terça-feira, 13 de abril de 2010

Sonhos e esperanças de cortesia espiritual

Sonhos e Esperanças de Cortesia Espiritual: Um desafio para a Igreja Católica no século XXI

 

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF

 

Introdução

 

Neste início de século XXI a Igreja Católica defronta-se com um desafio extremamente importante, que é o da abertura ao pluralismo religioso e o exercício dialogal com as  outras tradições religiosas em profundo respeito à sua dignidade e valor. Estamos diante de uma oportunidade única de resgate de uma credibilidade que veio arranhada por posicionamentos recorrentes de desrespeito e descrédito à diversidade religiosa e ao pluralismo religioso. Mas para tanto é necessário uma decisiva mudança de perspectiva eclesial, que rompe com o rotineiro desencontro e acorda para o verdadeiro encontro com o outro. Não há como manter em curso atitudes hostis ou um vocabulário deletério com respeito às outras religiões. Há que recuperar o essencial “espírito do diálogo”, e uma atitude mais positiva e otimista face aos desígnios  misteriosos de Deus para   a humanidade. O teólogo Jacques Dupuis (1923-2004)  sublinhou em sua última obra publicada a importância desta abertura na Igreja Católica, de um “salto qualitativo” em favor de relações positivas de encontro:

 

entende-se  antes de mais nada uma verdadeira sim-patia, ou ´em-patia`, que ajude  a fazer entender  os ´outros`como eles se entendem, não como nós – muitas vezes por causa de obstinados preconceitos  tradicionais – julgamos saber  que são. Numa palavra, comporta o acolhimento sem restrição do ´outro` justamente em sua diferença, em sua identidade  pessoal irredutível[1].

 

1.    Um breve olhar retrospectivo

 

As últimas três décadas vividas pela Igreja Católica em âmbito mundial foram marcadas por uma decisiva preocupação  em favor da salvaguarda do papel universal da Igreja visível e significante, entendida como estrutura institucional e visível (lado significante de sacramento) . Por mais que a caminhada teológica dos últimos anos tenha insistido na linha da universalidade da graça e da ênfase na Igreja significada, ou seja, da Igreja invisível, da comunhão do amor agapé, aqueles que defendem o peso estrutural da Igreja significante reagem de forma viva a qualquer tentativa de ampliação de horizontes. Assim eles reagiram contra a teoria de Karl Rahner sobre os “cristãos anônimos”, e assim continuam a reagir contra as novas tendências da teologia do pluralismo religioso.

 

Em sua clássica obra sobre o catolicismo, Henri de Lubac havia antecipado o debate futuro reagindo contra aqueles que defendiam a abertura da porta da salvação aos “infiéis”:

 

Se um cristianismo implícito é suficiente para a salvação daqueles que não conhecem  outro, porque então nos colocar em busca de um cristianismo explícito? Se todo homem pode salvar-se pela adesão a um sobrenatural anônimo, como poderemos estabelecer que ele tem o dever de reconhecer expressamente este sobrenatural na profissão de fé cristã e na submissão à Igreja católica?[2]

 

É esta salvaguarda da Igreja significante que De Lubac defende, e que continua a valer hoje em dia. As novas reflexões seja na teologia das missões, seja na teologia do pluralismo religioso, apontam perspectivas que incomodam e provocam, necessariamente, a reação da “sensibilidade  católica”. Parte-se, então, para a denúncia do que se considera “eclipse da visibilidade  institucional”. Como bem mostrou o antropólogo Pierre Sanchis, este “eclipse” vem identificado como uma “amputação”, ou em menor escala, um “desequilíbrio” no caminho de fidelidade  à “plenitude católica”. E na linha desta tendência, a “plenitude” não pode ser alcançada exclusivamente no exercício da vivência dos valores evangélicos  ou de uma fé implícita, mas exige a inserção no “corpo social e sacramental da Igreja”[3]

 

