Uma cristologia provocada pelo pluralismo religioso:
reflexões em torno ao livro “Jesus símbolo de Deus” de Roger Haight
Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF
Síntese: O tema da teologia cristã do pluralismo religioso vem sendo objeto de muitas discussões nos últimos anos, o que manifesta a riqueza de um espaço plural que é essencial para a reflexão teológica. Ocorre que a partir da segunda metade dos anos 90 alguns destes teólogos têm sido objeto de investigação crítica da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF). É o caso de Roger Haight, cujo livro Jesus, símbolo de Deus (1999) foi notificado pela CDF em dezembro de 2004, e qualificado como tendo “graves erros doutrinais contra a fé divina e católica da Igreja”. O objetivo deste artigo é apresentar os tópicos fundamentais do livro de Roger Haight e a sua hipótese de uma cristologia aberta para o pluralismo e o diálogo inter-religioso.
Introdução
Um dos grandes pioneiros na abertura da reflexão cristológica para o desafio do pluralismo religioso foi o teólogo belga Jacques Dupuis, que faleceu em dezembro de 2004. Em importante obra publicada em 1989 buscou desenvolver a delicada questão de uma cristologia voltada para o encontro das religiões[1]. Na introdução do livro, Dupuis mencionava a abundante produção cristológica nos anos pós conciliares, mas lamentava a quase total ausência de uma reflexão explicitamente mais elaborada do mistério de Cristo no contexto amplo das tradições religiosas da humanidade.[2] Captava, assim, de forma singular, a dimensão decisiva da questão cristológica, e de sua elaboração crítica, para uma teologia aberta das religiões ou do pluralismo religioso.
A partir dos anos 90 este desafio intensificou-se com a publicação de inúmeras obras teológicas voltadas direta ou indiretamente para o desenvolvimento desta questão. É neste contexto que aparece o importante livro do teólogo jesuita, Roger Haight, “Jesus, Symbol of God”[3], que busca apresentar uma cristologia “a partir de baixo” e articulada com a dinâmica de abertura e sensibilidade ao pluralismo religioso. Este livro foi premiado nos Estados Unidos pela Catholic Book Award e vem alcançando um grande sucesso em várias partes do mundo.
Toda esta pletora na produção teológica em torno ao pluralismo religioso vai encontrar no campo católico-romano uma dura resistência na ação intensiva da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), dirigida pelo cardeal Joseph Ratzinger. Uma expressão viva deste cerceamento ganhará feição na Declaração Dominus Iesus, publicada pela CDF em agosto de 2000.[4] Este documento da cúria romana terá como objetivo expor a doutrina da fé católica a propósito da unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da igreja, bem como confutar certas posições teológicas avaliadas como ambíguas ou errôneas, em razão de sua “índole relativista”. O documento se posiciona fortemente contra a defesa de um “pluralismo religioso de princípio” (n. 4), e também contra a tendência presente na reflexão teológica contemporânea de tratar de modo não exclusivo a revelação de Jesus, de modo a articulá-la com outras presenças salvíficas e reveladoras (ns. 6 e 9).
Alguns livros e trabalhos de teólogos católicos ou religiosos que trabalham esta questão foram notificados pela CDF a partir do final dos anos 90: Tissa Balasuriya (1997), Anthony de Mello (1998) e Jacques Dupuis (2001)[5]. E agora, a crítica da CDF volta-se para o livro de Roger Haight, que aborda o tema de Jesus como símbolo de Deus. Este ciclo de notificações, que não parece dar tréguas ao processo criativo da reflexão teológica contemporânea no âmbito do cristianismo, levanta uma série de interrogações para o estudioso da teologia do pluralismo religioso. O que se percebe, e merece um maior esclarecimento analítico, é a grande dificuldade por parte de setores importantes da cúria romana de reconhecer o valor e a dignidade das outras tradições religiosas. Apesar de todo o incentivo de abertura dado pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), verifica-se hoje em dia um processo de “restauração” ou retrocesso altamente prejudicial ao diálogo inter-religioso, apesar dos importantes gestos de abertura sinalizados pelo papa João Paulo II, sobretudo após a jornada mundial de oração em favor da paz, realizada na cidade de Assis (Itália), em 1986. Não há como negar a presença de um cristomonismo e de um eclesiocentrismo destacados em certos documentos recentes do magistério romano central, que concentram em Jesus “a revelação plena e completa do mistério salvífico de Deus”, excluem qualquer dinâmica reveladora presente em outras tradições religiosas, e reforçam a idéia da igreja católica como espaço exclusivo de realização da plenitude dos meios de salvação.
A intenção deste artigo é apresentar alguns traços fundamentais do livro de Roger Haight, “Jesus, símbolo de Deus” e as questões que ele vai levantando ao longo de sua reflexão. Não serão desenvolvidos todos os passos apresentados na obra, mas em particular aqueles que estão mais diretamente vinculados ao tema da teologia cristã do pluralismo religioso. O objetivo é apontar os nódulos das tensões, dificuldades e aporias que vêm suscitando as reações de setores da cúria romana, mas também disponibilizar o leitor para um encontro mais desarmado com esta importante obra, evitando avaliações baseadas exclusivamente na leitura da notificação, que, infelizmente, deixa escapar o sentido do texto, deslocando-o de seu contexto literário e vital. No intuito de preparar o terreno da discussão, serão apresentadas algumas das dificuldades assinaladas na notificação da CDF ao livro de Roger Haight, que foram apresentadas publicamente em fevereiro de 2005.
1. A notificação sobre o livro “Jesus, símbolo de Deus”
Como ocorre normalmente nos processos de notificação dos livros que foram objetos da investigação da CDF, também no caso do livro de Roger Haight o processo foi pontuado por uma série de correspondências envolvendo o órgão oficial, o superior do teólogo jesuíta investigado, o padre Pete-Hans Kolvenbach e o próprio teólogo Roger Haight.[6] Após análise realizada por peritos indicados pela CDF, decidiu-se enviar em fevereiro de 2000 uma série de “observações” sobre o livro para o superior do teólogo envolvido. Como em outros processos, apresentam-se ao autor da obra os “erros presentes no livro” e a indicação das devidas correções e esclarecimentos. A primeira resposta, redigida por Roger Haight, foi apresentada em junho de 2000, mas julgada insatisfatória pela CDF, que partiu então para um exame doutrinário do livro, com atenção particular ao método utilizado. Depois da avaliação dos teólogos consultores da CDF, este órgão confirmou em sessão ordinária realizada em fevereiro de 2002 que o livro em questão “continha afirmações errôneas” e a sua divulgação estaria produzindo “grave dano aos fiéis”. Novamente vem acionado o superior do teólogo, e a ele foi apresentado o elenco das afirmações do livro consideradas errôneas, bem como a avaliação geral sobre a visão hermenêutica da obra. Por intermédio de seu superior, padre Kolvenbach, o teólogo Roger Haight foi intimado a clarificar em dois meses sua metodologia e corrigir os erros assinalados, para se manter em fidelidade com o ensinamento da igreja. Nova resposta foi direcionada pelo autor à CDF, em março de 2003, mas sobre ela levantou-se dúvidas de autenticidade, em razão da forma literária do texto, o que levou a CDF a exigir uma nova resposta assinada. A resposta assinada chegou em janeiro de 2004 e foi examinada na sessão ordinária da CDF, em maio de 2004, que conclui pela notificação do livro, em razão do mesmo conter “afirmações contrárias à verdade da fé divina e católica”. Foram apontados desvios doutrinais relacionados ao método teológico, à compreensão do dogma cristológico (pré-existência do Verbo, divindade de Jesus, valor salvífico da morte de Jesus, unicidade e universalidade da mediação salvífica de Jesus, ressurreição de Jesus) e à doutrina da Trindade.
