terça-feira, 26 de outubro de 2010

Caminhos de intolerância

Caminhos de Intolerância

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=37487

IHU, 20-10-10

Faustino Teixeira, professor e pesquisador da Universidade Federal de Juiz de Fora, comenta a proibição do uso do véu na França. Faustino Teixeira é graduado em Ciência das Religiões e Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Fez mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutorado, na mesma área, pela Pontificia Universidade Gregoriana, de onde recebeu o título de pós-doutor. Atualmente, é professor na Universidade Federal de Juiz de Fora. Entre seus diversos livros publicados, destacamos: Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso (Aparecida do Norte: Santuário, 2008) e Teologia das Religiões: uma visão panorâmica (São Paulo: Paulinas, 1995). Faustino Teixeira seleciona, organiza e edita as Orações inter-religiosas, publicadas semanalmente, sempre às quintas-feiras, no blog do IHU. A entrevista é de Regina Folter e publicada pela revista Livrevista, outubro de 2010.

A lei que proíbe o uso de véu que cubra integralmente o rosto foi aprovada pelo Senado francês na terça-feira, dia 14 de setembro, sob o argumento de que “utilizar um véu num espaço público vai contra a igualdade entre cidadãos porque constitui um atentado à igualdade e ofende a dignidade humana, em especial a da mulher”. Qual é sua opinião a respeito desse argumento? Existe alguma pretensão por detrás da decisão do governo francês?

A questão é bem mais complexa. Envolve a preocupação do governo francês com a presença de uma população muçulmana que já se revela a segunda religião da França, com cerca de 5 milhões de adeptos. É a mais forte presença na Europa. Como indica a socióloga Danièle Hervieu-Léger, estamos diante de um conflito social e cultural “bem mais fundamental ainda, que é o do lugar a ser dado, numa sociedade democrática desestabilizada pelo desemprego, às comunidades imigradas e, portanto ao islã, com o qual elas estão relacionadas”. A religião firma-se para tais comunidades como o “lugar da conquista possível de sua dignidade e da construção de sua individualidade”. Está também em jogo a discussão sobre a laicidade, tema tão caro na França. No final da década de 80, quando a presença socialista era mais hegemônica, defendia-se uma posição bem mais “temperada”, com a defesa de uma laicidade amistosa, não agressiva ou de combate: uma “laicidade mediadora”. Os tempos mudaram com o acirramento ideológico do cenário politico, e o temor relacionado a um “choque de civilizações”. O que vigora em toda a Europa, como bem mostrou Manuel Castells, em artigo no jornalLa Vanguardia(25/09/2010), é um xenofobismo crescente e preocupante, que envolve um “coquetel de intolerância” onde o anti-islamismo é “o principal ingrediente, agora associado ao estigma do terrorismo potencial”.

A recente proibição do niqab, o véu integral, em lugares públicos é uma viva expressão dessa nova “explosão de xenofobia” e de desrespeito à alteridade. A França é o segundo país europeu, seguindo o exemplo da Bélgica, a proceder tal gênero de interdição. Visa-se, oficialmente, a evitar a “dissimulação do rosto no espaço público”, mas o que se pretende é algo mais doloroso… E isto vem ocorrendo em toda Europa. O que mais preocupa é que medidas preocupantes de intolerância vêm ganhando apoio da população. Cerca de 82% dos franceses apoiam a deportação de ciganos, definida no governo deSarkozy. Em cidades com significativa presença muçulmana, como Marselha, a população vem apoiando a proibição das convocatórias dos muezins à oração. Um referendo na Suiça determinou a proibição de novos minaretes, e isso serve de exemplo para os franceses. O veto do niqab e da burqa, que também ocorre na Itália ou prédios públicos da Catalunha, insere-se nessa política mais geral.

Qual é a importância da utilização da burqa ou do niqab para a religião islâmica? O que esses objetos representam para os muçulmanos?

Antes de entrar na questão temos que reconhecer que o mundo muçulmano não é assim um quadro monolítico e homogênio como vem apresentado pelo imaginário cultural e pelo discurso politico das sociedades euro-americanas, mas apresenta uma enorme diversidade histórica, cultural e política, como bem mostrou o pesquisador Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto em brilhante obra sobre a religião e civilização no islã (Santuário, 2010). É também incorreto afirmar, como o faz Samuel Huntington, que a sociedade islâmica é “inóspita” para as concepções liberais ocidentais. Trata-se de uma visão claramente ideologica e preconceituosa. Nada mais empiricamente falso do que identificar o islã com uma “essência fixa” que se reproduz igualmente por toda parte. O que ocorre não é somente uma pluralidade geográfica, étnica e cultural, mas também uma “enorme diversidade nas formas de interpretação, prática e experiência no islã”.

