sexta-feira, 23 de abril de 2010

Edward Schillebeeckx: o tempo no coração da teologia

Edward Schillebeeckx: o tempo no coração da teologia

 

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF

 

A teologia católica perdeu uma de suas mais importantes vozes em dezembro de 2009. Trata-se de um dos maiores teólogos do século XX, Edward Schillebeeckx, que irradiou com sua vida e obra uma reflexão novidadeira, voltada para a história, atenta aos sinais dos tempos e comprometida com a causa do humano. Ele nasceu em novembro de 1914, na Antuérpia (Bélgica), sendo o sexto filho de uma família numerosa. Estudou num internato dos jesuítas em Turnhout, onde permaneceu até os 19 anos. Entrou em seguida para o noviciado dos dominicanos, e com eles fez toda a formação filosófico-teológica, ordenando-se padre em 1941. Os estudos de doutorado foram realizados, quatro anos depois da ordenação, em Saulchoir e Paris, num dos períodos mais criativos da teologia francesa. Sua tese doutoral, publicada em 1951, versou sobre a economia sacramental da salvação. Na ocasião, tomou contato com a reflexão de Congar e Chenu, e novos horizontes vão se abrindo para uma reflexão teológica de abertura e acolhida da história. O magistério teológico, iniciado em Lovaina (1947), firmou-se na Universidade Católica de Nimega – Holanda (1958), onde assume uma perspectiva teológica claramente progressista.  A atuação de Schillebeeckx em Nimega significou uma ruptura com a neo-escolástica. Não queria restringir o seu ensinamento a um corpo de doutrinas, mas analisar a história para nela descobrir a ação salvífica de Deus.

 

Com respeito ao Concílio Vaticano II (1962-1965), a sua atuação foi indireta, através do influxo sobre o episcopado holandês, sobretudo na preparação das intervenções em aula conciliar do Cardeal Alfrink. Vale igualmente lembrar a repercussão de suas conferências em Roma, destinadas aos bispos presentes no evento conciliar, como as realizadas na Domus Marie, a partir da segunda sessão do Vaticano II. Em seguida veio sua participação na fundação da revista internacional de teologia, Concilium, que servirá de canal de expressão para toda a renovação teológica pós-conciliar.

 

A reflexão inovadora de Schillebeeckx logo suscitou dificuldades junto aos setores disciplinares romanos. Foram três processos junto à Congregação para a Doutrina da Fé, CDF (ex-Santo Ofício). O primeiro, em 1969, girou em torno de questões relacionadas à secularização. O segundo, iniciado em 1976, centrou-se em sua cristologia, em particular sobre o seu livro de 1974: Jesus, a história de um vivente. O teólogo teve que comparecer a Roma em 1979 para clarear suas posições junto a três peritos, A.Descamps, A.Patfoort e J.Galot, sob a presidência do Prefeito da CDF, Cardeal Hamer. O terceiro, em 1984, relacionou-se às suas posições em torno da questão dos ministérios na Igreja, divulgadas em seu livro sobre o ministério eclesial: serviço de presidência na comunidade de Jesus Cristo (1980). Nesse último processo foi interrogado pelo Cardeal Ratzinger. Em nota publicada no L´Osservatore Romano, ao final do último colóquio, assinalou-se que restavam para a CDF alguns pontos de desacordo com a doutrina oficial da igreja católica, mas não em contraste com a fé. Um posicionamento já sublinhado pelo exegeta Descamps no primeiro processo. No livro-entrevista, organizado por Francesco Strazzari em 2005 (Cerco il tuo volto: conversazioni su Dio), há uma passagem onde o editor relata o desabafo de Schillebeeck a Rahner, por ocasião do primeiro processo: “Que tratamento vem reservado a nós que trabalhamos dia e noite pela Igreja!”. Mas dizia o teólogo belga com orgulho e humor: “Nos três processos não fui jamais condenado”.

 

A produção teológica de Schillebeeckx pode ser dividida em dois momentos. No primeiro período, entre os anos de 1946-1967, já se evidenciam traços de um tomismo aberto. Na ocasião, publica dois livros de grande sucesso editorial: A economia sacramental da salvação (1951) e Cristo, sacramento do encontro com Deus (1958). No segundo período, o mais original e criativo de sua reflexão, que acompanha o pós-concílio, é a problemática hermenêutica que ganha visibilidade. O teólogo belga dispõe-se a enfrentar o singular problema da interpretação dos textos da revelação, buscando captar sua inteligibilidade e atualização. Não há como alcançar a palavra de Deus senão na esfera de uma resposta interpretativa, cujo testemunho brilha no Primeiro e Segundo Testamentos. Segundo Schillebeeckx, o cristianismo não é “em primeiro lugar uma mensagem na qual se deve crer, mas uma experiência de fé que se torna uma mensagem”. A atenção de Schillebeeckx volta-se, assim, para o “círculo hermenêutico” de perguntas e respostas que possibilitam a compreensão do que se busca. O acesso à verdade antiga se dá no trabalho incessante de sua reformulação e reinterpretação, tendo em vista o presente. O livro fé e interpretação, publicado em 1971, com a colaboração de Piet Schoonemberg, é expressão desse momento.

