sábado, 27 de março de 2021

O diálogo na Fratelli Tutti

  


O diálogo na Fratelli Tutti

 

Faustino Teixeira

PPCIR/UFJF/ Paz e Bem /Unisinos

 

 

O foco da nova encíclica

 

Francisco, o papa, parafraseia Francisco, o de Assis, no título de sua mais recente encíclica, Fratelli Tutti, em que recupera a fraternidade como valor central das relações não somente entre os humanos, mas entre os humanos e todas as demais espécies e o planeta. Nesse sentido o documento é, ao mesmo tempo, o testemunho de um mundo ferido e uma lúcida proposição de caminhos para enfrentarmos os dilemas contemporâneos a partir de uma visão que tem o amor e o cuidado aos mais vulneráveis como pano de fundo

 

Estamos diante de uma bela encíclica, marcada pela tonalidade do evangelho. Há nela a conjugação da coragem destemida, do cuidado com a casa comum e com os mais sofridos, bem como uma ternura que vem sendo um traço singular no pontificado de Francisco. Utilizando aqui uma expressão de Leonardo Boff, é uma encíclica que une vigor e ternura. É uma encíclica, que na mesma rota da Laudato si' (LS), convoca-nos a olhar para o alto, pedindo forças para enfrentar com coragem esses tempos sombrios, de escuridão, solidão e dor. 

 

A encíclica denuncia a perda dos sentimentos de pertença à mesma humanidade. O sonho da construção partilhada de um mundo de justiça e paz se esvanece, e ficamos à deriva de um perigoso narcisismo individual e de grupos. A indiferença avança a passos largos, uma indiferença “acomodada, fria e globalizada, filha de uma profunda desilusão que se esconde por trás dessa ilusão enganadora: considerar que podemos ser onipotentes e esquecer que nos encontramos num mesmo barco” (FT 30).

 

Um olhar atento ao evangelho nos possibilita ver que há uma cristalina opção pelos mais pobres. Junto com eles, o carinho que se derrama sobre os excluídos, os mais velhos e todos que se encontram abandonados num mundo carente de solidariedade. É o que lembra Francisco. Trata-se de “cuidar da fragilidade” (FT 188), ou seja, “assumir o presente na sua situação mais marginal e angustiante e ser capaz de ungi-lo com dignidade” (FT 188). 

 

O pontificado de Francisco será lembrado como aquele que defendeu com as garras do coração uma outra globalização, fraterna e solidária, contra todo o ritmo nefasto deste tempo do Antropoceno, ou como vem lembrando L. Boff, do necroceno, em razão da ação predatória do humano sobre a Terra. Ela agora “geme e se rebela” (FT 34).

 

 

A defesa de uma outra globalização

 

Como arauto do evangelho, Francisco convoca a todos a uma ira santa: “Fazem falta gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isto fala e faz parte da comunicação humana” (FT 43). Não há por que se calar nesse tempo de passividade e indiferença, é o que revela Francisco com a medula do evangelho. 

 

Sua dor vem acentuada com a indiferença como o mundo globalizado vem, em geral, tratando os tocados pela epidemia do coronavírus, sobretudo os velhos, rechaçados como força de produção falida. Idosos são abandonados e isolados, “sem acompanhamento familiar adequado e amoroso”. Tudo isso provoca a mutilação e empobrecimento da própria noção de família (FT 19).

 

Francisco adverte na encíclica sobre o empobrecimento da humanidade. Lembra que “seria bom se, enquanto descobrimos novos planetas longínquos, também descobríssemos as necessidades do irmão e da irmã que orbitam ao nosso redor” (FT 31). É o sentimento de “pertença à humanidade” que se fragiliza numa sociedade do “mínimo eu”, do narcisismo desenfreado, da defesa do particular com todo o aparato de muros intransponíveis. Francisco denuncia as “novas barreiras de autodefesa”, para que vibre solitariamente o mundo privado do eu, mas de um eu sem mundo. 

 

E as vozes que ousam contestar essa lógica perversa são caladas ou ridicularizadas, como percebemos na oposição à resistência dos povos originários (FT 17). Nos esquecemos que são essas vozes que podem nos salvar. Aliás, ninguém se salva sozinho, mas a salvação envolve o sentimento de comunidade, que vem se ofuscando a cada dia (FT 32). 

 

O papa se coloca ao lado daqueles que promovem os essenciais “gestos barreiras”, para utilizar uma expressão de Bruno Latour. São aqueles que se opõem à dinâmica em curso, e que anseiam pela “interrupção” dessa globalização. Assim como o vírus conseguiu parar por um tempo o mundo, há esperança de que os “pequenos e insignificantes gestos, acoplados uns aos outros, conseguirão: suspender o sistema produtivo” (LATOUR, 2020, p. 131). 

 

A defesa da paz e do diálogo

 

Além da defesa de uma ira sagrada contra os donos do mundo, a encíclica defende com vigor o caminho da paz e do diálogo. A busca da paz é outro dos traços novidadeiros do pontificado de Francisco. Ele sublinha que em inúmeras partes do mundo urgem iniciativas que promovam “percursos de paz”, que possam “cicatrizar as feridas”, de “artesãos da paz prontos a gerar, com inventividade e ousadia, processos de cura e de um novo encontro” (FT 225). Providencial é a citação do livro dos provérbios (12.20): “No coração dos que maquinam o mal, há falsidade, mas aqueles que têm conselhos de paz, viverão na alegria” (FT 256).

 

Aqueles que são aquecidos pelo evangelho vivem o dom da alegria, é o que nos lembra todo tempo Francisco em sua travessia de amor pela vida. Sinaliza que o evangelho “convida insistentemente à alegria” (EG 5). Daí sua sensibilidade à capacidade de doação e misericórdia, que são dons absolutamente gratuitos. Os artesãos da misericórdia também estão por aí, ao nosso redor, com seus semblantes acolhedores e anônimos. Lembra-nos Francisco,

 

“de vez em quando verifica-se o milagre de uma pessoa amável, que deixa de lado as preocupações e urgências para prestar atenção, oferecer um sorriso, dizer uma palavra de estímulo, possibilitar um espaço de escuta no meio de tanta indiferença” (FT 224). 

