O irrevogável desafio do pluralismo religioso
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
Introdução
A teologia do século XXI encontra-se diante de um desafio fundamental, que pode ser traduzido como a acolhida do pluralismo religioso enquanto valor irredutível e irrevogável. Trata-se de um novo horizonte para a teologia, um singular e essencial paradigma, que provoca uma profunda mudança na dinâmica da auto-compreensão teológica no tempo atual. O pluralismo religioso deixa de ser compreendido como um fenômeno conjuntural passageiro, um fato provisório, para ser percebido na sua riqueza, como um pluralismo de princípio ou de direito. Trata-se de um “destino histórico permitido por Deus cujo significado último nos escapa”[1]. Os caminhos que levam a Deus são pontuados pela riqueza da pluralidade. E isso não é algo negativo ou problemático, mas “expressão mesmo da vontade de Deus que necessita da diversidade das culturas e das religiões para melhor manifestar as riquezas da Verdade última”[2].
Essa abertura da teologia para o pluralismo religioso vem corroborar toda uma reflexão em curso na antropologia, desde os primórdios do século XX, sobre o valor da diversidade. Em clássico texto de 1950, Lévi-Strauss assinalava a importância de se preservar a diversidade das culturas como forma de evitar no mundo a ameaça da monotonia e da uniformidade. Não há como escapar ou driblar a diversidade das culturas humanas: ela “está atrás de nós, à nossa volta e à nossa frente”[3]. Isso também se aplica às religiões. Essa diversidade guarda consigo “potencialidades secretas”, abrindo espaços inusitados para o exercício novidadeiro de uma vida comum que se enriquece pela dinâmica da generosidade. A presença provocadora da diferença e da alteridade amplia o campo das possibilidades e faculta o real exercício de uma conversação enriquecedora.
Um dos pioneiros dessa reflexão no âmbito da teologia foi Raimon Panikkar (Barcelona, 1918) que desde seus primeiros trabalhos envolvendo o diálogo inter-religioso vem assinalando o valor da diversidade das religiões, enquanto expressão da riqueza da experiência humana. O pluralismo, como sublinha esse autor, é uma das experiências mais enriquecedoras realizadas pela consciência humana, favorecendo o essencial exercício da “acolhida da contingência”[4]. Essa perspectiva foi aos poucos ganhando cidadania em outros autores, firmando-se a convicção de que o pluralismo religioso é uma realidade de princípio, que não está determinado por uma situação histórica contingente, mas que se insere no misterioso desígnio de Deus para a humanidade[5].
1. A acolhida do pluralismo
Em firme defesa do pluralismo de princípio, Edward Schillebeeckx sinaliza que a realidade da diversidade religiosa não pode ser julgada como algo negativo, mas como expressão positiva da fecundidade do mistério infinito e multiforme de Deus. A pluralidade das religiões é riqueza que deve ser acolhida com alegria. Na verdade, “Deus é tão rico e tão acima das determinações, para poder ser esgotado na sua plenitude por determinada tradição de experiência religiosa, que, por ser determinada, é limitada”[6]. Pode-se aqui fazer recurso à rica metáfora da “sinfonia adiada”, utilizada por Christian Duquoc, para romper com a ingênua idéia de um plano divino magistral que estaria conduzindo as outras tradições religiosas para um único aprisco. Esta “obsessão pela unidade” pode, em verdade, obstruir ou ocultar o caráter enigmático que preside a diversidade inter-religiosa. As religiões, como mostra Duquoc, “são representadas como lugares de múltiplas composições, cuja unidade nos escapa”. São “fragmentos” que sugerem uma “unidade potencial”, que está em misteriosa preparação, mas cuja forma de harmonização extrapola o conhecimento humano[7]. A verdade da religião não se condensa numa única tradição religiosa, mas na sinfonia que preside sua interação. É na relação macro-ecumênica das diversas tradições religiosas que o horizonte da verdade vai se desvelando. É correto dizer que
“há mais verdade (religiosa) em todas as religiões no seu conjunto do que numa única religião, o que também vale para o cristianismo. Existem, pois, aspectos ´verdadeiros`, ´bons`, ´belos`- surpreendentes – nas múltiplas formas (presentes na humanidade) de pacto e entendimento com Deus, formas que não encontraram nem encontram lugar na experiência específica do cristianismo”[8].
