quarta-feira, 15 de maio de 2013

Bento XVI: alcances e limites de seu pontificado


Bento XVI. Alcances e limites de seu pontificado

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

1. De Ratzinger a Bento XVI

            O pontificado de Bento XVI foi relativamente curto, de abril de 2005 a fevereiro de 2013, um pouco menos de oito anos. O gesto de renúncia ao papado, concretizado em 28 de fevereiro de 2013, foi o ato mais simbólico de sua presença como bispo de Roma. É uma novidade em tempos modernos, já que a última  renúncia papal tinha ocorrido em 1415, com Gregório XII. É sobretudo  por essa decisão de coragem que será lembrado pela posteridade, num gesto que coloca em discussão a própria dinâmica da estrutura central do governo da igreja, aproximando mais a posição do papa dos demais bispos.

            Não há como desligar a figura e atuação de Bento XVI do cardeal Joseph Ratzinger, que atuou como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé por mais de 23 anos, de novembro de 1981 a abril de 2005. O cardeal Ratzinger vinha de uma brilhante atuação teológica, como docente de teologia dogmática e fundamental na Escola Superior de Filosofia e Teologia em Freising e nas universidades de Bonn, Münster , Tübingen e Regensburg. Atuou também como perito do Concílio Vaticano II, assessorando o cardeal Joseph Frings, arcebispo de Köln (Colônia).

            Em março de 1977 vem nomeado por Paulo VI Arcebispo de München e Freising, e escolhe como lema episcopal: “colaborador da verdade”. Em junho do mesmo ano, torna-se cardeal, no consistório convocado por papa Montini. Em novembro de 1981 vem nomeado por João Paulo II como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF).

            Uma correta avaliação do pontificado de Bento XVI pressupõe a dinâmica de sua atuação desde esse período de presença na CDF, o que soma pouco mais de três décadas. Uma importante chave de leitura para compreender sua visão teológica e estratégia pastoral é o livro-entrevista Informe sobre a fé (Rapporto sulla fede), publicado em 1985. Os fundamentais traços da perspectiva restauradora levada a efeito por Bento XVI em seu pontificado estão anunciadas nessa obra. E a restauração vem entendida por ele como “a busca de um novo equilíbrio” , uma nova disciplina para a igreja católica, depois dos “exageros” do pós-concílio, em particular a “abertura indiscriminada ao mundo” e as “interpretações muito positivas de um mundo agnóstico e ateu”. Reagindo contra as posições que falam de um “antes” e um “depois” na história da igreja, defende a perspectiva que vê no Vaticano II não uma ruptura com o passado mas uma “continuidade do catolicismo”. Em sua ocular, o concílio não buscava mudar a fé, mas “reapresentá-la de modo eficaz”. Essa defesa da tradição vai ser um mote permanente do posicionamento do cardeal Ratzinger em sua atuação na CDF.

            Em seu Informe sobre a fé, o cardeal Ratzinger busca pontuar as razões que motivaram a crise da igreja no pós-concílio. Chega mesmo a falar em “processo progressivo de decadência” eclesial, que a seu ver provocaram equívocos em vários campos ou áreas. No âmbito da concepção eclesial, com a forma problemática de entendimento da igreja como povo de Deus, em sentido democratizante. Na esfera da colegialidade, com o reforço teológico indevido das conferências episcopais. No campo da teologia, com a ênfase numa perspectiva individualista e autonomista. Sinaliza, em particular, o cenário da teologia moral, identificada como o ponto nodal da tensão entre o magistério e os teólogos. Outros problemas são visualizados em âmbito da catequese, da liturgia e do entendimento da relação do cristianismo com as outras religiões.

