terça-feira, 20 de abril de 2010

A interpelação do diálogo inter-religioso para a teologia

INTERPELAÇÃO DO  DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO PARA A TEOLOGIA

 

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF

 

 

Introdução

 

Torna-se difícil falar em diálogo inter-religioso tendo em vista a realidade de violência que pontua o cenário contemporâneo. São inúmeros os conflitos hoje existentes que trazem a marca ou o condicionamento das religiões. Vivemos tempos de acirramento das identidades e de radicalização etnocêntrica. O horizonte do pluralismo cultural e religioso nem sempre é acolhido na sua positividade. O pluralismo provoca uma crise nas estruturas de plausibilidade que asseguram o nomos das identidades singulares e das comunidades de sentido. Sua incidência sobre os sistemas de crença suscita insegurança intelectual e afetiva, na medida em que rompe os diques de proteção territorial e convoca ao alargamento das fronteiras. O receio da relativização e  da desubstancialização dos conteúdos religiosos aciona o desejo de mais segurança, de estabilidade e fundamentação, provocando, assim, reações defensivas e/ou ofensivas contra o universo da alteridade.

É verdade que neste processo de reação cognitiva e prática contra a alteridade, presente nos diversos conflitos atuais, as religiões tiveram e continuando tendo um lugar particular. As religiões, de fato, são marcadas por ambigüidades. O processo histórico mostrou com evidência que as religiões ativaram muitas vezes violências, mas em outros casos favoreceram o crescimento, a generosidade e a convivialidade entre os seres humanos. Seria equivocado identificar simplesmente a violência como parte substancial e integrante da experiência religiosa. A intolerância não pertence à natureza da religião, mas traduz sua desfiguração ou abuso prático e teórico. As desumanidades que ocorrem “em nome” da religião, relacionam-se a “pressupostos estranhos à religião”, que acabam por atraiçoar “o dinamismo mais profundo da relação com o Absoluto”.[1] A verdadeira relação com o Absoluto, como assinala o teólogo Edward Schillebeeckx, é incompatível com toda e qualquer desumanização e violência. Ao contrário, “desperta a coragem inabalável para produzir mais humanidade em todos os setores da vida.”[2]

Neste limiar do terceiro milênio, o diálogo inter-religioso aparece como um dos desafios mais fundamentais para a humanidade. O futuro feliz da humanidade está certamente condicionado aos caminhos de convivialidade inter-religiosa em favor da paz entre as nações. As tradições religiosas estão colocadas diante de uma dupla opção: ou a recusa do engajamento discursivo e da comunicação amorosa ou a abertura dialogal.

 

1.    A emergência de uma nova sensibilidade macro-ecumênica

 

Apesar da presença crescente da dinâmica de exclusão e violência, constata-se o crescimento de uma nova sensibilidade: a nova consciência da unidade da família humana, a abertura ao mútuo enriquecimento e cooperação entre as culturas e religiões em favor da afirmação de vida no mundo. No campo católico, o Concílio Vaticano II (1962-1965) teve uma importância decisiva nesta abertura dialogal, a começar pelo reconhecimento da dignidade inviolável da consciência de cada pessoa e do direito à liberdade religiosa. A liberdade constitui “a mais nobre prerrogativa da pessoa humana”. A carência desta consciência impede toda e qualquer dinâmica dialogal, pois o diálogo implica necessariamente o reconhecimento da reciprocidade em todos os níveis.