O reconhecimento do valor da diversidade não é um apanágio da reflexão antropológica ou teológica, mas envolve tantas outras áreas de conhecimento, expressando uma preocupação presente e decisiva no tempo atual. Há hoje uma atenção particular ao tema da diversidade biológica do planeta. Uma preocupação sadia de preservar o valor e a beleza da essencial riqueza presente no mundo, mas continuamente ameaçada por políticas predatórias. A biodiversidade está aí presente na natureza, para onde quer que se volte o olhar. Trata-se de uma linda teia de vida, pontuada pela variedade de espécies, diferentes em forma e função, mas igualmente importantes para a afirmação das “comunidades de seres vivos” que compartilham o planeta[9]. São comunidades que devem ser regidas pelo amor, entendido como “fenômeno biológico” e “fundamento do fenômeno social”[10].
“O amor é a condição dinâmica espontânea de aceitação, por um sistema vivo, de sua coexistência com outro (ou outros) sistema (s) vivo (s), e que tal amor é um fenômeno biológico que não requer justificação: o amor é um encaixe dinâmico recíproco espontâneo, um acontecimento que acontece ou não acontece”[11].
Em linha de descontinuidade com a dinâmica que preside as culturas modernas, marcada pela vontade de poder e pela competição, o “anseio biológico” do amor aponta para caminhos que são alternativos, de aceitação da presença dos outros ao nosso lado, como fonte de crescimento, enriquecimento e cooperação. Como sinaliza Maturana, “a origem antropológica do Homo sapiens não se deu através da competição, mas sim através da cooperação, e a cooperação só pode se dar como uma atividade espontânea através da aceitação mútua, isto é, através do amor”[12].
Assim como existe a grande e rica biodiversidade do planeta, que requer atenção, cuidado e vontade de preservação, assim também a diversidade das religiões e opções espirituais, que demandam semelhante simpatia e acolhida[13]. Os bispos católicos da Ásia, em documentos de grande riqueza e significação, vêm apontando com firmeza a importância dessa diversidade religiosa, entendida como valor a ser preservado. Em Declaração de julho de 1988 assinalam a importância de um “legítimo pluralismo” e o necessário reconhecimento da diversidade, enquanto valor a ser reconhecido e promovido. Fala-se em “pluralismo receptivo”. A diversidade é motivo de alegria, pois constitui fonte de riqueza e força para a verdadeira harmonia[14]. A variedade cultural e religiosa dos povos asiáticos vem interpretada como “um dom maravilhoso de Deus”, expressando a riqueza inexaurível de seu amor misericordioso e universal[15]. Essa abertura dos bispos asiáticos ao pluralismo religioso não é fruto de uma especulação teórica, mas uma atitude que encontra seu enraizamento na experiência concreta de convivência cotidiana com os “amigos” que partilham outras experiências de fé. Uma convivência que suscita respeito e admiração, pois todos caminham num “solo sagrado”, estando envolvidos pelo mesmo Mistério que a todos ultrapassa[16].
A afirmação de uma perspectiva teológico-pastoral que defende um pluralismo de princípio não é unicamente produto da cultura ocidental moderna. Em obra singular sobre a questão da teologia cristã e o pluralismo religioso, John Hick demonstrou como a visão religiosa pluralista tem raízes bem mais antigas[17]. É viva a sensibilidade religiosa inclusiva nas tradições religiosa onde o Real vem experimentado seja como Deus ou como Absoluto. Temos exemplos bonitos de abertura seja nas tradições religiosas monoteístas, como nas correntes místicas das religiões asiáticas. Importantes ressonâncias da abertura ao pluralismo de princípio podem ser encontradas na tradição mística sufi, e em particular nas reflexões de Hallaj (858-922) Ibn´Arabi (1165-1240) e Rûmî (1207-1273).
Em seu clássico dîwân, o místico al-Hallaj enfatiza a “unidade divina primeira”, antes de qualquer distinção. Trata-se do princípio unitário e transcendente que preside toda a diversificação religiosa, do “ponto luminoso” (nuqta) que traduz o centro nevrálgico da esfera da unidade (tawhîd). As diversas tradições religiosas são percebidas como ramificações de um único Fundamento (al-asl). Como assinala Hallaj, o horizonte essencial é esse Fundamento seguro, que pode escapar da visada quando ocorre o vinculo exclusivo a uma única religião[18]. Em semelhante linha de reflexão, Ibn ´Arabi celebra o valor da diversidade enquanto expressão da Misericórdia de Deus. Importantes estudiosos da obra desse grande místico andaluz identificam nele uma das mais decisivas defesas do pluralismo[19]. As diversas tradições religiosas são reconhecidas como “caminhos duradouros, providenciais e eficazes para a realização espiritual”, encontrando rica acolhida no mistério do Uno-Múltiplo, simultaneamente transcendente e imanente[20]. A ousadia de sua universalidade vem expressa em versos surpreendentes:
“As mais diversas crenças
têm de Deus as pessoas,
mas eu as professo todas:
creio em todas as crenças”[21].