            Sob a batuta do cardeal Ratzinger, a CDF agiu rigorosamente em favor desse projeto restaurador. Na busca de um novo enquadramento teológico, a CDF agiu criticamente contra teólogos que atuavam em áreas consideradas problemáticas, como a teologia moral, a teologia da libertação e a teologia das religiões. Muitos teólogos foram advertidos ou suas obras notificadas nesse período. A título de exemplificação: Leonardo Boff (1985), Charles Curran (1986), Edward Schillebeeckx (1986), Matthew Fox (1988), André Guindon (1992),  Tissa Balasuriya (1997), Antonii de Mello (1998), Jeanine Gramick e Robert Nugent (1999), Reinhard Messner (2000), Jacques Dupuis (2001), Marciano Vidal (2001) e Roger Haight (2004). Duas instruções são também publicadas em torno da teologia da libertação: Instruções acerca de alguns aspectos da “Teologia da libertação” e Instrução acerca da liberdade cristã e a libertação (1984 e 1986). Uma ação disciplinar envolveu igualmente o bispo Pedro Casaldáliga, da Prelazia de São Felix do Araguaia, que se recusou a assinar um documento que limitava sua ação pastoral (1988).

            Para fortalecer a unidade doutrinal da fé católica, nasceu também a proposta de elaboração de um Catecismo da igreja católica. O projeto surge em 1985 durante o sínodo extraordinário de bispos, comemorativo dos vinte anos do Concílio Vaticano II.  Ratzinger atuou na presidência da comissão encarregada de preparar o catecismo. O trabalho, iniciado em 1986, durou seis anos, sendo concluído no trigésimo aniversário da abertura do Concílio Vaticano II, em outubro de 1992. O catecismo tinha como objetivo “apresentar uma exposição orgânica e sintética dos conteúdos essenciais e fundamentais da doutrina católica” sobre a fé e a moral. Como seus destinatários, os responsáveis pela catequese.

            O documento talvez mais polêmico assinado pelo cardeal Ratzinger durante a sua presença na CDF foi a Declaração Dominus Iesus, publicada em agosto de 2000. Como tema, a unicidade e a universalidade salvífica de Jesus Cristo e a Igreja. As repercussões do documento foram muito negativas, sobretudo nas instâncias que trabalham o ecumenismo e o diálogo interreligioso. Significava, na verdade, um entrincheiramento identitário e um enquadramento do pluralismo religioso, destituído de sua valorização de princípio. As outras tradições religiosas são relegadas à condição de menoridade, e seus membros  confinados a uma “situação gravemente deficitária” com respeito aos adeptos da igreja católica, detentora da plenitude dos meios de salvação.


2. Bento XVI e a defesa da tradição

            É nesse anteparo restaurador que se situa a eleição de Joseph Ratzinger como papa Bento XVI, em abril de 2005. Não foi algo assim inesperado, mas o remate de um projeto de afirmação identitária em curso na igreja católica desde o final do pontificado de Paulo VI e início do pontificado de João Paulo II. O renomado vaticanista, Giancarlo Zizola, em sua obra Benedetto XVI. Un successore al crocevia (2005), reconhece como plausível a interpretação de que a escolha de Ratzinger para o papado “vinha preconizada para coroar o grande ciclo da restauração iniciada sob Wojtyla”.  O tom da perspectiva a ser instaurada – de continuidade -, já se delineia na homilia da Missa pro elegendo pontifice, proferida por Ratzinger enquanto decano do colégio cardinalício. Ele fala da “ditadura do relativismo” que abala, como ondas agitadas, o pensamento de muitos cristãos. E lança o desafio de uma “fé clara” e do caminho de um humanismo verdadeiro, que não pode acontecer fora da perspectiva crística.