O que mais impressiona na leitura da Notificação da CDF é o estilo da redação, marcado pelo toque dos anátemas, típico de certas declarações magisteriais do século XIX. São recorrentes as expressões que marcam uma posição doutrinal bem definida, onde o pólo da identidade vem reforçado contra quaisquer interpretações diferenciadas. Fala-se em “afirmações errôneas”, “doutrinas errôneas”, “graves danos”, “afirmações contrárias à verdade da fé”, “interpretações gravemente redutoras e desviantes” etc. Merece destaque no texto da notificação a resistência ao trabalho de interpretação teológica. As palavras “interpretação” ou “hermenêutica” são sempre empregadas em sentido crítico no texto, quase sempre para designar um processo que é problemático ou danoso. Percebe-se com clareza o receio e o temor que acompanham a “virada hermenêutica” da teologia no tempo atual. Em diversos passos do texto questiona-se o método hermenêutico adotado pelo autor, que em nome da busca de uma interpretação criativa da doutrina cristológica, incorre – na visão da CDF – em grave desvio doutrinal. O grande temor é o da “subordinação dos conteúdos da fé à sua plausibilidade e inteligibilidade na cultura pós-moderna”.
Não é de hoje que setores do magistério central expressam sua dificuldade em reconhecer o valor da hermenêutica na reflexão teológica, sobretudo quando se pretende defender o valor da liberdade teológica na interpretação da tradição dogmática. O teólogo francês, Claude Geffré, tem vigorosamente defendido a orientação hermenêutica da teologia, válida não apenas para a interpretação dos textos fundadores do cristianismo, mas também para a interpretação da tradição cristã, em particular das fórmulas dogmáticas.[7] Em sua visão, a hermenêutica não se reduz a uma dentre outras correntes da teologia, mas indica “uma dimensão interior da razão teológica”. A orientação hermenêutica marca para ele “o próprio destino da razão teológica no contexto do pensável contemporâneo”[8].
Há também na notificação uma preocupação muito forte com a perspectiva teocêntrica defendida por Haight, que para a CDF seria comprometedora para a doutrina católica da unicidade e universalidade da salvação de Jesus Cristo. Na visão da CDF, ao defender o autor uma posição teológica que reconhece em Jesus uma função normativa para os cristãos, mas não constitutiva para as outras tradições religiosas, ele estaria ofuscando e comprometendo a mediação salvífica universal de Jesus, abafando o mandato missionário da igreja e nivelando o cristianismo com as outras religiões.
Ao final da notificação, a CDF assinala que as diversas afirmações presentes no livro “Jesus, símbolo de Deus”, assinaladas no documento da cúria , apresentam “graves erros doutrinais contra a fé divina e católica da Igreja”. Em consequência, o teólogo Roger Haight fica impedido de ensinar a teologia católica até que suas posições sejam retificadas e alinhadas com a doutrina oficial da igreja.[9]
2. A reflexão cristológica de Roger Haight
O teólogo jesuita americano, Roger Haight, vem apresentando ao longo destes últimos anos uma rica e provocadora reflexão teológica, divulgada em importantes obras como: The experience and Language of Grace (1979), An Alternative Vision: An Interpretation of Liberation Theology (1985), Dynamics of Theology (1999)[10], Jesus, symbol of God (1999)[11], Christian Community in History: Historical Ecclesiology (1994) e Christian Community in History: Comparative Ecclesiology (2005)[12]. Para o presente artigo, a reflexão concentrou-se particularmente sobre a obra que foi objeto da notificação da CDF, “Jesus, símbolo de Deus”.
Esta obra cristológica de Roger Haight impressiona não só pelo volume, mas sobretudo pela riqueza armazenada da reflexão, extremamente séria, argumentativa, documentada e provocadora. Não é um trabalho para iniciantes, mas uma obra densa e complexa. Ela revela a maturidade de um teólogo que não se contenta em repetir fórmulas tradicionais, mas ousa responder ao desafio contemporâneo do pluralismo religioso. Já no prefácio de sua obra, Haight expressa sua intenção de dialogar com a cultura pós-moderna. O livro busca seguir “o imperativo da Gaudim et Spes do Vaticano II de dirigir-se ao mundo contemporâneo, procurando tornar a fé inteligível em seus próprios termos”[13].
a. Questão de Método
O método cristológico adotado por Haight é o que vem sendo frequentemente caracterizado como “a partir de baixo”, distinto de outra perspectiva cristológica definida como “cristologia alta”. Ao lançar um olhar sobre a cristologia atual, Haight mostra a presença de um caráter rico e plural, onde convivem correntes distintas e diferenciadas como a cristologia transcendental, narrativa, existencial, feminista, inculturada, da libertação, do processo etc.[14] A presença de métodos diferenciados na abordagem cristológica revela a riqueza de um espaço plural para a reflexão teológica. A defesa de um pluralismo metodológico tem sido um traço frequente entre os teólogos que trabalham o tema do pluralismo religioso. Não há como aceitar a tese daqueles que defendem uma uniformidade de posições. Em sua última obra publicada, o teólogo belga Jacques Dupuis defendeu com veemência a plausibilidade de uma “distinta percepção da mesma fé num contexto diverso”[15]. No post scriptum de sua obra, Dupuis critica dois documentos da CDF, a Declaração Dominus Iesus e a notificação feita a seu livro “Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso” (publicada em fevereiro de 2001). Para Dupuis, estes documentos da CDF “falam da fé numa perspectiva dogmática, baseada em citações escolhidas e inferidas da sagrada escritura, dos documentos conciliares e dos pronunciamentos do magistério da igreja”[16]. Trata-se para ele de uma perspectiva legítima, mas que não pode pretender-se exclusiva. O teólogo, como indica Dupuis, tem o direito e a liberdade para justificar as razões que o levam a expressar a doutrina de forma diversa.
