sexta-feira, 23 de outubro de 2015

A Canção de Caetano

A Canção de Caetano


Faustino Teixeira



Et s´Il ferme devant toi
tous les cols, tous les chemins,
Il te montrera un passage secret
Encore inconnu de tous

Rûmî



Fui tomado de alegria ao receber o convite de Bia Dias para escrever a apresentação de seu livro, Névoa e Assobio. Pude acompanhar de perto essa canção de Caetano, envolvido por sua dor e beleza, num compasso de sombra e luz, de morte e vida. Tudo de forma tão impressionante, mas também delicada e terna. Através dessa linda melodia pude me achegar ao que há de mais profundo e vibrante no Mistério da Maternidade. Pude entender, para além dos livros ou falas, o que significa para alguém ser tocado pelo enigma da vida. Como num novelo de fios nobres, Bia vai destacando com sensibilidade única o que representou para ela essa “apresentação” do amor, com a chegada breve de Caetano.

A vida veio acolhida com carinho e coragem desde o início, desnudando um horizonte antes improvável. Com a nova presença, a descoberta de um afeto que se irradiava para o mundo. Dizia Bia: “Era o mundo que estava grávido comigo”.

Todo o processo foi marcado pelo ritmo do milagre: a “gota improvável”, a fertilização surpreendente, a quebra dos prognósticos. O parto também foi um dom, respondendo positivamente a um silêncio denso que percorreu os meses de solidão e expectativa. O nascimento, com impacto de clarão, foi precedido por um mantra suscitado pelas forças mais íntimas do coração: “nasce filho, nasce filho, nasce filho”. E ele atendeu à prece, sobrevivendo e resgatando um sentido novo para a existência daqueles que o aguardavam. Estava ali, de forma frágil mas desperta, reagindo  a tantas indagações e demandas. A vida, em verdade, “respondeu com sua presença viva”.

Algo novidadeiro acontecia naquele momento para a mãe, que relatou em depoimento o que vivenciou numa de suas visitas ao CTI: “Coloquei a mão em seu coração e ele, num esforço imenso, a pegou com sua mãozinha, a me guiar por um novo lado da existência que talvez me fosse inacessível sem sua passagem pela vida”. Naquele momento, naquele gesto, naquele carinho, um novo sentido se anunciava, de reinvenção do espiritual.

A experiência materna recompunha a dinâmica existencial: “Meu filho me deu uma família nova em uma travessia arriscada. Fui me encontrando com a experiência mais abissal e bela que poderia ter e achando no meio de tudo uma maneira singular de ser mãe – uma escritura, um estilo, minha diferença. Com meu pequeno frequentei outros países, surgiram novas perguntas, fui reconstruindo teorias acerca do valor e do sentido da vida. Aceitei tudo que ele me trazia, exceto viver de forma banal, sem intensidade, sem espanto, sem encantamento, sem risco, sem amor ao enigma”.

Bia relata um momento de luz vivenciado na UTI Neonatal, quando uma enfermeira a guiou com braços firmes para a máquina que iria extrair o seu leite para Caetano. E em fala preciosa assinalou: “Você já parou para pensar na beleza que há nesse seu esforço insistente de querer passar 1 ml de leite pela sonda para o seu filho?”. Não havia resposta para uma indagação tão inusitada, apenas o silêncio sonoro diante do acolhimento do outro, e de um lugar tão fragilizado e precário, diante de uma sede muito maior de esperança e de vida.

Caetano veio como um “poema breve”, como um haikai fugidio, mas que deixou uma luz imperiosa. Uma vida inteira que se acomodou na delicadeza daqueles cinco dias, “e fez caber num gesto delicado a existência inteira”.  Veio como “névoa e assobio”, irradiando um significado que é essencial, uma atenção nova e precisa para os pequenos detalhes do cotidiano, para a melodia silenciosa das coisas. Veio também para acenar com rigor os traços da “indeterminação da existência”, os passos do inominável e os percursos enigmáticos da própria vida.

Através dos poéticos e doídos relatos de Bia, podemos vislumbrar também o seu renascimento “a partir do resto que se preservou”. Caetano partiu deixando dura saudade, uma saudade que “é da extensão de um vale”, com marcas de escuridão ameaçadoras, mas também com frestas de esperança e iluminação. Sua presença ficou guardada como num relicário. Seria encurtar o significado dessa canção dizer simplesmente que ele partiu. Esse acontecimento propiciou novas conexões com a vida. Tudo vem expresso de forma tão palpável na letra da canção: “Tocarei seu nome para poder falar de amor”.

