terça-feira, 13 de abril de 2010

Simone Weil: uma paixão sem fronteiras

 

Simone Weil: uma paixão sem fronteiras

 

“Se fitarmos demoradamente o céu,

Deus desce e nos arrebata” (S.Weil)

 

Faustino Teixeira

PPCIR/UFJF – Pesq.CNPQ

 

Não é tarefa fácil tentar descrever a vida desta grande pensadora e mística que foi Simone Weil (1909-1943). Como mostrou com acerto sua biógrafa e amiga, Simone Pétrement, querer apresentar uma imagem mais ou menos fiel da autora é tarefa “desesperada”[1]. Só um “excepcional biógrafo” é capaz de desocultar com autenticidade a riqueza e os segredos de sua vida e desvendar seu enigma. Revelam-se sempre fragmentárias as tentativas de selecionar os aspectos mais fundamentais da sua vida, envolvida por nuances multifacetadas. O objetivo desse breve trabalho é buscar captar o traço de Simone Weil como buscadora do diálogo e apaixonada pelo mistério de Deus e do mundo, tendo como base de referência algumas biografias sobre a autora e sobretudo dois livros de sua vasta bibliografia: Espera de Deus e Carta a um religioso[2].

 

No testemunho de dois amigos queridos de Simone Weil, revela-se com muita clareza a figura de Simone Weil. Em sua convivência com Simone no período em que viveu em Marselha, entre os anos de 1941 e 1942, o padre dominicano Joseph-Marie Perin a definiu muito bem, como uma mulher marcada pela “sede do absoluto”. Com base numa afirmação da própria Simone, o padre Perrin indica que ela foi como “a clorofila que se alimenta da luz”: uma presença misteriosa e “atormentada” pelo amor de Deus[3]. O outro testemunho vem de Gustave Thibon, em cuja fazenda ela trabalhou como operária agrícola em 1941. Ele menciona que com Simone se deu o grande encontro de sua vida. Foi aos poucos sendo seduzido pela beleza interior desta mística “selvagem”, pela sua pureza, transparência, autenticidade e pela sua capacidade única de abertura sem limites à realidade[4]. Thibon reconhece que “todos os homens geniais são mensageiros do divino e do eterno. Mas poucos são verdadeiramente suas testemunhas na profundidade de seu ser”[5].

 

Passos de uma vida singular

 

Simone Weil nasceu em Paris no dia 03 de fevereiro de 1909, numa família de tradição judaica, marcada por clima de refinamento cultural, generosidade e afeto. Seu pai, Bernard (1872-1955), era médico e agnóstico convicto. Sua mãe, Selma Reinherz (1879-1965), uma mulher dedicada aos filhos. Foi nesse clima que cresceu Simone, sem aderir a nenhum credo preciso. O ambiente familiar foi favorecido pelos sólidos vínculos afetivos e Simone recebeu dos pais um importante impulso para o crescimento intelectual e a ampliação das possibilidades de ação no mundo. Herdou de sua mãe a alegria e a paixão pela vida, bem como o desejo de felicidade.

 

Em sua trajetória de vida, Simone Weil foi revelando aos poucos uma capacidade intelectual singular. Terminou o seu baccalauréat aos 15 anos, tendo em seguida ingressado no prestigiado Liceu Henri IV, em Paris. Escolheu a filosofia como campo de sua formação teórica, tendo encontrado em Alain, um dos mestres que mais favoreceram o seu desenvolvimento intelectual. É neste período do Liceu que começa a acontecer o seu engajamento político mais decisivo. Sua presença irradiadora propagava-se entre os alunos. Em passagem de um de seus livros de memória, Simone de Beauvoir relata sua admiração por Simone Weil: “Eu invejava um coração capaz de bater através do universo inteiro”[6]. A continuidade de seu aperfeiçoamento teórico vai acontecer na Escola Normal Superior, entre os anos de 1928 a 1931. A trajetória intelectual de Simone foi um “exercício do intelecto com todo o seu rigor e exigência, unido a uma paixão pelo mundo e o ser humano”[7].

