A narrativa de Deus nas religiões não monoteísta
(Questões do IHU)
Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF
1. Quais são as narrativas de Deus nas religiões não monoteístas?
Alguns autores tendem a indicar essas tradições não monoteístas como religiões místicas, distiguindo-as das religiões monoteístas, identificadas como proféticas. Esta distinção, porém, não nos autoriza a concluir em favor de uma separação rígida, que excluiria qualquer significado profético nas religiões orientais ou dimensão mística nas religiões proféticas. O caminho para se atingir a “Realidade” nas religiões orientais é encontrado na interioridade. Trata-se de uma busca do Mistério desconhecido na “gruta do coração”. A ênfase recai no caminho do “êntase” e não do “êxtase”, ou seja, o caminho da descoberta do Mistério maior acontece no “íntimo do Si substancial”. A tradição oriental enfatiza mais o apofatismo teológico, excluindo assim a possibilidade de se alcançar o Mistério mediante conceitos. A mediação para esse encontro se dá pela experiência. Uma conhecida sentença zen afirma: “melhor ver a face do que ouvir o nome”. Encontramos uma expressão desse apofatismo na experiência budista do sunyata (vazio). Esse conceito vem empregado como expressão da inefabilidade e indizibilidade da realidade do Mistério. Não indica nihilismo ou relatividade, mas a radical diversidade que separa esse Mistério de todo e qualquer atributo possível de ser concretizado ou simbolizado. Na mistíca advaita hindu, a dinâmica religiosa vem concebida como uma esperiência kenótica, de radical esvaziamento do sujeito humano e seu potenciamento para perceber a transparência do Mistério transcendente/imanente no mundo dos fenômenos. O sujeito esvaziado de sua densidade ontológica, reencontra sua identidade com o Brahman, que pode ser reconhecido como “a unidade última da realidade. É o centro profundo da nossa existência, isto é, a consciência (cit), e também a alegria e a bem aventurança (ananda)” .
2. O que os monoteísmos podem aprender com essas religiões, sobretudo no que diz respeito ao diálogo inter-religioso?
Um traço peculiar que envolve as tradições religiosas não monoteístas, em particular as tradições do Oriente, é a ênfase dada no caminho místico. O estudioso das religiões, R.C. Zaehner, apontou, com acerto, que “a religião da Índia caracteriza-se por fazer da experiência mística a verdadeira base da religião”. É no âmbito da mística que acontece a contribuição decisiva dessas tradições religiosas: são “escolas” singulares do cultivo da mística. Podemos sublinhar traços importantes como a atenção dada à experiência, o incentivo ao desapego, o cultivo da interioridade, a ruptura da arrogância e da hybris totalitária, a abertura ao Mistério do Real. Vale ressaltar, seguindo a trilha do clássico documento Diálogo e Missão (1984), do Secretariado para os não-cristãos, que é no âmbito do dialogo das experiências de oração e contemplação – dos caminhos de busca do Mistério -, que se dá o nível mais profundo do diálogo inter-religioso. É nesse âmbito de profundidade que podem acontecer, substantivamente, o “enriquecimento recíproco e cooperação fecunda” entre as distintas tradições religiosas, no sentido da afirmação e preservação dos valores e dos ideais espirituais mais sublimes do ser humano.
3. O que é a Escola de Kyoto e como a sua visão de mundo provoca uma quebra da hegemonia da racionalidade grega e ocidental?
