Deus e da salvação fora dos limites da Igreja, e que neste sentido aproxima-se do que seria uma posição pluralista; mas essa salvação é sempre considerada em definitivo como ´cristã`, conseguida por Cristo”[37].

            Essa laboriosa tarefa começa a ser progressivamente feita por alguns teólogos da libertação e reunidas em obras de destaque, como a coleção “Pelos caminhos de Deus”, citada anteriormente. Trata-se de um trabalho que já vem produzindo frutos importantes na teologia europeia e norte americana. Vale destacar, no âmbito da teologia da revelação, o trabalho decisivo de Andrés Torres Queiruga, questionando a ideia de uma clausura da revelação, como se com Jesus Cristo toda a história da salvação tivesse encontrado o seu remate definitivo e irreversível. Ele aponta o caminho novidadeiro de compreensão da revelação como “algo sempre atual e aberto ao futuro”, sem quebrar a singularidade de Jesus[38].
No campo da cristologia, as inovadoras pesquisas propiciadas por Jacques Dupuis, Edward Schillebeeckx, Christian Duquoc e Roger Haight. Em corajosa reflexão no Post scriptum de seu livro, o cristianismo e as religiões (2001), Jacques Dupuis faz um sério questionamento à manutenção de “afirmações exclusivistas” que acabam prejudicando o verdadeiro diálogo entre as religiões. São afirmações que contrariam ou negam o positivo desígnio de Deus em favor da humanidade e das outras tradições religiosas. Sublinha que “afirmações absolutas e exclusivas sobre Cristo e sobre o cristianismo, que reivindicassem a posse exclusiva da auto-manifestação de Deus ou dos meios de salvação, distorceriam e contradiriam a mensagem cristã e a imagem cristã”[39]. Em verdade, nem todo cristocentrismo é cristão, como assinalou Adolphe Geshé, lembrando Yves Congar. Quando a teologia ou a tradição diminuem ou apagam o “distanciamento” entre Deus e nós, ou entre Deus e Jesus, acabam por negligenciar um fundamental “campo de imanência” do corpus cristão. Este é, inclusive, “um dos sentidos do segredo messiânico”. O esquecimento dessa distância acaba suscitando o risco de idolatria, que traduz justamente a recusa do distanciamento e a pretensão arrogante de “acesso total” ao Mistério inacessível[40].
Ainda nesse campo da cristologia, o teólogo Roger Haight levanta uma questão de extrema importância. Ao tratar dos critérios da cristologia, fala da “inteligibilidade no mundo de hoje, incluindo a coerência interna”. Como tratar, por exemplo, hoje em dia da questão da constitutividade salvífica de Jesus ou do estabelecimento de um nexo causal entre Jesus e a salvação ? Será que a defesa de uma tal percepção – fundada num caminho de tradição – permanece plausível hoje em dia ? Roger Haight assinala que “não é necessário que o reconhecimento da historicidade e do pluralismo religioso leve ao relativismo religioso”. Um tal reconhecimento não conflitua com a “perspectiva interna da fé cristã”, que mantém – para os cristãos – a plausibilidade de uma apropriação cristã da realidade última, que garante a normatividade do Cristo. Mas a posição constitutiva foi, em si, “minada pela simples internalização da consciência histórica”. Não há como manter vigente a ideia de que Jesus é a causa da salvação de todos. O Mistério maior permanece resguardado por uma reserva escatológica, e

“nem Jesus nem o cristianismo medeiam uma posse plena de Deus. Sem um senso do mistério transcendente de Deus, sem o saudável agnosticismo daquilo que de fato não conhecemos acerca de Deus, não se esperará conhecer mais a respeito dele a partir do que é transmitido a nós, seres humanos, por meio de outras revelações e religiões”[41].