 

Sim, estamos diante da globalização da indiferença, é o que nos lembra Francisco a todo momento. Curioso, num tempo pontuado por tantas conexões, de velocidade louca, prevalece a surdez e a desumanidade. Diz Francisco, em pensamento lapidar e certeiro: “Hoje podemos reconhecer que alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza, e acabamos por comer distração, fechamento e solidão; empanturramo-nos de conexões, e perdemos o gosto da fraternidade” (FT 33). 

 

Como bem lembrou Francisco, “a conexão digital não basta para lançar pontes” (FT 28). Esta é a dura verdade. E o ambiente das redes vem contaminado com rancor e ira, na defesa da “solidão dos que têm razão”. Francisco nos adverte contra esta acidez social, irradiada nas redes (FT 44) e convoca a um diverso sentimento, captado na Carta aos Gálatas, de amor, alegria e paz: “um estado de ânimo não áspero, rude, duro, mas benigno, suave, que sustenta e conforta”. Isso é o que o nosso tempo mais necessita, de uma paz que leve ao conforto e ao cuidado.

 

Outra mensagem que a encíclica carrega, como voz preciosa, é a do diálogo. Francisco cita o poeta Vinicius de Moraes para assinalar que “a vida é a arte do encontro” (FT 215).  Só através de sua ponte o mundo é capaz de encontrar uma vida melhor (FT 198). O diálogo “tem seu próprio valor”, como diz o belo documento Diálogo e Anúncio (1991). Assim também Francisco quando diz não ser necessário saber “para que serve o diálogo” (FT 198). O diálogo é, na verdade, autofinalizado. O diálogo não requer, igualmente, nenhuma reciprocidade. É dom gratuito. Quando Francisco fala em diálogo, está pensando no diálogo entre as culturas, mas também entre as religiões. 

 

O diálogo é um dom que preserva as belas coisas que temos em comum com os outros (FT 297). Numa sociedade pluralista, o diálogo inter-religioso firma-se como caminho essencial de ultrapassagem dos muros. As religiões são respeitadas pelo Papa na sua dignidade sagrada. Recorrendo a um dos textos mais simbólicos do Concílio Vaticano II, sobre a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae – DH), Francisco reconhece que cada pessoa tem o dever e o direito de buscar a verdade em matéria religiosa (DH 3). Diz explicitamente em sua conversa com Eugeniio Scalfari, que cada pessoa, obedecendo sua consciência, deve buscar o bem (Francesco/Scalfari, 2013b, p. 55), a “via do amor”. Isso é o que é essencial.

A centralidade do exercício do agape

 

            O papa reage com vigor contra qualquer proselitismo. Indica que “o mundo vem percorrido por estradas que nos aproximam e distanciam, mas o importante é que nos levem para o bem” (Francesco/Scalfari, 2013b, p. 55). O caminho que leva à salvação não depende de um vínculo religioso específico, mas de um exercício efetivo de caridade. É o modo efetivo de amar a Deus. O agape é “o único modo que Jesus nos apontou para encontrar o caminho da salvação e das Bem-aventuranças (Francesco/Scalfari, 2013b, p. 56). Para o escândalo de alguns, Francisco sinaliza que “não há um Deus católico” (Francesco/Scalfari, 2013b, p.68), mas um Deus que é movimento e criação contínua, e que se deixa surpreender em cada passo. 

 

Com base em passagens de discursos no filme dirigido por Win Wenders sobre o seu pontificado[1], Francisco sinaliza: 

 

“Entre as religiões é possível um caminho de paz. O ponto de partida deve ser o olhar de Deus. Porque 'Deus não olha com os olhos, Deus olha com o coração. E o amor de Deus é o mesmo para cada pessoa, seja qual for a religião. E se é um ateu, é o mesmo amor'” (FT 282). 

 

Francisco lança assim um convite ao “amor universal”, que deve animar o caminho da igreja. Isso sem perder o referencial singular da pertença. O diálogo não se opõe ao amor à própria religião. Se outros bebem de “outras fontes”, também reconhecidas como expressão de beleza, os cristãos são brindados com um “manancial de dignidade humana e fraternidade” fundados no evangelho de Jesus Cristo (FT 277). Aqui o papa tenha talvez “escorregado numa visão mais tradicional” ao falar que o que existe de positivo nas outras religiões são “raios de verdade”, que encontram o seu remate na “música do evangelho”. É a visão predominante depois de Vaticano II, e que impregna os documentos mais tradicionais da igreja católica, como a declaração Dominus Iesus. É um passo de superação que ainda precisa ser dado com certa urgência para uma mais rica integração do pensamento eclesial com o ritmo do pluralismo religioso.

 

Como mostra Francisco, todos são cobertos com o manto da dignidade do Mistério sempre maior. O diálogo requer uma pedagogia singular, que envolve um aprendizado de abertura do coração e ampliação do olhar (FT 254). A igreja vem convocada a tal gesto de desprendimento e escuta, do Mistério que está por aí. Quando perguntam a Francisco o caminho de solução para o entendimento e a paz entre os povos e as religiões sua resposta é sempre certeira: diálogo, diálogo, diálogo, é como expressou em sua visita ao Brasil, no encontro com a classe dirigente, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro (Francisco, 2013a, p. 82-83).

 

Um olhar crítico sobre o Antropoceno

 

Numa sociedade pluralista, o diálogo inter-religioso firma-se como caminho essencial de ultrapassagem dos muros. A Laudato Si' ocupou-se do cuidado da casa comum. É uma encíclica que faz um diagnóstico severo sobre a realidade da terra no tempo do Antropoceno, com todas as consequências nefastas de uma atitude predatória do humano com relação ao seu mundo. 

