terça-feira, 20 de abril de 2010

A liberdade religiosa num tempo de pós-tradicionalização

A liberdade religiosa num tempo de pós-tradicionalização

 

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF

 

Os dados do último Censo do IBGE, referentes ao ano de 2000, traduzem uma situação bem peculiar no campo religioso brasileiro. Em linha de continuidade com os últimos censos, assinala-se um processo de progressiva destradicionalização religiosa. O catolicismo, enquanto religião majoritária, vem perdendo cada vez mais os seus fiéis. De acordo com os dados apresentados, o número de seus membros caiu de 83,8% (Censo de 1991) para  73,8%. Ao lado desta desfiliação católica, verifica-se um significativo crescimento dos evangélicos (sobretudo pentecostais), que praticamente dobram o seu numero, atingindo um percentual de 15,5%, bem como daqueles que se definem como “sem religião”, que estão no patamar de 7,3% percentuais. Este novo fenômeno de destradicionalização vem debilitar a idéia de uma “cultura católico-brasileira”, ou pelo menos transformar a representação usual que estabelece laços vinculantes entre a instituição católica e o Brasil. De acordo com a visão do antropólogo Pierre Sanchis, os últimos censos vêm abalando os fundamentos mesmos desta convicção tradicional e sinalizando que a igreja católica vem perdendo  seu caráter de “definidor hegemônico da identidade institucional no campo religioso brasileiro”. Mas estamos distantes de uma situação real de pluralismo religioso no Brasil, um país que ainda guarda traços hegemonicamente cristãos no desenho de seu campo religioso: em torno de noventa por cento de filiados. As “outras” tradições religiosas, incluindo o espiritismo, as afro-brasileiras e as demais, encontram-se, nos dados apresentados pelo último censo, apertadas num reduzido percentual de 3,5%. Mas é também verdade que o modo de ser católico no Brasil é permeável à dinâmica de um pluralismo interno e externo. Trata-se de uma religião que, em seu exercício concreto, inclui muitas religiões.

 

A questão da liberdade religiosa no Brasil tem que ser situada a partir deste quadro específico do campo religioso nacional. Ela passa a suscitar debate e controvérsia no momento em que os evangélicos – sobretudo pentecostais - começam a ganham uma mais decisiva visibilidade e a lutar em favor de uma identidade bem definida. Neste novo momento, como vem mostrando Emerson Giumbelli, os evangélicos deixam de ser uma minoria pouco expressiva e começam a “cultivar um projeto de maioria”. E assim se estabelece um campo tensional de disputa por hegemonia. É uma questão que vai aparecer nitidamente nos debates em torno do ensino religioso nas escolas públicas, que historicamente esteve sob a influência da igreja católica e foi marcado pelo modelo confessional. O caso do Rio de Janeiro tem sido paradigmático para mostrar a luta de posições entre os diversos setores que se debatem em favor de um ensino confessional, com professores e conteúdos de cada confissão religiosa, ou de um ensino cuja definição programática seja atribuída ao Sistema Estadual de Ensino.

 

Não há como negar que os próximos anos serão caracterizados por uma progressiva diversificação religiosa no país. Mas esta pluralização nem sempre vem ocorrendo de forma harmoniosa ou pacífica. Infelizmente, já se percebem sinais expressivos de demarcação de campos e tendências de adesão religiosa pontuada pelo toque da exclusividade, provocando aqui ou ali tensões e conflitos. Temos observado com preocupação fenômenos de beligerância em relação a determinadas tradições ou práticas religiosas, como ocorreu em 1995 no episódio que ficou conhecido como  “chute na Santa”, ou como vem acontecendo no ataque sistemático às religiões afro-brasileiras por parte de grupos neopentecostais. Há que registrar igualmente a irradiação de tendências fundamentalistas setorizadas que buscam reagir ao impacto da pluralização com o reforço dogmático de uma identidade marcada pela intolerância interna e externa. São fenômenos que ameaçam ou impedem o reconhecimento da dignidade de um mundo religioso plural.

As diversas igrejas e tradições religiosas encontram-se diante de um desafio essencial neste início de século: respeitar a diversidade e encontrar caminhos novos de diálogo, cortesia espiritual e cooperação criadora. O pluralismo religioso não pode ser visto como um mal ou simplesmente uma etapa conjuntural a ser superada pela vontade “missionária” de complementação. A liberdade religiosa é um dos dados mais importantes a ser respeitado numa sociedade que se pretenda democrática, aberta e livre. Os propósitos exclusivistas e excludentes acabam ferindo mortalmente o direito de liberdade e consciência. A afirmação da liberdade religiosa foi um dos marcos mais importantes do Concílio Vaticano II (1962-1965), que se firmou num processo extremamente difícil e tenso, que dividiu posições entre os padres conciliares. Num dos números  mais novidadeiros do documento salienta-se que “cada um tem o dever, e consequentemente o direito, de procurar a verdade em matéria religiosa, de modo a formar, prudentemente e usando meios apropriados, juízos de consciência retos e verdadeiros” (DH 3). O resultado das discussões foi extremamente favorável à abertura de horizontes, acionando de forma irrefreável os caminhos do ecumenismo e do dialogo inter-religioso.

 

(Publicado no Jornal de Opinião n. 861, nov/dez de 2005, p.7)

 

 

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