Essa diversidade reflete-se também no âmbito das interpretações e usos desse importante símbolo do islã, que é o véu. Há referências canônicas, expressas no Alcorão, para esse uso: “Dize também às crentes que recatem seus olhares, conservem seus pudores e não mostrem seus encantos naturais, além do imprescindível (…)” (24:31 e também 33:59).

Mas como mostrou Paulo Gabriel, o islã, como outras tradições religiosas, está “em constante processo de atualização e recriação de seus modelos normativos, cujos elementos constitutivos podem ser ressignificados e modificados em cada momento histórico e contexto cultural”. Isso se dá também com o uso do véu: o niqab, que cobre todo o corpo da mulher, com exceção das mãos e dos olhos, é mais utilizado na Arábia Saudita e em boa parted a Península Arábica.

Na França são cerca de 2.000 muçulmanas que utilizam esse traje integral. Já a burqa, que cobre inclusive os olhos com uma gaze de tecido, vem utilizada no Afeganistão. No Irã, o rosto fica à mostra com o chador, que é um longo pano que envolve o corpo da mulher. Já na Síria, Líbano e Turquia, temos a presença do hijab, um lenço que oculta os cabelos, e vem muitas vezes combinado com modernas calças jeans, que realçam as formas femininas. O véu é um símbolo de distinção, um sinal de proteção e de afirmação de dignidade (horma). O significado etimológico do termo hijab é esclarecedor: significa separação, véu de proteção e preservação.

Como as mulheres muçulmanas serão afetadas com a medida? Vão ocorrer mudanças estruturais em suas vidas?

É evidente que uma tal proibição viola a dignidade das mulheres muçulmanas e seu direito de convicção religiosa. Não sem razão, instâncias como a Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa e a Anistia Internacional pronunciaram-se contra uma tal decisão, com um argumento semelhante: é algo que fere o direito à liberdade de expressão e de religião das mulheres muçulmanas, para as quais esse símbolo traduz também um traço de sua identidade.

Na sua opinião, os muçulmanos podem te algum tipo de reação contra a lei, como deixar o país?

Tendo como base a situação atual da França, com a mudança da condição dos imigrados, que se sedentarizam e com a chegada à idade adulta de gerações de origem muçulmana nascidas ali, as que mais sofrem com as dificuldades de integração social e profissional, uma semelhante discriminação pode provocar reações inusitadas. Projetos de exclusão, com toques de islamofobia, podem “prefigurar a violência sob todas as formas”.

Como os países muçulmanos e não-muçulmanos vão encarar a aprovação da lei?

É difícil prever de antemão as possíveis reações. Não creio, porém, que serao muito positivas. Entre os estudiosos de Al-Azhar, um dos principais centros de teologia islâmica no mundo, as opiniões dividiram-se. Determinadas autoridades defenderam o respeito à decisão tomada pelo senado francês, enquanto outras criticaram duramente a decisão, por contrariar o princípio fundamental da liberdade. É interessante constatar que ali mesmo em Al-Azhar, o presidente Americano, Barak Obama, defendeu vigorosamente esse princípio da liberdade, no clássico discurso de 04 de junho de 2009: “É importante que os países ocidentais evitem impedir os cidadãos muçulmanos de praticar sua religião como bem entenderem – ditando, por exemplo, o vestuário de uma mulher muçulmana. Não podemos disfarçar com supostas pretensões liberais a hostilidade diante de uma religião”.

Na sua opinião, a lei fere os direitos humanos?

Considero imprescindível a discussão em torno da laicidade e a defesa de uma sociedade multiconfessional. Importante também a busca de caminhos de uma concordância fundada na razão. Defendo a ideia de uma “laicidade mediadora”, uma laicidade amistosa, radicalmente distinta de uma laicidade de combate, como estamos vendo renascer ultimamente. Trata-se, na verdade, de uma “laicidade de incompetência”, como diriaRegis Debray, que desconhece o desafio fundamental de conhecer o mundo do outro, para com ele melhor conviver. Não é rompendo com a dinâmica da liberdade e invadindo o âmbito da consciência que se firma uma sociedade democrática. Na verdade, como bem sublinhou Edward Said, “as culturas são em geral mais naturalmente elas mesmas quando entram em parceria com outras”