 

À luz do evangelho da criação e de uma espiritualidade do cuidado, Francisco busca sublinhar o significado mais profundo do habitar a terra com respeito, reverência e simplicidade, captando o nexo de inter-relação que dinamiza a cadência da vida. Sublinha o risco de catástrofes imprevisíveis caso o ritmo da aceleração produtivista continue no mesmo frenesi. Propõe uma “conversão ecológica” (LS 217) e uma espiritualidade do cuidado, na linha de Francisco de Assis. Sua Crítica ao Antropocentrismo é potente, ainda que não leve sua reflexão às últimas consequências, na medida em que mantém plausível um antropocentrismo cristão, justificando o lugar peculiar do humano “acima” das criaturas, como “administrador responsável” (LS 116). Sua crítica volta-se, mais a um “antropocentrismo desordenado” ( LS 119) ou “despótico” (LS 68). Esse é um limite, a meu ver.

 

Na encíclica Fratelli Tutti, o objeto de atenção é a fraternidade e a amizadesocial. Enquanto o foco da primeira encíclica, Laudato si, centrava-se mais no campo da relação de cuidado com o ambiente. Na nova encíclica o foco é mais social e político, abordando as exigências de uma fraternidade nova, distinta da “globalização da indiferença” que está em curso. 

 

São encíclicas que se complementam. A mensagem de vídeo endereçada à ONU, em setembro de 2020, vai na mesma linha de seu pensamento, recorrente nos seus textos.[2]Retoma a ideia de uma “solidariedade baseada na justiça”, em linha de tensão com o ritmo frenético de “atitudes de autossuficiência” que desenham a plataforma de muitos governos no mundo atual. Ali aparecem sua preocupação com o mundo afetado pelo coronavírus; os efeitos tremendos que estão ocorrendo no mundo do trabalho, numa incerteza vinculada ao processo contínuo de robotização; a cultura do descarte e a violação visível dos “direitos fundamentais”. Retoma também sua preocupação social com os últimos, os desprezados do mundo, os excluídos, os migrantes e os deslocados da “música” da globalização. Aproveita igualmente a nobre ocasião para questionar o “nominalismo declamatório” da ONU, com sua escassa capacidade de cumprir suas promessas. Denuncia várias situações de devastação e flagelos, como os que vêm ocorrendo na Amazônia, acarretando graves prejuízos aos povos originários. E conclama os governos a uma responsabilidade única: “Não devemos impor às gerações futuras o fardo de assumir os problemas provocados pelas gerações precedentes”. Foi um discurso incisivo, destinado a provocar um “repensar o futuro” da casa comum. À luz do evangelho da criação e de uma espiritualidade do cuidado, Francisco busca sublinhar o significado mais profundo do habitar a terra com respeito, reverência e simplicidade, captando o nexo de inter-relação que dinamiza a cadência da vida.

 

Referências Bibliográficas

 

ENTREVISTA exclusiva do papa Francisco ao pe. Antonio Spadaro. São Paulo: Paulus: Loyola, 2013a.

 

PAPA FRANCESCO & SCALFARI, Eugenio. Dialogo tra credenti e non credenti. Torino: Einaldi/La Repubblica, 2013b

 

LATOUR, Bruno. Onde aterrar ? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.-

 

PALAVRAS do papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013.

 

PAPA FRANCISCO. Carta encíclica Laudato Si, sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015 (abreviação: LS)

 

PAPA FRANCISCO. Evangelium Gaudim. A alegria do evangelhoSão Paulo: Paulus/Loyola, 2013 (abreviação: EG)

 

PAPA FRANCISCO. Fratelli Tutti, sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Paulus, 2020 (abreviação: FT).


(Texto a ser publicado no livro: 3º Simpósio Internacional de Doutrina Social da Igreja – Recepção interdisciplinar da Encíclica Fratelli Tutti – Paulinas, 2021)

Prefácio, O livro das delicadezas (Vozes, prelo)

 Prefácio

 

Maria Amada: Uma monja que irradia fé, acolhida e alegria

 

Faustino Teixeira

PPCIR/UFJF/ Paz e Bem/ IHU

 

 

            Ao pensar em escrever esse prefácio ao livro das delicadezas veio-me logo a identificação de Maria Amada como uma monja zen. Tudo que vou aprendendo com os grandes mestres desta tradição budista vejo refletido com profundidade na experiência de Maria Amada. Vejo em particular a retomada da experiência de um grande patriarca Zen que morreu no século IX (Lin Chi), em 867. Para ele, o grande mote de sua prática era: “viver simplesmente”. O caminho espiritual é o caminho da vida, desvestida de todos os penduricalhos. Para ele, não existia nada de muito especial para alcançar a iluminação, senão viver a vida com toda a simplicidade, bebendo chá e comendo arroz, sem nenhum objetivo extraordinário.

 

            Maria Amada foi uma monja-camponesa que “largou” sua vida aos cuidados de Deus, de forma magnífica e exemplar. Lendo as singelas histórias que estão no “Livro das Delicadezas”, recolhidas por frei Alano Menezes, nos deparamos com o cerne da simplicidade, com o despojamento mais transparente, com a disponibilidade de servir que irradia e encanta a todos os que tiveram, como eu, o privilégio de uma proximidade maior com ela. Mas também a todos que, agora, encontram a oportunidade de ler com atenção suas singelas histórias. 

 

            Em página preciosa de apresentação do livro, frei Vital, então bispo de Itaguaí (RJ), sublinha que Maria Amada cultivou até o fim de sua vida vida, a capacidade de maravilhar-se. Sua experiência espiritual não era etérea, mas nascia “no chão da vida”. Como na canção de Gil sobre o baião: O que nasce “do barro do chão” vem habitado por um “sopro divino”, um sopro “que sobe pelos pés da gente e de repente se lança pela sanfona afora até o coração do menino”. E foi do “barro do chão” que veio a energia espiritual de Maria Amada, que emocionou a todos que viveram com ela de mais perto, recebendo o dom de seu sorriso e de sua acolhida. Como diz dom Vital, a verdade que animava Maria Amada era o dom da vida: “Bastava-lhe viver. Uma verdade simples como um pedaço de pão que é visto e tocado, partido e partilhado, que se molha no café com leite”. E assim, de forma simples e evangélica, fazia acontecer com sua simplicidade a substância e melodia das coisas.

