terça-feira, 20 de abril de 2010

O desafio do mistério da alteridade


O DESAFIO DO MISTÉRIO DA ALTERIDADE


Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF



“Alarga o espaço da tua tenda,

estende as cortinas das tuas moradas,

não te detenhas, alonga as cordas,

reforça as estacas” (Is 54,2)


“A Deus pertencem o Levante e o Poente.

Para onde vos dirijais, lá encontrareis

o semblante de Deus” (Corão II, 115)




Introdução   


No âmbito da reflexão teológica brasileira, João Batista Libânio desponta como um dos nomes mais lúcidos e abertos. Em sua trajetória reflexiva foi capaz de abordar uma significativa variedade de temas e questões, apontando com sagacidade os novos horizontes do pensamento e da prática teológica e pastoral. Entre os âmbitos de sua atuação no magistério teológico, destaca-se sua presença nos cursos de introdução à teologia e teologia fundamental, quando o estudante de teologia recebe o primeiro impacto e o impulso essencial para a sua formação na área. Inúmeros teólogos que atuam hoje no Brasil foram despertados e incentivados por Libânio a enveredar de forma corajosa e original nos meandros de uma reflexão teológica viva e atual.

Em recente livro sobre a introdução à teologia, João Batista Libânio destaca algumas tendências e características da teologia contemporânea, e sinaliza dentre os seus traços específicos o diálogo com a modernidade, a sua dimensão ecumênica, dialógica e diacrônica, bem como o seu confronto com a subjetividade e a historicidade. Trata-se de uma teologia que assume a “perspectiva do diálogo” e se coloca fundamentalmente a serviço de todo o povo de Deus. Dentre as perspectivas teológicos recentes, Libânio menciona a presença do enfoque macroecumênico vigente na teologia das religiões, que atravessa os grandes tratados da teologia acadêmica. Para ele, não se trata apenas de mais um tema ou modismo teológico, mas de um novo imperativo para a reflexão neste início de milênio. Não há como fazer teologia no século XXI prescindindo do desafio epocal do diálogo inter-religioso. Trata-se, como afirma Libânio, de um “dever e necessidade” não só para os cristãos, mas também para os teólogos que queiram dizer uma palavra significativa para o nosso tempo. “A teologia, como desenrolar da fé, interpretação e explicitação dos dados revelados, deve incorporar a alteridade religiosa no método e no conteúdo”.


A convocação da alteridade


O tempo atual vem caracterizado pelo singular desafio da alteridade. Revela-se cada vez mais atual a questão da “redescoberta do outro” e do diálogo como desafios imprescindíveis. Os anos 80 e 90 foram marcados por acontecimentos que colocaram em grave crise a identidade egocêntrica e as “pretensões totalizantes do eu”. Acontecimentos como a queda do muro de Berlim, a crise do socialismo real e do neo-liberalismo, a crise ética e de sentido e a fragilização do equilíbrio do universo, provocaram a perda ou enfraquecimento do potencial de plausibilidade das narrativas de orientação e sustentação do mundo. O reconhecimento e a acolhida da diferença, emergem hoje como contrapontos à lógica excludente da identidade egocêntrica que marcou a modernidade, e sintonizam um momento novo de busca de sentido. “A grande questão do nosso presente, caracterizado pela crise da identidade saturada de ideologia, é cada vez mais a do reconhecimento e da acolhida da alteridade e da diferença. Trata-se de redescobrir o Outro, a partir de sua dimensão absoluta e transcendente e de traduzir esta experiência em palavras, tornando-a comunicativa e libertadora para todos.”

Esta questão da alteridade tem provocado no campo teológico atual, e particularmente no campo católico, um “dessarranjo” de proporções inusitadas. Num território sempre caracterizado pela homogeneidade e pelo predomínio das certezas identitárias, a emergência do desafio do outro e do pluralismo a ele associado, provocam acomodações incômodas. É o que se verifica, por exemplo, na recente Declaração Dominus Iesus, da Congregação para a Doutrina da Fé (2000). Respira-se ali a um temor generalizado face ao pluralismo de direito, ao risco de ter que reconhecer que o outro, o diferente, possa partilhar um lugar equivalente no plano da salvação. A opção escolhida pelo dicastério romano ocorre no caminho mais familiar das certezas tradicionais, e o desafio do outro  acaba se perdendo ou dissolvido em afirmações dogmáticas que reiteram sua situação “gravemente deficitária” em comparação aos adeptos do caminho “católico” mais seguro. Como sublinhou  Michel de Certeau, “o medo dos outros ou o temor de ser diverso torna-se intolerância; tende-se a instaurar-se um imperalismo social da identidade que seria o reino da tautologia: não se podendo aceitar o diverso, todo cristão suportaria unicamente a própria imagem da verdade, de modo que todos deveriam dizer ou ser a mesma coisa.” 