Ao precisar mais claramente o método teológico adotado em sua obra de cristologia, Roger Haight definiu-o como método hermenêutico de correlação crítica. Em linha de continuidade com a tradição do pensamento hermenêutico, e que fez escola na teologia, Haight define um caminho preciso para sua reflexão, que busca “ser fiel ao testemunho do passado e interpretá-lo de maneira tal que seja significativo para a consciência contemporânea”[17]. O processo de interpretação, como já mostrou Geffré, é contínuo e indefinido: “a mensagem cristã é susceptível de múltiplas recepções no curso dos tempos, e essas recepções jamais são uma interpretação definitiva; elas podem ser sempre o objeto de retomadas”[18]. Este método de correlação crítica será aplicado por Haight à sua reflexão cristológica, o que supõe a adoção de um caráter crítico, que revela a relação dialética entre o passado, o presente e o futuro e a consideração das diferentes interpretações culturais de Jesus. Um dos importantes critérios teológicos de aplicação na cristologia adotados por Haight refere-se à inteligibilidade para o tempo atual e a coerência interna da fé cristológica. Num tempo marcado pelo pluralismo religioso e pela vitalidade das religiões mundiais, a inteligibilidade da cristologia vem provocada de forma singular: “as normas de inteligibilidade e de coerência requerem a conciliação entre a relevância universal de Jesus Cristo e a convicção de que outras religiões têm um papel na história do mundo sob a providência de Deus”[19]. Haight chega a afirmar que a relação de Jesus Cristo com as outras religiões talvez seja “a mais catalítica das questões cristológicas hoje formuladas”[20]
Um traço peculiar na reflexão teológica de Haight é o espaço que ele concede ao caráter simbólico da linguagem teológica, para ele identificado com um dos lugares fundamentais da teologia, ao lado da fé, da revelação e da escritura. Para este autor, um símbolo “é aquilo por meio do qual se conhece alguma coisa que dele próprio difere. Um símbolo medeia a percepção de alguma outra coisa”[21]. O símbolo remete a uma realidade ou verdade mais profunda e elevada que as formas ou os concretos meios históricos. Nesse sentido, eles provocam a ação, levam ao movimento intermitente de busca do sentido ulterior. O símbolo diferencia-se do signo por ser mediacional: ele presentifica e revela a alteridade.
Na visão de Haight, os símbolos podem ser concretos e conceituais. Os símbolos conceituais (ou conscientes) são aqueles em que a consciência mais profunda da realidade vem mediada pelas palavras, noções, conceitos, idéias, textos etc. A metáfora e a parábola são bons exemplos. No símbolo concreto, a mediação se dá por um objeto: seja pessoas, coisas, lugares ou eventos.[22] Há símbolos que são seculares e há símbolos que são religiosos. Estes últimos são símbolos porque apontam para realidades transcendentes: “os símbolos religiosos participam da transcendência e para ela apontam. É muito importante reconhecer que, embora cognitivo, o conhecimento simbólico não abarca nem domina adequadamene a realidade transcendente, mas está profundamente imerso no desconhecido, no não-saber e no agnosticismo”[23]. É no desdobramento desta reflexão, e levando-se em conta a impossibilidade de uma revelação não historicamente mediada, que Roger Haight vai afirmar que na religião cristã Jesus vem percebido como “o símbolo concreto de Deus”[24]. Esta percepção de Jesus como símbolo ou parábola de Deus indica uma “real presença de Deus a ele e, através dele, ao mundo, da qual é mediador”[25].
b. Fontes Bíblicas
A abordagem das fontes bíblicas para a cristologia será um tópico bem importante na reflexão desenvolvida por Haight em seu livro “Jesus, símbolo de Deus”. Na linha de uma abordagem histórico-hermenêutica, Haight dedicará uma atenção particular a recuperar o núcleo da pregação de Jesus, reconhecido como profeta, mestre, curador e libertador. Os mais importantes estudos exegéticos coincidem no reconhecimento de que o núcleo da pregação de Jesus foi o reino de Deus, compreendido como um símbolo religioso que remete a uma realidade transcendente mas que tem simultaneamente um suporte na realidade existencial concreta.[26] Como indica Haight, “em parte alguma o reino de Deus é conceitualmente definido; é profusamente ilustrado por parábolas; trata-se de uma realidade transcendente que comporta muitos significados e matizes”[27].
Ao fazer do reino de Deus o centro de sua mensagem Jesus revela-se teocêntrico, como sublinha Haight, em sintonia com outros teólogos que vão na mesma direção, como E.Schillebeeckx e Paul Knitter[28]. O cristocentrismo não foi um dado na vida de Jesus, mas referência posterior. Jesus foi teocêntrico. O foco essencial de sua mensagem não está nele mesmo ou em sua obra, mas na sua profunda, íntima e familiar proximidade com o mistério de Deus. No centro de sua vida está Deus, o seu reino, a sua vontade, os seus valores e suas prioridades[29].
Como já se afirmou, Jesus era teocêntrico. Ironicamente, o que ele apresenta ao mundo é um Deus antropocêntrico. A causa de Deus é a causa da existência humana. Deus é um Deus propício à humanidade, como criador, e, portanto, intrinsecamente interessado e preocupado com o bem-estar de suas criaturas[30].
O Deus de Jesus é o mesmo Deus apresentado na tradição judaica. A maneira como Jesus se referia a Deus, a partir da análise das palavras e ditos atribuídos a ele no NT, era empregando o termo genério Theos, ou mediante o atributo Pai.[31] Conforme a reconhecida análise do biblista americano Raymond Brown, “é bastante óbvio que no NT o termo ´Deus` seja aplicado, com notável frequência, a Aquele que Jesus chama Pai, ou seja, o Deus revelado nas Escrituras de Israel”[32]. Na busca de mostrar a relação de Jesus com Deus com base nos escritos neotestamentários, Haight sublinha que “em ponto algum do Novo Testamento Jesus é identificado com o Deus transcendente sem ambiguidade”[33]. Mesmo no prólogo do Evangelho de João, onde aparece de forma mais explícita a íntima união de Jesus com o Pai, esta compreensão deve ser lida tendo em conta o gênero literário, “como linguagem poética e figurativa”[34]. Jesus não abole a transcendência de Deus, mas viveu permanentemente sob a presença do “mistério inexorável” do Deus sempre maior. Sua consciência humana foi sempre filial. Em sua humanidade deixou-se abandonar incondicionalmente “ao Deus incompreensível, e aceitou com amor e possuiu sem removê-la esta última ´bem aventurada ignorância`”[35].
O que Roger Haight procura mostrar é que a questão da unidade de Jesus com Deus não foi claramente estabelecida no Novo Testamento, nem mesmo na cristologia joanina. Esta é uma tese que pode ser encontrada, com as devidas nuances, em importantes exegetas católicos, como Rudolf Schnackenburg, para o qual a cristologia joanina expressa uma tensão permanenente entre a idéia da estreita união de Jesus como filho de Deus e o Pai e a subordinação de Jesus ao Pai.[36] De acordo com Haight, “é impossível imaginar que, historicamente, Jesus tenha concebido a si mesmo, nos termos de Nicéia, como consubstancial com o Pai”[37]. Isso acontecerá posteriormente, como fruto da interpretação feita pelos seguidores cristãos. A afirmação mais clara da identificação de Jesus com Deus virá no século IV, com a idéia da hipostatização da linguagem simbólica a respeito de Deus, ou seja, a transformação de um conceito em coisa real.