 

            As histórias de Maria Amada trazem a “gostosura” do ritmo mais cotidiano da vida simples, que vem do interior de Minas. Cito aqui duas que estão no livro. A primeira fala de seu nascimento:

 

“Deus primeiro criou o sol, a lua, as estrelas, as árvores, as aves, os animais, os peixes, tudo, tudo, tudo...

Quando ele terminou e viu que tudo era muito bonito, pensou: - Agora vou criar uma criaturinha feliz!

- E criou ´eu`!”

 

            A segunda história relata sua “primeira confissão”, quando tinha por volta de 3 a 4 anos:

 

“Mamãe me levou para a Igreja, em Nova Serrana, onde ia se realizar o casamento. Eu estava pertinho dela. Olhei para o lado e era aquela fila de mulheres confessando. Quando uma saiu do confessionário, eu desgarrei da mamãe sem ela ver, e corri para o padre.

 

- Que, que você quer, filhinha? me perguntou ele.

- Confessar, respondi.

- Mas você tem pecado?

- Já tenho dois.

 

Nisto ele me pegou e me assentou no colo dele. Eu aproveitei a oportunidade para balançar as perninhas a fim de que ele visse o meu sapatinho novo. Eu tinha também duas tranças no cabelo. O padre, brincando com minhas tranças, perguntou:

 

- Mas quais são estes seus dois pecadinhos?

 

- Meu primeiro pecado, respondi, é porque eu tiro a nata do leite do vovô.

 

- Você acha que isto é pecado

 

- Sim, a vovó disse para não fazer, porque isso até é pecado!

 

- É, filhinha, você não vai mais tirar a nata do leito do vovô não, não é? Coitado; ele fica tomando aquele leite aguado, sem gosto ... Bom, e qual é o outro pecadinho?

 

Eu aproveitava a conversa e não cansava de mostrar o meu sapatinho.

 

- O outro pecado é que eu tenho um gatinho e gosto muito de ver a língua dele; então eu aperto assim o pescocinho dele (e apertava a mão do padre) para ele mostrar a língua.

 

- Mas assim, disse o padre, ele morre.

 

- Não; ele não morre não; depois eu passo a mão nele, assim, e ele fica bom de novo”.

 

            Maria Amada foi uma camponesa dos sertões de Pitangui e Dores do Indaiá. Uma camponesa que depois se tornou costureira e, aos sessenta anos de idade, recebeu a tão desejada acolhida entre as carmelitas descalças. Buscou recolher, com fé e gratidão, as “migalhas” que lhe foram oferecidas (Jo 6,12). As vozes críticas à sua entrada no carmelo argumentavam três traços que eram duros: não podia ser aceita por ser velha, pobre e analfabeta. Isso não a desanimou, até que recebeu o convite para ser porteira no carmelo de Petrópolis. Ali tinha uma vida simples, como desejava: “Atender à portaria , ao telefone, transmitir para dentro da clausura, para a irmã porteira interna ou a priora, através da ´roda, os recados, receber ordens e encomendas e executá-las”. Nos momentos livres, dedicava-se ao que lhe dava mais prazer: as orações na capela, onde diariamente se reabastecia. Dizia que ali na portaria os dias passavam rápido e reconhecia no lugar um “ermo de felicidade”, gozando o tempo em silêncio, recolhimento e oração. Dizia que ali, diante “do Sagrado Coração de Jesus” buscava a “febre alta de quarenta e um graus de amor”. Pedia à sua Mãezinha para preparar seu coração para ser aquele jardim de delícias. Via na oração a ponte lançada entre a  terra e o céu para a visita ansiada da divindade.

 

            Depois de 10 anos da portaria do mosteiro em Petrópolis, Maria Amada veio convidado por Madre Tereza, que ocupava a função de roupeira, para fazer parte de uma nova fundação em Juiz de Fora (MG). Diante da resistência de algumas em aceitar o ingresso de Maria Amada, irmã Tereza assinalou que mesmo que ela tivesse setenta anos, a levaria com ela para a nova missão. A entrada ocorreu em 27 de julho de 1957. Junto com a nova superiora, Madre Tereza vieram outras irmãs: irmã Rosa Branca, irmã Maria de Lourdes, Irmã Ana Lúcia (noviça). Maria Amada ficou ainda um tempo em Petrópolis, como noviça, antes de vir para Juiz de Fora.

 

            A vida de Maria Amada em Juiz de Fora foi uma vida de acolhida e oração. Dizia que “se as pessoas soubessem o valor da Ave Maria, subiam para o céu como um foguete”. O mais lindo de tudo, em sua vida de religiosa, era a comunhão com o todo. A natureza e os pássaros faziam parte intrínseca de sua devoção a Deus: seu amor às borboletas, aos papagaios, abelhas, cigarras e beija-flores adornam maravilhosamente suas histórias ao longo do livro. Para ela, “o mundo era a fazenda do Pai”. 

 

            Gostava também, imensamente, da música. Dizia numa de suas histórias que nasceu com a música. De fato, no dia de seu nascimento, em 18 de abril  de 1987, foi recebida pela festiva música de uma banda: “Agora podem tocar, porque já tenho mais uma netinha na fazenda”, comemorou o seu avô. Lembro-me do período em que tocava violão e cantava nas celebrações do carmelo em Juiz de Fora, nos anos 70, e isto era motivo de entusiasmo para Maria Amada. Nos recebia ao final da celebração em sua cela, e logo dava as mãos e voltava seu rosto sorridente para todos nós. Era a verdadeira santidade das carícias, cercada pelos gestos de carinho e acolhida.