 

Simone Weil vem contratada em setembro de 1931 como professora de filosofia em Le Puy. O exercício do magistério vem acompanhado de intensa militância no movimento sindical. Firma-se nela o sonho de tornar-se operária. A atuação como docente tem continuidade em Auxerre (1932-1933) e Roanne (1933-1934). Sua militância política em Roanne vai cada vez mais inviabilizando sua profissão de professora. O tema do trabalho sempre esteve no centro de suas atenções durante sua formação filosófica, e o sonho de tornar-se operária vem sendo acalentado desde 1924. Acreditava que só mediante um conhecimento direto da vida na fábrica teria acesso à compreensão da relação entre os trabalhadores e o trabalho. Em dezembro de 1934 inicia sua atividade como operária na fábrica Alsthom, depois de pedir licença por um ano do cargo de ensino. Terá ainda outras duas experiências como operária, na Carnaud e na Renault, quando pede demissão em 1935.  Sobre sua experiência como operária, relata em carta ao amigo Joë Bousquet, em 12 de maio de 1942:

 

“Não faz muito tempo (...) trabalhei como operária, cerca de um ano, nas fábricas metalúrgicas da região parisiense. A combinação da experiência pessoal e a simpatia pela miserável massa humana que me rodeava e com a qual me encontrava (...) indissociavelmente confundida, fez entrar tão profundamente no meu coração a desventura da degradação social que, desde então, passei a me sentir como uma escrava, no sentido que esta palavra tinha para os romanos”[8].

 

O tema da desventura vem novamente lembrado na carta autobiográfica que Simone escreve ao pe. Perrin, dois dias depois:

 

“Estando na fábrica, confundida aos olhos de todos e aos meus próprios com a massa anônima, a desgraça dos outros entrou em minha carne e em minha alma. Nada me separava disto, porque havia esquecido realmente meu passado e não esperava nenhum porvir, e dificilmente podia imaginar a possibilidade de sobreviver àquelas fadigas. (...) Recebi ali, para sempre, a marca da escravidão, como a marca a ferro em brasa que os romanos punham na fronte de seus escravos mais menosprezados. Depois, passei a ver-me sempre como uma escrava”[9].

 

Esta questão vai ocupar um lugar central na reflexão de Simone Weil, e não via outra condição para pensar a desventura senão “levando-a na carne, gravada bem a fundo, como um cravo, e levá-la consigo por longo tempo, de forma a facultar firmeza ao pensamento para poder mirá-la”[10].

 

Uma das razões que motivaram Simone Weil a ser operária era de poder encontrar na fábrica uma “verdadeira fraternidade”. Sua decepção foi grande. Encontrou ali uma experiência de viva opressão e conseqüente submissão desalentadora. Tudo isso só fez aumentar o seu pessimismo político. Em seus relatos a propósito, sublinhou que a experiência nas fábricas foi para ela “um verdadeiro martírio”: a cruel fadiga, as normas de produtividade impostas, a degradação das condições de trabalho, as terríveis dores de cabeça etc. Chegou a pensar em suicídio[11]. Na verdade, este ano de experiência operária provocou uma profunda transformação em Simone Weil, não só no âmbito das idéias, mas em sua visada das coisas, em seu sentimento de mundo. É dessa “experiência profundamente dolorosa e cansativa que ela extrai reflexões de extrema lucidez sobre o trabalho operário e a tola pretensão das ideologias modernas, notadamente o socialismo real, de libertar os operários, quando na verdade estes vivem como cativos, escravos na fábrica”[12].

 

Muitos dos sonhos nutridos por Simone Weil acabam naufragando diante da dura e triste realidade que encontra pelo caminho. Mas tudo isso gerou outras possibilidades, como um “percurso propedêudico” para uma nova vida espiritual. Sublinha-se, com acerto, que o movimento que a levou à vida operária “foi a obediência a um movimento interior que ela ainda não nomeava em termos espirituais. Tratava-se, no entanto, de um movimento existencial, vital, que ela não podia deixar de atender. E esse movimento, nela, era inseparável do amor que sempre nutriu pelos seres humanos”[13].

 

Após sua saída da Renault, em agosto de 1935, Simone Weil acompanha os pais numa viagem a Portugal , e ali vive uma primeira experiência mística, ao tomar contato com um cristianismo aceso e pulsante.  Isto ocorre em meados de setembro do mesmo ano em Povoa do Varzim[14], ao se deparar com uma bela procissão marítima, por ocasião da festa patronal de Nossa Senhora das Sete Dores. O canto triste das mulheres dos pescadores provocam a sensibilidade daquela jovem que “tinha a alma e o corpo em pedaços”, e ali toma, de improviso, a consciência de que “o cristianismo é por excelência a religião dos escravos”[15].

 

Em outros dois momentos viverá uma similar intensidade mística. Por ocasião de uma viagem a Assis, na Itália, em 1937 e numa estadia em Solesmes, em 1938. É sabida a grande admiração que Simone nutria por são Francisco. Na sua célebre carta autobiográfica a Perrin dizia sentir-se fascinada pelo místico franciscano desde que teve notícia dele. Ao entrar em Assis na pequena capela romana do século XII, Santa Maria degli Angeli, foi tomada de estupefação. Relata ao pe. Perrin que diante daquela “incomparável maravilha de pureza, onde são Francisco orou tão amiúde”, algo “mais forte” aconteceu em seu interior, que a obrigou, pela primeira vez, a pôr-se de joelhos[16]. A paisagem da Umbria encantou Simone, com sua doçura e serenidade. Seu relato a propósito é emocionante: “nunca sonhei que pudesse existir um campo semelhante, uma raça de homens tão esplêndida e capelas tão emocionantes”[17].