Apesar dos temores expressos por setores do magistério da Igreja católica, a teologia atual é provocada a pensar de forma mais decisiva este desafio da alteridade. Fazendo uma analogia com o evangelho de João, ela é como o discípulo que Jesus amava, corre mais depressa que Pedro para ver e experimentar o espetáculo da ressurreição de Jesus (Jo 20,3-4). De fato, a nova consciência do pluralismo religioso, entendido como um dom de Deus e expressão das riquezas de sua sabedoria infinita e multiforme, tem provocado uma “reviravolta hermenêutica da teologia”, para utilizar uma expressão cunhada pelo teólogo Claude Geffré. O pluralismo religioso emerge, assim, como um desafio “insuperável”, um verdadeiro sinal dos tempos a ser captado e trabalhado não só pelas Igrejas, mas também pela teologia aberta ao ecumenismo inter-religioso. 


A experiência da alteridade


A singularidade da alteridade como mistério esteve sempre presente na experiência dos místicos das diversas tradições religiosas: do Totalmente Outro que escapa continuamente a qualquer investigação. Do outro que transcende toda ciência, e que se esquiva a toda busca: “quanto mais alto se ousa, tanto menos se entendia” (João da Cruz); que assume formas diversas, permanecendo sempre misterioso: “Se o procuras no alto do céu, ele brilha como a lua no lago” (Rûmî); que mesmo estando tão próximo, é permanente surpresa: não há busca que o desvele, pois está para além do Oriente, sempre mais alto (al-Hallaj), no ângulo mais íntimo de cada um, protegido contra toda aventura (S.Bernardo).

Mas igualmente o outro humano é um patrimônio de mistério, que se revela a cada momento, deixando sempre adiante uma nova virtualidade a ser captada. O outro é um mistério contínuo que escapa a qualquer analogia ou possibilidade de redução à igualdade. Sua diversidade é irrevogável: não se pode pretender “possuir” ou apossar-se do outro, pois isto significa privá-lo  de sua singularidade. Ele deixa de ser “outro”. Quando numa relação, nega-se esta singularidade da diferença, o interlocutor permanece só e empobrecido. O crescimento do eu ocorre na dinâmica relacional: “não há lugar para o belo Narciso que se reflete na água: na própria imagem não pode senão afogar-se”. 

A mesma analogia pode ser aplicada ao diálogo inter-religioso. Cresce a cada dia a nova consciência teológica de que a relação com as outras tradições religiosas é fator fundamental de crescimento da tradição singular. Longe de enfraquecer a fé, o diálogo proporciona o seu aprofundamento, possibilitando uma abertura a novas e inusitadas dimensões do mistério a que está referida. Aprofunda-se hoje a convicção de que o conhecimento e a relação com uma outra tradição é fator não só de enriquecimento da tradição singular, mas condição de possibilidade de sua apreensão. Como diz Panikkar, “aquele que não conhece senão sua própria tradição, não a conhece verdadeiramente.” O individualismo é uma “heresia” que ataca igualmente as tradições religiosas, quando estas obstruem o caminho dialogal, fechando-se numa unidade auto-suficiente, e mesmo em alguns casos deflagrando-a contra os outros. O verdadeiro caminho, que traduz fidelidade ao sopro do Espírito, é aquele que ousa “ir além”, ampliando as fronteiras e alargando as tendas (Is, 54,2). Um caminho tão bem delineado por Thomas Merton: “Quanto mais sou capaz de afirmar os outros, dizer-lhes ‘sim’ em mim mesmo, descobrindo-os em mim e a mim mesmo neles, tanto mais real eu sou. Sou plenamente real se meu coração diz sim a todos.”

A alteridade talvez seja hoje a categoria fundamental a provocar os seres humanos em sua consciência crescente de habitar uma casa comum. É a dinâmica da alteridade que aciona nos seres humanos as dimensões essenciais da compaixão e do cuidado, enquanto atitudes de dedicação, solicitude, atenção, preocupação e inquietação com a vida do outro. É mediante o despertar da alteridade, que nascem os gestos essenciais de cooperação, solidariedade e amor, sem os quais o ser humano não pode se afirmar como tal. É a aceitação do outro, gratuita e sem exigências, que instaura o espaço possível da cooperação humanizadora. Trata-se de “sair de si mesmo e de seu próprio círculo e entrar no universo do outro enquanto outro, para sofrer com ele, para cuidar dele, para alegrar-se com ele e caminhar junto a ele, e para construir uma vida em sinergia e solidariedade.”