 

            O que ocorreu depois, na história do carmelo da cidade de Juiz de Fora, é muito triste. As irmãs acabaram tendo que sair da cidade por desavença com o então bispo Dom Juvenal Roriz. Um dos motivos era sua resistência à experiência de abertura das irmãs conventuais, que colocavam em prática as reformas do Concílio Vaticano II (1962-1965). Acabaram saindo de Juiz de Fora, em 1984, sendo acolhidas por Dom Vital em Itaguaí. Ali Maria Amada passou o último período de sua vida. Em seguida foram para a Paraíba, na cidade de Bananeiras, onde estão até hoje.

 

O sonho de um carmelo leve, delicado, profético e acolhedor segue hoje com dificuldade mas muita disposição em terras da Paraíba, sob o carisma inspirador de nossa querida irmã Terezinha. Como diz Guimarães Rosa no Grande Sertão: Veredas, a gente cai, mas a gente levanta, com coragem, fé e esperança. Temos que saber montar em cavalo que nos leva para o rumo da alegria. Como diz papa Francisco em sua última encíclica, FratelliTutti, ninguém se salva sozinho, mas só comunitariamente. Essa é a esperança que nos move e aquece o nosso coração em favor de um novo rosto de igreja, em conformidade com o sonho fraterno de Jesus.

 

A primeira edição do “Livro das Delicadezas” saiu em dezembro de 1979, e seu grande incentivador foi Frei Alano de Menezes (OP), que teve o delicado trabalho de ouvir com atenção e compilar as histórias. Depois disso foram várias as edições mais caseiras, sempre com muito sucesso. As ilustrações da capa e ao longo do livro, adornando as histórias, são de autoria do artista plástico de Juiz de Fora, Paulo Couto Teixeira (o Pulika). A nova edição da Vozes procura ser fiel ao máximo à primeira edição. No projeto recente, estavam previstos uma série de testemunhos de amigos que sairiam à parte num anexo. A ideia foi transformada, e os testemunhos vão sair aos poucos publicados no Instituto Humanitas da Hunisinos (IHU-Notícias).

 

Queria ainda agradecer aos amigos de toda parte do Brasil que acolheram a campanha em favor da publicação do livro, com donativos espontâneos. A resposta à demanda foi bem mais auspiciosa do que eu imaginava, e conseguimos angariar cerca de R$ 11.000,00, que serão encaminhadas para a Editora Vozes para a nova edição do livro. Todos os recursos com a vendagem da obra serão revestidos para a ajuda ao Mosteiro de Bananeiras. Agradecemos, portanto, à generosidade de todos que contribuíram, tanto na doação de recursos como nos testemunhos escritos, e em particular com madre Terezinha, que leva com coragem, animação e esperança o carisma do carmelo nas terras nordestinas.

 

(A ser publicado em: Frei Alano Porto de Menezes (Org). O livro das delicadezas. Petrópolis: Vozes – No prelo)

Eckhart, Zen e a Mística do Cotidiano

Eckhart, Zen e a Mística do  Cotidiano



 Faustino Teixeira

PPCIR/UFJF/ Paz e Bem/ IHU

 

 

Introdução

 

Falar em experiência mística na dinâmica do cotidiano é tocar num dos temas que venho trabalhando com mais frequência nas últimas décadas. É algo que pontua minhas últimas publicações e continua suscitando muito interesse e provocando indagações que são novidadeiras. Nesse artigo em particular quero destacar a familiaridade da mística do cotidiano em Mestre Eckhart e o Zen budismo, isto partindo de uma abordagem sintética da mística apofática. As semelhanças e analogias, como veremos, são bem próximas, sem com isso querer negar as fundamentais diferenças que persistem entre as duas tradições em jogo.

 

1. Teologia Apofática, Mestre Ecchart e o desafio do cotidiano

 

O tema é absolutamente fascinante, e optei por uma aproximação que passa pela teologia apofática. Acredito que um dos caminhos possíveis de entender a presença de Deus no meio das coisas, no ritmo do cotidiano, é atravessar a nuvem obscura da forma como os grandes místicos apofáticos reconhecem o mistério de Deus. Em sua clássica obra, Teologia Mística[1], o Areopagita fala que “quanto mais olhamos para cima, mais os discursos se contraem pela contemplação das coisas ininteligíveis”[2]. Ou então, bem mais adiante, João da Cruz ao dizer que quanto mais alto se ousa, tanto menos se entende, e o olhar de quem se aproxima da “cristalina fonte”, fica ofuscado pelo desfalecimento[3]. As palavras se  empobrecem ao tentar expressar tamanha riqueza e vitalidade. O Areopagita assinala que a ousada subida provoca, em verdade, a “total ausência de palavras”. Para o Areopagita “A Causa perfeita e unitária de todas as coisas está acima de toda afirmação, e a excelência dAquele, que está absolutamente separado de tudo, e acima de tudo supera toda negação”[4].

 

Com o grande mestre Capadócio, Gregória de Nissa, aprendemos novas dimensões dessa aproximação aporética de Deus. Em obras essenciais como A vida de Moisés[5]e a Homilia sobre o cântico dos cânticos[6], Gregório de Nissa nos ajuda a recordar, com base na experiência de Moisés, que nosso encontro com o Mistério é envolvido por nuvens e obscuridade. A natureza divina, assinala o capadócio, “excede toda faculdade cognoscitiva” e não encontra ponto de contato com nenhuma “realidade que podemos conhecer”[7]. A dinâmica de “aproximação” desse mistério exige do buscador a libertação “de tudo o que é aparência” para estar disponibilizado para a “visita”, ainda que indireta, do Mistério que está sempre além.

 

Ninguém acessa a “ousia” de Deus, mas sua “energeia” que se dispersa na criação. Trata-se de distinção essencial na teologia negativa, que foi retomada também na mistíca dos padres orientais, entre os quais Gregorio Palamas. O Mistério que é “invisível na sua natureza, mostra-se visível na sua atividade”. É verdade, como diz a primeira carta a Timóteo, que o Mistério habita uma “luz inacessível”, e que ninguém pode vê-lo (I Tm 6,16), mas os “puros de coração” o verão (Mt, 5,8). Apesar de inacessível na sua substância, Deus pode ser captado pelo “aroma” ou “perfume difuso” que ele deixa transparecer em toda a criação. Basta ter acuidade de olhar e de olfato para poder perceber sua presença entre nós. Há por toda parte a presença desse “perfume da natureza divina”[8].