Em sua brilhante análise da história da tradicional fórmula “extra Ecclesiam nulla salus” (“fora da Igreja não há salvação”)[4], o teólogo Bernard Sesboué mostrou com pertinência o influxo de De Lubac na interpretação mais “positiva” da doutrina ortodoxa. Para evitar a “rudeza” do axioma tradicional, De Lubac introduz uma nova perspectiva: da “salvação pela Igreja”[5]. A partir desta nova incidência, a antiga formulação vai tornando-se cada vez mais “caduca” ou “opaca”, sendo mesmo evitada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965),  que opta pela perspectiva apontada por De Lubac.[6] 

 

Na trilha aberta por Pio XII, em sua afirmação da necessidade da Igreja para a salvação ( Igreja como “meio” de salvação – DzH 3868[7]), o Concílio Vaticano II, em sua Constituição Dogmática Lumen Gentium, retoma esta mesma idéia, articulando-a com a unicidade da mediação de Jesus Cristo (LG 14 – DzH 4136)[8]. E sublinha igualmente, com base na encíclica Mystici Corporis (Pio XII – DzH 3821), a ordenação (ordinantur) de todos os “não cristãos” à Igreja como Povo de Deus (LG 16 – DzH 4140).

 

Esta preocupação com a centralidade da Igreja estará igualmente presente com Paulo VI, que na sua exortação apostólica Evangelii nuntiandi (1975) reafirma a idéia da Igreja Católica como via “ordinária” de salvação (EN 80). Ele reconhece o “patrimônio” religioso das outras tradições religiosas, mas indica que elas expressam uma “procura incompleta”. Trata-se de “expressões religiosas naturais”, humanas, que traduzem uma “ânsia” ou busca de Deus “às apalpadelas”. Predomina aqui a marca tradicional de uma teologia do acabamento, em que a Igreja Católica vem identificada  como “plenitude”[9] . A Igreja Católica, identificada com a “religião de Jesus”, é – para Paulo VI - a única religião que “instaura  efetivamente uma relação autêntica e viva com Deus”, enquanto as outras tradições permanecem apenas orientadas para tal plenitude, com “seus braços estendidos para o céu” (EN 53)[10].

 

Esta ênfase na centralidade da Igreja Católica terá continuidade no pontificado de João Paulo II. O tratamento dado às outras religiões e as perspectivas reais de diálogo inter-religioso  serão ainda bem tímidas, apesar de novidades importantes acontecerem nos gestos dialogais  do papa Wojtila. Um olhar mais crítico sobre os documentos das Congregação para a Doutrina da Fé, presidida na ocasião pelo Cardeal Ratzinger, revela posicionamentos bem restritivos com respeito ao lugar e ao valor das outras tradições religiosos no desígnio salvífico de Deus. Um exemplo bem vivo desta perspectiva encontraremos na Declaração Dominus Iesus, dada a conhecer em agosto de 2000. Ao abordar a questão da unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja, esta declaração traduz três perspectivas bem pontuais a respeito da relação com as outras religiões. Em primeiro lugar, um enquadramento do pluralismo religioso. Verifica-se um claro temor diante do pluralismo religioso e do risco relativizador que pode acompanhar o reconhecimento de sua positividade. Questiona-se o “pluralismo de princípio” como forma de reagir ao risco das “teorias relativistas” que estariam colocando em questão o “perene anúncio missionário da Igreja” (DI 4). Em segundo lugar, uma restrição ao ecumenismo. Em razão de uma firme convicção da “verificação” da única religião verdadeira na Igreja Católica e Apostólica (DI 23), a declaração restringe o conceito de Igreja à Igreja Católica, reconhecendo nas outras denominações apenas “elementos” de eclesialidade, em razão de sua comunhao “imperfeita” com a “verdadeira” Igreja (DI 17). Em terceiro lugar, a atribuição de menoridade às outras tradições religiosas.  Em decorrência da firme convicção da necessidade da Igreja Católica para a salvação (DI 20), as outras tradições religiosas  serão situadas como expressões provisórias e a caminho para um desabrochamento mais autêntico no único caminho de salvação, representado pela Igreja Católica. Não se deixa de reconhecer os “tesouros humanos de sabedoria e religiosidade” presentes nas outras tradições, mas ao mesmo tempo assinala-se que esta religiosidade  encontra-se “ainda à procura da verdade absoluta e ainda carecida do assentimento a Deus que se revela” (DI 7). E de forma nitidamente ofensiva, sublinha-se  que os adeptos destas tradições encontram-se objetivamente “numa situação gravemente deficitária, se comparada com a daqueles que na Igreja têm a plenitude dos meios de salvação” (DI 22).