            Como acentuou o vaticanista John L. Allen Jr, Bento XVI firmou como prioridade de seu pontificado a retomada dos “elementos fundamentais do anúncio evangélico e da tradição cristã”, visando reconduzir os católicos aos fundamentos essenciais de sua fé (Allen Jr, 2008, p. 5). Como já havia anunciado antes, no seu Informe sobre a fé, o papa buscava acentuar o sentido da “diferença católica”, ou seja, uma política da identidade e do anúncio. Ainda no primeiro ano de seu pontificado, em discurso proferido aos cardeais, arcebispos e prelados da cúria romana, em dezembro de 2005, Bento XVI retoma o eixo recorrente da autêntica recepção do Concílio Vaticano II.  Sinaliza que essa recepção ocorreu de forma “bastante difícil” em grandes partes da igreja. Fala então numa “correta hermenêutica” conciliar, que implicaria renovação, mas em linha de continuidade e não de distanciamento ou ruptura com a tradição. Reitera que o “sujeito-Igreja” concedido pelo Senhor, está em crescimento no tempo, mas “permanecendo porém sempre o mesmo”.

            Em linha de continuidade com sua atuação na CDF, o papa Ratzinger mantém-se um firme defensor da “doutrina pura e íntegra, sem atenuações nem desvios” e confirma seu projeto no pontificado como uma obra de continuidade na defesa desse patrimônio doutrinal. A busca incessante da verdade, lema de seu episcopado, continua a valer com cada vez mais intensidade. Na carta apostólica, Porta fidei, sobre o ano da fé, publicada em outubro de 2011, Bento XVI convoca os católicos ao aprofundamento de sua fé cristã, tendo como importante subsídio o Catecismo da igreja católica. Sublinha que este catecismo “constitui um dos frutos mais importantes do Concílio Vaticano II”.

            O controle sobre o mundo teológico continua ativo em seu pontificado. Novos teólogos serão objeto de investigação e notificação por parte da CDF, entre os quais Jon Sobrino (2006) e Margaret Farley (2012). E como novidade, a avaliação crítica-doutrinal, envolvendo uma conferência nacional de religiosas: Leadership Conference of Women Religious (LCWR), publicada pela CDF em abril de 2002. Abre-se um novo precedente, de crítica que se volta não só a teólogos, mas a uma instituição, no caso uma instituição que congrega 55.000 religiosas norte-americanas.

            Não há como negar a força argumentativa e a robusta reflexão teológica que anima as três grande encíclicas do papa Bento XVI: Deus caritas est – sobre Deus como amor (2005), Spe salvi – sobre a esperança cristã (2007) e Caritas in veritate – sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade (2009). Como mostrou com acerto o filósofo jesuíta, João A. MacDowell, em reflexão na revista Cult de março de 2013, “Bento XVI não é um homem de ação, um revolucionário, um reformador. É antes de tudo um pensador, um teólogo que filosofa à luz da revelação divina”. Singulares foram também alguns diálogos que ele encetou com a filosofia contemporânea, sublinhando a essencial relação entre fé e razão. Pode-se mencionar também sua trilogia sobre Jesus, intencionada a  “reanimar a identidade cristã” num tempo marcado pelos ventos secularizantes e pela perda da plausibilidade e referência de Deus na vida pública.

3.  Os impasses na condução estratégica  

            Apesar de sua sólida reflexão teológica, o papa Bento XVI não se mostrou um bom administrador em sua atuação como papa. Alguns vaticanistas experientes, como Marco Politi, sublinham as grandes dificuldades e incertezas do papa na condução estratégica de seu pontificado. Joseph Ratzinger revelou-se um papa competente no âmbito da teologia, uma personalidade de relevo espiritual e intelectual, mas um líder frágil no campo do geopolítica. Um papa rigoroso em suas análises, intransigente na defesa da fé e da doutrina, mas hesitante na lida eclesial interna e no campo dialogal mais amplo.
           