Nas longas madrugadas essa presença vem revivida, nas noites intensas onde se busca inventar a bravura. E aquela figura linda e frágil retoma o seu hálito: “Há noites onde vigio meu filho: vou procurar seus barulhos nos passarinhos que pousam distraídos na varanda, fico ali num silêncio denso me lembrando de seus olhos fundos e mínimos que me arremessaram ao lugar que talvez nunca teria existido”. E o querido companheiro, Maurício, lembra com alegria que a criança está sempre aí, de mãos dadas num caminho de fraternura em direção ao mar. Tudo isso me faz recordar um dos maiores místicos da tradição sufi, o afegão Rûmî (sec  XIII), em passagem de seu Masnavi, onde relata a história de um sheikh repreendido por sua mulher por não se lamentar pela morte de seus filhos. É verdade que eles tinham partido por “uma virada da fortuna”, mas na verdade estavam ainda ali com ele, brincando ao seu redor. Não via razão para as lágrimas, já que eles estavam bem junto dele, e uniam-se por maravilhoso abraço.

Um trecho da canção de Caetano Veloso repetido por Bia em seus depoimentos traduz muito desse repertório vital: “Existirmos, a que será que se destina”. A presença de uma criança em sua vida fez despertar esse tema com toda a sua espessura. Da vibração do nascimento à dor da despedida, da alegria inaugural à dor mais aguda. Foram tantas emoções na costura de uma experiência linda de maternidade. Como indicou Bia, Caetano foi seu “maior voo”, tecendo com a doçura de sua mão a delicada linha de um amor que não se apaga. Uma gota de vida, franzina em seus detalhes, veio dignificar uma existência, favorecendo a luminosidade de uma dimensão oceânica. Com a presença do filho querido, o despertar de uma língua secreta. Numa inversão tão comum na experiência mística, foi aquela linda criança que acolheu Bia nos braços e a salvou, indicando um território novo e secreto para a sua caminhada.

Considero um privilégio único estar diante desses maravilhosos depoimentos de Bia Dias, um brinde de alegria, vida e esperança para os leitores. Uma oportunidade singular para redimensionar cada instante da vida como uma peça sagrada, cada detalhe da existência como um foco de luz. Com essa canção de Caetano somos despertados para o singelo assobio da profundidade do ser.

(Apresentação do livro de Bianca Dias – Névoa e Assobio. Belo Horizonte: Relicário, 2015 – Versão longa – Desenhos de Julia Panadés)


quinta-feira, 22 de outubro de 2015

A ousadia mística de uma fala feminina

 A ousadia mística de uma fala feminina

(Entrevista concedida ao IHU-Notícias - Unisinos)

Questões:

1. Qual é a centralidade das Moradas na obra de Teresa d’Ávila

Esta grande obra de Teresa de Ávila (1515-1582) reflete o momento de sua maturidade espiritual. Foi escrita nas cidades de Toledo e Ávila entre junho e novembro de 1577, 12 anos depois do Livro da Vida, quando Teresa tinha 62 anos. Foi o último livro doutrinal da mística de Ávila, e reflete um momento particular, de busca de um melhor alinhamento das vivas experiências espirituais de Teresa ao longo de sua trajetória.  Como mostrou Michel de Certeau, a biografia era o modo encontrado por ela para “ordenar a própria alma”. Seguir os passos das Moradas é retomar o caminho encontrado por místicos de tantas tradições para apresentar o percurso que leva o fiel (o amante) ao horizonte mais radical do sentido, do encontro com o Amado. E Teresa acolheu a perspectiva de interiorização, que remete a nomes importantes como Sócrates e Agostinho. A alma torna-se para Teresa o lugar especial de encontro com o Mistério Maior, e toda a sua obra consiste em preparar esse espaço interior, através do desapego e das rupturas dos nós, para que seja o rincão de uma hospitalidade muito especial. Dizia Teresa: “É sumamente bom entrar primeiro no aposento do conhecimento próprio, antes de voar aos outros” (1M 2,9).