 

A terceira experiência mística cristã marcante acontece numa visita de dez dias à abadia beneditina de Solesmes, na França. Foi um momento forte e datado, durante a semana santa e as festas pascais. A beleza do canto gregoriano e das palavras do ofício amenizavam as intensas dores de cabeça que a atormentavam na ocasião. A experiência, segundo o seu relato, permitiu-lhe “compreender melhor a possibilidade de saborear o amor divino através da desventura”. Foi durante aqueles ofícios que o “pensamento da Paixão de Cristo” entrou de vez na sua vida. Recebeu em Solesmes, de um jovem católico inglês, um poema do século XVII que se intitulava “Amor”, que aprendeu de memória e o recitava nos momentos mais violentos de suas dores de cabeça. Foi durante uma dessa recitações que ela sentiu-se apoderada por Cristo: “o Cristo mesmo desceu e tomou-me”[18].

 

Durante anos esta experiência mística de Simone foi guardada em silêncio, tendo sido revelada só em maio de 1942, nas cartas a Joë Bousquet e pe. Perrin. Com o amadurecimento do tempo resolveu revelar a público o que viveu na intimidade do encontro com o Mistério. Segundo Carlos Ortega, que fez o prólogo da edição espanhola da Espera de Deus, as três experiência místicas provocam “seu abandono do ensino e assinalam o ponto de inflexão a partir do qual seu olhar sobre o mundo recebe uma decisiva conformidade sobrenatural”[19]. As transformações interiores vividas por Simone no final dos anos 30 vão repercutir no novo interesse pela religião. Passa a dar maior atenção às leituras que envolvem a história das religiões e ao estudo comparado das religiões. Capta a importância e singularidade da adesão à verdade religiosa em sua leitura do Bhagavad-Gita, realizada na primavera de 1940, e retomada diretamente em sânscrito, em 1941. Nessa ocasião toma também contato com a apaixonante obra de João da Cruz, que lê no original com grande entusiasmo. Na visão do amigo Thibon, que favoreceu esse contato, Simone “pôde descobrir João da Cruz com uma profunda admiração e uma adesão não menos profunda”. Em sua opinião, dentre todos os místicos, era aquele que melhor correspondia à sua espiritualidade[20]. Na carta biográfica a Joë Bousquet assinala não mais poder rechaçar a presença de Deus: “uma presença mais pessoal, mais certa, mais real que a de um ser humano, inacessível tanto aos sentidos como à imaginação, análoga ao amor que transparece no mais terno sorriso de um ser amado”[21].

 

Depois do período de Marselha, Simone vai para Nova York, em 1942. Sua vontade era de permanecer na França, e só aceita a viagem como forma de manter a segurança dos pais. O período era complicado para a família Weil, com a crescente ameaça hitleriana. A situação da guerra provoca uma profunda mutação no pensamento de Simone com respeito ao tema da violência. Rompe com sua anterior postura sobre o pacifismo e defende o direito da reação francesa e do resto da Europa. Elabora um projeto de criação de um corpo de enfermeiras de primeira linha e tenta divulgá-lo entre as autoridades[22]. Antes de partir para Londres, ainda em 1942, Simone escreve a famosa carta a um religioso, dirigida ao pe. Coutorier, sob indicação de Jacques Maritain. Esta carta nunca receberá resposta. Em Londres, Simone Weil consegue um trabalho de redatora num escritório. O período londrino foi de intensa produção literária para Simone. Uma de suas obras mais importantes nasceu nessa ocasião: L´enracinement[23]. Mas permanecia infeliz, apesar da positiva acolhida no país estrangeiro. E se aborrecia também com as dificuldades impostas aos projetos de vida. As temíveis dores de cabeça retornam, e Simone alimenta-se cada vez menos. No dia 15 de abril de 1943 vem internada, depois de ser encontrada desacordada em sua casa. Tem certa melhora no hospital de Middlesex, mas sua resistência a alimentar-se dificulta o tratamento. Ela dizia que não podia saciar sua fome enquanto o seu povo padecia. Acaba falecendo no dia 24 de agosto de 1943, aos 34 anos.