Esta nova sensibilidade de comunhão inter-religiosa vem hoje expressa de formas diversificadas: alguns falam em ecumenismo planetário, outros em ecumenismo mais ecumênico. Na América Latina, a expressão que ganhou cidadania foi o macro-ecumenismo. Trata-se de uma palavra nova que busca expressar este novo momento da comunidade humana: uma nova realidade e uma nova consciência da unidade dos povos de Deus. A consciência de que o ecumenismo verdadeiro pressupões uma mais larga capacidade de acolhida, bem como de percepção da presença viva do Deus sempre maior, pai e mãe de todos os povos e que a todos supera. Implica ainda a consciência de que este Deus da vida tem um sonho, coincidente com os sonhos mais profundos de todos os povos: um sonho de Vida, de Justiça, Paz e Liberdade. Praticar o macro-ecumenismo é buscar traduzir este sonho na história, em comunhão solidária com os outros.[3]

 

 

2.    O significado do diálogo inter-religioso

 

O diálogo traduz sempre uma experiência humana fundamental, uma vez que o ser humano se afirma como tal na relação com um tu. O diálogo inter-religioso constitui um dos âmbitos de realização do diálogo, envolvendo como traço de sua peculiaridade a relação entre indivíduos e comunidades de tradições religiosas distintas. Ele  diz respeito ao “conjunto de relações inter-religiosas, positivas e construtivas, com pessoas e comunidades de outros credos para um conhecimento mútuo e um recíproco enriquecimento”[4]. O diálogo inter-religioso implica sempre atenção, respeito e acolhimento do universo da alteridade. Ele só se realiza quando se garante o espaço de expressão da singularidade do outro e o direito inalienável de preservação de suas convicções pessoais. No profundo respeito à singularidade de cada interlocutor, este diálogo possibilita uma comunicação e um compartilhar de vida, de experiência e de fé. No comum empenho de conhecimento e abertura busca-se junto captar o trabalho e a presença alvissareira do Espírito ou do Mistério transcendente entre eles. O diálogo inter-religioso é sobretudo um “ato espiritual”, cujo motor essencial é o amor. Não é  capaz de cumprir esta jornada espiritual senão aquele que se encontra aberto e sensível à linguagem do Espírito, que não impõe resistência ao seu sopro de gratuidade. Trata-se de uma “viagem comum”, fraterna, sempre em companhia do Espírito. Reduzí-lo a mera estratégia ou plataforma para a conversão é deixar de compreendê-lo no que tem de mais profundo e essencial. Os outros com os quais se dialoga, deixam de ser estrangeiros ou estranhos, e passam a ser os “nossos amigos”, como gostam de afirmar os bispos asiáticos.  No diálogo navega-se na certeza da universalidade da graça, na dinâmica do mistério do Deus que se dá, do Deus que vem, do Deus que é surpresa permanente, e sobre o qual não se pode exercer nenhum controle.[5]  

O diálogo inter-religioso acontece em vários níveis, e envolve tanto indivíduos como comunidades: é diálogo de vida, de colaboração em projetos comuns, de partilha teológica e comunhão espiritual. Mas é antes de tudo um estilo de ação, uma atitude e um espírito que anima e move o comportamento. Um espírito que deve envolver toda a missão cristã em todas as suas dimensões, desde o ato inicial de encontro com o diferente até o serviço mais explícito do anúncio evangelizador.[6]

3.    O diálogo inter-religioso e a responsabilidade eco-global

 

A paz entre as religiões consiste em requisito essencial para a paz entre as nações. O verdadeiro diálogo não pode ficar confinado na esfera religiosa, mas deve abraçar todas as dimensões da vida, e se realizar também com os não religiosos. Para tanto, deve ser globalmente responsável e não pode admitir a continuidade do arbítrio, da violência e do sofrimento injusto entre os seres humanos. Alimenta-se de um sonho diferente, pontuado pela dinâmica da cooperação, do entendimento e da paz. Esta dimensão de corresponsabilidade do diálogo tem sido bem enfatizada por muitos teólogos das religiões, entre os quais pode-se mencionar Paul Knitter. Para este autor, as diversas religiões devem assumir a responsabilidade global de defesa do ser humano e da terra. Diante de um mundo atormentado pela fome, pela miséria, pela exclusão e abuso de poder, as religiões são convocadas a romper com a apatia e assumir uma nova perspectiva: de salvaguarda do humano e de toda a criação. Se há uma “causa comum” a motivar o diálogo, esta deve ser a luta comum contra o sofrimento humano e a destruição das águas e da terra.[7]  