Diversidade, dom de Deus

Diversidade e diálogo: Entrevista com Faustino TeixeiraPDFStampaE-mail
Scritto da Jaime C. Patias, IMC   
Martedì 05 Ottobre 2010 00:00

diversidad"As religiões deveriam transparecer com sinais vitais na história o mistério de um Deus de misericórdia"."A diversidade é um dom que se insere na dinâmica misteriosa dos desígnios divinos. O pluralismo de princípio significa reconhecer a diversidade como um valor, como uma riqueza fundamental, como parte do mistério de Deus que nós não conseguimos compreender na sua totalidade", afirmou o professor Faustino Teixeira, pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais (UFJF), em entrevista à revista Missões durante curso sobre Ecumenismo, promovido pelo Centro Ecumênico de Serviço à Evangelização Popular - CESEP, no mês de julho, em São Paulo. Faustino é pós-doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), Itália, doutor em Teologia pela mesma universidade, mestre em Teologia, pela PUC-RJ e graduado em Filosofia e em Ciências da Religião pela UFJF. É autor de vários livros, dentre os quais "Nas teias da delicadeza" (Paulinas, 2006) e "As religiões no Brasil: continuidades e rupturas" (Vozes, 2006), este em parceria com Renata Menezes.

Faustino Teixeira nasceu em Juiz de Fora, numa família numerosa e muito religiosa. Seus pais tiveram 15 filhos, dez homens e cinco mulheres; ele é o oitavo filho e atribui à influência da família e dos amigos a sua busca por valores universais. O sonho do pesquisador é que exista um maior entendimento e respeito à diversidade de culturas e de religiões.

Para se dispor ao diálogo inter-religioso e ecumênico, que atitudes a pessoa deveria ter?

Uma disposição fundamental é a humildade, virtude indispensável para viver uma perspectiva dialogal em profundidade. Ter a consciência da contingência, de que não somos permanentes, mas que estamos em viagem neste mundo com outras pessoas, outras comunidades. O cultivo da humildade é uma das disposições mais difíceis e importantes. A segunda disposição é a abertura, ou seja, perceber que o outro com o qual eu entro em relação é alguém marcado por um mistério que eu não consigo jamais englobar, é alguém que experimenta a sua vida num espaço sagrado e que por isso tenho de respeitar a alteridade. Reconhecer que o outro é alguém que merece confiança, que tem uma dignidade e que sua convicção religiosa deve ser respeitada. Uma terceira disposição é a consciência do meu valor, da minha dignidade.

O diálogo deve ser feito por alguém que ama e acredita na sua identidade. Não pode dialogar quem não conhece os traços fundamentais da sua própria identidade. Tenho que dialogar com as minhas convicções para ser respeitado e respeitar as convicções do outro. O diálogo não é feito para abafar as individualidades. Não há diálogo verdadeiro quando eu escondo a minha identidade. Preciso levar ao interlocutor com quem dialogo aquilo que eu acredito. Uma quarta disposição é o sentimento comum de busca da verdade. Os interlocutores devem estar intimamente animados pela ideia de que caminham juntos em busca de um horizonte que só Deus conhece. Nunca um interlocutor está em posse radical do mistério. Somos itinerantes, estamos a caminho, ninguém está em sua pátria. Estamos envolvidos por uma verdade que nos ultrapassa. E é na dinâmica inter-relacional, dialogal, que a verdade vai florescendo. A verdade é a expressão de uma sinfonia inter-religiosa. Uma última disposição é a ecumene da compaixão, o exercício da compaixão. As religiões se unem animadas por uma compaixão comum de luta em favor do outro, da dignidade da terra, do criado, na luta contra o sofrimento, numa disposição de misericórdia.

Vivemos num tempo favorável ao diálogo, por outro lado percebemos um endurecimento das relações com o surgimento de fundamentalismos e extremismos. Como explicar isso?

Essa é a grande estranheza que a gente sente. Apesar de vivermos num tempo marcado pela abertura dialogal, vivenciamos simultaneamente um apego identitário muito forte, identidades que às vezes se revelam mortíferas que não só se fecham nos seus guetos como atacam, não abrindo espaços nas pessoas e comunidades para a percepção do valor. Vivenciamos essa dupla dialética, pelo fato do pluralismo balançar as nossas identidades, colocando-nos diante dum desafio aberto que está relacionado com o mistério do outro que provoca em nós um certo temor e a necessidade de mudar a nossa auto-compreensão. Todo o diálogo autêntico provoca mudança na nossa perspectiva de inserção no mundo e na nossa compreensão da identidade. Mas, nem todos estão preparados, e queremos uma transformação no nosso modo de ser.