A Escola de Kyoto, ou Kyoto-ha, envolve um grupo de pensadores japoneses que contribuíram de forma singular, e em perspectiva oriental, para a articulação criativa da filosofia ocidental. Entre esses pensadores podem ser elencados: Nishida Kitaro (1870-1945), Tanabe Hajime (1885-1962), Nishitani Keiji (1900-1990) e Ueda Shizutero (1926- ). Segundo James Heisig, a investigação filosófica levada a cabo por esses pensadores “nunca se separou do cultivo da consciência humana como participação no real. Inspirando-se na filosofia antiga e moderna ocidental, bem como em sua própria herança budista, e aliando as exigências do pensamento crítico à busca da sabedoria religiosa, eles enriqueceram a história intelectual do mundo com uma perspectiva japonesa renovada e reacenderam a questão da dimensão espiritual da filosofia” . Uma contundente crítica ao conceito egocêntrico do ego, firmado na racionalidade filosófica ocidental, vem tecida por Keiji Nishitani, em sua obra A religião e o nada (1960). A centralidade do ego cogito, a partir de Descartes, resultou numa tal dinâmica ego-centrada que confinou o sujeito numa limitada perspectiva de auto-imanência. Como consequência inevitável, firmou-se um modo narcísico de ser . Com base no aporte da tradição budista e da mística eckhartiana, Nishitani propõe um conceito peculiar de subjetividade, que se contrapõe à subjetividade do ego: trata-se de uma subjetividade que se afirma em razão da morte absoluta do ego. É curioso constatar a sintonia dessa reflexão de Nishitani com os questionamentos feitos por Henrique Cláudio de Lima Vaz à modernidade moderna. Em sua obra sobre a experiência mística e filosófica na tradição occidental, Vaz sinaliza que a revolução antropocêntrica da filosofia moderna acabou resultando na “dissolução da inteligência espiritual”. Na inflexão noética da modernidade moderna, marcada pela primazia gnosiológica e ontológica do sujeito, a dimensão transcendente do ser vem absorvida na imanência do sujeito .
4. Em que aspectos existe uma afinidade entre a Escola de Kyoto, o pensamento existencialista e a mística cristã do Mestre Eckhart?
Os pensadores da Escola de Kyoto dedicaram-se intensamente ao estudo da filosofia ocidental. Nishitani chegou a seguir, em 1938, os seminarios de Heidegger sobre Nietzsche (em Friburg). Também Ueda Shizuteru teve uma formação alemã, passando três anos na Universidade de Marburg, sob a orientação de Friederich Heiler e Ernst Benz. Ali concluiu sua tese doutoral sobre a antropologia mística de Meister Eckhart em confronto com o zen budismo (tese publicada em 1965). Fixo-me aqui em dois aspectos de sintonia entre a Escola de Kyoto e a mística de Meister Eckhart. Com base no pensamento de Nishitani, há que sublinhar a centralidade da idéia de Abgeschiedenheit (desprendimento), tomada do pensamento de Eckhart. Esse conceito é empregado por Nishitani para falar da subjetividade elemental, ou seja, da subjetividade que emerge da morte absoluta do ego, e que faculta a experiência da unidade com Deus. Assim como na tradição zen budista, também no pensamento de Eckhart a noção de vazio ganha centralidade. Pode-se afirmar que a presença do Mistério firma-se mais claramente no ser humano à medida que se amplia o seu vazio: nada querer, nada saber e nada ter. Trata-se de um desprendimento que é bem distinto da ataraxia. Na verdade, o ser desprendido é alguém que se abre de forma distinta para a realidade, pois para ele “toda realidade reencontra sua densidade verdadeira”. O outro traço de sintonia pode ser encontrado na noção transpessoal de Deus. Nishitani sublinha como um dos aspectos de originalidade do pensamento de Eckhart, a noção de Deidade: situar a essência de Deus numa região para além do Deus pessoal, ou o Deus das criaturas. Também nessa linha da transpersonalidade de Deus vai a reflexão da Escola de Kyoto. Enfatiza-se a idéia de um Deus transcendente e imanente: de Deus como realidade onipresente em todas as coisas do mundo e, simultaneamene, um mistério que escapa a qualquer tentativa de determinação.
5. Como compreende a acusação de que o budismo é niilista ao projetar um além nunca alcançável ao homem?
Contra essa absurda acusação, posicionou-se criticamente o grande pensador Daisetz Teitaro Suzuki, que também manteve um rico relacionamento com Nishida Kitaro. Há um capítulo específico em sua introdução ao zen-budismo (1969) sobre esta questão. Há também uma larga reflexão a propósito no terceiro volume de seus ensaios sobre o budismo zen (1940). É captar de forma superficial ou equivocada a noção central de sunyata ou vacuidade nessa tradição espiritual. O que o budismo zen ensina sobre o vazio é bem diferente: não se trata de negar a existência ou o seu valor, mas de apontar para além de sua realidade, ou melhor ainda, para a “outra orelha da realidade” e captar o fato central da vida. Não se trata de negação em sentido lógico, mas de extremo cuidado em “preservar a condição misteriosa do ultimo”. Trata-se da “negação como cifra da transcendência”. Como mostra Suzuki, “Buda revela-se a si mesmo quando não é mais afirmado. Para encontrar o Buda temos que renunciar ao Buda. Este é o único caminho para obter a verdade do Zen” .