                  A consideração da normatividade de Jesus não invalida, segundo Haight, a avaliação positiva do pluralismo religioso, entendido como pluralismo de princípio, acolhido e querido por Deus. Não há, portanto, impedimento para os cristãos de reconhecerem as outras religiões mundiais como mediações de salvação. Enquanto que para o cristianismo Jesus Cristo exerce esse lugar normativo, para outras religiões a mediação fundamental da presença salvífica de Deus pode ocorrer através de um “evento, um livro, um ensinamento, uma práxis”. Querer condicionar a verdade das outras religiões a conceitos cristãos a elas estranhos “é fazer de Jesus uma norma positiva (universal) e recair no inclusivismo”[42]. Quando se reconhece, de fato, a influência salvífica universal de Deus, partilha-se a consciência de um Deus amigo da criação, e cria-se o espaço de acolhida do pluralismo religioso, entendido em sua positividade. É garantir a dignidade das diversas tradições religiosas, em seu direito à diferença, quebrar essa lógica que fala numa “ordenação” de todas elas ao redil cristão. Trata-se de um procedimento que, segundo Duquoc, não explica “a extraordinária diversidade das tradições”, nem respeita suas identidades, conservando delas “apenas sua capacidade de abrir-se positivamente àquilo que ignoram ou, talvez, até mesmo combatam”[43].
            Por fim, no campo da eclesiologia, mudanças também se fazem necessárias, como por exemplo a reconsideração da ideia tradicional de que a igreja é sacramento universal da salvação. Trata-se de uma concepção consagrada no Vaticano II, mas que não respeita a singularidade das distintas tradições religiosas. Sobre esse delicado tema, Jacques Dupuis posicionou-se corajosamente, abrindo pistas importantes para a reflexão. Para ele,

“o fato de a Igreja ser o sacramento do Reino de Deus universalmente presente na história não implica necessariamente que ela exerça uma atividade de mediação universal da graça em favor dos membros das outras tradições religiosas que entraram no Reino de Deus respondendo ao convite de Deus pela fé e pelo amor”[44].

Conclusão

            Tanto a teologia da libertação como a teologia cristã do pluralismo religioso sublinham com acerto o singular caminho da retomada de uma cristologia narrativa, que resgate o mistério de Jesus que é fonte de vida, para além das teias metafísicas em que se viu envolvido[45]. Trata-se do desafio de “voltar sempre de novo à figura de Jesus”[46], ao projeto do Pai e ao horizonte do Reino. Nesse projeto de resgate do Jesus histórico e de seu projeto, de sua convocação ao essencial desafio de solidariedade e acolhida dos pobres e dos outros, estão irmanadas as duas teologias. Um projeto de reviver uma cristologia que retome o fôlego de sua historicidade e que acentue a relacionalidade de Jesus. E isto tem uma viva repercussão na missão, exercida agora mais como uma experiência de partilha de amor, que não exclui a proclamação de Jesus, mediante os atos e o diálogo, sem igualmente excluir o reconhecimento e a abertura às experiências religiosas aninhadas na vida dos amigos de outras tradições.

Publicado na Revista Alternativas (Nicarágua), n. 44 – dezembro de 2012        


[1] Paul F. KNITTER. One Earth Many Religions. New York: Orbis Books, 1995. E a tradução italiana: Una terra molte religioni. Assisi: Cittadella Editrice, 1998.
[2] Paul F. KNITTER. Jesus e os outros nomes. São Bernardo do Campo: Nhanduti, 2010, p. 37.
[3] Mas deve-se lembrar que esta perspectiva barthiana entrou na teologia católica através do pensamento de Jean Daniélou, como salientado por Joseph GELOT. Vers une theologie chretienne des religions non chretiennes. Islamochristiana, n. 2, 1976, p. 31 (com influxos na teologia da libertação).
[4] Karl BARTH. Dogmatique I,3, § 62: Apud Bernard SESBOÜÉ. Hors de l´Église pas de salut. Histoire d´une formule et problèmes d´interprétation. Paris: Desclée de Brouwer, 2004, p. 262.
[5] DENZINGER-HÜNERMANN. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas/Loyola, 2007. (Será sempre abreviado no texto como DzH).
[6] Em pertinente reflexão a propósito, Bernard Sesboüé sinaliza que a fórmula utilizada pela encíclica é “particularmente severa”, suscitando a ideia de uma retomada da proposição jansenista, outrora condenada, “segundo a qual não há graça fora da Igreja”: Bernard SESBOÜÉ. Hors de l´Église pas de salut, p. 194-195.
[7] “mysticum Redemptoris Corpus ordinentur”.
[8] Henri DE LUBAC. Catholicisme, les aspects sociaux du dogme. 4ª ed. Paris, Cerf, 1947 (trata-se da edição revista e aumentada da obra originalmente publicada em 1938).
