O mistério e a palavra
Faustino Teixeira
“A ressurreição já está sendo urdida,
os tubérculos da alegria estão inchando úmidos,
vão brotar sinos”
A palavra é o singular instrumento dos místicos e poetas, mas é frágil para expressar a dimensão oceânica do Real e o horizonte daquilo que se busca. Ela traduz apenas um aceno ou alusão da força que habita a experiência. Mesmo reconhecendo a incapacidade da linguagem comunicar a intensidade da experiência, os místicos e poetas sabem que ela é tudo o que possuem para aproximar-se desse objetivo impossível. É na dinâmica da palavra e em seu potencial criativo que ocorre o “movimento enigmático” de ruptura de fronteiras, de resistência à opacidade do tempo, de abertura, ainda que limitada, às cores vibrantes e sutis do Real. Como tão bem sinaliza Pablo Neruda, “algo canta entre estas palavras fugazes”.
Enlaçados no amor, sem tu nem eu,
livres de palavras vãs, tu e eu! (Rûmî)
Um leito comum irmana a mística e a poesia: a experiência amorosa, o enamoramento das pequenas grandes coisas e a atenção aos sinais do cotidiano. Em sublime passagem da Noite Escura, João da Cruz indica que o enlace amoroso convoca os amantes a deixarem-se conduzir para o alto, onde a vida humana permanece suspensa e a brisa sopra mais suavemente:
Da ameia a brisa amena,
quando eu os seus cabelos afagava,
com sua mão serena
o meu colo tocava
e todos os meus sentidos suspendia (João da Cruz)
A densidade da experiência amorosa não destaca o místico de seu tempo, mas provoca um “desaforado amor pelo todo”. No ápice da união, é toda a beleza do mundo que readquire senso e valor, agora de forma mais ampla e profunda.
De forma semelhante ao que ocorre na linguagem mística, a poesia adentra-se na espessura do Real, suscitando a “redescoberta da novidade perene da vida nas pequenas/grandes coisas do dia a dia”1. Um claro exemplo pode ser visto nos trechos do poema Eu vi uma rosa, de Manuel Bandeira:
Eu vi uma rosa
- Uma rosa branca -
Sozinha no galho.
No galho? Sozinha
No jardim, na rua. (...)
A graça essencial,
Mistério inefável
- Sobrenatural -
Da vida e do mundo,
Estava ali na rosa
Sozinha no galho.
A peculiaridade da focalização poética faculta uma intensidade única, capaz de desvendar na “estreiteza do finito, a extensão do infinito”. Segundo José Paulo Paes, “ a visão poética isola aqui um pormenor do mundo para o rever com uma intensidade tal que nele se engolfa por inteiro, esquecida da natureza circundante, agora excessiva ante a plenitude da rosa”2. A linguagem poética tem esse dom de “iluminar a linguagem de todos os dias” e desocultar ali um significado aberto e novo: “As cores próprias da vida se adensam, dançam e se desprendem em redor da visão que se elabora”.3 Tem igualmente o potencial de rememorar a presença do aberto e ilimitado que margeia o mundo impermanente. A poesia traz consigo o dom de ouvir o “canto das coisas”. Na busca incessante de “significar o máximo com o mínimo”, ela recorre a “todos os recursos expressivos disponíveis do idioma”4. Em muitos casos, a sede de alcançar a experiência provoca uma “afirmação sintaticamente improvável”. Não se satisfazendo com o “mundo da frase pronunciada”, o poeta ousa mais, reiventando formas de expressão capazes de corresponder à sua ilimitada ânsia de superação. O caso de Rimbaud é sugestivo, em seu mergulho no desconhecido para trazer o novo:
Inventei a cor das vogais! – A negro, E branco, I rubro, O azul, U verde. – Regulei a forma e o movimento de cada consoante, e, com ritmos instintivos, me vangloriava de inventar um verbo poético acessível, algum dia, a todos os sentidos. (...) Escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens.5
Como sublinha Ivo Barroso, “ler a poesia de Rimbaud é se dar conta de um incêndio estilístico, em que esse aventureiro do verbo vai queimando as pontes por onde passou, evoluindo ou mudando de rumo quase a cada verso, numa busca ou numa fuga em direção ao Insabido, ao Transcendente, ao Nada”6. Esta poesia é um dos melhores exemplos para poder entender a ousadia da linguagem mística. Há uma sede intensa no coração do poeta, que parte “com amor infinito” e a “alma acesa” em busca de “afetos e rumores novos”.