Na bela expressão de Rûmî, “de toda parte chega o segredo de Deus”; o aroma de sua generosidade está presente em todo canto, revelando a dinâmica de sua proximidade (tasbîh). Não há como definir, para Rûmî, a “árvore da vida” em um único nome, pois ela escapa ao âmbito limitado das formas superficiais. O verdadeiro fruto desta árvore está para além dos nomes: “às vezes ela é chamada árvore, às vezes sol, às vezes oceano e às vezes nuvem”. Trata-se de uma única fonte da qual jorram cem mil efeitos. Apegar-se exclusivamente a um dos nomes é permanecer cego para os atributos que envolvem sua realidade[22]. Na visão de Rûmî, há que deixar de lado os nomes e deixar-se tocar pelos atributos, e assim encontrar o caminho justo de acesso ao mundo essencial.
2. A presença universal do Mistério
A humanidade e a criação estão sempre envolvidas e abraçadas pelo Mistério sempre maior. Não há como fugir do impacto da Presença Espiritual e sua dinâmica de universalidade. Há uma imensa variedade das auto-manifestações de Deus na história. As teofanias sucedem-se e modificam-se constantemente. O grande desafio consiste em reconhecer Deus em todas as coisas, captar a transcendência na imanência. Segundo Jürgen Moltmann, “a possibilidade de reconhecer Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus fundamenta-se teologicamente na compreensão do Espírito de Deus como a força da criação e como a fonte de vida”[23]. Aqueles que não conseguem perceber a presença e o alcance universal do Mistério sempre maior, são também incapazes de reconhecer a verdade salvífica das outras tradições religiosas. Na base dessa carência pode estar operando, como sinalizou com razão Roger Haight, “uma concepção de Deus distante da criação”[24], ou seja uma compreensão redutora de Deus, incapaz de captar o traço de sua imanência.
Esta ênfase na imanência de Deus em todas as coisas vem sendo objeto da reflexão teológica no tempo presente, e cunhou-se a expressão “panenteísmo”[25] para dar conta dessa presença de Deus no cosmos e do cosmos em Deus. Distintamente do “panteísmo”, que não resguarda a diferença entre Deus e o mundo, a nova perspectiva ressalta sua mútua interpenetração:
“Tudo não é Deus. Mas Deus está em tudo e tudo está em Deus, por causa da criação, pela qual Deus deixa sua marca registrada e garante sua presença permanente na criatura (Providência). A criatura sempre depende de Deus e o carrega dentro de si. Deus e mundo são diferentes. Um não é o outro. Mas não estão separados ou fechados. Estão abertos um ao outro. Encontram-se mutuamente implicados. Se são diferentes é para poderem se comunicar e estarem unidos pela comunhão e mútua presença”[26].
A capacidade de perceber a presença do Mistério em todas as coisas é muito comum entre os místicos. Meister Eckhart fala do Deus que “resplandece em todas as coisas” e Teilhard de Chardin, do Deus tangível que, como uma atmosfera, envolve o ser humano por todos os lados[27]. O monge e poeta nicaraguense, Ernesto Cardenal, desvenda na natureza o amor “perceptível e materializado de Deus”. Ela guarda em si o “esplendor de sua beleza”[28]. Na tradição sufi, o místico Ibn ´Arabi desvenda nas diversas formas que o mundo encerra a presença da “linguagem de Deus”[29].