Em sua análise das cristologias neotestamentárias, Haight insiste em reforçar a presença de um pluralismo que não pode ser abafado. São cristologias bem distintas. Ele apresenta as cristologias do kerygma primitivo, como a de Jesus Cristo como último Adão (Rm 5,12-21 e Cor 15,21-23.45-49), de Jesus Cristo como Filho de Deus em Marcos e de Jesus Cristo potencializado pelo Espírito em Lucas. Fala também da cristologia sapiencial, que apresenta Jesus com a sabedoria de Deus, presente em Fl 2,6-11, Cl 1,15-20 e Mt 11,25-30, considerada aquela que faz a ponte para a cristologia dos três estágios de um Jesus Cristo préexistente.[38] E finaliza com a reflexão da cristologia do prólogo de João, ou seja, de Jesus Cristo como Logos de Deus. Para Haight, as primeiras cristologias são “cristologias baixas”, onde a concepção divina de Jesus não apresenta ainda as posteriores conotações de filiação física e metafísica. É com a cristologia do prólogo do evangelho de João que se começa a conceber de forma mais clara a préexistência pessoal do Logos-Filho. Trata-se da “primeira cristologia encarnacional em três estágios, na qual Jesus Cristo é identificado como aquele que préexistiu como Logos-Sofia pessoal e que, na permanente condição de sujeito, veio a tornar-se humano”[39]. Ao defender o pluralismo cristológico do Novo Testamento, Haight sustenta a manutenção das diferenças na unidade, mas problematiza o processo que levou a tradição cristã a lançar mão de uma cristologia e erigi-la como norma para as demais, como ocorreu com a cristologia joanina, assumida em seguida como normativa. Ele sublinha que “nenhum outro texto bíblico teve mais influência sobre o desenvolvimento da cristologia como o prólogo do evangelho de João”[40], tornando-se paradigmático desde os primórdios da era patrística. Mas hoje em dia esta cristologia do Logos começa a sofrer questionamentos, como mostra Haight. Ele mesmo levanta a questão:
“Não haverá outras cristologias neotestamentárias que possam ser apropriadas por várias culturas, do mesmo modo como a linguagem do Logos foi adotada pelo cultura grega? Não terá a cristologia do Espírito maior respaldo no Novo Testamento, mais inteligibilidade para a imaginação históricista e maior impacto emocional para a vida cristã do que a cristologia do Logos”?[41]
Vários teólogos vêm hoje trabalhando nesta questão e propondo pistas alternativas ou complementares para uma compreensão cristológica mais integral. Em sua introdução à cristologia, o teólogo Jacques Dupuis questiona a afirmação da cristologia joanina, em particular do prólogo de João, como modelo absoluto e exclusivo para a cristologia. Ele propõe uma “cristologia integral” capaz de articular em tensão fecunda os aspectos complementares do mistério de Jesus Cristo sublinhados pelas cristologias funcional e ontológica.[42] Hans Kung, por sua vez, vai chamar a atenção para o processo histórico que levou ao abandono da cristologia do judeu-cristianismo, que não conhecia a idéia de uma préexistência do Filho de Deus, e consagrou a cristologia do prólogo de João com sua enunciação da préexistência e encarnação do Verbo, a ponto de instaurar um mudança de paradigma no cristianismo (paradigma da metafísica helenística).[43] Também Claude Geffré, interessado no diálogo com o Islã, vai propor a recuperação de uma “cristologia narrativa de Jesus servidor de Deus”, testemunhada sobretudo nos Atos dos Apóstolos. Trata-se de um cristologia que recupera a idéia de “entronização”, capaz de compreender a filiação divina de Jesus não na linha de sua geração física ou metafísica, mas na linha de sua exaltação pelo poder do Espírito (Rm 1,3-4 e At 13,33).[44]
c. A tradição clássica
O pluralismo da cristologia neotestamentária ficou atenuado com a pujane afirmação da cristologia do Logos préexistente, uma teologia de descenso-ascenso. Esta cristologia encontrará terreno fértil na cristologia alexandrina do Logos-sarx, que vem reforçar a idéia dos três estágios da ação do Logos ou Filho celestial:
“Existe uma única pessoa nessa cristologia, a do Logos. Esse Logos-Filho é o Filho eterno de Deus que, de uma maneira que parece ter sido compreendida bem literalmente, assumiu carne humana pelo breve intervalo de sua existência humana, havendo sido posteriormente ressuscitado da morte e ascendido a seu lugar no âmbito da divindade”[45].
A mesma estrutura joanina vai marcar a teologia do concílio de Nicéia (325), que se desdobra no contexto da escola alexandrina de cristologia. O símbolo de Nicéia, que contesta a idéia ariana de geração do Filho de Deus, afirma a igualdade ontológica de Deus-Pai e de Jesus Cristo: os dois são iguais por essência (“homo-oúsios”). A unidade de Jesus Cristo com Deus defendida em Nicéia deixa na sombra toda e qualquer idéia de subordinação de Jesus Cristo ao Pai, consagrando a equiparação do Filho com o Pai em unidade rigorosa. Na visão de Haight, a teologia nicena, em razão da predominância da estrutura joanina, acaba embaçando a visão de Jesus como ser humano integral, uma imagem presente nas cristologias dos evangelhos sinóticos: “a linguagem de Nicéia raras vezes leva a referir imaginativamente a Jesus de Nazaré, mas ao Filho eterno e celestial”[46]. Em linha de continuidade com Nicéia, o concílio de Calcedônia (451) manterá a cristologia descensional típica da perspectiva joanina. Este concílio buscou equilibrar numa fórmula de compromisso as duas cristologias fortes no tempo, a alexandrina (cristologia da única pessoa divina) e a antioquena (cristologia das duas naturezas). A fórmula ou definição cristológica de Calcedônia vai acentuar que no mistério de Cristo coexistem unidade e distinção. O mesmo e único Senhor Jesus Cristo é “perfeito em sua divindade e perfeito em sua humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, (composto) de alma racional e de corpo, consubstancial ao Pai pela divindade, e consubstancial a nós pela humanidade (...)” (DH 301). A avaliação crítica feita por Haight a Calcedônia retoma a anteriormente elaborada sobre Nicéia. Ele vê com reservas a “perspectiva exclusivamente joanina”, a “hipostatização dos símbolos bíblicos” e a “cristologia descencional”. O mais grave a seu ver é o fato da doutrina de Calcedônia ter se distanciado do Jesus histórico, que é mistério que dá vida, e embaçado sua imagem na teia de nuvens metafísicas. A doutrina de Calcedônia “abandonou Jesus tal como é retratado nos evangelhos sinóticos. Aborda Jesus em categorias metafísicas abstratas ou gerais de natureza, pessoa, substância e ser. Quando essa espécie de linguagem domina o tema, compromete um enfoque imaginativo de Jesus de Nazaré”[47].
