domingo, 31 de maio de 2020

João Gilberto e os Haikais

João Gilberto e os Haikais (2012)

Faustino Teixeira


Em sua obra, "o império dos signos" (1970), Roland Barthes fala da simplicidade do haikai e de seu alojamento no código geral de sentimento por ele nomeado como "emoção poética". É uma pequena "cápsula" que capta "um instante privilegiado". 

Ao ler sobre João Gilberto, e sobretudo ao ouvir João Gilberto, algo semelhante vem ao coração. Curioso constatar a ligação do povo japonês com a música de João Gilberto. 

No artigo de Shigeki Miyata, recolhido no recente livro sobre João Gilberto, organizado por Walter Garcia (2012), ele relata sua admiração pelo conhecimento demonstrado por João Gilberto em sua viagem ao Japão em 2003. João manifestou um amplo conhecimento sobre o Japão e já começou falando sobre o zen budismo e os haikais. Estabeleceu-se ali uma sintonia de coração com o público japonês, retribuído com uma sessão de aplausos que durou 25 minutos ininterruptos. 

Que magia é essa? Assim como ocorre na pequena cápsula poética do haikai, João também buscou trazer a simplicidade do significado dizendo o mínimo. Para ele, a perfeição do canto conseguia sua realização quanto mais roçava a "indefinição da fala". 

Na base de tudo isso, uma visão contemplativa do mundo, já expressa em depoimento de 1959: "Gostava de ficar horas e horas à beira do rio, ouvindo o coaxar dos sapos e vendo a luz, a claridade, os reflexos do sol na água. Tentava compreender aquilo tudo. Consegui sentir - compreender não compreendi. Mas aquilo ficou em mim e ainda hoje carrego comigo um bocado de todo aquele alumbramento". 

Essa é a síntese mais clara da compreensão zen: "um modo de viver o real cotidiano sem complicá-lo com idéias" (L.Perrone-Moisés). Num dos mais interessantes artigos do livro sobre João Gilberto, Tarik de Souza comenta o "comportamento musical enxuto, quase ascético" de João Gilberto, que como o haikai busca despertar a emoção estética através da alusão. 

Tarik faz referência a um dos mais fiéis e argutos retratistas de João, o americano John Wilson, que usa as palavras do próprio cantor para traduzir a riqueza do clima que o rodeia: "Hoje, vou me refinando, purificando minha música até que consiga atingir a verdade mais simples. Como quando eu era criança". 

Nada de diverso fez o grande mestre dos haikais, Matsuó Bashô, que com sua linda poesia limitava-se a traduzir com poucos elementos o instante privilegiado. Daí João - como mostra Tarik de Souza -, precisar para o seu canto de um "espaço claro e aberto" onde pudesse colocar os seus sons, na pureza e simplicidade de seu significado, como se escrevesse num pedaço de papel em branco.


sexta-feira, 29 de maio de 2020

A felicidade no coração das bem-aventuranças

A felicidade no coração das bem-aventuranças – Posfácio

Faustino Teixeira


            É motivo de grande alegria posfaciar o livro de Xabier Pikaza, que abordou uma temática essencialmente importante para o nosso tempo sombrio. Conjugar os temas das bem-aventuranças com a felicidade é algo urgente para o momento atual, que busca retomar o cerne da mensagem de Jesus, que colocou as bem-aventuranças no eixo mais nobre de sua pregação.