3. O despertar para a riqueza da diversidade
Não há dúvida sobre o “impacto da Presença Espiritual” em toda a humanidade e criação. Quando, porém, essa Presença vem efetivada na história e na vida, sofre os efeitos de sua fragmentação[30]. Nenhuma linguagem humana pode alcançar com clareza o significado profundo dessa Presença, ou descrever com nitidez as formas assumidas por seu impacto sobre os seres humanos e as diversas religiões. Daí a essencial importância das religiões estarem animadas pela consciência de sua contingência e limite, bem como para o exercício novidadeiro de abertura ao Deus ou Mistério que sempre vem. Há que manter ativa a consciência de “inacabamento” e a dinâmica da “peregrinação”. As representações humanas e religiosas são sempre movediças diante do Inominado, e há sempre o risco do “encarceramento na aparência”. A tradição budista, de certa forma, evitou esta perspectiva, renunciando às figuras para “aceder ao despertar”. Em verdade, o silêncio de Deus praticado no budismo,
“é a forma mais radical de preservar a condição misteriosa do último, o supremo, a que toda religião aponta, mas com a qual nem sempre é consequente. O fato de calar sobre Deus, de não afirmar nem negar sua existência e, mais radicalmente, de evitar a resposta à pergunta por ele – não por dispor da resposta, mas por saber que a pergunta é incorreta, indevida, lesiva da transcendência da realidade à que se refere -, esse fato é a forma paradoxal, talvez a única possível, de fazer eco a uma presença que só se pode dar de forma elusiva, que só se pode produzir sob a forma da ausência e que, portanto, só pode ser dita com o silêncio”[31].
Talvez o caminho mais seguro para superar as tentações de absolutismo, reconhecendo o dado da contingência e facultando a abertura ao mistério do outro, é o indicado pela metáfora da profundidade, desenvolvida por Paul Tillich e retomada por Paul Ricoeur. É uma metáfora que mantém não só a consciência de “inacabamento” e “fragmentação”, mas também a liberdade de abertura aos dons que acontecem para além das fronteiras do mundo particular.
Segundo Tillich, é no caminho de aprofundamento da própria tradição que se firma a consciência da complexidade de um Mistério que não se esgota numa única religião e cuja Verdade vem discernida no encontro novidadeiro com o outro. O diálogo verdadeiro não se dá através do abandono da tradição religiosa, mas de seu aprofundamento mediante a oração, o pensamento e a ação. Em texto redigido no apogeu de sua reflexão teológica, Tillich sublinhou:
“Na profundidade de toda religião viva há um ponto onde a religião como tal perde sua importância e o horizonte para o qual ela se dirige provoca a quebra de sua particularidade, elevando-a à uma liberdade espiritual que possibilita um novo olhar sobre a presença do divino em todas as expressões do sentido último da vida humana”[32].
Um exemplo concreto desta perspectiva pode ser visualizado na experiência dialogal de Thomas Merton. Na medida e proporção em que se aprofundava na vida eremítica, mais dilatava sua abertura aos novos universos da alteridade. O aprofundamento de sua tradição suscitou uma crítica contundente ao que denominou “heresia do individualismo” e a consciência viva de que o verdadeiro acesso a Deus passa pela afirmação dos outros:
“Serei melhor católico, se puder afirmar a verdade que existe no catolicismo e ir ainda além (...). Se eu me afirmo como católico simplesmente negando tudo que é muçulmano, judeu, protestante, hindu, budista etc., no fim descobrirei que, em mim, não resta muita coisa com que me possa afirmar como católico: e certamente nenhum sopro do Espírito com o qual possa afirmá-lo”[33].
4. Singularidade cristã e abertura plural
A abertura ao pluralismo religioso e ao valor da diversidade são componentes que acompanham a dinâmica cristã em sua essência, e a razão para isso encontra-se na própria prática de Jesus: sua abertura aos outros e sua compreensão do reino de Deus. E também na sua relação de proximidade e amor ao Deus do reino, para o qual ele aponta sem cessar. O Deus revelado por Jesus é um Deus que suscita e abraça as diferenças, e isto está implicado na própria “simbólica trinitária”, que exclui qualquer ideologia unitária. Nessa simbólica, que se desdobra da própria prática de Jesus, o Deus que vem apresentado é um Deus “que integra as diferenças; a sua unidade não se traduz por um superamento ou abolição destas diferenças: mas estas constituem, antes, sua própria condição”[34].