A linguagem mística possui semelhante ritmo encantatório e hipnótico7, marcado por singular magia acústica. É o que se observa nas canções XIV e XV do Cântico Espiritual de João da Cruz:
Meu Amado, as montanhas,
os vales solitários nemorosos,
as ilhas mais estranhas,
os rios sonorosos,
o sibilar dos ares amorosos
A noite sossegada,
nos raios suavíssimos da aurora,
a musica calada,
a solidão sonora,
a ceia que deleita e enamora.
A linguagem mística brota viva de uma experiência particular, que é única e intraduzível. Mesmo assim, o místico busca comunicar essa experiência incontida na alma. No prólogo do Cântico Espiritual, João da Cruz assinala a impossibilidade de explicar com clareza, por meio de palavras, as “expressões amorosas da inteligência mística”. Daí a razão de se empregar “estranhas figuras” para esboçar ou acenar algo vivido na experiência. Para o olhar desatento e comum, tais expressões soam como “dislates” ou disparates, mas na verdade traduzem um saber que é fruto do amor8. Em seu livro biográfico, Teresa de Jesus fala da vitalidade de sua experiência do mistério, que só pode ser entendida por quem passa por algo semelhante. Para expressar tal densidade e louvar o Senhor, ela desejaria “ser toda línguas”. Também a mística de Ávila recorre aos “desatinos santos” para comunicar as maravilhas de Deus. São “disparates” que traduzem a suprema insuficiência lingüística para expressar suas vivências. 9
A ousadia e audácia da linguagem mística vêm justificadas por Michel de Certeau, que reconhece a singularidade de uma licença para usar termos particulares e fora de comum. E isto ocorre em razão dessa linguagem tratar de coisas sublimes, sagradas e secretas, que tocam mais de perto a experiência que a especulação. A linguagem mística traduz uma “manipulação técnica das palavras”. Trata-se de uma prática de “destacamento”, onde a língua vem “desnaturada”, perdendo sua função de imitação das coisas. As palavras são “atormentadas” para poderem dizer o que literalmente não conseguem.10 O recurso ao símbolo aparece como exigência da linguagem mística, na medida em que favorece um “abismo de intuições” e fidelidade à profundidade da experiência.
O místico é alguém que vive um “tumulto” interior em razão da presença iluminadora de algo não natural, que o envolve e abrasa. Em decorrência dessa visita interior, ele passa a viver desassossegado, buscando romper a crisálida de seu ensimesmamento em direção ao mistério maior que o convoca. Não há como seguir vivendo da mesma forma: há que “atravessar os umbrais da vida”. Nada pode fixá-lo, nada pode matar sua implacável sede, senão o Mistério que o habita. Um mistério, porém, cuja fragrância encontra-se presente em toda a criação, daí seu amor universal. Ao místico aplicam-se as palavras do poeta Neruda: “todas as coisas estão cheias da minha alma”, ou Rimbaud: “Com amor infinito dentro da alma acesa”.
Há uma estreita vinculação entre poesia e mística. O místico, como o poeta, vive na espreita de um mistério maior, e alimenta-se também do ar, das rochas, do ferro e carvão11. Ele sabe que é no mundo que o mistério exerce o seu assédio, penetrando e modelando quem vem tocado por sua graça. Impossível distanciar-se de suas camadas mais ardentes. Dizia com acerto Teilhard de Chardin, que “nada é profano neste mundo” para quem sabe ver. E acenava a profundidade como o lugar da Diafania luminosa do Totalmente Outro: “Como pagão, adoro um Deus palpável. Até consigo tocar esse Deus por meio da superfície e toda a profundidade do Mundo da Matéria em que estou contido”. 12
Poetas e místicos são tomados por semelhante admiração e amor pelas coisas, pelos pequenos/grandes sinais do cotidiano, pela atenção decisiva a tudo o que existe. Nada mais equivocado que a visão comum de que o místico distancia-se do tempo. Na verdade, o mergulho na profundidade é revelador de uma sintonia nova com o Real. O despojamento e esvaziamento que acompanham o itinerário místico traduzem um amor radical pelas coisas. Quando descobertas em Deus, passam a ser apaixonadamente amadas em sua grandeza. É na mais funda obscuridade do silêncio e na profundidade interior que o místico capta a presença de todas as coisas, que o aguardavam ansiosamente: as montanhas, os vales solitários, as ilhas estranhas, os rios sonorosos e os ares amorosos.
