terça-feira, 18 de agosto de 2015

Mística e Nova Era

Mística e Nova Era

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF

Para introduzir a reflexão, faz-se necessário, inicialmente, delimitar a compreensão do termo mística. Etimologicamente, o termo deriva de myein (fechar os lábios ou os olhos). Em seu sentido clássico, a expressão diz respeito à “experiência fruitiva de um absoluto” (Gardet 1970: 7). O horizonte da mística é a união do humano com o mistério maior, a experiência que liga o espírito humano ao Espírito infinito. Mas a mística não envolve apenas o destino ou a meta unitiva, mas também o processo de despojamento que prepara esse momento singular, ou aquilo que flui do Mistério na dinâmica processual do ser humano em sua dinâmica de descentramento. A experiência radical do ser humano na sua relação com o real, ou sua experiência integral da realidade, é já experiência mística. Como sublinha o pensador catalão, Raimon Panikkar (1918-2010), o contemplativo não é alguém que está fora do mundo ou que dele escapa, mas alguém “que simplesmente ´senta`, simplesmente ´é`, vive. A contemplação é o respiro mesmo da vida” (Panikkar 2008:51).

No intuito de buscar captar a dimensão mística da Nova Era, há que entender primeiramente as razões que motivaram a sua emergência. Os antecedentes desta experiência podem ser descortinados já na década de 1950, com o movimento contestatório da contracultura e toda a dinâmica e estética libertária que se seguiu. Mudanças ocorreram em muitos campos, desde o comportamento sexual, a organização da vida familiar, o estilo de vida e as formas de comunicação. Também no âmbito dos valores espirituais ocorreram transformações substantivas, com a afirmação de outras perspectivas suscitadas  pela abertura à literatura beat,  filosofia e religiões orientais.

O surgimento da Nova Era acompanha o forte desconforto espiritual que é marca peculiar das sociedades pós-tradicionais. Ocorre o enfraquecimento das autoridades da tradição, da fragilização da cadeia da memória e o desencaixe dos antigos laços identitários. Desencadeia-se um processo progressivo de desfiliação dos indivíduos e mudanças importantes na compreensão de pertença social e cultural, incluindo também a religiosa. Os vínculos, antes fundamentais, tornam-se agora mais fluidos, opcionais ou revisáveis, de baixa consistência. Transformações importantes acontecem no campo das religiões, impactadas pelos efeitos impressionantes da modernidade, em particular a individualização e a globalização. E os indivíduos, que antes se inseriam com mais tranquilidade nesse campo de nomização, passam agora a viver uma situação nova: “suas buscas identitárias e espirituais não podem mais ser vividas como no passado, no seio de uma tradição imutável ou de um dispositivo institucional normativo” (Lenoir 2012: 5).

A mesma modernidade que suscita uma crise da religião, entendida como sistema de significações, provoca ou recria condições propícias para a insurgência de novas utopias. Na medida em que fragmenta ou parcializa as relações dos indivíduos, provocando solidão e anonimato, engendra também a “nostalgia de reencontrar a unidade a qualquer preço. É como se o indivíduo não conseguisse carregar o peso do desencantamento do mundo, pelo menos lá onde ele é existencialmente atingido” (Valadier 1991: 78; Hervieu-Léger 2008: 41). A Nova Era se insere nesse clima de desconfiança pós-moderna face às formas que regem as religiões instituídas e racionalizadas. Com ela, a irradiação de um outro modo de presença do religioso (ou de sistema de sentido), agora mais difuso e hibridizado, com um traço bem menos exclusivo de pertença identitária.

Não há como entender a Nova Era como uma religião específica, mas como um fenômeno que se relaciona com as modificações que envolvem o campo  dos comportamentos e práticas religiosas no tempo contemporâneo. O que mais vale nesse circuito é o “trato com o sagrado”, e com um recorte diferencial. A religião em si importa menos, o que vigora é um “modo específico de relacionar elementos e rituais” extraídos do patrimônio global dos recursos culturais e religiosos que indicam um aprimoramento pessoal (Amaral 2000: 17). A Nova Era expressa caminhos distintos de vivencia espiritual, com ênfase viva na dinâmica do eu. Hospeda-se sem problemas traços de religiosidades diferenciadas, contornando as arestas com uma artimanha peculiar, sobretudo a ideia de uma realidade interior comum que preside as distintas expressões religiosas. Os participantes desta “nebulosa místico-esotérica” são capazes de detectar uma sabedoria semelhante em tradições religiosas ou espirituais que se entendem distintas, relativizando assim as arestas ou pontos de discordância (Heelas 1996: 18).  