 

 

 

Mestre Eckhart foi dos místicos medievais aquele que levou mais a fundo a teologia apofática, e nesse sentido foi quem mais se achegou à perspectiva zen budista. O que propõe Eckhart é um “Deus para além de Deus”. A mística de Eckhart é uma “mística do fundo” (Grunt)[9]. O fundo de Deus não está para além, mas habita o fundo do ser humano. Trata-se de uma força “incandescente”, “florescente” e “ardente”, uma “centelha” que habita o “burgozinho da alma”. Não se trata de algo complexo, mas de profundamente “simples” (um e simples). Sequer Deus consegue olhar esse “fundo” ou penetrar seus mistérios, a não ser que se desapegue de suas propriedades. Tudo o que existe no “modo de propriedade” não acessa o mistério do fundo.Esse “Fundo é mais profundo do que a Trindade”.[10]Diz a propósito Eckhart no sermão alemão de número 2:

 

“Se um dia Deus quiser olhar ali dentro, isto deve lhe custar todos os seus nomes divinos e sua propriedade de pessoas. Tudo isso deve deixar, de uma vez por todas, lá fora, se quiser olhar ali para dentro. Antes, assim como é Um simples, sem qualquer modo e sem o próprio, Ele não é, nesse sentido, nem Pai, nem Filho, nem Espírito Santo, e no entanto, é um algo que não é nem isso nem aquilo”[11].

 

            Falar de Deus é falar de uma “nadidade sobreessencial”. Mais um traço que aproxima a mística eckhartiana do zen budismo. Na visão de Eckhart, aquele que “fala de Deus junto a nada, dele fala com propriedade”[12]. É em seu comentário sobre a conversão de Paulo, citada nos Atos dos Apóstolos (At 9,8), que Eckhart leva às últimas consequência sua percepção da nadidade de Deus. É incisiva a sua reflexão em torno da passagem dos Atos dos Apóstolos onde se relata a conversão de Paulo: “Saulo levantou-se do chão e não viu senão o Nada”. Para Mc Ginn, é nesta interpretação da passagem dos Atos que Eckhart “vai mais longe em sua interpretação do nada”[13]. O que de mais belo o ser humano pode dizer sobre Deus, indica Eckhart citando Agostinho, é “calar-se em virtude da sabedoria da riqueza interior”[14].

 

            Aquele que se despoja radicalmente, a ponto de romper com todas as suas “propriedades”, alcança um estado de espírito essencial para aproximar-se do mistério. Trata-se do estado de abegescheidenheit, de nudez fundamental, vacuidade e abandono de si. Pontua Eckhart: “Se temos que chegar ao fundo de Deus e no seu mais íntimo, então devemos primeiro chegar em límpida humildade no nosso próprio fundo e nos nosso mais íntimo”[15]. Esse estado não provoca um distanciamento do mundo, mas um estar no mundo atuado de forma essencial, como Marta na interpretação de Eckhart. Diz Eckhart: “Quando a alma com amor flui totalmente em Deus, ela não sabe de mais nada a não ser de amor”[16]. Marta é para Eckhart o símbolo  vivo de uma mística do cotidiano. Ela atua no mundo de forma única e singular, pois habita aquele espaço essencial (wesenlîche stân). É alguém que tem “o fundo da alma exercitado”, e dali fluem obras de amor marcadas por generosidade única. É alguém que está no tempo “essencialmente”[17].

 

            A mística de Eckhart não nos lança, assim fora do tempo, mas a partir de um mundo interiorizado, nos lança a perceber a presença do Mistério em toda parte. Deus está sempre aí, como um dom amigável, que se reverbera em todas as coisas e pessoas. Basta ter a sensibilidade de saber ver, escutar e sentir a sua presença acolhedora e misteriosa. Todas as coisas vão se encharcando do perfume de Deus e do gosto de Deus. Em grande sintonia com o budismo zen, a dinâmica estrutural que marca esse caminho de desjopajento e abertura é pontuada pelo movimento de interiorização no sentido do fundo essencial e originário, um movimento que se  prolonga com novo espírito na vida ativa: ou seja, um retorno ressignificado à realidade do mundo e da vida.

 

2. O Zen Budismo e o ordinário

 

            O Zen Budismo nos apresenta uma das mais nobres experiências de “mística” centrada no cotidiano. Com base no pensamento do patriarca Baso Matsu (Baso Doitsu), morto em 788, Suzuki toca na questão essencial quando sublinha que o Zen é “consciência cotidiana”[18]. Igualmente num dos textos essenciais do Zen, Wou-men-koan, “Passe sans porte”, uma das regras indicadas é que “o coração cotidiano é o caminho”[19].

 

Essa reflexão Tem sua raiz no patriarca chinês Linji (Rizai), morto em 867. Para ele havia uma consciência clara de que “a mente ordinária era o caminho”[20]. Seu mote singular era “viver simplesmente”, sem buscar nada de muito especial. O caminho da iluminação não passava por veredas estranhas ou extraordinárias, mas pelo usual que está no caminho cotidiano[21]. Nada de muito exemplar: “Se queres caminhar, caminha; se queres sentar, senta-te”. Relata o monge Yves S. Crettaz que num certo dia em que Shakyamuni passeava com seus discípulos numa pequena aldeia, alguém perguntou ao mestre: “Qual é a sua prática e a dos seus monges?”. A resposta veio tranquila: “Nós sentamo-nos, caminhamos, comemos”. O aldeão insistiu: “Mas toda a gente se senta, caminha e come”. Buda respondeu: “Quando estamos sentados, sabemos que estamos sentados. Quando caminhamos, sabemos que caminhamos. Quando comemos, sabemos que comemos”[22].