 

4) O diálogo inter-religioso na reflexão teológica latino-americana

 

A emergência de uma nova sensibilidade macro-ecumênica constitui uma das grandes novidades da reflexão teológica latino-americana nestes últimos anos, em particular a partir da década de 90. Sem desconsiderar as sementes germinadas na década anterior, será a partir desta última década que o desafio da acolhida da diversidade vai ganhando espaço na prática eclesial e na sua reflexão articulada. A primeira incidência desta temática ocorreu a partir dos autores que trabalhavam com a questão indígena e com o tema da inculturação. Autores importantes como Paulo Suess, Diego Irarrazaval, Xavier Albó, Bartolomeu Meliá, entre outros, foram pioneiros na afirmação da singularidade do índio como outro, da especificidade de sua experiência de Deus e da peculiaridade exigida para o tratamento desta questão na teologia da libertação. A nova reflexão ajudou a ampliar a visada da teologia da libertação, que em sua fase inicial concentrava-se na questão da classe, do pobre, da luta social e da política. Abre-se, então, espaço para a percepção da especificidade etnica, que não pode ser reduzida à questão da classe social, ou seja, a percepção de outros planos da opressão social.[8] Testemunhando na ocasião sobre a singularidade do novo momento, Xavier Albó sublinhara: “O problema de ajudar os pobres em sua luta para que cheguem a superar a pobreza é algo muito diverso da luta para ajudar o distinto a ser respeitado como distinto. Está havendo hoje um processo de reflexão sobre o que quer dizer este ser distinto”[9].

Em sintonia com a reflexão sobre a questão indígena, outros teólogos introduziam na reflexão teológica latino-americana a problemática da inculturação. Vale lembrar o papel pioneiro de Marcello Azevedo, que na sua tese de doutorado situou de forma incisiva a importância de uma teologia da inculturação como fator de enriquecimento da práxis eclesial e da reflexão teológica em curso no Continente. A singularidade de sua reflexão foi mostrar a importância da dimensão cultural para a reflexão teológica e a necessidade de conjugação da evangelização da sociedade com a evangelização da cultura.[10]

Na mesma trilha aberta pelos teólogos que trabalhavam a questão indígena e da inculturação, pode-se mencionar também o aporte trazido pelos teólogos e pastoralistas que desenvolveram a problemática da teologia das religiões afro no Brasil. Já no final dos anos 70 e início dos anos 80 despontam os primeiros estudos mais sistemáticos sobre a questão, embora ainda numa perspectiva de teologia do acabamento, que reconhece valores nas tradições afro, mas enquanto prelúdios de um coroamento que se dá no cristianismo.[11] A ampliação da perspectiva, em linha de maior abertura, ocorrerá com outros autores como François de l’Espinay, Dom José Maria Pires, Antônio Aparecido da Silva, José Geraldo da Rocha, Marcos Rodrigues, Sílvia Regina de Lima e Silva e Heitor Frisotti. O pe. François de l’Espinay ocupa um lugar de destaque nesta abertura, inaugurando uma experiência singular de solidariedade integral com os fiéis do candomblé na cidade de Salvador (Bahia).[12] Em sua reflexão instaura uma radical crítica ao exclusivismo católico, apontando a riqueza multifacetada da experiência do Deus que fala sob formas muito diversas e se faz presente em mediações diferentes das que conhecemos. Todos estes autores irão sublinhar com muita ênfase que o verdadeiro diálogo implica a acolhida da alteridade que se manifesta nas religiões afro.[13]

A sensibilidade para a temática do diálogo inter-religioso na teologia latino-americana foi igualmente favorecida pela experiência dos diversos encontros dos teólogos do terceiro mundo e o reconhecimento da pluralidade cultural, étnica, racial e religiosa presentes em suas regiões. Nos encontros organizados pela Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo (ASETT), a partir de 1976,  vale registrar em particular o aporte trazido pelos teólogos asiáticos com o desafio do diálogo inter-religioso e uma teologia libertadora das religiões, temas há muitos anos sedimentados em suas reflexões e experiências.[14]

É verdade que o campo religioso brasileiro foi sempre um espaço aberto para as experiências inter-relacionais. O modo brasileiro de viver a religião, o influxo do sincretismo e a dinâmica peculiar da compreensão da religião como porta de entrada da consciência favoreceram esta trajetória dialogal. Guimarães Rosa traduziu de forma magistral esta dinâmica em seu romance Grande Sertão: Veredas: “Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. (...) Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca”[15].