A Nova Era pode ser melhor definida como um “circuito” de práticas, ramificações, sedimentações e encontros. Trata-se de uma “nebulosa” que reage ao mundo racionalista e seu discurso de certezas, sinalizando a dinâmica de incerteza e imprecisão que pontua o tempo atual. A Nova era traduz, na verdade, um estilo de ser que se deixa penetrar por significativa heterogeneidade de expressões de sentido, mas reagindo sempre, e com intensidade, aos comprometimentos identitários homogeneizados e rígidos. Embora as atividades desse circuito estejam pontuadas pela heterogeneidade de fontes, isso não significa que se reduzam “a um amontoado de práticas desconexas, mas apresentam padrões e regularidades” (Magnani, 2000: 27)

Algumas ênfases “doutrinárias” podem ser destacadas, como a centralidade da imanência,  a abertura ao meio ambiente e a dinâmica de construção aberta do mundo de sentido. O participante desse circuito é na verdade um andarilho, um peregrino, sempre em busca de novas articulações das virtualidades que vai encontrando pelo caminho, somando e hibridizando aprendizados espirituais de diversas fontes, como as religiões orientais, os conhecimentos esotéricos, as mitologias pré-cristãs, a sabedoria dos povos originários e recursos oriundos do pensamento científico. Esses buscadores espirituais, são “religiosos alternativos”, e como parte de sua agenda o traço da experimentação, do “deslocamento permanente entre formas de trabalhar a espiritualidade, em nome de uma busca sempre renovada de experiências místicas” (Soares 1989: 137)


Referências Bibliográficas

AMARAL, Leila (2000). Carnaval da alma. Comunidade, essência e sincretismo na Nova Era. Vozes, Petrópolis.
GARDET, Louis (1970). La mystique. PUF, Paris.
HEELAS, Paul (1996). A Nova Era no contexto cultural: Pré-Moderno, Moderno e Pós-Moderno. Religião e Sociedade 17/1-2: 15-32.
HERVIER-LÉGER, Danièle (2008). O peregrino e o convertido. A religião em movimento. Vozes, Petrópolis.
LENOIR, Frédéric (2012). Les métamorphoses de la foi. Le monde des religions 55: 5.
MAGNANI, José Guilherme (2000). O Brasil da Nova Era. Jorge Zahar, Rio de Janeiro.
PANIKKAR, Raimon (2008). Mistica pienezza di vita – Mistica e spiritualità, tomo 1. Jaca Book,  Milano.
SOARES, Luiz Eduardo (1989). Religioso por natureza: cultura alternativa e misticismo ecológico no Brasil. In: LANDIM, Leilah (Ed). Sinais dos tempos. Tradições religiosas no Brasil. ISER, Rio de Janeiro.
VALADIER, Paul (1991). Catolicismo e sociedade moderna. Loyola, São Paulo.

(Publicado em inglês: Encyclopedia of Latin American Religions – 28 Jul 2015 – Online ISBN – 978-3-319-08956-0)


sexta-feira, 7 de agosto de 2015

O caminho luminoso de Etty Hillesum

O caminho luminoso de Etty Hillesum

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

Em minhas pesquisas sobre os buscadores do diálogo e os luminares do Mistério, a presença irradiadora de Etty Hillesum (1914-1943)  brilha de forma singular. Em janeiro de 2014 ela estaria completando 100 anos. Ainda pouco conhecida no Brasil, suas reflexões e experiência mística vão ganhando lugar em várias partes do mundo. Seu volumoso diário, com quase mil páginas, e a edição integral de suas cartas, foram publicados recentemente na Itália (editora Adelphi – 2012 e 2013). Parte do diário e uma seleção das cartas foram igualmente publicadas em Portugal, em 2008 e 2009, pela editora Assírio & Alvim.

Com o acesso a esse rico acervo espiritual, conseguimos delinear a vida e a presença de um caminho singular de busca do mistério, brotados na vida de uma jovem holandesa que deixou como herança uma das mais lindas experiências de Deus do século XX. Sua trajetória espiritual foi provada pela dura experiência da perseguição nazista, dos sofrimentos vividos num campo de concentração (Westerbork – Holanda) e a morte prematura em Auschwitz, na Polônia.

O segredo que animou a vida dessa jovem, ajudando-a a enfrentar com altivez e alegria todos os sofrimentos que marcaram sua caminhada, foi a experiência interior. Encontrou ao longo de sua trajetória alguns amigos que foram fundamentais para o seu amadurecimento, através da presença, do aconselhamento e do apoio emocional. Dentre eles, Julius Spier, que tinha sido aluno de Carl Gustav Jung, e com o qual viveu um romance marcado por muita intensidade.

O diário de Etty Hillesum foi iniciado em março de 1941, quando a jovem tinha 27 anos, e a Holanda já tinha sido invadida pelos nazistas. Um trabalho redacional animado por singular “fogo interior”, com páginas de impressionante vitalidade e copiosidade. Era também uma forma de organizar o seu mundo particular e encontrar as diretrizes para a sua busca luminosa da verdade. Talvez como parte de seu processo terapêutico, ela reforçava a importância da experiência interior. Falava em página de seu diário, em 08 de junho de 1941, sobre o desafio de “submergir” a cada manhã, por meia hora, no intuito de escutar aquilo que ocorria dentro de si. Não falava, propriamente, em  meditação, mas em fazer silêncio dentro de si. Nessa prática cotidiana foi criando forças e raízes para enfrentar as dificuldades que viriam. Aos poucos foi nomeando com mais clareza o nome dessa presença: “Encontrei o contato comigo mesma, com a parte melhor e mais profunda de meu ser, aquela que chamo Deus (10/08/1941). Em todo o seu processo de amadurecimento tinha uma grande clareza: ser fiel a si mesma.