2. Em que consiste a convocação de Teresa ao cultivo do mundo interior?

Teresa já inicia sua reflexão nas Moradas falando da dignidade da alma, que vem comparada a um castelo  “feito de um só diamante”. Reconhece a dignidade e beleza dessa alma, portadora de tão precioso bem, pois lá no centro desse castelo habita um Rei poderoso, que é a razão e o motivo fundamental da própria vida. E ela, a alma, foi feita à imagem e semelhança desse Deus Misericordioso. O desafio lançado pela mística abulense é o de avançar em direção a esse centro, rompendo com todos os apegos que impedem essa experiência de encontro. Ela sabe que ali naquele Fundo “se passam as coisas mais secretas entre Deus e a alma” (1M 1,3). Mas é preciso romper com os limites e ultrapassar a camada espessa que impede o essencial despojamento. Não há para ela outro caminho possível de acesso senão o da interiorização, favorecido pela oração. A oração é a porta de entrada das Moradas (1M  1,7). A convocação é muito clara: “Ponde os olhos no centro: aí está o salão principal, onde se encontra o rei” (1M 2,8). Esse centro é como um “braseiro” de onde irradiam finíssimas fragrâncias, que se irradiam por todos os cômodos, até tocar o próprio corpo. Mas Teresa adverte que essa interiorização deve ser sempre acompanhada pela abertura e conhecimento do Mistério de Deus.

3. Em que consistem as sete Moradas apresentadas por Teresa e como elas culminam no acesso ao mistério de Deus e o mistério da natureza humana?

Cada morada reflete um passo no processo de interiorização e de aproximação ao Mistério de Deus. Os temas apresentados em cada momento são de grande riqueza, traduzindo com fidelidade as dificuldades e alegrias que acompanham a dinâmica de crescimento espiritual. Alguns temas, em especial, são destacados por Teresa, como por exemplo o “mistério do mal”, no capítulo primeiro das primeiras moradas. Um tema que sempre ocupou a atenção de Teresa: as artimanhas do demônio para impedir o acesso às aguas vitais do mundo interior. Como mestra do discernimento espiritual, Teresa indica os caminhos da humildade, da paciência, mas sobretudo da adesão fiel ao querer de Deus, à gratuidade de seu Mistério, como antídotos fundamentais para enfrentar os inúmeros desafios dessa caminhada em direção ao Mistério. O processo é difícil, envolve ascese e luta: uma batalha permanente contra os obstáculos edificados pelos apegos da vida. Interessante também ver as provas que Teresa indica para verificar o grau de despojamento encontrado no buscador, sobretudo a capacidade efetiva de desapego diante das intempéries da vida. Na medida em que se avança nas dependências das moradas, firma-se um espaço novo, da presença de Deus e de seus favores sobrenaturais, sempre gratuitos. Nas últimas moradas, que já apresentam o estado de união mística, o tema do êxtase e dos arroubamentos ganham lugar especial, bem como os passos de discernimento para verificar a autenticidade da experiência vivida. Um ponto de destaque, a centralidade de Jesus, como referência para a caminhada: estar diante desta presença é participar de algo poderoso, que exorciza o medo e incita a avançar com segurança. Como coroação das moradas, as teofanias trinitárias que marcam o estágio final, simbolizando o matrimônio espiritual.

4. Qual é a perspectiva mística de Teresa e como sua mística aparece em suas obras?

Poderia destacar dois traços essenciais da mística de Teresa, que brilham com intensidade em suas Moradas. Em primeiro lugar, o protagonismo de Deus. Algo que nos faz lembrar aquela bela reflexão de João da Cruz, na Chama viva de Amor: “Se a alma busca a Deus, muito mais a procura o seu Amado” (Ch 3,28). Para Teresa é sempre Deus que convoca e abre a relação do ser humano com ele, é sempre o sujeito nesse processo de abertura, que se irradia na relação com os outros. Na medida em que se avança nas estâncias das moradas, os dons sobrenaturais ganham evidência. Tudo é fruto da graça, tudo é dom de Deus. Teresa reitera esse toque magnífico da presença de Deus, que como o bom pastor, jamais abandona os seus queridos. Ela diz no Livro da Vida, no final do capítulo sexto: “Vossa mão me sustenta há varios anos”; “Vós não vos afastastes de mim por inteiro, dando-me sempre a mão para que eu voltasse a me levanter, muitas vezes.” O outro traço é a centralidade do amor. Por todo o tempo, no processo de afirmação da vida espiritual, Teresa lembra desse primado. Mas de forma muito especial no capítulo terceiro das quintas moradas, quando fala de forma exemplar de um outro modo de união, tão querido por Deus. Para aqueles que têm dificuldade de acessar os píncaros da contemplação, Teresa oferece um caminho mais acessível, mas essencial: o amor a Deus e o amor ao próximo. Tudo tão simples… Ela assinala que se o buscador guarda esses dois desafios com seriedade, a união com Deus está garantida. Daí sua ênfase na caridade fraterna. Diz para as religiosas: “Quanto mais adiantadas estiverdes no amor ao próximo, tanto mais estareis no amor de Deus” (5M 3,8). Lança severas críticas às exterioridades da fé, aos apegos piedosos e ensimesmados aos penduricalhos da fé. O essencial, diz Teresa, não está nesse apego superficial, mas em algo mais profundo e exigente, que é deixar-se habitar pela presença do outro. E adverte as religiosas: “Não, irmãs, não é assim! O Senhor quer obras. Se vês uma enferma a quem podes dar algum alívio, não tenhas receio de perder a tua devoção e compadece-te dela” (5M 3,11). O recado é bem claro: não pode haver experiência de união com Deus se faltar a virtude da caridade (5M 3,12). Indica, porém, um complemento importante: para que o amor ao próximo ganhe vitalidade ele deve deixar-se enraizar no amor de Deus. É a partir desse vínculo fundamental que o amor ao outro pode desabrochar com profundidade (5M 3,9).