[9] Ibidem, p. 197.
[10] Ibidem, p. 185-186.
[11] Ibidem, p. 183. Igualmente Yves Congar, em sua obra Saint Église, de 1963, reitera que a salvação não se processa Extra Ecclesiam. Sublinha que “a Igreja Católica permanece como  única instituição (sacramentum) divinamente instituída e com uma finalidade de salvação, e tudo o que existe de graça no mundo encontra-se finalisticamente referido a ela, sob o aspecto da eficiência”: Yves M.-J. CONGAR. Santa Chiesa. Saggi ecclesiologici. Brescia: Morcelliana, 1967, p. 398.
[12] Francis A. SULLIVAN. In che senso la Chiesa di Cristo ´sussiste` nella chiesa cattolica romana? In: Rene LATOURELLE (Ed.). Vaticano II. Bilancio & prospettive 2. Assisi: Cittadella Editrice, 1987, p. 813. B. Sesboüé fala em “distância discreta” com respeito ao posicionamento da Mystici Corporis: Bernard SESBOÜÉ. Hors de l´Église pas de salut, p. 222. Ver ainda: Heinrich FRIES. Iglesia e iglesias. In: Rene LATOURELLE & Gerald O´COLLINS (Eds). Problemas y perspectivas de teologia fundamental. Salamanca: Sigueme, 1982, p. 450 e Walter KASPERS. Chiesa cattolica. Essenza-Realtà-Missione. Brescia: Queriniana, 2012, p. 260. Esse tema esteve na pauta do colóquio entre o cardeal Joseph Ratzinger e Leonardo Boff, em setembro de 1984, sendo motivo de controvérsia. Enquanto Boff defendia uma interpretação mais aberta do subsistit in, Ratzinger reiterava uma interpretação mais rígida, que segundo ele expressava a posição da Comissão Teológica do Concílio. Segundo a descrição de Boff, Ratzinger “sem reticências afirma que a Igreja romano-católica é a única Igreja de Cristo, enquanto as demais denominações têm somente elementos eclesiais (esse ´somente` é um acréscimo do Cardeal Ratzinger, pois o Concílio diz positivamente que elas ´têm muitos elementos`), e que, por isso, nem sequer deveriam ser chamadas de Igreja”: Leonardo BOFF. Igreja: carisma e poder. São Paulo: Record, 2005, p. 456-457 (Edição revista).
[13] E também na Declaração Dignitatis Humanae, sobre a liberdade religiosa: “É nossa fé que essa única verdadeira Religião se encontra na Igreja católica e apostólica, a quem o Senhor Jesus confiou a tarefa de difundí-la aos homens todos (...)” (DH 1).
[14] E também Ad Gentes 7: “Deus pode por caminhos d´Ele conhecidos levar à fé os homens que sem culpa própria ignoram o Evangelho”.
[15] Ilaria MORALI. La salvezza dei non cristiani. L´influsso di Henri de Lubac sulla dottrina del Vaticano II. Bologna: EMI, 1999, p. 99 e 257-258.
[16] Henri DE LUBAC. Carnets du Concile II. Paris: Cerf, 2007, p. 394-395. Esta era a posição defendida por Heinz Robert Schlette em sua obra: Die Religionen als Thema der Theologie (Herder, 1963), para o qual as outras religiões seriam caminhos ordinários de salvação e o cristianismo um caminho extraordinário de salvação. Paulo VI, em sua Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, de 1975, vai inverter os termos: o cristianismo vem entendido como caminho ordinário de salvação, enquanto as outras religiões, caminhos extraordinários (EN 80).
[17] Pietro ROSSANO. Teología y religiones: un problema contemporâneo. In: Rene LATOURELLE & Gerald O´COLLINS (Eds). Problemas y perspectivas de teologia fundamental. Salamanca: Sigueme, 1982, p. 435.
[18] Como referências: EN 53, RM 5 e 9, DI 20 e 22. Vale também sublinhar a manutenção dessa perspectiva no documento da Comissão Teológica Internacional sobre O cristianismo e as religiões (São Paulo: Loyola, 1997). Veja em especial o nº 49 e 56. E ainda o clássico número 103: “As religiões falam ´do` Santo, de ´Deus` , ´sobre` ele, ´em seu lugar` ou ´em seu nome`. Apenas na religião cristã é Deus mesmo quem fala ao homem em sua Palavra”.