 

A paixão pelos outros e pelo mundo

 

Dois traços fundamentais marcam a sensibilidade de Simone Weil: a paixão pelos outros e pelas coisas do mundo. Dizia estar convencida de que a conjunção da consciência da desventura com o sentimento de alegria, entendido como adesão integral à perfeita beleza, era a porta de entrada ao “país puro, ao país respirável, ao país do real”[24]. Há que situar, primeiramente, o extraordinário caráter de sua compaixão, sua solidariedade com a causa dos oprimidos e infelizes. E essa compaixão ganhava contornos de uma autêntica virtude teologal: “No amor verdadeiro não somos nós que amamos os desventurados em Deus, mas é Deus que em nós ama aos desventurados”[25]. Sua veia profética vibra e reage prontamente contra a violência que sufoca os seres humanos. O sentimento de compaixão acompanha Simone desde sua infância e vai alargando-se, sem fronteiras, até envolver o mundo inteiro. Ao lado dessa capacidade de “simpatia pela miserável massa humana”, pelos desventurados, situa-se também uma grande paixão pelas coisas do mundo e por sua beleza. O que mais amava na natureza era “a pureza dos minerais, o vazio do silêncio, do imenso e luminoso espaço, ou o distante e alheio esplendor dos astros”[26]. Simone via no amor à beleza do mundo uma das formas implícitas de amor a Deus. Seu coração estava aberto para acolher sem limites “os reflexos puros e autênticos dessa beleza nas artes e na ciência” e abraçar tantas outras coisas que ela e Deus amavam:

 

“toda a imensa extensão dos séculos passados, exceto os vinte últimos; todos os paises habitados  por raças de cor; toda a vida profana nos paises de raça branca; na história desses paises, todas as tradições  acusadas de heresia, como a tradição maniqueísta e albigense; todas as coisas surgidas do Renascimento, freqüentemente degradadas, porém não completamente sem valor”[27].

 

Simone ponderava que um dos empecilhos que a impediam de abraçar a igreja era justamente o fato dessas belezas estarem fora do âmbito de acolhida do cristianismo como tal. Para ela, na definição mesma do cristianismo, a dimensão católica, da universalidade, não poderia estar excluída. De acordo com Simone, o amor verdadeiro implica universalidade, deve ser um amor capaz de envolver a totalidade do universo e da criação. Ela dizia: “Nosso amor deve ter a mesma extensão através de todo o espaço, a mesma igualdade em todas as porções do espaço que a da luz do sol”[28].

 

A simpatia inter-religiosa

 

Sobretudo após o período de Marselha (1940-1941), cresce o interesse e o aprofundamento de Simone Weil no estudo da história das religiões e das religiões comparadas. Em texto produzido em Londres, sinaliza esta atenção,  de busca da verdade que habita cada tradição religiosa e as relações das religiões com as formas profanas de busca da verdade[29]. Suas leituras são diversificadas: o Livro dos mortos e outros textos das tradições egípcias, o Antigo Testamento, o Bhagavad Gita etc. Sinaliza que textos anteriores à era comum, como alguns escritos hindus, “contêm os mais extraordinários pensamentos de místicos como Suso ou são João da Cruz. Em particular, sobre o ´nada`, o ´não ser`, o conhecimento negativo de Deus e o estado de união total da alma com Deus”[30]. Toda a sua reflexão vai no sentido do reconhecimento de um rico patrimônio religioso que acompanha a história da humanidade e que deixa de ser valorizado em razão de preconceitos ou superficialidade.

 

Em diversos passos de sua reflexão, Simone sublinha não ser possível abandonar seus sentimentos positivos com respeito às diversas tradições religiosas. Isto era para ela uma questão de honestidade e honradez. Sua abertura à beleza do mundo e à totalidade da criação envolvia a acolhida inter-religiosa. Manifesta firme reticência contra o estabelecimento de uma hierarquia entre as religiões, pois para ela as mesmas só podem ser conhecidas a partir de seu interior. De acordo com Simone, se é correto dizer que a religião católica apresenta verdades que estão apenas implícitas nas outras religiões, o mesmo pode ser dito das  outras religiões, que também contêm verdades que estão implícitas no cristianismo. Antecipando reflexões que estarão no cerne da discussão da teologia do pluralismo religioso, Simone indica que o cristianismo tem muito o que aprender das coisas divinas presentes nas outras tradições religiosas. Seria para ela uma “perda irreparável” se estas tradições, em sua diversidade, tivessem que um dia desaparecer na história[31].