            Já indicava Francesco Strazzari, no prefácio da obra, que a felicidade não é assim algo simples, mas uma “arte” e um “programa” que vem carregado de dificuldades e desafios. A felicidade, assinala, é “uma arte e uma maneira de vida”. A felicidade é um projeto que se dá no caminho. O que vemos ao nosso redor é algo muito diferente, sobretudo entre os mais desvalidos. Vemos um circuito de dor, de  opacidade, de muita luta para viver, de exclusão e violência. Apesar de tudo, vigora uma esperança novidadeira, uma esperança no mundo, e isto em razão da certeza da presença amiga de um Mistério que é maior e nos acolhe, mesmo nos momentos mais difíceis. O Mistério maior, sem nome, nos favorece vivenciar, apesar de, o “sabor e gosto da vida”. Esta é a razão nodal para a manutenção da esperança e do sonho de felicidade. Como diz o filósofo brasileiro, Luiz Felipe Ponde, em livro sobre os dez mandamentos, que só o Eterno é “capaz de aliviar as agonias da criatura”. O Mistério nos envolve com uma alegria pascal, porque nascida no solo da dor, mas movida pela certeza da resiliência e vontade de superação. Não há porque deixar-se tomar pela tristeza, em razão da dor, pois a tristeza deforma a visão. O pessimista, como diz o escritor Nabokov, é alguém “ridiculamente pouco observador”. Só a alegria é capaz de facultar a percepção do visível com nitidez, instrumentando o humano a captar a luz que emerge nas frestas e interstícios. O outro mundo está aí, e nos rodeia, com sua “textura cintilante”. Há que suscitar no coração o valor e o significado da caudalosa existência que nos mantém em pé e com esperança. 

            Pikaza nos confirma que a felicidade é processual e vai sendo firmada no caminho. Num dos mais clássicos romances brasileiros, Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, publicado em 1956, o personagem central do livro, Riobaldo Tatarana é portador desse dom da alegria, isso também em razão da presença das “rezas fortes” em sua vida. Ele diz em certo momento da narração:  O que a vida “quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza”. Não há caminho que não seja resvaloso. É verdade, no meio das dificuldades, a gente cai, mas também se levanta e retorna ao rumo da história. 

            Em sua obra, Pikaza capta isto de forma singular, percebendo que a razão mais forte que nos move para a alegria é um elã vital cultivado e cuidado no mundo interior. A paz interior revela-se fundamental para enfrentar as agruras da vida. É o que foi ensinado com grandeza pelas religiões orientais, mas que está também enraizado no cristianismo. O amor interior tem densidade suficiente para enfrentar com precisão os conflitos que vão aparecendo no caminho. A mística holandesa, Etty Hillesum, que morreu em Auschwitz, foi um exemplo vivo desse mundo interior trabalhado e revigorado pela presença do Mistério. Nesse sentido, como indica Pikaza, o ser humano é capaz de enfrentar os mais duros combates ou dificuldades quando vem penetrado pelo amor interior. 

            As bem-aventuranças nos apontam o caminho e o ideal da felicidade. Todas as grandes tradições religiosas perceberam isso com clareza. Algumas reforçando mais o caminho da interioridade e outras do exercício prático da caridade, sem que haja conflito entre as diferentes buscas. Nós cristãos percebemos no caminho de Jesus a realização precisa do ideal das bem-aventuranças. Ele mesmo foi um “bem-aventurado”, vivendo e realizando no seu itinerário o ideal de uma vida nobre e honrada. Seu projeto maior, o Reino, e sua proposta de felicidade, estão para além do ritmo confessional. O caminho que nos apresenta é radicalmente antropológico, de bem-querença humana. Também o Deus que nos apresenta é “um Deus intrinsecamente preocupado com a totalidade dos seres humanos”. Jesus era teocêntrico, é o que nos dizem hoje  com clareza os grandes exegetas, mas apresenta ao mundo um “Deus antropocêntrico” (Roger Haight). 

            Como indicou com precisão Pikaza, as ações de Jesus transbordam no caminho da felicidade. Era um “um homem do povo, um leigo de Deus”, e sua ação não vem colorida em sentido estrito pelo traço religioso. O seu projeto é humano por excelência. Diante da pergunta de João Batista, se ele de fato seria o messias esperado, Jesus responde com convicção de terrenalidade: “Os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados” (Mt 2, 4-5).