[19] Jon SOBRINO. Resurrección de la verdadeira iglesia. Santander: Sal Terrae, 1981, p. 29.
[20] Gustavo GUTIÉRREZ. A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 69; Id. Beber no próprio poço. Itinerário espiritual de um povo. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 138.
[21] Carlos PALÁCIO. Trinta anos de teologia na América Latina. In: Luiz Carlos SUSIN     (Org.). O mar se abriu. Trinta anos de teologia na América Latina. São Paulo: Soter/Loyola, 2000, p. 63. Ver também: Diego IRARRAZAVAL. Vertientes teológicas actuales. In: Luiz Carlos SUSIN (Org.). O mar se abriu, p. 101. O teólogo Jon Sobrino reconhece que em seu trabalho teológico não se debruçou sobre temas da atualidade, como os relacionados às questões de gênero, religiões indígenas e diálogo interreligioso. Sinaliza que sobre tais temas fez apenas algumas incursões fragmentárias, não por desconsiderar sua importância, mas “por falta de tempo” e de “capacidade” para trata-los de forma adequada: Jon SOBRINO. Teología desde la realidade. In: Luiz Carlos SUSIN               (Org.). O mar se abriu, p. 169. Ver ainda os depoimentos de José Oscar Beozzo e Xavier Albo em: Faustino TEIXEIRA. Teologia da libertação. Novos desafios. São Paulo: Paulinas, 1991, p. 96 e 103.
[22] Para a abordagem do tema das raízes de uma nova sensibilidade da teologia latino-americana para com o tema do pluralismo religioso cf. Faustino TEIXEIRA. A teologia do pluralismo religioso na América Latina. In. José M. VIGIL & Luiza E. TOMITA & Marcelo BARROS (Orgs.). Teologia pluralista libertadora intercontinental. São Paulo: ASETT/Paulinas, 2007, p. 27-35.
[23] Leonardo BOFF. O caminhar da igreja com os oprimidos. Rio de Janeiro: Codecri, 1980, p. 37.
[24] Gustavo GUTIÉRREZ. Teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 215. Mas em sintonia com o Vaticano II, reconhece que que a igreja não é “o lugar exclusivo da salvação”, devendo-se orientar para o essencial serviço aos seres humanos. Ibidem, p. 210.
[25] Leonardo BOFF. Die Kirche als Sakrament im Horizont der Welterfahrung. Paderborn: Bonifacius Druckerei, 1972. O capítulo XV da tese, sobre a Igreja como sacramento e as religiões da terra, foi publicado em português na revista Numen, v.5, n. 1, jan/jun 2002, p. 13-37 (incluindo um post scriptum redigido para a publicação nacional – p. 37-40). As citações da tese serão tomadas dessa tradução brasileira.
[26] Leonardo BOFF. A igreja como sacramento e as religiões da terra, p. 17.
[27] Ibidem, p. 17. Também em sua obra A graça libertadora no mundo (Petrópolis: Vozes, 1976, p. 148), ao tratar das concretizações históricas da graça libertadora universal, identifica em Jesus Cristo e na igreja “sua expressão sacramental mais densa”. No Post Scriptum redigido por ocasião da publicação de capítulo de sua tese doutoral na revista Numen, Boff reconhece que sua reflexão no período estava “refém da visão católica, que historicamente mostrou traços monopolísticos e imperiais”. Vislumbra ali uma “visão eclesiocêntrica porque, em último termo, o centro de tudo ainda é a Igreja, por mais que seus limites sejam distendidos para além de sua própria institucionalidade e alcancem o cosmo”: Numen, v. 5, n. 1, 2002, p. 38.
[28] Juan Luis SEGUNDO. Essa comunidade chamada igreja. São Paulo: Loyola, 1976, p. 95 e 146 (Teologia aberta para o leigo adulto 1).
[29] Clodovis BOFF. Comunidade eclesial – comunidade política. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 56. O teólogo Mário de França Miranda, que também esteve ao início, de certa forma, ligado à teologia da libertação sinaliza em sua obra sobre a graça que a igreja é “a expressão (sinal, sacramento) mais perfeita da ação vitoriosa desse Espírito nos homens”, cuja ação – a seu ver – seria “a de levar os homens à comunidade onde ele melhor se exprime”: Mário de França MIRANDA. Libertados para a práxis da justiça. A teologia da graça no atual contexto latino-americano. São Paulo: Loyola, 1980, p. 163.