5. Para  além de uma interpretação eclesiástica, como a obra de Teresa d’Ávila pode ser interpretada?

Verificamos que, de fato, os grandes especialistas na obra de Teresa de Ávila são religiosos. São autores que trazem uma contribuição muito importante para a interpretação das obras de Teresa e de seu itinerário místico. Mas vejo também como fundamental a abertura de novos canais de reflexão sobre a mística de Ávila, procedentes de estudiosos leigos, inseridos nos diversos setores das ciências humanas. Isto pode também favorecer um olhar específico, diferencial, sobre a dinâmica espiritual de Teresa. Pistas importantes, como a da corporeidade, foram abertas por pesquisadores não religiosos, como é o caso da psicanalista Julia Kristeva. Vale também lembrar a singular contribuição de Luce López-Baralt, em seus estudos sobre a simbologia de Teresa. Trata-se de um desafio importante e em aberto.

6. Por quais razões a obra Moradas deveria ser lida hoje?

Em sua carta encíclica sobre o cuidado da casa comum, Laudato si (2015), o papa Francisco chamou a atenção para um problema grave de nosso tempo, que é a aceleração (rapidación), o ritmo de velocidade que se impõe às ações humanas (LS 18). Vivemos sob o domínio da produtividade, da busca desenfreada pelo sucesso, escravos das leis do mercado. Os grandes místicos, como Teresa, destacam a importância de um outro ritmo para a vida, de cuidado com o mundo interior, de quietação dos sentidos, de atenção aos toques do silêncio. Dizia Thomas Merton, que assim como as árvores e as montanhas precisam do repouso da noite para recuperar suas forças e ressurgir renovadas na aurora, assim também o ser humano necessita do “espírito da noite”, da paz interior e do repouso para retomar a dignidade de sua natureza essencial.  É mediante este “trabalho de cela” que todos os sentidos poderão encontrar o reforço essencial para então abrir-se às belezas do mundo circundante. Na perspectiva de Teresa, o mergulho no mundo interior é fundamental, mas ele vem sempre acompanhado de uma sede de irradiação, de uma tensão operativa, visando sempre a virtude da caridade.

7. Quais são os principais intérpretes da obra de Teresa d’Ávila?

Eu citaria aqui dois grandes intérpretes, ambos carmelitas, com um trabalho precioso de reflexão sobre a vida e as obras de Teresa de Ávila: Tomás Álvarez e Maximiliano Herraíz. Destaco aqui a recente edição das Obras Completas de Teresa de Jesús, a cargo de Maximiliano Herraíz (Salamanca: Sígueme, 2015). Trata-se de uma edição primorosa. Além da introdução geral e das notas, há também um cuidadoso trabalho de apresentação de cada obra de Teresa, sempre a cargo de Herraíz.