 

Essa visão de Simone Weil sobre as religiões encontrou resistência entre teólogos católicos inclusivistas, como Jean Daniélou e Henri de Lubac. Na perspectiva desenvolvida por Daniélou, a posição de Simone a respeito das religiões, sobretudo em sua Carta a um religioso, combina algumas “intuições notáveis” com “desconcertantes confusões”. Para ele, o que falta na autora é a percepção de que o  cristianismo não pode ser colocado no mesmo plano das outras religiões cósmicas[32]. Para estes teólogos do acabamento, não há como negar a “diferença qualitativa” que separa o cristianismo das demais religiões, bem como o “caráter radicalmente novo” da fé cristã. Na abordagem que defendem, é o cristianismo que dá remate, acabamento e realização às verdades “imperfeitas” que subsistem nas outras tradições religiosas. Não há dúvida sobre a discordância de Simone Weil com respeito a tais observações. Em testemunho sobre a autora, Gustave Thibon fala sobre a sua perspectiva ecumênica, que não pode ser confundida com a afirmação relativista: “Simone Weil nos descobre o verdadeiro caminho do ecumenismo – não o ecumenismo bastardo que aceita e põe no mesmo plano todas as religiões, mas um ecumenismo transcendental que filtra as impurezas de todas  as religiões, conservando apenas sua essência sobrenatural”[33].

 

 Para Simone Weil, as religiões constituem distintas expressões de uma única grande Revelação, são como “janelas para o infinito”, na bela terminologia adotada por seu amigo Gustave Thibon. Numa das páginas mais bonitas de sua reflexão sobre o tema, quando aborda as formas de amor implícito a Deus, Simone sublinha que uma determinada religião só pode ser conhecida a partir de dentro, e isto requer atitudes fundamentais como a simpatia, a atenção e a  amizade. A seu ver, “o estudo das diferentes religiões não conduz a um conhecimento senão na medida em que alguém entra temporalmente, mediante a fé, ao centro mesmo da religião que se está estudando”[34]. Não pode haver autêntico conhecimento do outro senão mediante a “virtude milagrosa da simpatia”, por meio da qual a própria alma vem a ele transportada temporalmente. Há também que dedicar ao outro uma verdadeira atenção, e isto requer um esforço particular de suspensão do pensamento, de esvaziamento da mente, de modo a deixar o sujeito disponível ao mistério que advém: “a mente deve estar vazia, à espera, sem buscar nada, mas disposta a receber em sua verdade desnuda o objeto que nela vai penetrar”[35]. A amizade vem completar esse quadro. Para Simone, aqueles que são capazes de amizade conseguem com todo o seu coração interessar-se pela “sorte de um desconhecido”. E isto vale também para as outras religiões.

 

As diversas tradições religiosas, segundo Simone, são entrelaçadas por “equivalências ocultas” que delineiam a possibilidade de uma verdadeira simpatia inter-religiosa. Mas para captar essas equivalências é necessário trilhar o caminho da profundidade. Não há como perceber a riqueza da alteridade senão através de um estreito contato. Simone dizia que é “difícil apreciar pelo olhar o sabor e o valor nutritivo de um alimento que nunca se provou”[36]. Torna-se imperativo para qualquer diálogo verdadeiro uma aproximação marcada pela disponibilidade de aprendizado: “apropriar-se de outras possibilidades”. O encontro autêntico com o outro não se dá no âmbito da superfície, mas da profundidade: só “aquele que conhece o segredo dos corações conhece também o segredo das diferentes formas de fé”[37].

 

No umbral da igreja

 

Simone Weil dizia que o que a mantinha desvinculada da adesão formal à igreja era o amor que ela alimentava “pelas coisas que estão fora do cristianismo visível”[38]. Era uma pessoa ousada na sua paixão pelas grandes tradições como a Grécia, o Egito, a Índia, a China. Toda a beleza do mundo a encantava e seduzia. Não conseguia entender e aceitar o posicionamento tradicional da igreja que desconhecia os valores das diversas tradições religiosas e mantinha-se cerrada na visão de que “fora da igreja não há salvação”. Eram tempos mais difíceis no campo da reflexão teológica sobre o tema, que só seriam dobrados posteriormente com o Concílio Vaticano II (1962-1965). Já em 1941, quando encontrou pela primeira vez o padre Perrin, definia a sua posição como a de alguém que se encontra no “umbral da igreja” (au seuil de l´Eglise)[39]. Esta posição vem confirmada na carta a um religioso, escrita ao pe. Coutorier, em novembro de 1942. Dizia ali que sua vocação era a de ser “cristã fora da Igreja”[40]. Nesta carta, Simone confirma sua adesão aos mistérios da fé cristã, mas também sua dificuldade de aderir ao corpo de doutrinas estabelecido pela igreja. E elenca uma série de dificuldades que para ela são irredutíveis, e que a mantém distanciada de uma adesão mais formal. Já começa a carta dizendo:

 

“... Quando leio o catecismo do concílio de Trento, dá-me a impressão de que não tenho nada em comum com a religião ali exposta. Quando leio o Novo Testamento, os místicos, a liturgia, quando vejo celebrar a missa, sinto com alguma forma de certeza que essa fé é a minha ou, mais exatamente, que seria a minha sem  a distância interposta entre ela e mim pela minha imperfeição”[41].