 

Não há que buscar a budidade, mas viver o cotidiano. O “encontro” com Buda pode desviar o caminho. Num dos clássicos comentários da clássica série de imagens sobre o boi e o pastor, atribuídas ao pintor Shûbun (1432-1460), se diz: “Não te detenhas onde mora o Buda, passa rapidamente pelo lugar onde não mora nenhum Buda”[23].

 

Verifica-se que na tradição zen não existe nada senão a realidade do mundo fenomênico[24]. Não se fala ali de uma ordem de coisas transcendental, que se destaca do espaço e do tempo. O que há é esse mundo sensível e concreto, na sua espessura vital. O pensamento de Dôgen reflete essa dedicada atenção ao fluxo da existência cotidiana, sem que ocorra um acento numa transcendência específica. Há algo de “singularmente profano” e “absolutamente cotidiano” no zen por ele apresentado.

 

A passagem pela vacuidade ilumina o olhar. O mundo fenomênico ganha uma riqueza de detalhes favorecida por esse novo ver. Ganha uma dimensão extraordinária sem perder o toque da imanência. É uma educação que suscita no buscador uma atenção única para com todos os seres, vivos ou não. Como indicado numa caligrafia inscrita no mosteiro Daitokuji, em Kyoto, “um só grão de arroz é o monte Sumeru”[25]. Exemplo de olhar atento é o de Bashô (1644-1694), em suas andanças, ao reconhecer a beleza da pequena flor de nazuna, ao pé da sebe. Nem todos seriam capazes de tal intento. Aquela florzinha “desprezada”, raras vezes notada pelos passantes, é captada pelo poeta japonês. Bashô era alguém que se identificava a tal ponto com a natureza, que era capaz de perceber sua pulsação nas veias. Como diz Suzuki, em cada pétala pode-se sentir “o mais profundo mistério da vida ou do ser: “Até numa haste de relva silvestre há qualquer coisa que transcende realmente todos os sentimentos humanos baixos e venais”. Trata-se do dom de descobrir a “grandeza nas coisas”. Mais ou menos no mesmo período da vida de Bashô, teremos na Europa a esplêndida reflexão de Giordano Bruno, que antecedendo ao seu tempo, vislumbra o ritmo de interconexão entre todas as coisas:

 

“Temos de aprender a respirar

para descobrir que

as árvores, as pedras, os animais

e toda a máquina da Terra

têm uma respiração interna,

uma respiração interior,

Como nós.

Tem ossos,

veias,

carne,

como nós”[26].

 

Relata-se que Bodidarma, ao ser indagado pelo imperador Wu, sobre o traço de santidade presente no ensinamento do budismo, respondeu com tranquilidade: “Uma imensa vacuidade, e nada o que fazer com a santidade”[27]. Em ilustrativo capítulo do Shobogenzo, dedicado ao tema da vida cotidiana (Kajo), Dôgen assinala que os grandes mestres e patriarcas do zen simplesmente “comem arroz e bebem chá”. Não há nada de muito “nobre” na vida desses grandes homens: “O chá ordinário e as refeições frugais de sua vida cotidiana constituem os pensamentos daqueles que despertaram e as palavras dos patriarcas” . O arroz e o chá são os elementos que adornam “a vida cotidiana (kajô)nas casas onde ocorrem o despertar dos patriarcas”[28].

 

As refeições traduzem o “lugar de formação essencial. É ali que se dá a “revelação da personalidade de cada um”[29]. Não sem razão, Dogen dedicou-se profundamente à dimensão espiritual da prática na cozinha, dedicando um livro a isso, escrito em 1237[30]. Foi graças a um velho cozinheiro que Dogen encontrou em sua viagem de navio para a China pistas importantes para compreender a “prática do caminho”. Descobriu com o sábio cozinheiro que a dedicação ao preparo dos alimentos tem o mesmo valor, ou ainda mais, do que as práticas religiosas tradicionais que ocorrem nos mosteiros. 

 

Mediante o aprendizado com o velho cozinheiro, Dogen aprendeu a ver “de aqui o que está ali e de ali o que está aqui”, alcançando “o sabor único do Zen”[31]. E na arte do preparo e feitio dos alimentos, que ocorre a revelação de uma alegria distinta: “Assim, quando nas vossas mãos levais a água ou o grão, não lhe dirigis vós o mesmo olhar amoroso e terno de uma mãe que toma conta de seu filho?”. O mesmo ocorre com o carinho revelado no cuidado com as folhas de legumes entre as mãos: tudo reverbera a esplêndida morada do Buda.[32]

 

            Há uma fidelidade singular do Zen ao aqui e agora, ao instante, reconhecido sempre como um passo de plenitude. O olhar instruído é capaz de ver no som do sino, no murmúrio dos rios e na grandeza da montanha verdadeiros mantras, que indicam o caminho para o peregrino. Em outra preciosa obra presente no Shobogenzo, Sansuikyô(montanhas e rios como sutra), Dogen assinala que as montanhas são as ermidas dos santos, e elas favorecem de forma singular a dinâmica da Presença. Sublinha ainda, de forma radical, que não há possibilidade de acesso ao caminho pessoal quando o sujeito desconhece o movimento das montanhas[33].

 

            Retomando o contato do pensamento Zen com a visão de Eckhart, há que sublinhar que o processo que leva ao despojamento radical, à experiência do nada, é em verdade um processo de libertação do pensamento substancializante. A busca do verdadeiro si-mesmo passa, necessariamente, pela ruptura da ideia de “eu-sou-eu”. Com base na ideia da originação interdependente, não há como entender as coisas desgarradas de todo um concerto de teias que nos interligam. Firma-se, ao contrário, uma visão que desconstrói a ideia de uma “substancialidade ontológica”, que reforça uma ideia essencial ao budismo que é a impermanência (anitya)[34].