Assumir o pluralismo de princípio é conscientizar-se sobre a dinâmica universal da ação de Deus, que envolve em seu plano mediações diversificadas para acessar o seu Mistério. As manifestações de Deus em Jesus não encerram a história da religião, que permanece marcada pelas surpresas de seus dons. E esta
“convicção de que Deus age na história através de outras mediações, de forma alguma prejudica o compromisso do cristão com o que experiencia ter Deus feito em Jesus. Subjacente às exigências de verdade e de lógica, parece haver um competitivo impulso nos seres humanos, que espontaneamente consideram a própria relação com Deus como enfraquecida, pelo fato de que Deus ama outros e trata-os de formas históricas específicas. A lógica do infinito amor de Deus, todavia, não sucumbe a tal divisão. A experiência cristã do que Deus fez em Jesus Cristo não se afigura diminuída pelo reconhecimento do Deus verdadeiro atuante em outras religiões”[35].
A tomada de consciência do pluralismo de princípio implica, necessariamente, uma desabsolutização do cristianismo. O cristianismo é uma tradição religiosa singular, mas não absoluta. Querer absolutizar o cristianismo é incorrer no risco da idolatria, que consiste em apagar a “distância” que separa o ser humano de Deus, ou então minimizar a “reserva escatológica” de Deus sobre a história e as religiões[36]. Revela-se igualmente problemática, em tempos de pluralismo religioso, a perspectiva eclesiológica que concentra na igreja toda a atividade de mediação universal da graça. A igreja é sinal e instrumento do reino de Deus na história, mas não de forma exclusiva, pois o reino se faz também presente através da atuação de outras tradições religiosas. Os “outros” também participam da realidade do reino de Deus. Com razão, Jacques Dupuis amplia a reflexão eclesiológica ao sinalizar que a atividade de mediação da graça exercida pela igreja não é universal, pois os membros de outras tradições religiosas respondem ao chamado do reino de Deus mediante a prática de suas próprias tradições, ou seja, sua aproximação e entrada no reino de Deus se dá na resposta “ao convite de Deus pela fé e pelo amor”[37].
A sensibilidade e abertura ao patrimônio religioso e espiritual das outras religiões favorecem uma “reinterpretação criadora da verdade cristã”[38]. Os cristãos, por intermédio do diálogo inter-religioso, mostram-se capazes de descobrir com maior profundidade e clareza certos aspectos ou dimensões do mistério divino que escapam à sua visada. A própria fé sai desse processo purificada, aprofundada e redimensionada[39]. Na medida em que se reconhece as riquezas envolvidas nas doutrinas e práticas das outras tradições religiosas abre-se o essencial espaço para uma interpretação novidadeira do cristianismo.
Conclusão
O verdadeiro diálogo inter-religioso acontece quando se respeita em profundidade o “enigma” da pluralidade religiosa em sua diferença irredutível e irrevogável. O diálogo requer uma sensibilidade nova, um despojamento profundo, uma consciência de humildade, uma busca incessante e, sobretudo, uma convicção de estar diante do “solo sagrado” do outro. Trata-se de uma aventura inquietante, arriscada e exigente que desafia a cada momento o processo de auto-compreensão dos interlocutores nela envolvidos. O diálogo é, antes de tudo, um “ato espiritual” pois pressupõe atenção, escuta, respeito e abertura, e também uma atitude de confiança e entrega a um mistério sempre maior. É Deus mesmo que se faz presente no diálogo inter-religioso, pois na medida em que se processa a abertura ao outro é também a Deus que essa abertura acontece[40].
O reconhecimento do pluralismo de princípio é um requisito essencial para o diálogo inter-religioso. Não se pode apagar o “mistério pessoal intransponível” que habita o mundo do outro. Há que respeitar o outro em seu mistério e, mais ainda, recolher com alegria os dons que acompanham a “viagem” em sua companhia. O diálogo deixa sempre uma “marca” novidadeira. Como sublinha Gadamer, “o que perfaz um verdadeiro diálogo não é termos experimentado algo de novo, mas termos encontrado no outro algo que ainda não havíamos em nossa experiência de mundo”[41].
O pluralismo religioso é uma riqueza que não pode ser eludida ou apagada. Trata-se de um traço irrevogável do tempo atual, e que estará também preservado no éschaton, como bem mostrou Jacques Dupuis. Para ele, a recapitulação de todas as coisas em Cristo (Ef 1,10), se dará no respeito e salvaguarda do “caráter irredutível impresso em cada tradição pela automanifestação de Deus por intermédio do seu Verbo e do seu Espírito”[42].