 

A declaração Dominus Iesus era um dos instrumentos a mais no tradicional repertório de atenção crítica do cardeal Ratzinger aos impulsos da teologia do pluralismo religioso, que para ele estaria hoje assumindo o lugar antes reservado à teologia da libertação. Em sua visão, esta nova teologia, por ele também nomeada teologia pluralista das religiões, não só relaciona-se com a teologia da libertação como igualmente “tenta apresentar-lhe uma forma mais nova e atual”[11].

 

As teses defendidas na Dominus Iesus encontrarão grande resistência em diversos setores da reflexão teológica, mas sobretudo entre aqueles que se dedicam ao trabalho em favor do diálogo inter-religioso. Em recente publicação, o teólogo do Sri Lanka, Tyssa Balasuriya, levantou algumas questões importantes na avaliação crítica da atual conjuntura eclesiástica. Sua preocupação mais decisiva gira em torno da pretensão do magistério católico-romano  arrogar para si a posse da verdade absoluta sobre Deus e a salvação. Mas também sobre o círculo de intolerância para com as religões asiáticas vigente nos últimos decênios. Suas interrogações são precisas:

 

Porque não se desenvolveu a partir da principal corrente  das Igrejas cristãs um ensinamento religioso ou um movimento em larga escala em favor da elaboração de uma teoria e prática da paz e da não-violência inspiradas pela vida, ensinamento e morte de Jesus, assim como fez Mahatma Gandhi na primeira metade do século XX?[12]

Para Tissa Balasuriya, a pretensão movida pela Igreja Católica de ser o caminho exclusivo de salvação infla nos cristãos uma arrogância muito prejudicial de superioridade espiritual. Sob que bases de solidariedade inter-religiosa pode se afirmar que os outros crentes encontram-se em “situação gravemente deficitária” se comparada com a dos cristãos? Isto não acaba provocando uma cisão na “família de Deus”, criando membros de segunda classe? Na visão de Balasuriya, uma tal perspectiva entra em colisão com o ensinamento fundamental de Jesus que manifestou a todo o gênero humano a boa notícia de um Deus de amor, e que igualmente convoca ao amor mútuo. Um dos grandes limites que vem acompanhando a missão cristã na Ásia e em outros lugares é pressupor que o anúncio evangelizador acontece num “vácuo” de espiritualidade, ou desconhecer “todas as riquezas da sabedoria infinita e multiforme de Deus” que transborda todas as nossas categorias.

 

O Divino não é um sistema, mas um princípio ou uma intuição. Ninguém tem o monopólio da amizade com o Divino. Exigir tal privilégio ou monopólio da amizade divina implica não conhecer o Divino ou criar um Deus para os nossos desejos e interesses.[13]

 

2.    O desafio da provocação dialogal  e da cortesia espiritual

 

Dentre os importantes e significativos sinais de esperança para um horizonte eclesial distinto inserem-se os gestos de abertura de João Paulo II às outras tradições religiosas.  Infelizmente, a força destes gestos proféticos foi muitas vezes obnubilada  pela dinâmica institucional do pontificado, marcada por grande centralização e afirmação identitária. O olhar mais atento indica a presença de oscilações e ambiguidades. Temos de um lado os gestos proféticos de um pontífice animado pela luta em favor da paz, dos direitos humanos, da liberdade religiosa e do diálogo entre as religiões e, de outro, uma dinâmica institucional cerceadora de valores que são fundamentais e que reforçam o centralismo romano e a salvaguarda da doutrina mais conservadora.

 

Gestos ricos de futuro

 

No intuito de apontar agora os sinais de esperança e a ampliação do olhar, há que buscar captar nos gestos dialogais de João Paulo II as pistas abertas para um horizonte novidadeiro.  Segundo o atento vaticanista italiano, Giancarlo  Zizola, o pontificado de João Paulo II foi marcado por gestos “simbólicos” e “fundadores”. O que há de “inédito” em João Paulo II, e o que ficará na memória histórica, não é tanto as mudanças institucionais  por ele realizadas, mas sobretudo os seus gestos simbólicos  e “ricos de futuro”[14].