[30] Christian DUQUOC. “Credo la chiesa”. Precarietà istituzionale e Regno di Dio. Brescia: Queriniana, 2001, p. 190.
[31] Elias WOLFF. Caminhos do ecumenismo no Brasil. São Paulo: Paulus, 2002, p. 68-69. Ver também: João Batista LIBÂNIO. Eu creio nós cremos. Tratado da fé. São Paulo: Loyola, 2000, p. 331.
[32] Mário de França MIRANDA. As religiões na única economia salvífica. Atualidade Teológica, v. 6, n. 10, 2002, p. 26.
[33] Paul KNITTER. A teologia católica das religiões numa encruzilhada. Concilium, v. 203, n. 1, 1986, p. 111. Ver também: Aloysius Pieris. Una teologia asiática di liberazione. Assisi: Cittadela Editrice, 1990; Paul KNITTER. Una terra molte religioni. Assisi: Cittadela Editrice, 1998. Curiosamente, em conferência pronunciada pelo cardeal Ratzinger no encontro de presidentes das Comissões Episcopais na América Latina, ele sublinha que a teologia pluralista das religiões veio ocupar “o lugar que no decênio passada competia à teologia da libertação; de resto, muitas vezes se relaciona com ela e tenta apresentar-lhe uma forma mais nova e atual”. Joseph RATZINGER. Situação atual da fé e da teologia. Atualização, n. 263, set/out 1996, p. 544. E tinha mesmo certa razão!
[34] Gustavo GUTIÉRREZ. Situazione e compiti della teologia della liberazione. In: Rosino GIBELLINI (Ed.). Prospettive teologiche per il XXI secolo. Brescia: Queriniana, 2003, p. 97-98.
[35] João Batista LIBÂNIO. Olhando para o futuro. Prospectivas teológicas e pastorais do cristianismo na América Latina. São Paulo: Loyola, 2003, p. 143.
[36] Claude GEFFRÉ. Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 134.
[37] José Maria VIGIL. Cristologia da libertaçãoo e pluralismo religioso. In: Luiz E. TOMITA & Marcelo BARROS & José María VIGIL (Orgs.). Pluralismo e libertação. Por uma teologia latino-americana pluralista a partir da fé cristã. São Paulo: ASETT/Loyola, 2005, p. 164-165.
[38] Andrés TORRES QUEIRUGA. Repensar a revelação. A revelação divina na realização humana. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 246-313 (em especial p. 248 e 266). Ver também a respeito: Edward SCHILLEBEECKX. Umanità la storia di Dio. Brescia: Queriniana, 1992, p. 218-223. Esse autor indica que “a manifestação de Deus em Jesus não conclui a ´história da religião`”. Na verdade, sublinha, é o “mesmo Jesus ressuscitado que reenvia para além de si mesmo, na direção de Deus” (p. 218). Ver ainda: Jacques DUPUIS. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 346-347.
[39] Jacques DUPUIS. Il cristianesimo e le religioni. Dallo scontro all´incontro. Brescia: Queriniana, 2001, p. 485.
[40] Adolphe GESHÉ. A destinação. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 187 (Capítulo V – O cristianismo e a salvação). Ver também: Andrés TORRES QUEIRUGA. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus. Por uma nova imagem de Deus. São Paulo: Paulinas, p. 347-348 (que também fala na urgência de uma séria revisão do cristocentrismo, tendo em vista o diálogo das religiões).
[41] Roger HAIGHT. Jesus símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 479. Ver também p. 466-468 e 472-486.
[42] Ibidem, p. 477
[43] Christian DUQUOC. O único Cristo. A sinfonia adiada. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 167-168.
[44] Jacques DUPUIS. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 485.
[45] George M. SOARES-PRABHU. The Dharma of Jesus. New York: Orbis Books, 2001, p. 75-100.
[46] Ronaldo MUNOZ. A notificação de Jon Sobrino. In: José María VIGIL (Org.). Descer da cruz os pobres. São Paulo: Asett/Paulinas, 2007, p. 217.