6. A recusa de uma “palavra supérflua sobre Deus”, que explica o fato de se calar sobre Ele, aproxima o budismo da filosofia de Wittgenstein, com as categorias do silêncio e do inefável?
Num de seus clássicos dísticos do Peregrino Querubínico, o místico Angelus Silesius (1624-1677) dizia que “nenhuma criatura sonda a Divindade” (PQ V,339). Também João da Cruz (1542-1591) assinala em seu Cântico Espiritual que Deus é uma “ilha estranha”: estranha aos homens, aos santos e aos anjos (CB 14,8), e que nenhum intermediário consegue dar a notícia de seu significado: “não sabem dizer-me o que desejo” (CB 6). Assim é na mística cristã, mas também nas outras tradições místicas. A linguagem mística “enuncia a ausência como presença e a presença como ausência”, sempre recusando qualquer palavra supérflua sobre o Mistério sempre maior. Com respeito ao budismo, não se pode definí-lo como uma tradição atéia, como alguns defendem de forma equivocada. O que ocorre é um “silêncio sobre Deus”. A esse respeito gosto sempre de citar uma passagem preciosa do livro de Juan Martin Velasco sobre o fenômeno místico (1999) . Para ele, “o silêncio de Deus que o Buda tão consequentemente pratica é a forma mais radical de preservar a condição misteriosa do ultimo, o supremo, a que toda religião aponta”. Ao se calar sobre Deus, essa tradição está questionando as tentativas ilusórias e problemáticas que acompanham as tradicionais perguntas sobre Deus: muitas vezes são perguntas incorretas, indevidas e lesivas da “transcendência da realidade à qual se referem”.
7. O que o Ocidente pode aprender com a compreensão budista do caminho que “vai do eu ao si mesmo”? Como essa passagem pode tornar o sujeito pós-moderno menos orgulhoso e arrogante, menos preso ao desejo e, por conseguinte, ao sofrimento?
Ao escrever o prefácio à obra de Suzuki, a grande libertação, Carl Gustav Jung aborda a distinção entre o eu e o si mesmo. O si mesmo traduz uma compreensão mais elevada do eu, agora despojado de seu apego a si e às coisas. Daí ser necessário trabalhar a idéia de si mesmo como um não eu. Essa passagem de nível vem observada na experiência da iluminação (satori). Trata-se “de uma ruptura e uma passagem da consciência limitada na forma do eu para a forma do si-mesmo que não tem um eu. Essa concepção corresponde ao zen, bem como à mística do mestre Eckhart” . Essa mudança de perspectiva vem também trabalhada por Nishitani, ao abordar o significado da subjetividade elemental, ou seja, a subjetividade que emerge da morte do ego. A chave de compreensão dessa passagem do eu ao si mesmo pode ser encontrada no clássico sermão de Benares, ocorrido logo após a iluminação de Buda, onde se fala das quatro nobres verdades. Ali se diz que na raiz de todo sofrimento está o “anseio compulsivo pelas coisas da vida”, o apego desestabilizador (tanha). Só mediante a superação desse apego, mediante o nobre caminho óctuplo, é que se abrem as veredas da iluminação.
8. De que forma a inversão do cartesianismo promovida por Thomas Merton (existo, logo penso) pode inspirar um novo posicionamento do sujeito em relação à forma como lida com sua espiritualidade e racionalidade?
É sabido o influxo da perspectiva zen budista sobre o pensamento de Thomas Merton. Mas há também que sublinhar a presença de Nishida Kitaro em sua reflexão. Na clássica obra de Thomas Merton sobre o zen e as aves de rapina (1968), há um capítulo dedicado ao pensamento de Nishida. Para o místico trapista, Nishida revela-se como um autêntico filósofo zen. Merton indica que essa inversão do cartesianismo, provocada pela Escola de Kyoto, traduz uma nova atenção ao real. O caminho essencial vai do ser ao pensar e não o contrário. Nishida vai conferir uma importância central à idéia de “consciência pura”, que é ponto de partida para qualquer despertar filosófico. Trata-se de uma atenção particular ao carater trivial da experiência, que antecede qualquer distinção entre sujeito e objeto. O que ocorre com a consciência pura é um refinado fenômeno de consciência, que confere prioridade ontológica ao mundo. É evidente que essa perspectiva inspira um posicionamento que é novo e problematizador. Há que lidar com o mundo e com a natureza de outra forma; há que conceder uma atenção particular ao que é vivido e experimentado.
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