 

Simone retoma a mesma distinção entre a adesão aos mistérios da fé cristã e a recusa a uma adesão formal à instituição igreja em carta dirigida a M.Schumann, em 1942. Assevera que não estaria mentindo ao dizer que no sentido propriamente etimológico afirma-se como católica, uma vez que partilha radicalmente a idéia de um amor que preenche o universo e abraça a totalidade da criação. Ela diz na carta:

 

“declaro-me totalmente de acordo com os mistérios da fé cristã, com uma espécie de adesão que, penso, convém só aos mistérios; adesão que é amor, não afirmação. Pertenço certamente a Cristo. Ou pelo menos isso é o que quero crer. Permaneço, porém, fora da Igreja por dificuldades que temo irredutíveis, de ordem filosófica, concernentes não aos próprios mistérios, mas às precisões com que ao longo dos séculos a Igreja acreditou dever circundar-lhes, e sobretudo, nesse sentido, a utilização das palavras anathema sit...”[42].

 

Na visão de Simone, a catolicidade do cristianismo era só de direito e não de fato, uma vez que muita coisa dele estava excluído, como a vida que pulsava em toda a imensidão dos séculos passados, em tantos povos, raças e culturas, bem como o dinamismo da vida profana. Argumenta que assim como “o cristianismo é católico de direito e não de fato”, prefere ser “membro da Igreja de direito e não de fato”. Avança ainda mais, dizendo que essa parece ser a vontade de Deus, a de permanecer fora, “também no futuro, salvo, quiçá, no momento da morte”[43]. O pe. Perrin, ao decidir publicar, em 1949, os textos de Simone Weil que traduziam sua experiência interior, dá ao livro o sugestivo nome Attente de Dieu (Espera de Deus). A palavra escolhida para o título era uma das mais apreciadas por Simone Weil, refletindo bem sua situação com respeito ao cristianismo. A expressão “espera” foi a escolhida para espelhar o termo grego en upomonê, utilizado no evangelho de Lucas (Lc 8,15). Simone dizia que sempre esteve no “umbral da Igreja, sem mover-se, quieta, en upomonê (palavra muito mais bela que paciência!)”[44].

 

Desde o período de Marselha, a questão da possibilidade da salvação fora da igreja torna-se para Simone uma questão crucial. Ponderava em carta ao pe. Perrin que a atitude tradicional da igreja com respeito às religiões rebaixava não apenas as outras religiões, mas também a própria religião católica[45]. Nada mais importante para ela do que a pureza de um coração que invoca a Deus, independentemente de filiação religiosa. Dizia que “sempre que um homem invocou com um coração puro a Osíris, Dionísio, Krishna, Buda, o Tao etc., o Filho de Deus respondeu enviando-lhe o Espírito Santo”[46]. Esta fé de Simone tem respaldo em sua compreensão de um Deus que é sobretudo amor. Em sua perspectiva, “a verdade essencial relativa a Deus é que ele é bom”[47]. E é bom muito antes de ser “poderoso”.  Daí também sua dificuldade com alguns textos do Antigo Testamento (AT), que lera integralmente já adulta em Paris e Marselha[48]. A leitura da Bíblia provocou um impacto negativo em Simone, sobretudo em razão de passagens do AT que vinham acompanhadas de violência: os massacres e extermínios recorrentes, alguns deles relacionados com a vontade de Deus[49]. Mas havia também textos do AT que ela admirava, como alguns salmos, certas passagens do livro de Isaías, o Cântico dos Cânticos e sobretudo o livro de Jó[50].

 

A relação tensa de Simone Weil com o judaísmo é um tema complexo e delicado, motivo de muita reflexão entre seus biógrafos. Segundo Pétrement, Simone “nunca se sentiu atraída pelo judaísmo”. Ao reagir em carta ao ministro da educação a um texto sobre o “Estatuto dos judeus”, publicado em outubro de 1940, ponderou: “A tradição cristã, francesa, helênica, essa é a minha tradição; a tradição judaica me é estranha; nenhum texto legal pode mudar isso”[51]. Na visão de Bingemer, o repúdio à violência é o que melhor traduz “o sentimento que está na base de todo o pensamento de Simone Weil sobre o judaísmo”[52]. Em seus escritos, Simone menciona o risco de idolatria que acompanha a noção judaica de “povo eleito”. Trata-se,  a seu ver, de uma noção que reitera a força de uma raça e nação, contrariando o conhecimento verdadeiro de Deus e de sua universalidade[53].