            Equívocos no campo da condução estratégica do pontificado foram inúmeros. É o que mostra Marco Politi em sua obra: Joseph Ratzinger: crisi di un papato (2011). Segundo este vaticanista, é como se uma “mão invisível” atuasse permanentemente, levando ciclicamente a novas e vivas polêmicas. Revelou-se quase uma praxe do pontificado: depois de passos em falso, a busca de intervenções equilibradoras. Em muitos casos, impasses substantivos são interpretados como “erros de comunicação”. Isso ocorreu, por exemplo, no polêmico discurso na Universidade de Regensburg, na Alemanha, em setembro de 2006. A intenção do papa era evidenciar a importância da relação entre fé e razão. Daí o tema da exposição: “Fé, razão e universidade”. Ele defende no discurso a importância de uma fé acompanhada de racionalidade para evitar o risco do fundamentalismo religioso. Se, de um lado, a fé é um elemento importante para a razão, como prevenção do ceticismo; a razão, por outro, deve igualmente acompanhar a fé, como barreira protetora contra o extremismo e a violência fundamentalista. O trecho que abriu espaço para a polêmica retrata o diálogo entre um imperador bizantino do século XIV e um estudioso persa, e a crítica tecida pelo imperador a Mohammad e o Islã. O trecho citado provoca uma tensão inusitada, derrubando em pouco tempo todo o trabalho dialogal com o islã realizado nos vinte anos de pontificado de João Paulo II. O curioso nisso tudo é que alguns vaticanista, entre os quais Politi, chegaram a alertar o responsável pela sala de imprensa, padre Lombardi, sobre o risco da citação presente no texto, e de suas possíveis repercussões negativas, sem conseguirem resultado positivo. A operação desastrosa do discurso só começa a ser reparada com a intervenção do secretário de Estado, cardeal Bertoni, dois dias depois do episódio. E também com a retificação do próprio papa em audiência geral na praça de São Pedro, com mais de uma semana de atraso. Um tema tão fundamental como o diálogo com o islã, não tinha a devida cobertura estratégica. Vale lembrar que um pouco antes da visita a Regensburg, o papa Ratzinger, num ato inesperado, tinha exilado para o Egito o então presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso, Michael Fitzgerald – grande conhecedor do Islã – e subordinado o mencionado dicastério ao Conselho para a Cultura. No ano seguinte, em junho de 2007, reparando o passo em falso, o Conselho para o Diálogo ganha novamente autonomia, com a presidência do cardeal Jean-Louis Tauran, excelente diplomático e versado nas questões envolvendo o mundo árabe.

            Outro momento delicado do pontificado de Bento XVI ocorreu com a retomada da missa tridentina, através de um motu próprio, Summorum pontificum (julho de 2007), visando uma reaproximação com a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, o movimento cismático anticonciliar dos seguidores de Marcel Lefebvre. Para o observador atento, há uma nítida relação entre o motu próprio e o discurso de Bento XVI proferido em dezembro de 2005 para a cúria romana, onde trata das hermenêuticas em tensão. A retomada da missa tridentina traduz em verdade a defesa de uma “hermenêutica de continuidade”, defendida por Bento XVI. Essa retomada litúrgica tradicional significou, na prática, um duro golpe na reforma litúrgica do Vaticano II, bem como uma carta branca concedida aos ultra-tradicionalistas lefebvrianos, condenados em 1988. Junto com o motu proprio, a retomada da oração da sexta feira santa, que originalmente falava nos “pérfidos judeus” (perfidi giudei). O papa João XXIII tinha abolido essa menção dos missais e Paulo VI tinha proposto uma fórmula mais amena para essa oração aos judeus. Não se falava em conversão dos judeus, mas na importância deles progredirem no amor a Deus e na fidelidade à sua aliança. Bento XVI prefere adotar uma fórmula intermediária, que não salvaguarda a irrevogabilidade da primeira aliança. Na oração escolhida, indica-se a necessidade de um reconhecimento judaico da salvação universal operada por Jesus Cristo. A posição adotada provoca tensões com o mundo judaico, particularmente com a comunidade judaica italiana.  Tensão semelhante com a comunidade judaica tinha também acontecido por ocasião da visita de Bento XVI ao campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, em maio de 2006, quando o papa tinha omitido em seu discurso a palavra Shoah, mencionando apenas a expressão holocausto. Sabe-se que para os judeus, a expressão Shoah é bem mais significativa para traduzir a ideia da catástrofe destrutiva que envolveu o genocídio nazista. Com o recurso a uma leitura deficiente da história, o papa Bento XVI buscou também deslocar a responsabilidade da igreja católica no dramático episódio nazista, como se ele fosse totalmente “estranho” ao catolicismo alemão da época. Isso também provocou muitas reações. Novas tensões ocorrem com a remissão da excomunhão de quatro bispos lefebvrianos, por ordem de Bento XVI, em janeiro de 2009, sendo um deles – Richard Williamson, um claro representante da extrema direita católica e porta-voz de um antissemitismo explícito. Chegou inclusive a negar a presença das câmaras de gás no extermínio judaico. Como nos casos anteriores, para corrigir os passos em falso, novas intervenções de socorro das autoridades romanas. As autoridades ou seus representantes são, às vezes, forçados a “defender continuamente trincheiras indefensáveis”.