 

5) O diálogo inter-religioso na trajetória das CEBs

 

Na trajetória das CEBs no Brasil, verifica-se de forma bem nítida este progressivo processo de abertura ecumênica e  inter-religiosa. No início da experiência, nos anos 60 e 70, a temática sócio-libertadora ocupava todo o repertório das comunidades. Nesta etapa inicial a sensibilidade para esta temática era bem menos definida. As resistências à temática da religião popular e das festas populares, identificadas muitas vezes como expressões de alienação política, obstruíam um caminho mais promissor de dinâmica dialogal. Mas paulatinamente esta sensibilidade foi se firmando, reforçada pela abertura ecumênica que pontuou a história das comunidades desde os primeiros intereclesiais nos anos 70.

Os primeiros passos foram acontecendo no campo da ação conjunta em favor da afirmação de vida na história. Falava-se, na ocasião, em ecumenismo que brota das bases. Como sublinha Jether Ramalho, num texto promissor, o compromisso em favor da luta pela justiça coloca em segundo plano as divisões confessionais. Todos vivem a rica experiência de navegar como companheiros de uma mesma viagem fraterna. Esta experiência ecumênica de base talvez tenha sido um dos frutos mais significativos e originais produzidos pela experiência brasileira e uma convocação dialogal para todas as igrejas do mundo inteiro.[16]

O aprofundamento da experiência ecumênica e dialogal foi sendo reforçado ao longo da experiência das CEBs, ganhando uma expressão mais decisiva no final dos anos 80 e inícios dos anos 90. No VII Encontro Intereclesial de CEBs, ocorrido na cidade de Duque de Caxias (RJ) em 1989, o tema do ecumenismo teve um lugar de destaque. É verdade que esta temática refletia mais um sinal anunciador e antecipador do que uma realidade já tranqüila na caminhada das comunidade. Em todo caso, já significava um avanço. A participação dos evangélicos, indígenas e membros das tradições afro foram ganhando densidade nos Intereclesiais subseqüentes. Com esta presença, reforçava-se a emergência da temática das culturas e da diversidade inter-religiosa. No último Intereclesial, ocorrido na cidade de Ilhéus (BA), em julho de 2000, entre as 3.063 pessoas participantes, estavam 72 evangélicos (dos quais 4 bispos), 65 indígenas, 3 babalorixás e 5 yalorixás.

As comunidades eclesiais de base, e a novidade de sua experiência de viver o seguimento de Jesus, propiciaram condições para a formação de fiéis sensibilizados na prática do diálogo. E toda esta abertura, enraizada no solo evangélico da fraternidade universal de Jesus. Para os cristãos das comunidades, Jesus revela de forma translúcida uma vida e prática de grande abertura macro-ecumênica. O sinal mais característico de sua atuação foi a acolhida dada aos diferentes, aos excluídos e marginalizados, sobretudo os samaritanos. O grande objetivo de sua missão não foi, em primeiro lugar, difundir uma nova doutrina, mas “testemunhar uma nova maneira de viver e de conviver”[17]. Os cristãos encontram, assim, em Jesus a razão mais fundamental para a sua abertura aos outros. O diálogo brota do coração mais íntimo do cristianismo. O que há de mais “específico cristão”, é o que mais favorece a aproximação ao outro e também o que o outro desde sua alteridade irredutível mais reivindica hoje dos cristãos.