 

Conclusão

 

A autenticidade, firmeza, paixão e abertura são  traços que pontuam o perfil profético de Simone Weil. Nem todos, infelizmente, souberam captar o alcance de sua ousadia vital e de seu impressionante testemunho. Morreu muito jovem, aos 34 anos, tendo tinha ainda um belo futuro no horizonte. Foi uma pioneira em várias frentes. São alvissareiras suas reflexões sobre a compaixão ao outro, o compromisso com os desventurados e a simpatia inter-religiosa. Antecipou intuições fundamentais que só serão abraçadas pela igreja católica muitos anos depois. Muitos de seus lampejos permanecem ainda em aberto, desafiando o tempo. O generoso amor que ela soube expressar tão bem ao longo de sua vida, fez dela uma autêntica “amiga de Deus”. Seu amor a Deus foi tão profundo que se irradiou pela totalidade da criação. Simone dizia que a mirada é o que reflete uma das verdades mais capitais do cristianismo. Soube, como poucos, dirigir sua mirada para a “pureza perfeita”. Isto se deve ao fato de estar sempre animada por amigos de Deus verdadeiros, como os místicos e os santos. Nada mais importante para ela do que essa amizade gratuita com os amigos de Deus, os únicos a facultarem esse exercício autêntico de manutenção do olhar fixado intensamente em Deus[54].

 

(Publicado na Revista Convergência, v. 43, n. 411, maio 2008, pp. 313-327)



[1] Simone PÉTREMENT. Vida de Simone Weil. Madrid: Trotta, 1997, p. 11 (o original francês é de 1973, publicado em dois volumes).

[2] Simone WEIL. Attente de Dieu. Paris: Fayard, 1966 (a edição original é de 1950); Id. Lettre à un religieux. Paris: Gallimard, 1951. A obra completa de Simone Weil, ainda em curso de publicação, está prevista em 7 tomos e 16 volumes pela editora Gallimard.

[3] Joseph-Marie PERRIN. Mon dialogue avec Simone Weil. Paris: Nouvelle Cité, 1984, pp. 29, 39 e 79.

[4] Joseph-Marie PERRIN & Gustave THIBON. Simone Weil come l´abbiamo conosciuta. Milano:Ancora, 2000, pp. 120 e 123; Philippe BARTHELET. Entretiens avec Gustave Thibon. Paris: Éditions du Rocher, 2001, pp. 63-65. Um testemunho semelhante foi dado por Simone Pétrement, sua fiel amiga, ao constatar que os seus mais simples escritos, nos últimos anos, são suficientes para “mostrar o que ela realmente era, revelam uma pureza, uma honestidade inflamada e delicada que não encontra semelhança no nosso tempo”: Apud Domenico CANCIANI. Tra sventura e bellezza. Riflessione religiosa e esperienza mistica in Simone Weil. Roma: Lavoro, 1998, p. 96.

[5] Gustave THIBON. L´ignorance étoilée. Apud Giulia Paula DI NICOLA & Attilio DANESE. Abismos e ápices. São Paulo: Loyola, 2003, p. 119.

[6] Simone de BEAUVOIR. Mémoire d´une jeune fille rangée. Paris: Gallimard, 1958, pp. 236-237.

[7] Maria Clara BINGEMER. Simone Weil. A força e a fraqueza do amor. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p. 20.

[8] Simone WEIL. Pensamientos desordenados. Madrid: Trotta, 1995, p. 57.

[9] Id. Attente de Dieu, p. 42 (na tradução brasileira: Espera de Deus. São Paulo: ECE, 1987, p. 45). O tradutor brasileiro preferiu traduzir a difícil expressão francesa malheur por desgraça. No presente texto, adotamos outra tradução: desventura.

[10] Simone WEIL. Pensamientos desordenados, p. 54.

[11] Simone PÉTREMENT. Vida de Simone Weil, pp. 354, 357, 376 e 379.

[12] Maria Clara BINGEMER. Simone Weil, p. 39.

[13] Ibidem, p. 45.

[14] Um vilarejo nas proximidades da cidade do Porto.

[15] Simone WEIL. Attente de Dieu, pp. 42-43; Joseph-Marie PERRIN. Mon dialogue avec Simone Weil, pp. 41-42.

[16] Simone WEIL. Attente de Dieu, p. 43.

[17] Simone PÉTREMENT. Vida de Simone Weil, p. 452.

[18] “Le Christ lui-même est descendu et m´a prise”: Simone WEIL. Attente de Dieu, pp. 44-45. Sobre sua experiência mistica ver ainda: Domenico CANCIANI. Tra sventura e belleza, pp. 117-120.