            No coração das suas bem-aventuranças está o carinho especial com os mais pobres. Eles são os portadores da bem querença de Deus. São privilegiados, mas não porque são mais piedosos, mas em razão mesmo de sua “infeliz situação”. Deus se volta com carinho e gratuitamente, com devoção particular, aos esquecidos da história, em razão de sua dor, de sua aflição, de sua fome e exclusão (J.Dupont). Como mostra Gustavo Gutiérrez, a razão da predileção pelos pobres é teológica: “Os pobres são bem aventurados não pelo simples fato de serem pobres, mas porque o Reino de Deus se expressa na manifestação de sua justiça e de seu amor em favor deles”. São amados por Deus, e isso basta! Essa ideia repercutiu de forma esplêndida no Documento de Puebla, dos bispos da América Latina: “Os pobres merecem uma atenção preferencial, seja qual for a situação moral ou pessoal em que se encontrem. Criados à imagem e semelhança de Deus para serem seus filhos, esta imagem jaz obscurecida e também escarnecida. Por isso Deus toma sua defesa e os ama” (Puebla, 1142). 

            Em profunda sintonia com a teologia da libertação, Pikaza filia-se a essa perspectiva da bem-aventurança dos pobres, de puro traço evangélico. Sublinha que “a felicidade de Jesus é uma boa notícia de vida para os pobres”. Sua mensagem é de alegria para eles, e para todos, no sentido de que o caminho que se abre, apesar de duro, é o da radical dignidade e cidadania dos últimos, de honradez e respeito pela sua singularidade. As bem aventuranças, indica Pikaza, traçam um horizonte de felicidade e de alegria, indicando que o “dom e a tarefa principal da vida é a de ser feliz”. Como diz a canção brasileira de Aldir Blanc: “Viver e não ter a vergonha de ser feliz”. Não há como compreender o ensinamento original de Jesus excluindo ou desconsiderando esse traço fundamental da opção pelos pobres. No horizonte está essa alegria inédita, que possibilita aos que têm fome e choram acreditar e gozar essa dimensão mais secreta e mais bonita da vida, de que foram excluídos e rechaçados, e que agora redescobrem vivamente nesse projeto de Deus.

            O papa Francisco na Laudato si, sua encíclica sobre o cuidado da casa comum, lança o desafio de uma “espiritualidade ecológica” (LS, 216), que envolve radical conversão na relação com o ambiente e as espécies companheiras. O modelo vem inspirado em Francisco de Assis. É uma espiritualidade que convoca a uma nova qualidade de vida, simples e sóbria, de “regresso à simplicidade, capaz de “saborear as pequenas coisas e alegrar-se com pouco. Trata-se de uma espiritualidade de gratuidade, disponível ao agradecimento permanente dos dons e “possibilidades que a vida oferece” (LS, 222). Essa espiritualidade tem como eixo o cuidado, a delicadeza e a atenção com todas as criaturas. Ela vem favorecida pela “paz interior”. Francisco salienta a importância de reservar um tempo especial “para recuperar a harmonia com a natureza” (LS, 225). Essa dinâmica de cuidado e atenção revela-se nos “simples gestos cotidianos” (LS, 230). O livro de Pikaza captou muito bem isso, e fala em “bem-aventurança ecológica”, inspirado em Francisco. É uma bem-aventurança animada por experiência forte, social e ecológica. Uma bem-aventurança que convoca a uma nova atitude diante da Terra, não mais de domínio e exclusão, mas de sintonia e solidariedade. Na raiz da crítica de Pikaza está a prepotência do “homem-humano”, conquistador e violento, incapaz de captar o grito da Terra. Quanto mais se dá o domínio e prepotência, mais a presença da ruína e da destruição, que certamente provoca um troco violento. A Terra não é somente mãe, mas também “intrusa”, que reage de forma imprevisível com suas garras de auto-preservação. 

            Uma das novidades apresentadas por Pikaza em seu livro é relacionar a preservação da Terra com uma das bem-aventuranças: “Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a Terra”. Como mostra Pikaza, “só os humildes poderão herdar e condividir a Terra viva da Felicidade, irmã e mãe dos homens”. Na trilha de Jesus, humilde e pobre, somos convocados ao exercício de desapego, de superação da hybristotalitária é entrar na linda teia de comunhão, onde o que existe é inter-relação de escuta, acolhida e aprendizado. É o desafio radical de “viver e amar com suavidade”, não para conseguir o céu, mas para “herdar a terra e partilhá-la” com os iguais. Somos desafiados a fazer como a mãe de Krishna, Devaki, que ao olhar com vivacidade a boca aberta de sua criança, percebeu e se deu conta de toda a beleza e imensidão do mundo, que nos abarca e abraça.