É na linha de recuperação de Jesus como ser humano integral que vai se firmar a proposta cristológica de Roger Haight. Ele busca recuperar o lado positivo de Calcedônia, mais inteligível e plausível para o tempo presente, que fala da natureza consubstancial de Jesus com os seres humanos. Mesmo reconhecendo o avanço de Calcedônia com respeito a Nícéia, Haight propõe uma reformulação de sua linguagem. Reitera que “a realidade de Jesus como ser humano precisa ser afirmada com maior incisividade histórica: Jesus era uma pessoa humana”[48]. Sua intenção é manter sempre distante um dos mais sérios riscos na reflexão cristológica que é o monofisismo, ou seja, a absorção da natureza humana de Jesus na natureza divina. É um risco que permanece real em razão da “longa estação de predileção de uma só entre as diversas cristologias do Novo Testamento”[49]. Verifica-se este risco em certos documentos do magistério católico, que teimam em minimizar a força humana da presença de Jesus, em apresentar um Cristo deslocado de seu projeto do Reino e desligado da provocação do Espírito. Na notificação do livro de Roger Haight, por parte da CDF, a forma como se procede a crítica à compreensão da mediação simbólica de Jesus acaba revelando uma dificuldade real de entender a dinâmica humana, limitada e contingencial que acompanha o homem Jesus. Percebe-se com nitidez e clareza uma grande resistência ao processo de interpretação que poderia levar a uma ampliação da problemática tratada em Calcedônia.
d. Cristologia construtiva
Um dos desafios fundamentais levado a efeito por Roger Haight em seu livro “Jesus, símbolo de Deus” é o de propor uma nova cristologia que responda às questões do século XXI. A seu ver, a cristologia está sendo hoje impulsionada e provocada por uma dinâmica cultural que ele identifica como pós-moderna. O autor reconhece não ser fácil definir o emaranhado de definições e valorações que acompanham tal dinâmica cultural, mas sublinha alguns aspectos que são a ser significativos para mapear o momento. Em primeiro lugar, a consciência dos limites na compreensão da realidade, do planeta e da existência humana. Trata-se da percepção da inevitabilidade e da contingência de ser na história. Neste novo cenário firma-se igualmente a crescente consciência da relatividade ou mesmo relativismo, que marca este tempo da fragmentação das grandes narrativas ou totalizações. Vale mencionar ainda a explosiva consciência do pluralismo, do direito à diferença, que assumem agora feições radicais[50].
O contexto da experiência religiosa contemporânea traz as marcas decisivas da historicidade e do pluralismo. A consciência da relatividade impõe vivos limites às pretensões de verdade totalizantes e excludentes. As verdades não mais se impõem como realidades garantidas e naturais, mas devem ser justificadas e demonstradas de forma argumentativa. Isto vale para as religiões: “deve-se demonstrar a própria inteligibilidade de uma revelação universalmente relevante de Deus mediada por uma pessoa particular, Jesus Cristo”[51]. Para Roger Haight, este reconhecimento da historicidade e do pluralismo não descambam necessariamente para o relativismo religioso. É possível, afirma, compaginar o reconhecimento da verdade nas outras religiões com a universalidade da verdade mediada por Jesus Cristo.
Uma cristologia construtiva para o tempo atual deve, segundo Haight, situar-se positivamente no contexto plural da experiência religiosa de outros povos e culturas. Sobre esta questão sublinha: “uma adequada cristologia, atualmente, deve incluir uma descrição do relacionamento de Jesus com outras mediações religiosas de Deus (...). O pluralismo religioso é uma característica da situação da vida cristã; torna-se, portanto, uma dimensão intrínseca da interpretação de Jesus como o Cristo”[52]. Mas isto não pode ser resolvido apenas com a adição de um novo tópico que se acrescenta á reflexão tradicional da cristologia. É uma questão que reposiciona toda a metodologia teológica e traduz uma provocação para os teólogos: deixar-se “fecundar intelectualmente pelo pluralismo religioso”. Não há como continuar entendendo o pluralismo religioso apenas como um dado conjuntural passageiro, mas coloca-se o desafio imperativo de situá-lo positivamente no desígnio salvifico de Deus, enquanto pluralismo de direito ou princípio.
Uma das teses de Roger Haight questionadas na notificação da CDF diz respeito ao tema da unicidade e universalidade da mediação salvífica de Jesus. A CDF questiona a posição defendida pelo autor de que Jesus seria normativo para os cristãos mas não constitutivo para as outras mediações religiosas. Para a CDF a defesa desta posição teológica acaba negando a missão salvífica universal de Jesus e a missão da igreja de anunciá-lo para todos os povos. O texto da CDF é curto e não entra em maiores detalhes. Deixa, porém, de apresentar os argumentos mais importantes apresentados por Haight na defesa de sua posição. Tendo em vista a sensibilidade deste autor para a questão do pluralismo religioso de princípio, seria extremamente complicado, mesmo do ponto de vista cristão, estender a normatividade de Jesus para todas as outras tradições religiosas, o que equivaleria a desconhecer ou negar a singularidade, a originalidade e a presença reveladora de Deus que acompanha e ilumina os povos e religiões por caminhos misteriosos.
Levando-se em conta a perspectiva interna da fé cristã, não há como desconhecer ou negar o valor normativo de Jesus Cristo para a apropriação cristã da realidade última. Jesus revela Deus, não há nenhuma dúvida a respeito. E “dizer que Jesus revela Deus significa que a compreensão cristã de Deus, na medida em que é especificamente cristã, remonta a Jesus como sua fonte, origem e fundamento. Isso não quer dizer que o cristão não disponha de outra fontes ou dados históricos para a reflexão sobre a realidade última”[53]. A teologia das religiões ou do pluralismo religioso tem mostrado com muita clareza e pertinência que a experiência do diálogo inter-religioso tem facultado aos cristãos perceberem aspectos originais e novidadeiros nas diversas formas de sintonia com Deus, e que não encontram guarida na experiência específica do cristianismo.[54] Se é correto e pertinente afirmar que Jesus constitui o ponto fulcral da mediação para a revelação cristã de Deus, isto “não significa que o conhecimento e o encontro do cristão com Deus derivam exclusivamente de Jesus Cristo, e sim que Jesus proporciona o símbolo e a norma centrais para a compreensão de Deus”[55]. Não são residuais as experiências de buscadores de diálogo, como Henri le Saux, Thomas Merton, Panikkar, Massignon, que no encontro com tradições religiosas distintas sairam profundamente enriquecidos na sua aexperiência cristã.