            A mecânica dos passos em falso aparece em outras ocasiões, como na infeliz nomeação de Gerhard Wagner, como bispo auxiliar de Linz, na Áustria, em fevereiro de 2009. As reações contrárias nos meios de comunicação daquele país foram imediatas, em razão do conservadorismo vivo e ameaçador defendido pelo nomeado. O bispo acaba sendo em seguida dispensado. E também na infeliz declaração de Bento XVI, em sua viagem à África, em março de 2009. Durante o voo, em resposta a uma pergunta sobre a difusão da AIDS feita pelo jornalista francês, Philippe Visseyrias, o papa assinala que resistência a tal difusão não se dá com a distribuição de camisinhas, mas tal distribuição, ao contrário, “aumenta o problema”. A declaração do papa surtiu o efeito de um verdadeiro “tsunami  midiático”, exigindo explicações do representante da sala de imprensa vaticana, padre Lombardi.

            Os vaticanistas dividem-se com respeito aos campos de tensão entre Bento XVI e a cúria romana. Alguns, como John Allen Jr, Sandro Magister e Marco Politi, falam de obstáculos bem precisos enfrentados pelo papa em certas questões de conduta na política vaticana. Outros, como o historiador Alberto Melloni, tendem a reagir contra um pretenso isolamento do pontífice. É um tema delicado abordado por Paolo Rodari e Andrea Tornielli na obra Attaco a Ratzinger (Milano: Piemme, 2010, p. 242-244). Melloni argumenta, com razão, que os vinte e três anos de convivência de Ratzinger com a cúria romana, deixaram vínculos que não se perdem. É correto, porém, sublinhar que tensões existiram, sobretudo com figuras curiais de relevo no pontificado de João Paulo II, como os cardeais Darío Castrillón Hoyos, Angelo Sodano e Stanislaw Dziwisz. Desencontros vão retornar com  intensidade por ocasião das explosivas revelações em torno da problemática da pedofilia na igreja católica. É particularmente nesse campo que as diferenças entre Bento XVI e segmentos da cúria romana vão emergir com mais destaque, traduzindo também modos de conduta diversos com respeito ao governo na igreja. Segundo Politi, “Ratzinger experimenta o fracasso de decisões que imaginava profícuas, dá-se conta da ineficiência de quem na cúria deveria sustentá-lo e assiste impotente a uma revolta que se propaga nos meios de comunicação. Coisa ainda mais amarga, é obrigado a abrir os olhos para a rachadura radical do mundo católico com respeito à sua linha” (Politi, 2011, p. 160). Num dos mais corajosos documentos de seu pontificado, a carta pastoral aos católicos da Irlanda (março de 2010), reage com “pavor” e “sensação de traição” às notícias veiculadas sobre o abuso de crianças e jovens por parte de membros da igreja na Irlanda. Reconhece a gravidade da situação, que revela “graves pecados” no seio da igreja. Sublinha a importância de “examinar com atenção” as denúncias em curso, e desqualifica a tendência na sociedade de favorecimento do clero, vista como “uma preocupação inoportuna pelo bom nome da Igreja e para evitar escândalos”. Sua proposta é audaz: “agir com urgência”. Aos sacerdotes e religiosos envolvidos, sublinha que traíram a confiança neles depositada pelos jovens, e assinala que deverão “responder diante de Deus” e dos “tribunais devidamente constituídos”. Situações assim delicadas envolveram também líderes de movimentos muito estimulados e consagrados na ocasião, como Marcial Maciel Degollado, fundador dos Legionários de Cristo, acusado de abusos sexuais. As investigações contra ele, autorizadas pela CDF, têm início – com atraso - em maio de 2006, com muita oposição da cúria romana, onde tinha defensores. Quebra-se, com muita dificuldade, essa tradicional “cultura do silêncio”. Na ocasião, vem convidado a renunciar a todo ministério público e devotar-se a uma “vida reservada de oração e penitência”. Depois de sua morte, ocorrida em janeiro de 2008, outros escândalos envolvendo sua pessoa são revelados. Em maio de 2010, conclui-se a investigação sobre ele, com a confirmação de sua conduta imoral e de seus “gravíssimos comportamentos”.