            

            

sábado, 16 de maio de 2020

Laudato Si - Síntese

Laudato Si – Carta Encíclica de Francisco 

sobre o cuidado da casa comum  (Trechos escolhidos: Faustino Teixeira)
Edição Portuguesa = do portal do Vaticano:

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF


Apresentação

A nossa casa comum se pode comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços (1)

. Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2, 7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos (2)

. Francisco e a comunicação com toda a criação (11)

. São Francisco, fiel à Sagrada Escritura, propõe-nos reconhecer a natureza como um livro esplêndido onde Deus nos fala e transmite algo da sua beleza e bondade (12)

. A busca de um desenvolvimento sustentável e integral (13)

. A necessidade de uma nova solidariedade universal (14)

. a convicção de que tudo está estreitamente interligado no mundo (16)

Capítulo Primeiro: O que está acontecendo em nossa casa 

. A contínua aceleração das mudanças na humanidade e no planeta junta-se, hoje, à intensificação dos ritmos de vida e trabalho, que alguns, em espanhol, designam por «rapidación». Embora a mudança faça parte da dinâmica dos sistemas complexos, a velocidade que hoje lhe impõem as acções humanas contrasta com a lentidão natural da evolução biológica. (18)

. A terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo (21)

. Estamos perante um preocupante aquecimento do sistema climático (23)

. Numerosos estudos científicos indicam que a maior parte do aquecimento global das últimas décadas é devida à alta concentração de gases com efeito de estufa (anidrido carbónico, metano, óxido de azoto, e outros) emitidos sobretudo por causa da actividade humana (…) Isto é particularmente agravado pelo modelo de desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que está no centro do sistema energético mundial. E incidiu também a prática crescente de mudar a utilização do solo, principalmente o desflorestamento para finalidade agrícola (23)

. Se a tendência actual se mantiver, este século poderá ser testemunha de mudanças climáticas inauditas e duma destruição sem precedentes dos ecossistemas, com graves consequências para todos nós (24)

. Infelizmente, verifica-se uma indiferença geral perante estas tragédias, que estão acontecendo agora mesmo em diferentes partes do mundo. A falta de reacções diante destes dramas dos nossos irmãos e irmãs é um sinal da perda do sentido de responsabilidade pelos nossos semelhantes (25)

. Um problema particularmente sério é o da qualidade da água disponível para os pobres, que diariamente ceifa muitas vidas (29)

. A perda de florestas e bosques implica simultaneamente a perda de espécies que poderiam constituir, no futuro, recursos extremamente importantes não só para a alimentação mas também para a cura de doenças e vários serviços (32)

. É verdade que o ser humano deve intervir quando um geosistema cai em estado crítico, mas hoje o nível de intervenção humana numa realidade tão complexa como a natureza é tal, que os desastres constantes causados pelo ser humano provocam uma nova intervenção dele de modo que a actividade humana torna-se omnipresente, com todos os riscos que isto implica (34)

. Este nível de intervenção humana, muitas vezes ao serviço da finança e do consumismo, faz com que esta terra onde vivemos se torne realmente menos rica e bela, cada vez mais limitada e cinzenta, enquanto ao mesmo tempo o desenvolvimento da tecnologia e das ofertas de consumo continua a avançar sem limites (34)

. Mencionemos, por exemplo, os pulmões do planeta repletos de biodiversidade que são a Amazónia e a bacia fluvial do Congo, ou os grandes lençóis freáticos e os glaciares. A importância destes lugares para o conjunto do planeta e para o futuro da humanidade não se pode ignorer (38)

. Os ecossistemas das florestas tropicais possuem uma biodiversidade de enorme complexidade, quase impossível de conhecer completamente, mas quando estas florestas são queimadas ou derrubadas para desenvolver cultivos, em poucos anos perdem-se inúmeras espécies, ou tais áreas transformam-se em áridos desertos. Todavia, ao falar sobre estes lugares, impõe-se um delicado equilíbrio, porque não é possível ignorar também os enormes interesses económicos internacionais que, a pretexto de cuidar deles, podem atentar contra as soberanias nacionais (38).