Ao trabalhar o tema da teologia em diálogo, Bruno Forte aponta três formas pelas quais a alteridade emerge como espaço de encontro. Em primeiro lugar na experiência da maravilha, quando a alteridade revela a sua força e impacto. Os pensadores identificam nesta experiência a origem do filosofar. Segundo Heidegger, “somente quando a estranheza do ente nos acossa, desperta e atrai ele a admiração. Somente baseado na admiração – quer dizer fundado na revelação do nada -  surge o ‘porque’”. A admiração nasce precisamente do “impacto com o outro, com a sua indedutível e improgramável presença”, que manifesta de forma precisa a incapacidade radical de qualquer possibilidade de posse ou domínio. A admiração faculta não um aprisionamento do outro, mas um estupor que aciona uma pro-vocação inédita, de desarme e abertura. A alteridade é também experiência de agonia, na medida em que convoca a viver a radicalidade de um exercício de fronteira, de um “embate” com um irredutível, que remove as entranhas intelectuais e afetivas. Trata-se de uma convocação dolorosa a romper com as defesas e alongar as cordas, quebrar os pre-conceitos e aceitar o desafio da abertura às surpresas que acompanham o advento do outro. A alteridade é, por fim, experiência ética, enquanto significa exigência de “existir para os outros”. O ser humano se afirma como tal na relação com o outro, e basta que este esteja em cena para se instaurar a dimensão ética. É este outro que convoca o sujeito a romper com o seu ensimesmamento, e dar um pouco de si na luta contra a realidade da dor no mundo.


A alteridade: mysterium tremendum e fascinans


Um dos temas que vem sendo repetidamente trabalhado na teologia das religiões refere-se ao modo de complementaridade entre as diversas tradições religiosas na prática do diálogo. Em torno a esta questão, tende-se a afirmar um tipo de posicionamento eqüidistante, que reitera não o elemento de continuidade, mas de singularidade de cada tradição religiosa, ou seja, de salvaguarda da “alteridade irredutível” presente em cada uma delas. Trata-se de uma reflexão que busca resguardar o enigma do pluralismo religioso. Na defesa desta visão encontram-se autores importantes como Claude Geffré e Paul Knitter. Para este último autor, “quanto mais se tenta penetrar no mundo de uma outra tradição religiosa, mediante encontros pessoais e o estudo dos textos, tanto mais se depara com um muro de diferenças que são, no final, incompreensíveis.” 

O outro emerge, assim, como um mysterium tremendum, que jamais pode ser complementado ou reduzido em seu significado único. Mas que é também mysterium fascinans, já que convida ao encontro e que se disponibiliza ao aprendizado da diferença. Não se trata, porém, de desconhecer a possibilidade de aprendizados mútuos e enriquecimentos recíprocos, levados a efeito pela salutar prática dialogal, mas de resguardar o que há de singular no outro: enquanto houver história, haverá igualmente uma situação de “contestação recíproca” e agônica, que é salutar. Ninguém pode antecipar a forma como se dará, no eschaton, a possível convergência e complementaridade das diversas tradições religiosas, mas mesmo ali será salvaguardado, como indica Jacques Dupuis, “o caráter irredutível impresso em cada tradição pela automanifestação de Deus por intermédio do seu Verbo e do seu Espírito.” Nesse tempo da história, o cristianismo é convocado e provocado a viver a permanente “exigência de ultrapassagem”, sempre aberto às solicitações inéditas do Espírito.