“O reconhecimento da influência salvífica universal de Deus transforma o pluralismo religioso em uma situação positiva, na qual se pode aprender mais acerca da realidade última e da existência humana do que o que se acha disponível em uma única tradição (...). É difícil acreditar, hoje em dia, que uma única religião seja capaz de dispor da plenitude da verdade acerca da realidade suprema”[56]
A normatividade de Jesus é válida para os cristãos, mas não pode, porém, ser aplicada universalmente. Para Haight, “os cristãos hoje podem relacionar-se com Jesus como normativo da verdade religiosa acerca de Deus, do mundo e da existência humana, convictos, ao mesmo tempo, de que também existem outras mediações religiosas que são verdadeiras e, portanto, normativas”[57]. Esta é uma tese coerente e legítima para quem busca compreender o pluralismo religioso como um dado de valor. Caso contrário, acaba-se negando o valor irredutível e irrevogável das outras tradições religiosas, bem como a consciência de que elas se fundam numa experiência autêntica de revelação. Isto não significa, entretanto, a impossibilidade de uma emulação positiva entre as diversas tradições. Na verdade, as riquezas da experiência de Deus vividas no espaço da alteridade são também nutrientes fundamentais na ampliação de horizontes de experiências religiosas que são distintas. São experiências relevantes não apenas para quem as vive, mas também para quem participa da arriscada travessia dialogal.
A defesa da normatividade de Jesus não constitui para Roger Haight um impedimento para a avaliação positiva do pluralismo religioso. A abertura cristã para o reconhecimento das religiões como mediações da salvação de Deus é um desdobramento natural do encontro com Jesus, que manifesta e traduz a presença amorosa de Deus aos seres humanos, do Deus da vida que selou com Noé uma aliança envolvendo todos os povos (Gn 9, 9-13). Para Haight, “as pessoas que não conseguem reconhecer a verdade salvífica de outras religiões podem implicitamente estar operando com uma concepção de Deus distante da criação. Jesus atesta a imanência de Deus”[58]. Não há como negar a importância dos vínculos, das convicções e das comunidades que são âncoras fundamentais para a construção de mundos e a afirmação de sentido. Como diz uma jovem poeta brasileira, “é sempre mais difícil ancorar um navio no espaço”. A operação de vinculação é essencial na lógica do ser humano, mas quando aplicada à realidade última pode produzir resultados bem problemáticos. Sendo o mistério maior, ou o real, infinito e transcendente, não pode ser confinado ou reduzido a um exclusivo sistema de crença. Na verdade, quando se limita o real a uma imagem particular e se nega outras manifestações do mesmo, acaba-se negando o real em sua infinitude.
Uma operação de vínculo redutora ocorreu no cristianismo na sedimentação do tradicional axioma “fora da Igreja não há salvação”. Em obra fundamental para conhecer a história dessa fórmula, o teólogo Bernard Sesboué mostrou com pertinência que o fundamento deste adágio tradicional “é a afirmação cristã de que o Cristo é o único Mediador entre Deus e a humanidade e o único Salvador do gênero humano, e que ele fundou a Igreja para em seu nome exercer uma missão de salvação universal”[59]. Na visão de Roger Haight, a manutenção de atitudes e posicionamentos exclusivistas ou mesmo inclusivistas torna-se no tempo atual rigorosamente problemática e carente de plausibilidade. O que é verdade para os cristãos, e digno de crédito em âmbito existencial, confessional e interno, não pode estender-se de forma objetiva e universal para os outros que não partilham da mesma convicção. Os cristãos fazem a experiência de serem salvos por Jesus, mas tal experiência “não fornece base alguma para afirmar que Deus não possa salvar de outra maneira, ou que só os cristãos são salvos”[60]. Torna-se igualmente problemático a perspectiva inclusiva e constitutiva que atribui a Jesus a causa da salvação de todos os seres humanos. Na verdade, quem salva é Deus, e o próprio testemunho de Jesus é teocêntrico, como indicam os dados neotestamentários. Na visão de Haight, é a própria internalização da consciência histórica que vem minando uma semelhante posição constitutiva:
“a falta de evidência para o caso e os indícios positivos em contrário do testemunho neotestamentário levam ao reconhecimento de que o nexo causal entre Jesus e a salvação de todos os demais é fruto de especulação. Só um processo argumentativo de cunho especulativo e metafísico tem condição de explicar como as ações históricas de Jesus podem ser a causa da salvação dos seres humanos que viveram e morreram antes de sua existência”[61].
Movido pela convicção de que as religiões encontram-se enraizadas na providência de Deus, que elas se encontram abraçadas pela lógica infinita do amor e misericórdia de Deus, Roger Haight toma posição em favor de um teocentrismo. Em sua visão, “a situação recomenda uma cosmovisão geral que é teocêntrica, que é, literalmente, aquela em que Deus constitui o centro de toda realidade, e não Jesus Cristo”[62]. Trata-se de uma visão que honra a alteridade religiosa e provê uma base para a seriedade do diálogo interreligioso.
Para Roger Haight, o fundamento universal da salvação é “Deus como Espírito”, que vem revelado normativamente em Jesus, mas também nas outras tradições religiosas, nas quais encontra-se presente e ativo[63]. Estas tradições não são apenas verdadeiras como também positivamente desejadas por Deus, enquanto canais de sua presença gratuita no mundo.
“Não é necessário que o poder de Deus como Espírito seja compreendido nos mesmos termos que a revelação de Jesus Cristo. (...) A mediação fundamental da presença salvífica de Deus nas outras religiões não precisa ser uma pessoa: pode ser um evento, um livro, um ensinamento, uma práxis. Dizer que as outras religiões só são verdadeiras na medida em que correspondem aos conceitos cristãos de Deus é fazer de Jesus uma norma positiva e recair no inclusivismo”[64].
Em linha de continuidade com esta percepção, Haight propõe sua hipótese de uma “cristologia do Espírito”, em contraste com a cristologia tradicional do Logos, de longa prevalência nas igrejas cristãs. Nesta distinta perspectiva cristológica a divindade de Jesus vem sublinhada não a partir do símbolo Logos, mas a partir da presença de Deus como Espírito. Recupera-se aqui o caminho de uma cristologia que procede a partir de baixo, que reforça a integridade de Jesus de Nazaré e enfatiza a presença espiritual de Deus em seu caminho, como força que o impulsiona a agir. Para Haight,
“o símbolo do Espírito afirma mais diretamente que Deus, o próprio Deus, atuava em Jesus e por meio dele. Isso contrasta com os símbolos do Verbo e da sabedoria de Deus que, na medida em que se tornaram personificados e portanto hipostatizados, tendem a conotar alguém ou alguma coisa diferente e inferior a Deus que se encarnou em Jesus, ainda que seja chamada divina ou de Deus”[65].
O recurso do símbolo de Deus como Espírito evita qualquer risco de subordinacionismo, na medida em que enfatiza que “ninguém menos que Deus se achava em ação em Jesus”. Daí escolher Haight como metáfora fundamental subjacente à sua cristologia a da delegação. É uma metáfora que “presume a inabitação de Deus como Espírito na pessoa humana de Jesus”: uma presença que preenche sua vida, mas resguarda a liberdade. E esta presença não é simplesmente funcional ou “adverbial”, mas como lembra Haight, é “uma presença ontológica, porque onde Deus age, aí está Deus”[66].