. Hoje, muitos dos recifes de coral no mundo já são estéreis ou encontram-se num estado contínuo de declínio: «Quem transformou o maravilhoso mundo marinho em cemitérios subaquáticos despojados de vida e de cor?»[25]Este fenómeno deve-se, em grande parte, à poluição que chega ao mar resultante do desflorestamento, das monoculturas agrícolas, das descargas industriais e de métodos de pesca destrutivos, nomeadamente os que utilizam cianeto e dinamite. É agravado pelo aumento da temperatura dos oceanos (41)

. Visto que todas as criaturas estão interligadas, deve ser reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma, e todos nós, seres criados, precisamos uns dos outros (42)

. De facto, a deterioração do meio ambiente e a da sociedade afectam de modo especial os mais frágeis do planeta (48)

. O impacto dos desequilíbrios actuais manifesta-se também na morte prematura de muitos pobres, nos conflitos gerados pela falta de recursos e em muitos outros problemas que não têm espaço suficiente nas agendas mundiais (48)

. Mas, hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres (49)

. Estas situações provocam os gemidos da irmã terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo. Nunca maltratámos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos (53)

. Preocupa a fraqueza da reacção política internacional. A submissão da política à tecnologia e à finança demonstra-se na falência das cimeiras mundiais sobre o meio ambiente (54)

Capítulo Segundo: O evangelho da criação

. Assim nos damos conta de que a Bíblia não dá lugar a um antropocentrismo despótico, que se desinteressa das outras criaturas (68)

. A tradição bíblica estabelece claramente que esta reabilitação implica a redescoberta e o respeito dos ritmos inscritos na natureza pela mão do Criador. Isto está patente, por exemplo, na lei do Shabbath. No sétimo dia, Deus descansou de todas as suas obras (71)

. O amor de Deus é a razão fundamental de toda a criação: «Tu amas tudo quanto existe e não detestas nada do que fizeste; pois, se odiasses alguma coisa, não a terias criado» (Sab 11, 24) (77)

. O facto de insistir na afirmação de que o ser humano é imagem de Deus não deveria fazer-nos esquecer que cada criatura tem uma função e nenhuma é supérflua. Todo o universo material é uma linguagem do amor de Deus, do seu carinho sem medida por nós. O solo, a água, as montanhas: tudo é carícia de Deus (84)

. Podemos afirmar que, «ao lado da revelação propriamente dita, contida nas Sagradas Escrituras, há uma manifestação divina no despontar do sol e no cair da noite» (85).

. «Paz, justiça e conservação da criação são três questões absolutamente ligadas, que não se poderão separar, tratando-as individualmente sob pena de cair novamente no reducionismo».[70]Tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa (92)

. Jesus vivia em plena harmonia com a criação, com grande maravilha dos outros: «Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?» (Mt 8, 27). Não Se apresentava como um asceta separado do mundo ou inimigo das coisas aprazíveis da vida (98).

. Encontrava-Se longe das filosofias que desprezavam o corpo, a matéria e as realidades deste mundo. Todavia, ao longo da história, estes dualismos combalidos tiveram notável influência nalguns pensadores cristãos e desfiguraram o Evangelho (98)

Capítulo Terceiro: A raiz humana da crise ecológica

. Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, secundar as possibilidades oferecidas pelas próprias coisas; tratava-se de receber o que a realidade natural por si permitia, como que estendendo a mão. Mas, agora, o que interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão humana, que tende a ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua frente. Por isso, o ser humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão, tornando-se contendentes. Daqui passa-se facilmente à ideia dum crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia (106)

. Hoje o paradigma tecnocrático tornou-se tão dominante que é muito difícil prescindir dos seus recursos, e mais difícil ainda é utilizar os seus recursos sem ser dominados pela sua lógica (108).