Alteridade e Identidade


  A dinâmica de êxodo e compromisso que acompanha a vocação para a alteridade presente no projeto do diálogo inter-religioso, não significa em hipótese alguma uma ruptura ou descrédito do valor da identidade. A experiência do diálogo tem demonstrado de forma precisa que a experiência da alteridade não constitui uma barreira na afirmação da identidade, mas condição imprescindível para a sua articulação neste tempo plural. Como indica Claude Geffré, “cada vez que tomamos verdadeiramente a sério o outro em sua alteridade, somos convidados a uma melhor inteligência de nossa identidade.” É necessário passar pelo “desvio” do outro para se poder encontrar a verdadeira identidade. Mas, dialeticamente, a tranqüilidade decorrente do empenho e  aprofundamento da própria tradição, disponibiliza o interlocutor a avançar ainda mais na abertura dialogal. O pluralismo religioso descortina uma chance única e original de construção da singularidade cristã. Reconhecer o pluralismo religioso como realidade de princípio, e assumir o diálogo como exigência fundamental, não significa abafar a convicção religiosa. Esta permanece sempre como requisito e disposição essencial para o diálogo, sem a qual o diálogo evapora-se num indiferentismo impreciso. Para que possa ocorrer verdadeiramente, o diálogo implica a presença de interlocutores que atuam “com a integralidade da própria fé”. Em livro que descreve sua errância mística, Marco Lucchesi relata a descrição feita por um grupo de monges e monjas cristãos de Mar Musa (Síria), dedicados a buscar o rosto de Cristo no Islã. Em frase lapidar, traduzem um dos segredos do diálogo: “Abrimo-nos profundamente à religião muçulmana e à sua civilização, em virtude da tranqüilidade de nossa fé em Cristo, e não por uma dúvida a seu respeito.”  Não pode haver no diálogo epoché dos valores e convicções  que delineiam as identidades, mas sim uma firmeza que se mantém aberta e disponível para as surpresas de Deus e o mútuo enriquecimento: alongar as cordas, mas reforçar as estacas. Não pode haver contradição entre a firmeza de posição e a disponibilidade dialogal. Como indica Hans Küng, “a abertura teológica em relação às outras tradições de modo algum exige a suspensão das próprias convicções.” Quando animada pela disponibilidade de abertura, a identidade mantém acesa a chama do aprendizado e a humildade para receber e partilhar os valores positivos que estão presentes no patrimônio espiritual das tradições em questão.


O diálogo inter-religioso como abertura e afirmação da alteridade


O diálogo constitiu um imperativo fundamental na ordem cosmopolita e globalizada da atualidade. Nesta nova situação, as diversas tradições entram forçosamente em contato e mudam de status: são agora provocadas a “se declararem”, ou “discursivamente forçadas a uma exposição”. As condições para uma nova conversação estão dadas, embora nem sempre isto ocorra em razão dos acirramentos identitários que igualmente se firmam com os vários fundamentalismos. Os fundamentalistas são os que defendem a tradição de forma tradicional, e que se recusam peremptoriamente a qualquer engajamento discursivo e dialogal. Este fenômeno revela, de fato, o temor do pluralismo e de seus desdobramentos práticos. 

Apesar destas resistências, o diálogo vai se afirmando como exigência básica do tempo atual, enquanto busca de superação do muro da incomensurabilidade e exercício de uma nova e autêntica conversação. A esperança de uma conversação foi expressa no campo da hermenêutica por Hans George Gadamer, que sublinhou a possibilidade de uma “fusão de horizontes” entre universos de significado distintos, que em razão de seu encontro saem enriquecidos e ampliados. Em linha de analogia, pode-se ainda mencionar a reflexão de David Tracy sobre a “imaginação analógica”. Com o recurso desta categoria analítica, este autor consegue justificar a importância de uma conversação entre as religiões. Para Tracy, “a conversação entre as religiões não somente é possível, mas necessária no momento presente (...). Há poucas conversações que sejam mais importantes que os diálogos entre as grandes religiões e poucas que sejam igualmente mais difíceis.” Mas de uma conversação que preserve a singularidade de cada tradição religiosa, pois seria pouco convincente uma perspectiva que abdicasse das diferenças em favor de uma presumível unidade transcendente das mesmas. Com a categoria da imaginação analógica, Tracy pretende destacar o traço da “semelhança na diferença”. As semelhanças que existem, e são profundas, são entendidas como analogias. Casos concretos de diálogo, como o experimentado por Thomas Merton em sua relação com o budismo, manifestam a nível existencial uma conversação real. Este místico cristão, colocou-se, de fato, em disponibilidade de aprendizado, arriscando sua auto-compreensão atual, abrindo-se ao questionamento e levando a sério a perspectiva do outro, bem como reconhecendo a sua autenticidade e verdade.  

Para que seja um diálogo inter-religioso autêntico é necessário que se reconheça no interlocutor o valor de seu “engajamento absoluto com respeito à sua própria verdade”. O processo dialogal pressupõe a coexistência entre o absoluto do meu engajamento e a necessária abertura ao caminho representado pelo outro. Para o teólogo americano, John Cobb, o resultado deste encontro transformará cada um dos interlocutores. Daí falar num “para além do diálogo”, ou seja, na mudança suscitada pelo diálogo no campo da interpretação da própria tradição. No confronto com a verdade do outro ocorre, necessariamente, uma transformação no modo de apropriação da própria fé, e isto suscita novos desenvolvimentos para além do diálogo. Seguindo esta intuição, Geffré pontua que o diálogo provoca uma transformação real nos seus interlocutores, que os convoca “à celebração de uma verdade que é mais alta e mais profunda que a verdade parcial, reivindicada pelos interlocutores, mesmo quando cada um deles está persuadido que sua verdade é a verdade que implica um engajamento incondicional.” Para este autor, o reconhecimento da presença de verdades diferentes não indica necessariamente que tais verdades sejam contraditórias. 