Como pista para reflexões futuras, há hoje que sublinhar a importância de um acolhimento não só do pluralismo religioso, mas também das opções espirituais, religiosas ou não, em sua diversidade e riqueza. Isso requer uma importante distinção entre religião e espiritualidade. Enquanto a religião envolve um sistema de crenças e práticas relacionadas a um corpo institucional, a espiritualidade diz respeito à “qualidades do espírito humano”, entre as quais a compaixão, cuidado, delicadeza, cortesia, tolerância e hospitalidade. São qualidades que podem estar presentes na religião, mas também alhures. A religião não é imprescindível para que as pessoas desenvolvam tais qualidades. Estas podem brilhar, até mesmo em alto grau, fora das experiências religiosas[43]. É uma importante questão que vem acompanhando as discussões atuais sobre o direito da laicidade. A abertura da vida interior para o ilimitado e para a “imanensidade” acontece, de fato, em distintas opções espirituais[44].
(Publicado na Revista Ciberteologia, v. 6, n. 28, março/abril 2010, pp. 22-34)
[1] Claude GEFFRÉ. Crer e interpretar. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 136.
[2] Claude GEFFRÉ. De babel à pentecôte. Essais de théologie interreligieuse. Paris: Cerf, 2006, p. 137.
[3] Claude LÉVI-STRAUSS. Raça e história. In: Os pensadores. São Paulo: Victor Civita, 1980, p. 87.
[4] Raimon PANIKKAR. Entre Dieu et le cosmos. Paris: Albin Michel, 1998, p. 166.
[5] Edward SCHILLEBEECKX. História humana revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994, pp. 91 e 216; Jacques DUPUIS, Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999, pp. 526-528; Claude GEFFRÉ, Crer e interpretar, pp. 94-95; Id. De babel à pentecôte, Paris, Cerf, 2006, p. 94; Michael AMALADOSS. Rinnovare tutte le cose. Roma: Arkeios, 1993, p. 126; E é uma perspectiva que se firma igualmente na teologia latino-americana: Faustino TEIXEIRA, La teologia del pluralismo religioso en América Latina, em J.M.VIGIL & L.E.TOMITA & M.BARROS (Orgs.) Por los muchos caminos de Dios IV. Quito: Abya-Yala, 2006, pp. 20-21; Id. O pluralismo religioso como novo paradigma para as religiões. Concilium, v. 319, n. 1, 2007, p. 29; José Maria VIGIL. Teologia del pluralismo religioso. Quito: Abya-Yala, 2005, pp. 376-377.
[6] Edward SCHILLEBEECKX. História humana revelação de Deus, p. 215.
[7] Christian DUQUOC. O único Cristo. A sinfonia adiada. São Paulo: Paulinas, 2008, pp. 166 e 88. Resistindo à idéia de um “horizonte comum” às diversas tradições religiosas, Duquoc sugere ser “mais desejável que cada fragmento aprofunde sua lógica sem obstruir seu intuito universal, vazio, por enquanto, de todo conteúdo capaz de unificar o diverso religioso”: ibidem, p. 170.
[8] Edward SCHILLEBEECKX. História humana revelação de Deus, p. 215. Ver também: Joseph O´LEARY. La vérité chrétienne à l´age du pluralisme religieux. Paris: Cerf, 1994, p. 46.
[9] E.O.WILSON. Biodiversidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.
[10] Humberto MATURANA. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997, p. 184.
[11] Ibidem, p. 184.
[12] Ibidem, p. 185.
[13] Leonardo BOFF. Prefácio. In: Luiza E. TOMITA & José M. VIGIL & Marcelo BARROS (Orgs.). Teologia latino americana pluralista da libertação. São Paulo: Paulinas, 2006, pp. 12-13.
[14] FEDERAZIONE delle Conferenze Episcopali Asiatiche (FABC). Religioni a servizio dell´armonia universale. In: Documenti della chiesa in Asia. Bologna: EMI, 1997, p. 305 (BIRA IV/11 – Sakabumi, Indonésia, 1-7 luglio 1988).
[15] Miguel Marcello QUATRA. Regno di Dio e missione della chiesa nel contesto asiático. Uno studio sui documenti della FABC (1970-1995). Dissertatio ad Doctoratum in Facultate Missiologiae. Pontificiae Universitatis Gregorianae, Roma, 1998, pp. 200 e 298.
[16] Felix WILFRED. Il volto pubblico del cristianesimo in Asia e la sua teologia. In: M.AMALADOSS & R. GIBELLINI (Edd). Teologia in Asia. Brescia: Queriniana, 2006, pp. 448-449.