. Nos tempos modernos, verificou-se um notável excesso antropocêntrico, que hoje, com outra roupagem, continua a minar toda a referência a algo de comum e qualquer tentativa de reforçar os laços sociais (116)

. Uma apresentação inadequada da antropologia cristã acabou por promover uma concepção errada da relação do ser humano com o mundo. Muitas vezes foi transmitido um sonho prometeico de domínio sobre o mundo, que provocou a impressão de que o cuidado da natureza fosse actividade de fracos (116)

. Mas a interpretação correcta do conceito de ser humano como senhor do universo é entendê-lo no sentido de administrador responsável (116)

. Tudo está interligado. Se o ser humano se declara autónomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência, porque «em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza» (117)

Capítulo Quarto: Uma ecologia integral

. Neste sentido, é indispensável prestar uma atenção especial às comunidades aborígenes com as suas tradições culturais. Não são apenas uma minoria entre outras, mas devem tornar-se os principais interlocutores, especialmente quando se avança com grandes projectos que afectam os seus espaços (146) 

.  Com efeito, para eles, a terra não é um bem económico, mas dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela descansam, um espaço sagrado com o qual precisam de interagir para manter a sua identidade e os seus valores. Eles, quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuida. Em várias partes do mundo, porém, são objecto de pressões para que abandonem suas terras e as deixem livres para projectos extractivos e agro-pecuários que não prestam atenção à degradação da natureza e da cultura (146)

. Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão a crescer? Esta pergunta não toca apenas o meio ambiente de maneira isolada, porque não se pode pôr a questão de forma fragmentária. Quando nos interrogamos acerca do mundo que queremos deixar, referimo-nos sobretudo à sua orientação geral, ao seu sentido, aos seus valores (160)

. já não basta dizer que devemos preocupar-nos com as gerações futuras; exige-se ter consciência de que é a nossa própria dignidade que está em jogo (160)

. As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia. Às próximas gerações, poderíamos deixar demasiadas ruínas, desertos e lixo. O ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida actual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como aliás já está a acontecer periodicamente em várias regiões (161)

. A dificuldade em levar a sério este desafio tem a ver com uma deterioração ética e cultural, que acompanha a deterioração ecológica (162)

Capítulo Quinto: Algumas linhas de orientação e ação

. Um mundo interdependente não significa unicamente compreender que as consequências danosas dos estilos de vida, produção e consumo afectam a todos, mas principalmente procurar que as soluções sejam propostas a partir duma perspectiva global e não apenas para defesa dos interesses de alguns países (164)

. Sabemos que a tecnologia baseada nos combustíveis fósseis – altamente poluentes, sobretudo o carvão mas também o petróleo e, em menor medida, o gás – deve ser, progressivamente e sem demora, substituída. Enquanto aguardamos por um amplo desenvolvimento das energias renováveis, que já deveria ter começado, é legítimo optar pelo mal menor ou recorrer a soluções transitórias (165)

. Os vértices mundiais sobre o meio ambiente dos últimos anos não corresponderam às expectativas, porque não alcançaram, por falta de decisão política, acordos ambientais globais realmente significativos e eficazes (166)

. Relativamente às mudanças climáticas, os progressos são, infelizmente, muito escassos (169)

. A maior parte dos habitantes do planeta declara-se crente, e isto deveria levar as religiões a estabelecerem diálogo entre si, visando o cuidado da natureza, a defesa dos pobres, a construção duma trama de respeito e de fraternidade. De igual modo é indispensável um diálogo entre as próprias ciências, porque cada uma costuma fechar-se nos limites da sua própria linguagem, e a especialização tende a converter-se em isolamento e absolutização do próprio saber (201)