8. Teresa d’Ávila é doutora da Igreja. O que isso significa e como ela foi elevada a tal posto?

Esse reconhecimento tem uma longa história. Teresa veio canonizada em 12 de março de 1622, na época do pontificado de Gregório XV. Os dons de sua santidade foram logo reconhecidos pela igreja, embora tenha tido suas dificuldades em seu tempo com a inquisição. Em sua canonização já vem situada como “Mestra e Doutora”. A declaração oficial, de reconhecimento de Teresa como doutora da igreja, aconteceu no pontificado do papa Paulo VI, em 27 de setembro de 1970. Mas há que reconhecer que a teologia mística veio por muito tempo relegada ao “rigoroso cenáculo de ´estranhos` especialistas ou simples apaixonados ´espirituais`”, como mostrou recentemente Maximiliano Herraíz, em obra sobre a Experiência de Deus em Teresa de Jesus e João da Cruz (Roma: OCD, 2014). Diria que Teresa é uma doutora da simplicidade e da humildade. Todo o seu estilo literário vem marcado por esse toque de acessibilidade, numa dinâmica de desapego que encanta. Uma linguagem pontuada pela marca coloquial, espontânea, tonificada pela experiência. Isto nem sempre veio acolhido com abertura pelo mundo da teologia. Sempre houve contenda entre teólogos e espirituais, com seculares prejuízos e desqualificações acadêmicas do trabalho dos místicos por parte dos teólogos de côrte. Estas objeções ocorreram por muito tempo, mas felizmente foram se amenizando no pós-concílio, por obra de alguns teólogos de ponta, como Edward Schillebeecx e Karl Rahner.

9. Qual foi o papel de Teresa d’Ávila enquanto reformadora das Carmelitas?

O que mais impressiona na vida de Teresa de Ávila é o vigor da sua atuação, a disposição férrea de lutar em favor do bem da igreja. Na terceira fase de sua vida, no periodo que cobre os anos de 1562 a 1582, emerge a Teresa escritora e a religiosa empenhada no trabalho das fundações. É quando percebemos o lado Marta de Teresa, em suas inúmeras viagens para realizar o sonho tão gestado de reformar o Carmelo. Sob a sua responsabilidade, nada menos do que dezoito fundações, começando com a fundação do Carmelo de São José (Ávila), em 1562  e concluindo com a fundação do Carmelo de Burgos, em 1582. Além dessas, outras projetadas por ela, ainda que não realizadas em sua vida, como as fundações de Madrid, Pamplona, Valência e Lisboa.

10. Deseja acrescentar algo? 

Sim, em primeiro lugar, a ousadia feminina de Teresa, avançando em reflexões místicas de impressionante alcance. Isto numa sociedade dominada pela presença de homens, de letrados masculinos, instauradores da ordenação da vida religiosa. Teresa rompe com esse esquema e instaura uma dinâmica nova, diversa, quebrando a rotina desta marca na dinâmica interpretativa da escritura. A novidade está no “ato feminino de falar”, com astúcia e sabedoria. Assim ela conseguiu driblar a inquisição e seus confessores homens, que resistiam a acolher a riqueza de suas experiências místicas. Um bonito exemplo vem dado no Livro da Vida, naquele difícil periodo da presença da inquisição na Espanha, quando se interditou a leitura de muitos livros em castelhano: escritos de devoção (1559). Foi quando Teresa ouviu a voz do Senhor que disse: “Não sofras, que te darei o livro vivo”. Ela comentou na ocasião: “Sempre que o Senhor me ordenava uma coisa no oração e o confessor me dizia outra, o próprio Senhor repetia que lhe obedecesse; depois sua Majestade mudava a sua opinião, para que me ordenasse outra vez de acordo com a vontade divina” (V 26,5). Em segundo lugar, a presença do corpo na mística de Teresa. Em rica expressão do Livro da Vida, Teresa assinalou: “Não somos anjos, pois temos um corpo” (V 22,10). A experiência espiritual de Teresa vem sempre pontuada por essa intensidade do desejo, pelos toques da corporalidade. Julia Kristeva, em sua obra sobre Teresa (Thérèse mon amour – Fayard, 2008), fala da ousadia dessa mulher. Num quadro masculino e repressivo, insere em sua pluma uma nota diversa,  marcada por sensualidade única, desafiando todo pudor. O seu vocabulário vem carregado de expressões sensuais, sinalizando a centralidade do corpo como espaço da realização dos favores divinos. A terminologia reflete essa dinâmica nova: gostos, delicias, prazeres etc. É o que também lembrou, de forma pertinente, Michel de Certeau em sua preciosa obra, Fábula Mística, publicada originalmente em Paris (Paris: Gallimard,1982).

(Publicada no IHU-Notícias, de 10/10/2015)