A sedução fundamentalista
Os setores mais abertos da sociedade e da igreja receberam a notícia da escolha do novo papa com perplexidade. Há sólidas razões para justificar este sentimento, pois a trajetória do cardeal Ratzinger não alimenta esperanças. Bento XVI pode surpreender o mundo?
Faustino Teixeira
Um momento decisivo na afirmação do cardeal Ratzinger como forte candidato ao pontificado ocorreu na homilia da missa solene “pro eligendo romano pontifice”, celebrada no início do conclave. Foram palavras que surpreenderam os vaticanistas, alguns dos quais afirmaram que o cardeal tinha optado pela expressão fiel de seu pensamento tradicional, não traduzindo a dinâmica reconciliadora de um papável.
Na homilia, o cardeal Ratzinger ataca violentamente o que denominou “ditadura do relativismo”, ou seja os ventos instáveis das doutrinas e correntes ideológicas que, a seu ver, ameaçam a estabilidade da barca da igreja. Volta-se também contra a expansão das novas expressões religiosas e dos “vagos misticismos”, utilizando uma terminologia negativa e pesada: “A cada dia nascem novas seitas e se realiza aquilo o que diz São Paulo sobre o engano dos homens, sobre a astúcia que tende a induzir ao erro”.
O cardeal Ratzinger retoma neste momento solene uma de suas preocupações mais recorrentes, a do relativismo, que em outra ocasião definiu como “o problema mais fundamental da fé nos nossos dias” . É nesta mesma linha de continuidade que se firma em seu pensamento a crítica ao pluralismo religioso de princípio e a afirmação contundente da centralidade da igreja, entendida como necessária para a salvação e exclusiva detentora da plenitude dos meios de salvação. Muitos dos teólogos que buscaram ampliar a reflexão teológica sobre o pluralismo religioso nos últimos anos sofreram intenso controle e repressão da Congregação para a Doutrina da Fé, em cuja direção estava o cardeal Ratzinger. O teólogo do Sri Lanka, Tissa Balasuriya, foi excomungado em 1997, e depois reabilitado em 1998. Outros tantos foram impedidos de lecionar e viram seus livros sobre o tema notificados pela mesma Congregação romana, como Anthony de Mello (1998), Jacques Dupuis (2001) e Roger Haight (2004). Como assinalou o vaticanista italiano Giancarlo Zizzola, “os teólogos do diálogo inter-religioso foram golpeados pela bufera da repressão romana”.
Este temor ao pluralismo encontra uma explicação sociológica. Como mostrou com pertinência Peter Berger, o pluralismo provoca dúvidas e incertezas no mundo das identidades e crenças, e ao alcançar intensidade suscita a atração e o fascínio dos fundamentalismos e absolutismos. Em livro decisivo para firmar sua posição mais conservadora – “Rapporto sulla fede” , publicado em 1985, o cardeal Ratzinger sublinhava que o período pós conciliar tinha sido “decisivamente desfavorável para a Igreja católica” e propunha uma “restauração”, entendida como “a busca de um novo equilíbrio depois dos exageros de uma abertura indiscriminada ao mundo”. É curioso perceber que todos os projetos restauradores, como lembra Berger, incluem sempre a limitação ou mesmo supressão do pluralismo, porque este coloca diante dos olhos a possibilidade de alternativas inusitadas ou mal queridas.
Agora o cardeal se tornou o novo papa, com o apoio quase massivo de um colégio de cardeais que foi enquadrado nesta dinâmica disciplinar e restauradora, ao longo dos 27 anos de pontificado de João Paulo II. Os cardeais, como bem lembrou o historiador Oscar Beozzo, deixaram-se levar mais pelo medo do que pela ousadia das mudanças. Prefiriram depositar sua confiança num candidato marcado pela firmeza e solidez de uma identidade católico-romana bem definida, mas sombria. Rompeu-se a tradição recente de escolha de papas com sensibilidade mais pastoral e optou-se pelo caminho mais “seguro” de um “papa da doutrina”, para o qual o desafio maior não é o do “aggiornamento” ao tempo atual, mas a afirmação da ortodoxia da fé diante das ameaças relativistas do momento.
Os setores mais abertos da sociedade e da igreja receberam a notícia da escolha do novo papa Bento XVI com perplexidade. Há sólidas razões para justificar este sentimento, pois a trajetória passada do cardeal não alimenta esperanças. Talvez agora, quando o cardeal Ratzinger, guardião da “reta doutrina”, dá lugar ao papa Bento XVI, o mundo possa se surpreender com toques de ousadia e nova disposição dialogal. O novo papa encontra-se diante de uma responsabilidade única, de assumir as tarefas de um pastor capaz de acreditar mais na força do diálogo e da infinita misericórdia de Deus que nas “bastonadas” dos “profetas de desventuras”.
(Publicado na Agência Carta Maior - 20/04/2005)
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