Capítulo Sexto: Educação e Espiritualidade Ecológica

Muitas coisas devem reajustar o próprio rumo, mas antes de tudo é a humanidade que precisa de mudar. Falta a consciência duma origem comum, duma recíproca pertença e dum futuro partilhado por todos. Esta consciência basilar permitiria o desenvolvimento de novas convicções, atitudes e estilos de vida (202)

. A situação actual do mundo «gera um sentido de precariedade e insegurança, que, por sua vez, favorece formas de egoísmo colectivo» (204)

. A Carta da Terra convidava-nos, a todos, a começar de novo deixando para trás uma etapa de autodestruição, mas ainda não desenvolvemos uma consciência universal que o torne possível (…) Que o nosso seja um tempo que se recorde pelo despertar duma nova reverência face à vida (207)

. Sempre é possível desenvolver uma nova capacidade de sair de si mesmo rumo ao outro (208)

. A educação ambiental deveria predispor-nos para dar este salto para o Mistério, do qual uma ética ecológica recebe o seu sentido mais profundo (210)

. Desejo propor aos cristãos algumas linhas de espiritualidade ecológica que nascem das convicções da nossa fé, pois aquilo que o Evangelho nos ensina tem consequências no nosso modo de pensar, sentir e viver (216)

. Falta-lhes, pois, uma conversão ecológica, que comporta deixar emergir, nas relações com o mundo que os rodeia, todas as consequências do encontro com Jesus (217)

. Recordemos o modelo de São Francisco de Assis, para propor uma sã relação com a criação como dimensão da conversão integral da pessoa (218)

. A espiritualidade cristã propõe um crescimento na sobriedade e uma capacidade de se alegrar com pouco. É um regresso à simplicidade que nos permite parar a saborear as pequenas coisas, agradecer as possibilidades que a vida oferece sem nos apegarmos ao que temos nem entristecermos por aquilo que não possuímos (222)

. A paz interior das pessoas tem muito a ver com o cuidado da ecologia e com o bem comum, porque, autenticamente vivida, reflecte-se num equilibrado estilo de vida aliado com a capacidade de admiração que leva à profundidade da vida (225)

. Uma ecologia integral exige que se dedique algum tempo para recuperar a harmonia serena com a criação (225)

. É necessário voltar a sentir que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com os outros e o mundo, que vale a pena ser bons e honestos (229)

. Uma ecologia integral é feita também de simples gestos quotidianos, pelos quais quebramos a lógica da violência, da exploração, do egoism (230)

. juntamente com a importância dos pequenos gestos diários, o amor social impele-nos a pensar em grandes estratégias que detenham eficazmente a degradação ambiental e incentivem uma cultura do cuidado que permeie toda a sociedade (231)

. há um mistério a contemplar numa folha, numa vereda, no orvalho, no rosto do pobre.[159]O ideal não é só passar da exterioridade à interioridade para descobrir a acção de Deus na alma, mas também chegar a encontrá-Lo em todas as coisas (233)

. Não fugimos do mundo, nem negamos a natureza, quando queremos encontrar-nos com Deus. Nota-se isto particularmente na espiritualidade do Oriente cristão (235)

. Com efeito a Eucaristia é, por si mesma, um acto de amor cósmico. «Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar duma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo» (236)

. Assim, a espiritualidade cristã integra o valor do repouso e da festa. O ser humano tende a reduzir o descanso contemplativo ao âmbito do estéril e do inútil, esquecendo que deste modo se tira à obra realizada o mais importante: o seu significado. Na nossa actividade, somos chamados a incluir uma dimensão receptiva e gratuita, o que é diferente da simples inactividade. Trata-se doutra maneira de agir, que pertence à nossa essência (237)

. O Espírito, vínculo infinito de amor, está intimamente presente no coração do universo, animando e suscitando novos caminhos (238)

. No coração deste mundo, permanece presente o Senhor da vida que tanto nos ama. Não nos abandona, não nos deixa sozinhos, porque Se uniu definitivamente à nossa terra e o seu amor sempre nos leva a encontrar novos caminhos (245)