A experiência do 10o Encontro Intereclesial de CEBs foi muito importante para se detectar este novo momento na vida das comunidades. A tônica dialogal, ainda difícil na experiência das bases, veio expressa com todo vigor a nível do simbólico e do celebrativo. As grandes celebrações vivenciadas neste Intereclesial foram marcos singulares de abertura inter-religiosa. A grandeza de seu alcance escapa ainda aos recursos de qualquer investigação teológica. O que ali ocorreu talvez seja a expressão de um sonho futuro de um encontro fraterno, que garante a riqueza e a especificidade de cada experiência singular.

A realidade do ecumenismo e do diálogo inter-religioso está ainda longe de significar uma realidade tranqüila a nível das comunidades. Inúmeras resistências rondam as práticas comunitárias. Dificuldades de uma conjuntura eclesiástica católica marcada ainda pela arrogância identitária; dificuldades relacionadas ao acirramento fundamentalista de diversos núcleos pentecostais e carismáticos. Trata-se de problemas reais percebidos pelas comunidades, mas que em momento nenhum obscurecem o sonho dialogal das comunidades, presente nos compromissos assumidos ao final do encontro. Experiências importantes de comunhão já estão fazendo história, como aquelas vivenciadas nos inúmeros núcleos do CEBI, em torno da Palavra de Deus; ou em experiências de partilha como a ocorrida na Campanha da Fraternidade de 2000. Na carta ao povo das CEBs, apresentada pelos membros das igrejas não católicas romanas presentes no 10o Intereclesial, foi mencionado o sentimento de intimidade que congrega os cristãos das diversas denominações nestes 25 anos de Encontros Intereclesiais. As CEBs foram identificadas como o “embrião do novo jeito da Igreja”, de uma Igreja una, permeável à singularidade da diversidade, já que afirmadas segundo a imagem da Trindade, que é gratuidade transbordante. Ainda na mesma carta, os evangélicos sinalizaram, que nesta convivência, aprenderam que o ecumenismo implica três dimensões essenciais: em primeiro lugar, envolve conversão do coração, de forma a capacitar a acolhida da diferença; em segundo lugar, implica o acionamento de novas relações entre as pessoas, que mediante a convivência fraterna rompem com preconceitos enraizados e encontram uma renovação de corações e mentes; em terceiro lugar, encoraja ao compromisso de  assumir ações em comum na defesa da vida.[18]

 

6) Desafios abertos à comunidade teológica

 

O diálogo inter-relgioso tem provocado de forma decisiva a reflexão teológica nestes últimos anos. Os grandes tratados da teologia são desafiados pela nova dinâmica teórico-prática que acompanha este novo momento, em particular o desafio do pluralismo religioso.

 

a)    O desafio do reconhecimento do valor irredutível e irrevogável das outras tradições religiosas

 

Um dos tópicos mais salientados na atual reflexão da teologia das religiões, favorecido pelas experiências concretas de diálogo inter-religioso, refere-se ao reconhecimento do valor da alteridade. Trata-se de uma das condições mais fundamentais para o exercício do diálogo: o respeito pelo que há de irredutível e irrevogável nas outras tradições religiosas[19], de algo que jamais será tematizado ou totalizado no cristianismo. As outras tradições religiosas são portadoras de um verdadeiro “patrimônio espiritual”, não podendo ser reduzidas à experiências “naturais” ou esforços simplesmente humanos. Elas são portadoras de dons singulares da sabedoria  que o  Deus multiforme “escondeu na criação e na história”[20].

O teólogo Paul Knitter, em sua reflexão sobre o tema, sublinhou que “quanto mais se tenta penetrar no mundo de uma outra tradição religiosa, mediante encontros pessoais e o estudo dos textos, tanto mais se depara com um muro de diferenças que são, no final, incompreensíveis”[21] Trata-se da percepção do outro como mysterium tremendum, que jamais pode ser complementado ou reduzido em seu significado único. Mas também de um mistério que convida ao encontro e que convoca ao aprendizado da diferença: um mysterium fascinosum.