[19] Carlos ORTEGA. Prólogo. In. Simone WEIL. A la espera de Dios. 3 ed.  Madrid: Trotta, 2000, p. 10. Sobre essa mudança também fala o pe.Perrin, no prefácio da Espera de Deus: “na experiência desse sentimento desconhecido, dirigiu um novo olhar sobre o mundo, sobre sua poesia e suas tradições religiosas e sobretudo sobre a ação ao serviço dos desventurados, campo ao qual intensificou seus esforços”: Simone WEIL. Attente de Dieu, p. 9.

[20] Philippe BARTHELET. Entretiens avec Gustave Thibon, p. 178.

[21] Simone WEIL. Pensamientos desordenados, p. 58.

[22] Simone PÉTREMENT. Vida de Simone Weil, pp.654-655.

[23] Simone WEIL. L´enracinement. Prélude à une déclaration des devoirs envers l´être humain. Paris: Gallimard, 1949.

[24] Simone WEIL. Pensamientos desordenados, p. 59.

[25] Simone WEIL. Attente de Dieu, p. 138.

[26] Simone PÉTREMENT. Vida de Simone Weil, p. 587.

[27] Simone WEIL. Attente de Dieu, pp. 53-53 e 76.

[28] Ibidem, p. 79.

[29] Simone WEIL. Pensamientos desordenados, pp. 99-100.

[30] Ibidem, p. 44; Gabriela FIORI. Simone Weil. Milano: Garzanti, 2006, pp. 273-274.

[31] Simone WEIL. Lettre à un religieux, pp. 38-39.

[32] Jean DANIÉLOU. Hellénisme, judaïsme, christianisme. In: J-M-PERRIN et al. Réponses aus questions de Simone Weil. Paris: Aubier,1964, pp. 19 e 26. Ver ainda: Jean DANIÉLOU. Sobre o mistério da história. São Paulo: Herder, 1964, p. 104; Henri DE LUBAC. Prefazione. In: André RAVIER (Ed). La mistica e le mistiche. Cinisello Balsamo: San Paolo, 1996, p. 22.

[33] Apud Giulia Paula DI NICOLA & Attilio DANESE. Abismos e ápices, p. 211.

[34] Id. Attente de Dieu, p. 178.

[35] Ibidem, p. 93.

[36] Ibidem, p. 177.

[37] Ibidem, p. 179.

[38] Simone WEIL. Attente de Dieu, p. 76.

[39] Ibidem, p. 31; Joseph-Marie PERRIN & Gustave THIBON. Simone Weil come l´abbiamo conosciuta, p. 61.

[40] Simone WEIL. Lettre à un religieux, p. 14.

[41] Ibidem, p. 11.

[42] Apud Simone PÉTREMENT. Vida de Simone Weil, pp. 663-664.

[43] Simone WEIL. Attente de Dieu, pp. 52-53. Simone Weil sempre recusou o batismo, apesar dos esforços feitos nesse sentido pelo amigo pe. Perrin. Em livro de biografia de Simone Weil, a autora G.Houdin, contrariando a posição de outros tantos biógrafos, assinala que um testemunho de Simone Deitz, a melhor amiga de Simone na ocasião, confirmaria o seu  batismo em Londres, ao final da vida, quando ainda estava hospitalizada: Apud Giulia DI NICOLA & Attilio DANESE. Abismos e ápices, pp. 102-103 e 105.

[44] Simone WEIL. Attente de Dieu, p. 54. Id. Pensamientos desordenados, p. 55. Ver ainda: Joseph-Marie PERRIN. Mon dialogue avec Simone Weil, pp. 80 e 125.

[45] Simone WEIL. Attente de Dieu, p. 250.

[46] Simone WEIL. Lettre à un religieux, pp.33-34.

[47] Ibidem, p. 15

[48] Como assinala Bingemer, mesmo sendo Simone de tradição judaica, não foi introduzida no estudo da Bíblia hebraica na infância ou juventude. Ela fez esta leitura já adulta, tendo comprado em Marselha os dois volumes da Bíblia do Rabinato Francês: Maria Clara BINGEMER. Simone Weil, p. 142.

[49] Pétrement comenta em sua biografia essa dificuldade de Simone com o “´Deus dos exércitos`, um Deus cruel que que dá ordens de exterminar os cananeus, etc.”: Simone Pétrement. Vida de Simone Weil, p. 634; Gabriela FIORI. Simone Weil, p. 274.

[50] Joseph-Marie PERRIN. Mon dialogue ave Simone Weil, p. 65.

[51] Simone Pétrement. Vida de Simone Weil, p. 556.

[52] Maria Clara BINGEMER. Simone Weil, p. 153. 

[53] Simone WEIL. Lettre à un religieux, p. 19; Id. Pensamientos desordenados, p. 40.

[54] Simone WEIL. Attente de Dieu, p. 51.

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