A afirmação de uma cristologia do Espírito encontra uma de suas principais resistências na cristologia do Logos, como lembra Haight. E esta cristologia está vinculada à teologia trinitária. Questões relacionadas à inteligibilidade e credibilidade atuais da doutrina trinitária têm favorecido novos e significativos tratamentos deste complexo tema. Dentre as abordagens atuais vale recordar a realizada pelo teólogo E.Schillebeeckx, que chama a atenção para o risco sempre presente do “triteismo” na abordagem da questão, sobretudo quando se trabalha com a idéia de Deus como três pessoas. Em sua visão, a Trindade “é o modo de Deus ser pessoa”. Ele evita falar em três pessoas, pela ambiguidade que acompanha esta idéia, prefere falar na natureza pessoal de Deus com uma estrutura trinitária. É o Deus que se manifesta na criação, em Jesus (Filho de Deus), na igreja e em todos os povos (Espírito Santo).[67]
O que se propõe fazer Roger Haight é recuperar o núcleo da teologia trinitária, mas partindo de baixo, ou seja, da experiência de Deus na economia da salvação, pois para ele a verdadeira essência do encontro cristão com Deus situa-se na Trindade econômica.
“O núcleo da doutrina da Trindade é, portanto, soteriológico. A doutrina que se respalda na experiência da salvação e dela deriva tem por objetivo afirmar e resguardar a economia dessa experiência de salvação. Destarte, além de ser uma doutrina que reafirma o monoteísmo em um contexto cristão, a doutrina também afirma que a salvação de Deus é realmente mediada à existência humana por Jesus no Espirito. Não tenciona transmitir informações a respeito da vida interior de Deus, mas sobre o modo como Deus relaciona-se com os seres humanos”[68].
Conclusão
O objetivo deste artigo foi apresentar os traços fundamentais do livro de Roger Haight, Jesus, símbolo de Deus, que foi objeto de notificação recente da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF). Evidentemente, não foi possível apresentar todas as nuances de uma obra que é extremamente complexa, documentada e profunda. Alguns tópicos não foram desenvolvidos, como é o caso de sua reflexão sobre a ressurreição de Jesus, que é bem sugestiva e interessante. Privilegiou-se os aspectos de sua reflexão que estão relacionados com os temas do pluralismo religioso e o desafio de uma cristologia aberta ao encontro das religiões. Para quem faz uma atenta leitura do livro e depois toma ciência da notificação da CDF a respeito, fica uma sensação de desconforto intelectual, para não dizer descontentamento efetivo. Verifica-se no documento não apenas a tentativa de freiar e impedir o curso de uma reflexão hermenêutica criadora, mas também de inibir a abertura desarmada dos cristãos e teólogos aos caminhos misteriosos da sabedoria infinita e multiforme de Deus.
(Artigo publicado na Revista REB, v. 65, n. 258, abril 2005, pp. 293-314)
[1] Jacques DUPUIS. Jésus-Christ à la rencontre des religions. Paris: Desclée, 1989. E a tradução italiana: Gesù Cristo incontro alle religioni. 2 ed. Assisi: Cittadella Editrice, 1991.
[2] Id. Gesù Cristo..., p. 13-14.
[3] Roger HAIGHT. Jesus, Simbol of God. Maryknoll New York: Orbis Books, 1999. Utilizaremos aqui a tradução brasileira: Id. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003.
[4] Congregação para a Doutrina da Fé. Declaração Dominus Iesus. São Paulo: Paulinas, 2000.
[5] A propósito da notificação do livro de Jacques Dupuis “Rumo a uma teologia cristão do pluralismo religioso” cf. Faustino TEIXEIRA. Dominus Iesus em ação. A notificação sobre o livro de Jacques Dupuis. REB, v. 61, n. 242, junho de 2001, pp. 425-429.
[6] A notificação do livro de Roger Haight foi publicada na edição cotidiana italiana do jornal “L´Osservatore Romano”, de 7/8 de fevereiro de 2005 (cf. http://www.zenit.org – acessado em 09 de feveiro de 2005).
[7] Claude GEFFRÉ. Croire et interpréter. Paris: Cerf, 2001, p. 11s.
[8] Ibidem, p. 7 e 11,
[9] Em decorrência da notificação, Roger Haight foi suspenso de suas atividades na Weston Jesuit Scholl of Theology (Cambridge, Massachusetts) e hoje leciona na instituição protestante Union Theological Seminary (Nova York).
[10] Com tradução brasileira: Dinâmica da teologia. São Paulo: Paulinas, 2004 (acrescida de um posfácio, publicado doze anos após a publicação da primeira edição, de 1999).
[11] Com tradução brasileira: Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas 2003.
[12] Estas duas últimas obras, que esboçam sua reflexão eclesiológica, estão para ser publicadas no Brasil (no prelo das Edições Paulinas).
[13] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, p. 12.
[14] Ibidem, p. 32ss.
[15] Jacques DUIPUIS. Il cristianesimo e le religioni: dallo scontro all´incontro. Brescia: Queriniana, 2001, p. 484.
[16] Ibidem, p. 483.
[17] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, p. 151 e tb. 60ss; Id. Dinâmica da teologia, p. 213ss.
[18] Claude GEFFRÉ. Croire et interpréter, p. 19 (na tradução brasileira: Id. Crer e interpretar. Petrópolis: Vozes, p. 39).
[19] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, p. 70. O método de correlação crítica adotado por Haight foi questionado na notificação da CDF, que para ela se traduziria exclusivamente numa “subordinação dos conteúdos da fé à sua plausibilidade e inteligibilidade na cultura pós-moderna”. Revela-se aqui novamente o acanhamento em reconhecer o valor da reflexão hermenêutica.
[20] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, p. 43. Para Haight, “a situação histórica da cristologia na atualidade, que envolve intrinsecamente a própria forma de pensar a respeito de Jesus Cristo, já se define por uma atitude de aceitação de outras religiões, em princípio, e de valorização do diálogo inter-religioso, e esse aspecto deve encontrar manifestação na cristologia”: ibidem, p. 43.
[21] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, p. 23.
[22] Ibidem, p. 29. Para Haight, “um símbolo religioso concreto é uma entidade que revela e presentifica alguma outra coisa. (...) O símbolo conceitual é um conceito, uma palavra, uma metáfora, uma parábola, um poema, um evangelho ou um relato que revela alguma outra coisa e torna-a presente à imaginação e à mente”: ibidem, p. 234-235.
[23] Ibidem, p. 238.
[24] Ibidem, p. 29.
[25] Ibidem, p. 235.
[26] Ibidiem, pp. 103 e 123.