É verdade, porém, que esta abertura ao reconhecimento do valor da alteridade não apaga a importância do discernimento crítico. Não se deve desconhecer a existência de aspectos desumanizantes que podem estar presentes nas práticas religiosas. O diálogo inter-religioso requer igualmente este discernimento: “Afirmar que as outras tradições religiosas contêm elementos da graça não significa, por outro lado, que tudo, nelas, seja fruto da graça. (...) Uma aproximação aberta e positiva às outras tradições religiosas não autoriza, portanto, a fechar os olhos perante as contradições que possam existir entre elas e a revelação cristã”[22].

 

b)   O desafio de uma nova configuração histórica do cristianismo

 

As experiências de diálogo inter-religioso e de vivência inculturada da fé que envolvem o cristianismo hoje em dia, estão apontando para o nascimento de uma nova perspectiva para o cristianismo. Algo de novo está irrompendo a partir destas experiências inovadoras: um reencontro criador, que possibilita a emergência de virtualidades inéditas para o cristianismo. O encontro com o outro possibilita o reconhecimento de um potencial revelacional específico, que certamente vem enriquecer o patrimônio cristão e desvendar dimensões inéditas do mistério do Deus sempre maior. Se as outras tradições religiosas estão animadas por um potencial revelacional, nelas se vive uma autêntica experiência de Deus, e não apenas um “anseio” ou busca de Deus às apalpadelas.

 

c)    O desafio do reconhecimento de um pluralismo de princípio

 

O próprio Concílio Vaticano II reconheceu no Decreto sobre o Ecumenismo (Unitatis Redintegratio), ao falar sobre a índole própria da teologia dos orientais, a singularidade de métodos e modos diferentes para conhecer e exprimir os mistérios divinos. O documento sublinha que “alguns aspectos do mistério revelado” podem ser “captados mais congruamente e postos em melhor luz por um que por outro” (UR 17). Nesse sentido, pode-se afirmar que a plenitude do mistério de Deus não se esgota numa experiência revelacional particular. A revelação cristã, pode, assim, ser enriquecida pelas experiências reveladoras suscitadas pela práxis e pelas atitudes religiosas fundamentais presentes nas tradições religiosas de “nossos amigos”.

Estas reflexões favorecem a tomada de consciência da presença de um pluralismo de princípio ou de direito. Um pluralismo que vem reconhecido como uma riqueza: um sinal da livre criatividade de Deus; como algo querido por Deus e parte de seu desígnio misterioso. Tal consciência implica saber acolher a contingência e estar disponível ao enriquecimento permanente dos dons oferecidos por Deus mediante a experiência dos outros. A igreja vem convocada a valorizar “todas as riquezas da sabedoria infinita e multiforme de Deus”[23]

 

d)   O desafio da abertura a um novo sentido da missão

 

Na lógica do diálogo inter-religioso, a missão não perde sua razão de ser, mas vem compreendida numa nova perspectiva. O sentido da missão vem enriquecido pelo sentido amplo de evangelização, que não pode se restringir a uma de suas dimensões, a do anúncio. Evangelizar, como sublinha a Evangelii Nuntiandi, de Paulo VI, é “tornar nova a própria humanidade”[24]. Esta compreensão mais abrangente da evangelização repercute no modo de compreender a missão, agora entendida como o trabalho de afirmação do Reino de Deus na história, de manifestação da riqueza e  radicalidade do amor de Deus para os seres humanos. Trata-se de um convite, direcionado a todos, no sentido da partilha de comunhão no futuro de Deus, de difusão de um novo alento vital. Conforme o teólogo Jürgen Moltmann, a missão não pode se confundir com a difusão do império cristão ou a dilatação das igrejas cristãs, mas o trabalho de favorecimento da “nova criação de todas as coisas”, o convite para aceitar a vida, para afirmá-la, defendê-la, em comunhão com os outros, contra todas as “tecnologias” de morte que a impedem de brilhar no espaço da criação.[25] A identidade cristã não fica aqui comprometida, mas revitalizada. Se os cristãos estão animados pela presença fraterna e universal de Jesus e de seu sonho; se vivem esta realidade como uma experiência de amor, é natural que queiram partilhar com os outros este sonho. A missão consiste em compartilhar com os outros a alegria de conhecer e seguir Jesus Cristo. Antes de mais nada, significa o resultado de uma experiência de amor, e não simplesmente de um mandado[26]. O desafio está em proclamar Jesus, sem que isto signifique desconhecer ou relativizar as experiências religiosas partilhadas por “nossos amigos” em suas tradições singulares. Não se quer negar a prioridade do anúncio, que é permanente, mas reconhecer que o mesmo tem uma prioridade lógica e ideal, e não necessariamente temporal. Em muitos casos, como o próprio papa João Paulo II sublinhou, o diálogo constitui “a única maneira de prestar um sincero testemunho de Cristo e um generoso serviço ao homem”[27].