Em sua importante experiência de direção espiritual na Trapa, em Getsêmani (EUA), Thomas Merton recordava a seus noviços que a vida contemplativa não podia separar-se de nenhum interesse humano. Tratava-se de algo muito simples e sensível: “simplesmente viver, como o peixe na água”13. Fala-se hoje em mística como “experiência integral da Vida”, como “experiência da realidade”14. Daí sua grande afinidade com a linguagem artística, em especial com a linguagem poética.
Uma palavra sobre a edição da antologia
A presente antologia de mística e poesia tem uma dimensão bem pessoal, refletindo minha ocular de teólogo interessado particularmente nesses dois campos singulares de expressão da palavra. É um trabalho que traz as digitais de meus estudos nas áreas de mística comparada das religiões e diálogo inter-religioso. Não pensei em elaborar uma antologia abrangente, mas circunscrita aos poetas e místicos que fui encontrando em meu caminho de vida e pesquisa, e que se relacionam com a temática da edição. Em razão da delimitação da revista, tive que fazer escolhas, que são sempre dolorosas. Poderia ter selecionado trechos de outros poetas que não compõem a presente antologia, mas que são muito importantes, como Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Ivan Junqueira, Francisco Carvalho, José Paulo Paes e tantos outros. Tive que dividir as escolhas entre poetas e místicos, dando uma atenção particular à mística islâmica, ainda desconhecida entre nós, e marcada por uma riqueza literária única.
Referências Bibliográficas:
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CERTEAU, Michel de. La fable mystique 1. Paris: Gallimard, 1982.
CHARDIN, Teilhard de. Hymne de l´univers. Paris: Seuil, 1961.
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LÓPEZ-BARALT, Luce. Asedios a lo indecible. Madrid: Trotta, 1998.
LUCCHESI, Marco. Juan de la Cruz. Pequena antologia poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000.
LUCCHESI, Marco. A sombra do Amado. Rio de Janeiro: Fissus, 2000.
NERUDA, Pablo. Antologia poética. 6 ed. Rio de Janeiro. José Olympio, 1979.
PAES, José Paulo. Gaveta de tradutor. Versões de poesia. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996.
PAES, José Paulo. Os perigos da poesia e outros ensaios. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.
PANIKKAR, Raimon. L´esperienza della vita. La mistica. Milano: Jaca Book, 2005.
PRADO, Adélia. Poesia reunida. São Paulo: Siciliano, 1991.
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(Publicado na Antologia de Poesia e Mística da Revista Poesia Sempre, n. 31, – Biblioteca Nacional – Janeiro 2010 – sob curadoria de Faustino Teixeira)
1 José Paulo Paes. Jornal de Poesia. Entrevista com Rodrigo de Souza Leão:
2 José Paulo Paes. Os perigos da poesia e outros ensaios. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 31. Para o poema de Manuel Bandeira cf. Estrela da vida inteira. 14 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987, pp. 163-164.
3 Arthur Rimbaud. Prosa poética. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, p. 219 (Being Beauteous)
4 José Paulo Paes. Jornal de Poesia. Entrevista com Rodrigo de Souza Leão.
5 Arthur Rimbaud. Prosa poética, p. 161 (Uma estadia no inferno)
6 Arthur Rimbaud. Poesia completa. 2 ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p. 9.
7 Luce López-Baralt. Asedios a lo indecible. Madrid: Trotta, 1998, p. 71.
8 João da Cruz. Obras completas. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1988, pp. 575-577.
9 Teresa de Jesus. Obras de Santa Teresa de Jesus. Burgos: Monte Carmelo, 1949, p. 91 (Livro da Vida XVI,4).
10 Michel de Certeau. La fable mystique 1. XVI e XVII siècle. Paris: Gallimard, 1982, p. 195.
11 Arthur Rimbaud. Prosa poética, p. 171 (fome).
12 Pierre Teilhard de Chardin. Hymne de l´Univers. Paris: Seuil, 1961, p. 26.
13 Ernesto Cardenal. Vida perdida. Memórias 1. Madrid: Trotta, 2005, p. 144.
14 Raimon Panikkar. L´esperienza della vita. La mistica. Milano: Jaca Book, 2005.
(Publicado na Revista Poesia Sempre, nº 31, Ano 16, 2009, pp. 9-12 (Fundação Biblioteca Nacional - Rio de Janeiro)
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