[27] Ibidem, p. 146. Como sublinha Haight, esta centralidade do reino de Deus na vida e ensino de Jesus faz com que este símbolo torne-se normativo para o teólogo cristão e fundamental para qualquer cristologia: ibidem, p. 104.
[28] E. Schillebeeckx, na última obra de sua trilogia cristológica, sinaliza que o Reino de Deus é o coração teocêntrico da mensagem e da vida de Jesus: cf. Umanità la storia di Dio. Brescia: Queriniana, 1992, p. 152. Ver também Paul KNITTER. Nessun altro nome? Brescia: Queriniana, 1991, p. 131.
[29] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, p. 104.
[30] Ibidem, p. 145.
[31] Com base nos estudos de Elizabeth Johnson, Haight chama, porém, adverte que “não se pode postular o uso exclusivo do termo ´Pai` para Deus com base no ministério de Jesus”. Em sua visão, Deus não pode ser caracterizado por gênero, à semelhança do que ocorre na realidade finita. Indica que “não se pode atribuir nenhum peso ontológico ao gênero de Deus. Isso é proporcionado por sua transcendência e ilustrado pelas imagens femininas de Deus que são usadas em relação a Deus nas Escrituras”: Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, p. 127 e 142.
[32] Raymondo E. BROWN. Introduzione alla cristologia del Nuovo Testamento. Brescia: Queriniana, 1995, pp. 170-171. A mesma idéia vem expressa por Karl Rahner: Theos nel Nuovo Testamento. Saggi teologici. Roma: Paoline, 1965, p. 567; Jacques DUPUIS. Introduzione alla cristologia. Casal Monferrato: Piemme, 1993, p. 10.
[33] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, p. 300.
[34] Na visão de Hans Kung, com base em estudos exegéticos, o autor do prólogo do Evangelho de João serviu-se de um antigo hino, certamente ebraico-helenístico, que tinha por objeto “não um pré-existente ser divino “Filho”, mas Deus e o seu Logos, a sua Palavra, a sua Sabedoria na criação e na revelação”. O que o autor cristão se limitou a fazer foi aceitar em sentido cristão esta idéia de que o Verbo estava com Deus desde o princípio. Cf. Hans KUNG. Cristianesimo. Milano: Rizzoli, 1994, pp. 98-99.
[35] Karl Rahner. A proposito del nascondimento di Dio. In: Teologia dall´esperienza dello Spirito. Roma: Paoline, 1978, p. 370.
[36] Rudolf SCHNACKENBURG. La persona di Gesù Cristo nei quattro vangeli. Brescia: Paideia, 1995, p. 411.
[37] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, p. 249.
[38] Para Roger Haight, a questão de uma préexistência de Jesus acaba contradizendo a sua consubstancialidade com os sere humanos, afirmada em Calcedônia. A seu ver, “a encarnação deve ser interpretada de maneira a não solapar a humanidade de Jesus”: Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, p. 526. Para uma discussão mais atualizada sobre esta questão da préexistencia, em particular no evangelho de João e em Paulo, ver: Hans KUNG. Cristianesimo. Milano: Rizzoli, 1997, pp. 98-103.
[39] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, pp. 210-211.
[40] Ibidem, p. 208.
[41] Ibidem, p. 40.
[42] Jacques DUPUIS. Introduzione alla cristologia, pp. 23 e 110
[43] Hans KUNG. Cristianesimo, p. 178ss.
[44] Claude GEFFRÉ. Croire et interpréter, pp. 163-166.
[45] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, p. 307.
[46] Ibidem, pp. 326 e 325.
[47] Ibidem, p. 336 e também p. 344.
[48] Ibidem, p. 344.
[49] Jacques DUPUIS. La teologia del pluralismo religioso rivisitata. Rassegna di Teologia, n. 5, set/ott 1999, p. 673. Dupuis salienta a presença de um outro risco no momento atual, ou seja, o risco do “monofisismo invertido”, que significa a absorção da natureza divina na natureza humana de Jesus após a encarnação do Verbo, ocasionando uma dificuldade de perceber os atributos divinos da pessoa do Verbo: ibidem, p. 673.
[50] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, pp. 41; Id. Dinâmica da teologia, pp. 258-260.
[51] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, p. 225.
[52] Ibidem, p. 455.
[53] Ibidem, p. 413.
[54] E.SCHILLEBEECKX. Umanità la storia di Dio, p. 220.
[55] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, p. 113.
[56] Ibidem, p. 485.
[57] Ibidem, p. 464 e 455. Como muito bem lembrou Haight, “a convicção de que Deus age na história através de outras mediações, de forma alguma prejudica o compromisso do cristão com o que experiencia ter Deus feito em Jesus (...). A experiência cristã do que Deus fez em Jesus Cristo não se afigura diminuída pelo reconhecimento do Deus verdadeiro atuante em outras religiões”: Ibidem, p. 474. Acrescenta ainda que “a presença salvífica de Deus em Jesus Cristo não é de maneira alguma fortalecida pela ausência de Deus no restante do mundo”. Na verdade, “o temor de que alguma coisa se perca, ao se conceber Deus atuante em outras religiões, baseia-se numa premissa de competição entre as religiões”: Ibidem, p. 486.
[58] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, p. 479.
[59] Bernard SESBOUÉ. Hors de l´Église pas de salut. Histoire d´une formule et problèmes d´interprétation. Paris: Desclée de Brouwer, 2004, p. 279.
[60] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, p. 465.
[61] Ibidem, p. 466. Neste particular, Haight distancia-se da posição inclusivista de K.Rahner, que defende a posição de Jesus como a causa da salvação de todos e a idéia de que toda graça de Deus é gratia Christi: Ibidem, pp. 403 e 474. Para Haight, a cristologia de Rahner não se livra de certa inconsistência temática: “de uma inconsistência entre a linguagem da graça universal, como existencial sobrenatural, e a linguagem de Jesus de Nazaré, um evento particular na história, como causa constituinte dessa graça”: ibidem, p. 497.
[62] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, pp. 244 e 479.
[63] Ibidem, p. 477. Para Haight, as diversas tradições religiosas contêm “outras normas diferentes, porém universalmente relevantes, de aferição da verdade da realidade transcendente e da salvação”: ibidem, p. 476
[64] Ibidem, p. 477.
[65] Ibidem, p. 517. Haight busca assim recuperar e atualizar um paradigma semelhante ao antioqueno, na linha de uma cristologia da inabitação.
[66] Ibidem, p. 522.
[67] Edward SCHILLEBEECKX. Sono un teologo felice. Bologna: EDB, 1993, pp. 58-60. Como indica este autor, “Deus é trindade (isto é dogma!), mas não é três pessoas. Seria triteismo”. Esta é uma visão que para ele não contradiz com a profissão de fé, pois se crê “em Deus onipotente, em Jesus (o Cristo), o amado do Pai, Filho de Deus por excelência” e no Espírito Santo, que é dom, que é Deus que se doa aos humanos: ibidem, pp. 59-60.
[68] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, p. 555.
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