            Junto com a crise em torno da pedofilia, a intransparência do banco vaticano e as polêmicas revelações do Vatileaks, no início de 2012, envolvendo documentos secretos do vaticano com a comprovação de uma ampla rede de corrupção, nepotismo e favoritismo. O mordomo de Bento XVI, que servia o papa desde 2006, vem responsabilizado pelo vazamento dos dados. Os documentos divulgados não tratavam só de questão financeira, mas também de “lutas fratricidas” entre cardeais da cúria romana, de sua crescente ambição e luta pelo poder.

            A conjugação desses complexos fatores, que se somam à frágil saúde de Bento XVI, resultaram na decisão em favor de sua renúncia. Ela foi talvez sua “única grande reforma”, como sublinhou Marco Politi. Não significou um gesto qualquer, mas um ato de governo de grande alcance, um ato singular de “magistério espiritual”. Daí ter provocado novamente a irritação da ala conservadora da igreja. Um ato que guarda consigo um significado preciso, de “dessacralização” de um cargo, tido como vitalício, e de visualização de seu limitado alcance. É um gesto que abre uma nova discussão na igreja católica, sobre o modo de estruturação de seu governo central, abrindo também espaço para sinalizar os limites da própria instituição e convocando ao desafio de reinvenção da igreja, de um novo tônus espiritual, fundado na convocação evangélica.

Referências Bibliográficas:

ALLEN JR, John L. Le 10 cose che stanno a cuore a papa Benedetto. Milano: Ancora, 2008.
FOX, Matthew. La guerra del papa. Perché la crociata segreta di Ratzinger ha compromisso la Chiesa (e come questa può essere salvata). Roma: Fazi, 2012.
MELLONI, Alberto. L´inizio di papa Ratzinger. Torino: Giulio Einaudi, 2006.
MESSORI, Vittorio. Rapporto sulla fede. Cinisello Balsamo: Paoline, 1985 (A colloquio con Joseph Ratzinger)
POLITI, Marco. Joseph Ratzinger. Crisi di un papato. Roma/Bari: Laterza, 2011.
RODARI, Paolo & TORNIELLI, Andrea. Attaco a Ratzinger. Accuse e scandali, profezie e comploti contro Benedetto XVI. Milano: Piemme, 2010.
ZIZOLA, Giancarlo. Benedetto XVI. Un sucessore al crocevia. Milano: Sperling & Kupfer, 2005.

(Publicado no livro: Afonso Soares & João Décio Passos (Orgs). Francisco: renasce a esperança. São Paulo: Paulinas, 2013)