[17] John HICK. Teologia cristã e pluralismo religioso. São Paulo: PPCIR/Attar, 2005, pp. 60-64: Id. La quinta dimensione. Roma: Mediterranee, 2006, pp. 99-118.
[18] Al-HALLAJ. Diván. Barcelona: José J. De Olañeta, 2005, p. 89; Id. Diwan. Genova: Marietti, 1987, p. 84 (Diwan, 62); Stéphane RUSPOLI. Le message de Hallâj l´expatrié. Paris: Cerf, 2005, pp. 153 e 266-267.
[19] William C. CHITTICK. Mundos imaginales. Ibn al-Arabi y la diversidad de las creencias. Sevilla: Alquitara, 2003, pp. 7-10.
[20] Ibn ´ARABI et al. La taberna de las luces. Poesía sufí de al-Andalus y el Magreb (del siglo XII al siglo XX). Murcia: Editoral Regional de Murcia, 2004, pp. XVI-XVII.
[21] Ibidem, p. 24.
[22] Jalâl âlDin RÛMÎ. Mathnawî. Milano: Bompiani, 2006, pp. 282-283 (M II: 3660-3680).
[23] Jürgen MOLTMANN. O espírito da vida. Uma pneumatologia integral. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 45.
[24] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 479.
[25] A expressão grega “panenteísmo” significa a conjunção de pan (tudo), en (em), e theós (Deus). Ou seja: tudo em Deus. Algo distinto de “panteísmo”: pan (tudo) e theós (Deus).
[26] Leonardo BOFF. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. 3 ed. São Paulo: Ática, 1999, p. 236.
[27] Alois M. HAAS. Introduzione a meister Eckhart. Fiesole: Nardini, 1997, p. 22; Teilhard de CHARDIN. O meio divino. Lisboa: Presença, pp. 42 e 66.
[28] Jürgen MOLTMANN. O espírito da vida, p. 201. Um tema também presente nas Confissões de Agostinho, um pensador que sabia admirar no mundo a beleza de Deus: Confissões, Livro X,6,9.
[29] IBN ARABÎ. Le livre des chatons des sagesses. Beyrouth: Al-Bouraq, 1997, p. 118 (Tome premier).
[30] Paul TILLICH. Teologia sistemática. 5 ed. São Leopoldo: EST/Sinodal, 2005, pp. 592-594.
[31] Juan Martin VELASCO. El fenómeno místico. Madrid: Trotta, 1999, pp. 161-162. Ver também: Christian DUQUOC. O único Cristo, pp. 91-92.
[32] Paul TILLICH. Le christianisme et les religions. Paris: Aubier, 1968, p. 173.
[33] Thomas MERTON. Reflexões de um espectador culpado. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 166.
[34] Christian DUQUOC. Un dio diverso. 2 ed. Brescia: Queriniana, 1985, p. 137; Edward SCHILLEBEECKX. História humana revelação de Deus, pp. 213-214.
[35] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, p. 474.
[36] Adolphe GESCHÉ. O cristianismo e as outras religiões. In: Faustino TEIXEIRA (Org.). Diálogo de pássaros. Nos caminhos do diálogo inter-religioso. São Paulo: Paulinas, 1993, pp. 56-57.
[37] Jacques DUPUIS. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 485. Ver também: PONTIFÍCIO Conselho para o Diálogo Inter-Religioso. Diálogo e anúncio. Petrópolis: Vozes, 1991, n. 29.
[38] Claude GEFFRÉ. De babel a pentecôte, p. 55.
[39] Jacques DUPUIS. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 521 e PONTIFÍCIO Conselho para o Diálogo Inter-Religioso. Diálogo e anúncio, n. 50.
[40] PONTIFICIO Consiglio per il Dialogo Interreligioso. Il dialogo interreligioso nel magistero pontifício. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1994, p. 385 (Discurso do papa João Paulo II aos representantes das várias religiões da Índia – 5 de fevereiro de 1986).
[41] Hans-Georg GADAMER. Verdade e método II. Complementos e índice. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 247.
[42] Jacques DUPUIS. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 530
[43] DALAI LAMA. Uma ética para o novo milênio. Rio de Janeiro: Sextante, 2000, pp. 32-33; Id. Minha autobiografia espiritual. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009, pp. 99-100.
[44] André COMTE-SPONVILLE. O espírito do ateísmo. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 128-186. Ver também: Henri PENA-RUIZ. Qu´est-ce que la laicité? Paris: Gallimard, 2003.
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