 

O decisivo passo reflexivo do autor vai acontecer no vasto projeto cristológico, publicado em três grandes volumes: Jesus, a história de um vivente (1974); O Cristo, a história de uma nova práxis (1977); Humanidade, a história de Deus (1989). Nessa última obra, que sofreu uma alteração com respeito ao seu plano original, Schillebeeckx busca concentrar-se no “cerne do evangelho e da religião cristã”, e mostrar, de forma singular, que os seres humanos “são a história de Deus em nosso meio”. Não pode, portanto, acontecer a salvação fora da história humana. Manifesta também um olhar positivo sobre o pluralismo religioso, entendido agora como um pluralismo de princípio, que jamais desaparecerá. Segundo Rosino Gibellini, os três volumes do projeto cristológico de Schillebeeckx – que somam 2.142 páginas -, traduzem a “obra cristológica mais vasta e mais criativa de nosso século”.

 

Na última fase de sua vida, foram publicados dois importantes livros de entrevista: Sou um teólogo feliz: colóquios com Francesco Strazzari (1993) e com o mesmo entrevistador, Busco o teu rosto: conversações sobre Deus (2005). Nessas duas obras, Schillebeeckx tem oportunidade de abordar os pontos fundamentais de sua pesquisa teológica, envolvendo as questões relacionadas à cristologia, criação, escatologia, ética e os ministérios na igreja. Mas um tema em particular, move sua atenção nessa etapa derradeira: o seu fascínio diante de um Deus demasiadamente humano. Assinala que Deus “é uma entidade viva, que liberta os homens. Não é um Deus que os esmaga ou que deles se utiliza como marionetes. Às vezes este Deus aparece distante, silencioso, incompreensível, escondido. Mas Deus está próximo, mesmo quando se cala. O silêncio fascinante de Deus... Deus chama continuamente o homem à gratuidade, à doação de si aos outros”.

 

Junto com a idéia de um Deus humano, que ama e se preocupa com a história dos seres humanos, aparece também a idéia de uma igreja mais humana, que foi, aliás, tema de outro livro do autor (Para uma igreja de rosto humano, 1985). Para o teólogo belga, as religiões e igrejas exercem esse importante papel de anamnese, ou seja, de facultar a “lembrança viva” em nosso meio da vontade salvífica universal de Deus. Não há futuro promissor para a igreja, assinala o autor, senão na medida em que ela seja capaz de renunciar ao sobrenaturalismo e ao ensimesmamento, para dedicar-se aos outros, à “humanidade que vive no mundo”. Como mostrou com acerto Paulo VI na Evangelii nuntiandi, a igreja deve começar por “se evangelizar a si mesma”. Enquanto comunidade de amor fraterno “ela tem necessidade de ouvir sem cessar aquilo que ela deve acreditar, as razões de sua esperança e o mandamento novo do amor” (EN 15). Em linha de sintonia com essa reflexão, Schillebeeckx acrescenta que “a igreja deve continuamente purificar-se e tornar-se uma comunidade nova, que mostre aos homens o rosto transcendente e humano, gratuito e surpreendente de Deus”.

 

Grandes nomes da teologia católica do século XX vão deixando o cenário da história, entre os quais, Yves Congar, M.D.Chenu, Karl Rahner, C.Duquoc, J.M. R. Tillard e tantos outros. Com a morte de Schillebeeckx, é outra importante voz teológica que se cala, e num momento tão importante da vida da igreja católica, que passa por um de seus períodos mais difíceis. Fica para nós, como um convite insistente, o desafio de manter aceso o desafio profético de uma igreja mais humana, solidária, acolhedora e fraterna, bem como o desafio de não deixar calar esse fascínio pelo Deus portador e garantidor da vida, que nos possibilita o exercício de uma espiritualidade de inserção no mundo e de ligação com todas as coisas.

 

(Publicado em Amai-Vos – abril 2010)

 

 

Um comentário:

  1. Pena que os teólogos mais criativos estão mortos.. ou calados!
    Lembra-me a "Palma Mater", do Jardim Botânico carioca. Um raio matou seu broto, lá em cima, e ela, incapaz de se renovar mais, morreu.

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