Retoma-se aqui a questão fundamental da legitimidade de um pluralismo de direito, querido por Deus, e não simplesmente fruto de uma realidade conjuntural passageira.  E isto  implica reconhecer que as outras religiões não podem ser vistas como mera projeções, ou preparações de uma verdade única, que habita exclusivamente no cristianismo. Trata-se de admitir que elas são portadoras de uma verdade diferente, e que estão animadas por virtualidades inéditas com respeito ao cristianismo. Seria ilusório imaginar que o cristianismo totalizaria todas as riquezas presentes na relação do ser humano com o mistério da transcendência, pois o Deus que se dá é um mistério que escapa continuamente ao controle humano. Há que reconhecer, como indica Geffré, que a revelação cristã não consegue esgotar todas as riquezas da plenitude da verdade que habita o mistério de Deus. E esta consciência deve provocar nos cristãos uma maior humildade e disposição de abertura, bem como uma relativização de seus procedimentos habituais na relação com a verdade.

No diálogo inter-religioso devem estar equilibrados dois elementos fundamentais: a consciência da diversidade e o imperativo da responsabilidade. Estes dois desafios articulam-se numa interação criativa. A afirmação da diversidade não pode significar obstáculo ao imperativo de uma responsabilidade que é global. Para o teólogo Paul Knitter, a realidade da experiência humana comum do sofrimento constitui “um novo kairos hermenêutico para o encontro inter-religioso.” A preocupação com o disseminado sofrimento que ameaça a humanidade e o planeta inteiros pode e deve constituir-se em “causa comum” do diálogo inter-religioso. As religiões são, assim, convocadas no diálogo a assumir esta responsabilidade global, a reagir contra a realidade da “dor do mundo” e alimentar uma esperança para o futuro da paz mundial.   


Conclusão


A abertura e o diálogo sincero entre as religiões constituem ainda um projeto-esperança, mas que já começa a dar sinais de vida em experiências pontuais mas significativas. A experiência ocorrida na cidade de Assis (Itália) em 1986 inaugurou um novo paradígma relacional. De forma novidadeira, homens e mulheres de tradições religiosas distintas reuniram-se para testemunhar diante do mundo a qualidade transcendente da paz. Para o papa João Paulo II, o evento provocou a vibração das “cordas mais profundas do espírito humano”, como uma “força espiritual explosiva”, da qual brotaram “novas energias de paz”.

A realização deste desafio dialogal é, porém, bem mais difícil, já que significa um abalo nas estruturas identitárias de plausibilidade. A aceitação e o reconhecimento do pluralismo religioso como um dom de Deus permanecem como desafios em aberto. As forças fundamentalistas continuam vivas e acesas no presente, seja através dos talibãs afegãns, no seu afã de destruir os monumentos portadores de uma memória de alteridade, seja através das resistências mais sutis ou elaboradas, embora reais, de outras tradições religiosas contra a dinâmica plural. Não há, porém, resistência humana que consiga barrar o sopro livre e libertador do Espírito, que atua em toda parte de forma permanente, acendendo nos seres humanos a esperança de um Deus que é gratuidade, e que sempre vem.  É este mesmo Espírito que a todos convoca a um novo exercício dialogal, de doação e aprendizado, com os “amigos” de outras tradições religiosas, visando um futuro de paz e fraternidade. Como pioneiros nesta travessia fraterna e comum, os bispos asiáticos sublinharam em recente e profético documento:


Nossa atitude de diálogo e a experiência religiosa de nossos amigos se aprofundam através da tomada de consciência que o Espírito de Deus está atuando entre eles e que suas ações vão além das fronteiras da Igreja. É uma verdade incontornável que o Espírito de Deus está agindo em todas as religiões tradicionais. Dialogar é então uma viagem em companhia do Espírito para descobrir de onde vem e para onde vai a sua graça. O que explica por que se trata de um ato espiritual e que só se pode efetuar essa viagem estando aberto ao Espírito e sensível à sua voz. Uma dimensão que nos faz compreender por que o diálogo é uma coisa que Deus deseja.


(Publicado no livro: Johan Konings (Org.). Teologia e pastoral. Homenagem ao Pe. Libânio. São Paulo: Loyola, 2002)






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