 

 

(Obs: este artigo foi publicado no livro: Luiz Carlos Susin. Sarça ardente. Teologia na América Latina: prospectivas. São Paulo: Paulinas, 2000, pp. 415-434)



[1] Edward SCHILLEBEECKX. Religião e violência. Concilium, 272 (4): 170-171, 1997. Ver também: Paulo MENEZES. Tolerância e religiões. In: Faustino TEIXEIRA (Org.) O diálogo inter-religioso como afirmação da vida. São Paulo: Paulinas,  1997, p. 49-50; Claude GEFFRÉ. Profession théologien; quelle pensée chrétienne pour le XXIe siècle. Paris: Albin Michel, 1999, p. 33-35.  Em obra recente, Dalai Lama se posiciona  contra a tese pessimista que define o comportamento humano como essencialmente egocêntrico. Cf. Dalai Lama & Howard Cutler. A arte da felicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 63-70.

[2] Edward SCHILLEBEECKX. Art.cit., p. 171.

[3] MANIFESTO do I Encontro da Assembléia do Povo de Deus (Quito – Equador – 1992). In: Faustino TEIXEIRA (Org.). O diálogo inter-religioso como afirmação da vida. Op.cit., p. 147-151.

[4] SECRETARIADO para os Não Crentes. O cristianismo e as outras religiões. Sedoc, 17 ( 176): 387, 1984 (n.3). Este Documento vem conhecido como Diálogo e Missão. Ver também:  PONTIFÍCIO Conselho para o Diálogo Inter-Religioso. Diálogo e Anúncio. Petrópolis: Vozes, 1991, n. 9. Ver ainda: THEOLOGICAL Advisory Commission of the Federation of Asian Bishops Conferences (FABC). Theses on Interreligous Dialogue. FABC Papers ( 48): 10, 1987 (Thesis 4). Este Documento foi igualmente publicado no Brasil: Sedoc, 33 (281): 51-73,  2000.

[5] FÉDÉRATION des Conférences épiscopales d’Asie. Ce que l’Esprit dit aux Églises. La Documentation Catholique,  n. 2217, 2 janvier 2000, p. 41. Documento igualmente publicado no Brasil: Sedoc, 33 (281): 38-50,  2000.

[6] SECRETARIADO para os Não Crentes. O cristianismo e as outras religiões. Sedoc, 17 ( 176): 387-399, 1984 (em particular ns. 29, 31, 33 e 35).

[7] Paul KNITTER. Una terra molte religioni; dialogo interreligioso e responsabilità globale. Assisi: Cittadella Editrice, 1998. Para uma apreciação geral desta obra cf. Faustino TEIXEIRA. O diálogo inter-religioso face ao desafio da responsabilidade global. Numen, 2 (1): 155-170, 1999.