A situação se agrava para ela e sua família, sobretudo após 1942, com a intensificação da perseguição nazista aos judeus holandeses. Ela testemunha em seu diário:

“Como isto é estranho. Há a guerra. Há campos de concentração. Pequenas crueldades amontoam-se em cima de pequenas crueldades. Quando caminho pelas ruas, sei que, em muitas das casas por onde passo, há ali um filho que está preso, e ali o pai está refém, e ali têm de suportar a condenação à morte de um filho de dezoito anos” (30/05/1942)

Mesmo consciente de toda essa dor, participando da tensão das pessoas e do grande sofrimento humano, mantinha viva a esperança:

“Sei de tudo isso e continuo a enfrentar cada pedaço da realidade que se me impõe. E no entanto – num momento inesperado, abandonada a mim própria – encontro-me de repente encostada ao peito nu da Vida e os braços dela são muito macios e envolvem-me de modo muito protetor, e nem sequer consigo descrever o bater do coração: tão lento e regular e tão suave, quase abafado, mas tão fiel, como se nunca mais findasse, e também tão bondoso e compassivo” (30/05/1942)

 Seus familiares e amigos foram sendo transferidos progressivamente para Westerbock, que a partir de julho de 1942, transforma-se num campo de trânsito, que em verdade era a última parada para cem mil judeus holandeses antes de Auschwitz. Etty vai trabalhar, por indicação do Conselho Hebraico, nesse espaço sombrio, no departamento de ajuda social às pessoas em trânsito. Ali passa a testemunhar um mundo de dor. E nessa situação vai acompanhar, com espanto e dor, o processo de deportação de tantos amigos para o destino final: “Entre julho de 1942 a setembro de 1944, a cada semana, foram cerca de noventa e três trens carregados de judeus com o sombrio destino da morte”. Em página de seu diário, com data de 12 de julho de 1942, ela sublinha:

“São tempos temerosos, meu Deus. Esta noite, pela primeira vez, passei-a deitada no escuro de olhos abertos e a arder, e muitas imagens do sofrimento humano desfilavam perante mim. Vou prometer-te uma coisa, Deus, só uma ninharia: não irei sobrecarregar o dia de hoje com igual número de preocupações em relação ao futuro, mas isso custa um certo exercício. Cada dia já tem a sua conta. Vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares, apesar de eu não poder garantir nada com antecedência”.

Diante da tremenda realidade do campo de trânsito, como a falta de espaço, as péssimas condições de higiene e as doenças que se acumulavam, Etty enfrentava essa “via crucis” sem perder jamais a esperança, sempre entoando o seu mote preferido: “A vida é bela”. Cada vez mais consciente da proximidade da morte dizia: “trazemos tudo dentro de nós, Deus e o céu e o inferno e a terra e a vida e a morte e os séculos, tantos séculos”. Vive a consciência da perfeita integração da morte em sua vida, e acrescenta: “Parece quase um paradoxo: se se exclui a morte não se tem jamais uma vida completa” (03/07/1942). A presença da dor e consciência da finitude não provocam nela o desânimo, mas sente-se ainda mais forte.

Foi ali em Westerbork que Etty Hillesum pôde mostrar toda a força e o potencial de sua esperança. Suas vivas reservas interiores tinham sido reforçadas antes, num trabalho pessoal de harmonização. Veio familiarizando-se com essa escuta interior, esta atenção ao mundo da profundidade (Hineinhorchen), uma atenção generosa que penetrava o coração das coisas. Do mundo interior irrompiam “nascentes escondidas”, que a fortaleciam e revigoravam. Tudo era motivo desse diálogo lindo com Deus, que fazia parte de seu cotidiano:

“Como vês, trato bem de ti. Não te trago somente minhas lágrimas e pressentimentos temerosos, até te trago, nesta tempestuosa e parda manhã de domingo, jasmim perfumado. E hei de trazer-te todas as flores que encontre pelo caminho, meu Deus, e a sério que são muitas. Hás de ficar sinceramente tão bem instalado em minha casa quanto é possível. E já agora para te dar um exemplo ao acaso: se eu estivesse encerrada numa cela acanhada e uma nuvem passasse ao longo da minha janela gradeada, então eu iria trazer-te essa nuvem, meu Deus, se pelo menos ainda tivesse forças para isso” (12/07/1942).

Em seu coração generoso, habitado por todas as paisagens, a esperança era a voz mais forte. Dizia que enquanto houvesse um pedaço de céu para poder olhar e um espaço interior para unir as mãos em oração, a vida seguiriam em frente, com alegria. Tinha a consciência acesa da presença de Deus e que estava generosamente em suas mãos. E do fundo da noite conseguia vislumbrar que apesar de tudo a vida era “uma coisa esplêndida e grande”, movida por um “ritmo mais profundo”. e que um mundo novo estava por vir.