 

            O encontro com o verdadeiro si-mesmo passa pela perda incondicional de si-mesmo. Há que deixar para trás tudo o que foi armazenado como conhecimento: todas experiências e conhecimentos religiosos adquiridos e passar pelo crivo essencial da “Grande Morte”, da nadificação criadora. Há que atravessar o nihilismo e ressuscitar numa nova perspectiva. A liberdade reside em “saltar no nada puro” e retornar. Como diz Michelazzo, “é preciso descer”, retornar ao cotidiano, mas com a memória acesa do nada, que favoreceu o olhar da não-dualidade. O meditador desperto é alguém que volta ao cotidiano do mundo, mas nele permanece intacta a experiência da não dualidade. Ela “deixará nele uma marca indelével que doravante o afetará por toda a sua existência na forma de um deja vu[35].

 

            Despertado para o si-mesmo o peregrino é tocado por “algo” que transforma a dinâmica de seu viver, agora enriquecida pelo despojamento, gratuidade e entrega. Vem tomado pela “força salvífica do simples”. É como o mestre da figura 10 do boi e o pastor, que depois de todo um processo complexo de busca, entra no que há de mais cotidiano, como o mercado, e está com o seu peito descoberto, com a cabeça tomada de cinzas e um sorriso irradiador que reverbera. Suas perguntas não são complexas, mas simples, adornadas com as tintas do cotidiano. O Nirvana está ali, no meio do Samsara, em meio ao mercado e às pessoas comuns.

 

 

Referências Bibliográficas

 

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[1]AREOPAGITA, Pseudo-Dionísio. Teologia Mística. Rio de Janeiro: Fissus, 2005.

[2]Ibidem, p. 26.

[3]A POESIA mística de San Juan de la Cruz. São Paulo: Cultrix, 1984, p. 79 (Entrei onde não sabia – tradução de Dora Ferreira da Silva).

[4]AREOPAGITA, Pseudo-Dionísio. Teologia Mística, p. 36.

[5]NISSA, Gregorio. La vita di Mosè.3 ed.Fondazione Lorenzo Valla, 2001.

[6]NISSA, Gregorio. Omelie sul cantico dei cantici. Roma: Città Nuova, 1988.

[7]NISSA, Gregorio. La vita di Mosè, p. 43.

[8]NISSA, Gregorio. Omelie sul cantico dei cantici, p. 51-52.

[9]McGINN, Bernard. Maître Eckhart. L´homme à qui Dieu ne cachait rien. Paris: Cerf, 2017, p. 90-91.

[10]Ibidem, p. 106; Mestre ECKHART. Sermões alemães 1. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 270 (Sermão 48)

[11]Mestre ECKHART. Sermões alemães 1. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 51 (Sermão 2).

[12]Mestre ECKHART. Sermões alemães  2. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 66 (Sermão 71).

[13]VANNIER, Marie-Anne (Ed). Encycloéde des mystiques rhénans. Paris: Cerf, 2011, p. 851 (verbete Néant – Bernard McGinn).

[14]Mestre ECKHART. Sermões alemães  2. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 118 (Sermão 83).

[15]Mestre ECKHART. Sermões alemães 1. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 296 (Sermão 54a)

[16]Mestre ECKHART. Sermões alemães  2. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 118, p. 67 (Sermão 71).

[17]Mestre ECKHART. Sermões alemães  2. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 133; HAAS, Alois M. Introduzione a meister Eckhart. Fiesoli: Nardini, 1997, p. 103-105.

[18]HERRIGEL, Eugen. A arte cavalheireisca do arqueiro zen. São Paulo: Pensamento, 1978, p. 11.

[19]Wou-men. Passe sans porte. 2 ed. Paris: Villain et Belhomme, 1968 (tradução de Masumi Shibata), p. 79.

[20]BOUZO, Raquel. Zen. Barcelona: Fragmenta Editorial, 2012, p. 48; Toshihiko ISUTZU. Hacia una filosofía del budismo zen. Madrid: Trotta, 2009, p. 16-17.

[21]Sob nítido influxo Zen, o monge cristão, Thomas Merton, na sua experiência eremítica captou bem essa ideia, de uma vida em “baixa definição”, simplesmente onde a meditação se resumia a “viver”. A vida contemplativa identificava-se com o “estar presente”: Patrick HART & Jonathan MONTALDO (Orgs). Merton na intimidade. Sua vida em seus diários. Rio de Janeiro: Fisus, 2001, p. 278-279 e 291.

[22]DOGEN, Eihei. Instruções para o cozinheiro zen. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 46

[23]UEDA, Shizuteru. Zen Y filosofia. Barcelona: Herder, 2004 (comentário da figura 8).

[24]Byung-CHUL HAN. Filosofia del budismo zen.Milano: Nottetempo, 2018, p. 20.

[25]BOUZO, Raquel. Zen, p. 108; Toshihiko ISUTZU. Hacia una filosofía del budismo zen, p. 33.

[26]Passagem retirada do filme: Giordano Bruno. Direção de Giuliano Montaldo. Itália, 1973.

[27]COOK, Francis Dojun. Cone allevare un bue. La pratica dello Zen come è insegnata nello Shobogenzo del maestro Dogen. Roma: Ubaldini, 1981, p. 59.

[28]DÔGEN ZENJI, Eihei. Kajô – La vie quotidienne. In: ______. Shôbôgenzô. La vraie Loi, Trésor de l´Oeil. Paris: Sully, 2007, p. 299 (traduction intégrale – tome 1).

[29]Ibidem, p. 303.

[30]DOGEN, Eihei. Instruções para o cozinheiro zen, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.

[31]Ibidem, p. 29.

[32]Ibidem, p. 27; DOGEN, Eihei. Instruções au cuisinier zen. Paris: Gallimard, 1994, p. 23.

[33]Maître DOGEN. Shobogenzo. Paris: Sully, 2005, p. 103-104 e 119 (Sansuikyo).

[34]Clodomir ANDRADE. Budismo e a filosofia indiana antiga. São Paulo: Fonte Editorial, 2015, p. 63-64.

[35]José Carlos MICHELAZZO. Desapego e entrega: atitudes centrais da meditação zen-budista e suas ressonâncias nos pensamentos de Eckhart e de Heidegger: https://revistas.pucsp.br/index.php/rever/article/view/8138(acesso em 20/03/2021).