[8] João Batista LIBÂNIO. Panorama da teologia da América Latina nos últimos 20 anos. Perspectiva Teológica (63): 173-175, 1992; Leonardo BOFF & Clodovis BOFF. Como fazer teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 46-48. Já em 1981, o teólogo Paulo Suess afirmara: “A Teologia da Libertação, até agora, pouco refletiu sobre a questão étnica dos povos e nações indígenas. Tal questão foi, como um dado superestrutural, ou esquecida ou  subordinada ao conflito das classes sociais.” :             Cf. Paulo SUESS. Culturas indígenas e evangelização – pressupostos para uma pastoral inculturada da libertação. REB, 41 (162): 211, 1981.

[9] Faustino TEIXEIRA (Org.) Teologia da libertação; novos desafios. São Paulo: Paulinas, 1991, p. 104. Para esta questão ver ainda: VVAA. O rosto índio de Deus. Petrópolis: Vozes, 1989.

[10] Marcello Azevedo. Comunidades eclesiais de base e inculturação da fé. São Paulo: Loyola, 1986, p. 257-258.

[11] Duas teses aparecem sobre o tema nos anos 80:  Valdeli Carvalho da COSTA. Umbanda. Os “seres superiores” e os Orixás/santos; um estudo sobre a fenomenologia do sincretismo umbandístico na perspectiva da teologia católica. São Paulo: Loyola, 1983;  Franziska C. REHBEIN. Candomblé e salvação; A salvação na religião nagô à luz da teologia cristã. São Paulo: Loyola, 1985.

[12] François de L’ESPINAY. A religião dos orixás, outra palavra do Deus único ? REB, 47 (187): 639-650, 1987.

[13] Heitor FRISOTTI, Passos no diálogo; igreja católica e religiões afro-brasileira. São Paulo: Paulus, 1996, p. 57-69. Muitas das publicações nesta linha foram promovidas pela ONG ATABAQUE: Cultura Negra e Teologia.

[14] Odilo METZLER. Teologia del Terzo Mondo in Concilium. Concilium, 9 (10): 148-157, 1983; Juan José TAMAYO. Presente y futuro de la teología de la liberación. Madrid: San Pablo, 1994, p. 153-155.

[15] João GUIMARÃES ROSA. Grande sertão: veredas. 14a edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967, p. 15.

[16] Jether Pereira RAMALHO. Ecumenismo brotando da base. Sedoc, 11 (118): 842-845, 1979.

[17] Carlos MESTERS. Jesus e a cultura do seu povo. Estudos Bíblicos (61): 20, 1999.

[18] CARTA ao povo das CEBs dos membros de igrejas não católicas romanas participantes do 10o Intereclesial. Ilhéus, 15 de julho de 2000. Mimeo.

[19] Claude GEFFRÉ. Le pluralisme religieux et l’indifferentisme, ou le vrai défi de la théologie chrétienne. Revue Theologique de Louvain, 31 (1): 22-23, 2000.  

[20] Diálogo e Missão, n. 22

[21] Paul KNITTER. Op.cit., p. 33.

[22] Diálogo e Anúncio, n. 31

[23] Diálogo e Missão, n. 41. Para a fundamentação desta questão cf. Claude GEFFRÉ.. Profession Théologien; quelle pensée chrétienne pour le XXIe siècle. Paris: Albin Michel, 1999, p. 138-139; Jacques DUPUIS. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Pauilinas, 1999, p. 526-528.

[24] PAULO VI. A evangelização no mundo contemporâneo – Exortação Apostólica “Evangelii Nuntiandi”. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1979, n. 18.

[25] Jürgen MOLTMANN. Dio nel progetto del mondo moderno. Brescia: Queriniana, 1999, p. 226-231; Michael AMALADOSS. Le Royaume, but de la Mission. Spiritus, 36 (140): 291-304, p. 1995.

[26] Diálogo e Anúncio, n. 83.

[27] JOÃO PAULO II. Sobre a validade permanente do mandato missionário. Petrópolis: Vozes, 1991, n. 57.  Ver ainda:  Jacques DUPUIS. Rumo... Op.cit.,  p. 503.

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