Em seus escritos você fala num "pluralismo de princípios". O que seria esse conceito?

Deveríamos distinguir entre um pluralismo de fato e um pluralismo de princípios ou de direito. O pluralismo de fato significa que existe a diversidade religiosa como um fato e não há como driblar essa realidade. Pluralismo de princípio é que existe em nós uma perspectiva diferente; não apenas aceitar isso como um dado histórico, mas perceber essa realidade como algo adquirido por Deus. A diversidade é um dom que se insere na dinâmica misteriosa dos desígnios divinos. Então o pluralismo de princípio significa não apenas apurar a diversidade, mas reconhecer a diversidade como um valor, como uma riqueza fundamental, como parte do mistério de Deus que nós não conseguimos compreender na sua totalidade. O importante é perceber que há uma riqueza nessa diversidade e que ela manifesta a diversificação de um mistério que é sempre maior.

Em que as igrejas e religiões poderiam contribuir para garantir a sobrevivência da humanidade ameaçada?

As religiões têm um potencial garantidor do sentido, de resgatar o sentido ameaçado. Todas as religiões trabalham com elementos de profundidade, com um toque de espiritualidade. Elas têm uma tarefa fundamental de fazer valer essas entranhas do mistério misericordioso. A de rejeitar radicalmente uma situação de sofrimento humano, da terra e têm o papel de se unir em favor da paz mundial como afirmou Hans Küng: "não haverá paz no mundo sem paz entre as religiões". Então as religiões são convocadas a se unir contra o sofrimento do mundo. Talvez esse seja um dos mais fortes dinamizadores do diálogo inter-religioso.

Muitos conflitos são gerados por motivos religiosos. Qual é a relação entre guerra e religião?

Isso, infelizmente, porque as religiões não são somente portadoras de paz. As religiões estão na história e são marcadas por essa precariedade, são fragmentárias. Portanto, nem sempre, necessariamente as religiões desdobram na sua prática os elementos positivos do mistério. Muitas vezes elas expressam a vontade de determinados grupos ou setores. Penso que a tarefa profética que deve animar todas as religiões é o de lutar contra essas ambiguidades e fazer com que transpareçam como sinais vitais na história, o mistério de um Deus de misericórdia. Nem sempre as religiões são isentas dessa ambiguidade, portanto, elas podem ser tanto portadoras de paz como provocadoras da violência na medida em que elas se deixam levar pela vontade da arrogância de humanos.

Como entender e situar a Missão no horizonte do pluralismo religioso?

Sob o ponto de vista do cristianismo, nós temos como centro de referência fundamental Jesus Cristo. Não há como apagar para nós e para os outros com os quais entramos em contato esse sonho de Jesus, o significado de Jesus como curador da vida, como portador de alegria e como recuperador dos sonhos mais fundamentais. O trabalho da Missão eu vejo muito mais como um exercício de amor e não como um mandato. A Missão não pode ser vista como uma obrigação, mas como uma experiência de amor daqueles que viveram de forma profunda a experiência de contato e de sedução por Jesus Cristo e querem transmitir aos outros essa experiência de amor. Não só de Jesus Cristo como pessoa, mas dos valores que ele trouxe; da cortesia, da hospitalidade, da abertura, da delicadeza, da alegria... Nós somos convocados a partilhar com os outros o significado fundamental desses valores que ele deixou pra nós. Ou seja, nós somos convidados a não deixar apagar esse sonho do Reino de Deus na história. É uma missão respeitosa dos outros.

Que avaliação faz das iniciativas do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs - CONIC, como a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos e a Campanha da Fraternidade Ecumênica?

São iniciativas brilhantes. Os ganhos que se têm no diálogo inter-religioso não obstaculizam os trabalhos feitos no campo do ecumenismo. Inclusive, o trabalho ecumênico prepara o campo para uma abertura inter-religiosa. Todas as iniciativas no Brasil e no mundo são peças de grande importância na sensibilização do respeito ao outro, do respeito à consciência do outro. O meu diálogo com o outro é capaz de oferecer percepções da verdade que eu não capto na minha comunidade de fé. O outro é capaz de revelar pra mim elementos inéditos da minha experiência de Deus. Isso abre possibilidade mais ampla para um diálogo inter-religioso que não diminui a importância e o valor do diálogo ecumênico.


(Publicado na Revista Missões, Ano XXXVII, nº 7, setembro 2010, pp. 26-27)