 

Dentre os gestos mais significativos ocorridos no pontificado de João Paulo II, relacionados ao diálogo inter-religioso, está a Jornada Mundial de Oração pela Paz, realizada em outubro de 1986 na cidade de Assis (Itália). Superando a intenção de seus protagonistas e ultrapassando seu envólucro empírico, o evento de Assis representou um gesto sem precedente, um acontecimento extraordinário e único, que portou consigo um explosivo poder simbólico. Em singular iniciativa do papa, inúmeras lideranças religiosas mundiais encontraram-se em Assis para em comuhão rezar e testemunhar a natureza transcendente da paz.[15] O “espírito de Assis” encontrou sequência em dois outros eventos de oração que aconteceram na mesma cidade: em janeiro de 1993 (visando a paz na Europa) e janeiro de 2002 (em favor do empenho pela paz e contra a violência e a guerra).

 

Novos gestos importantes aconteceram no diálogo com o islã. Um grande marco foi o encontro com os 50 mil jovens muçulmanos no estádio de Casablanca (Marrocos), em 1985. Foi o primeiro papa a realizar na história um semelhante empreendimento. Pela primeira vez chama os muçulmanos de “irmãos”, reconhecendo-os como partícipes da numerosa família de Abraão. Em seu belo discurso, o papa reconhece o que há de comum nas duas famílias religiosas, em particular a crença no mesmo Deus misericordioso, que aponta caminhos que são inusitados. Insiste na importância de uma invocação a Deus que seja acompanhada pelo exercício da fraternidade, bem como o necessário respeito ao outro e o real exercício da reciprocidade. Reconhece igualmente a grande riqueza que anima a tradição espiritual do islã   e a qualidade de seu caminho religioso,  e convoca ao imperativo do respeito e do exercício comum nas ações positivas no caminho de Deus[16]. Podem ainda ser apontados outros gestos importantes no diálogo com o islã, como aqueles realizados na viagem à Terra Santa (2000) e na visita à mesquita  Omíada de Damasco (2001), onde o papa retira os sapatos para entrar naquele local sagrado dos muçulmanos.

 

No diálogo com as religiões do Oriente, outros gestos  simbólicos  ocorreram, como em  1984, no encontro com o patriarca supremo dos budistas tailandeses. Ao chegar ao mosteiro de Vasana Tara, o papa retira os sapatos e sobe na plataforma onde o grande líder budista estava em meditação. Foi um diálogo “sem palavras”, mas movido por grande respeito e reverência recíprocos. Os dois líderes fitaram-se mutuamente durante cerca de cinco minutos, de acordo com o costume local.[17] Foi um gesto que falou por si mesmo. O papa manifestou-se sobre os budistas  em várias ocasiões, como no discurso aos seguidores das várias religiões dos Estados Unidos, em setembro de 1987. Expressou na ocasião o seu grande apreço ao “estilo de vida” budista, “baseado na compaixão, na amorosa bondade e no desejo de paz, prosperidade e harmonia por todos os seres viventes”[18]. Manifestou também seu reverencial respeito às várias religiões da Índia, sobretudo as experiências de meditação e de espiritualidade autêntica, que deixam marcas profundas no mundo, bem como o senso do primado da religião e do Mistério supremo, que traduzem o testemunho mais vivo contra a visão materialista dominante[19].  

 

Com relação aos judeus, outros tantos gestos importantes e proféticos foram realizados por João Paulo II, a começar pela histórica visita à sinagoga de Roma, em abril de 1986. O papa vem recebido na sinagoga pelo rabino Elio Toaff, sendo a primeira vez na história que se registra a visita de um  papa ao simbólico  local religioso dos judeus. Em seu discurso aos representantes da comunidade judaica de Roma[20], o papa nomeia os judeus como “irmãos prediletos”, que partilham com os cristãos um “comum patrimônio espiritual”. O traço mais novidadeiro de sua presença na sinagoga  foi quando assinalou a “vocação irrevogável” de Israel, retomando uma idéia já assinalada em 1980, em visita realizada em Mainz, na Alemanha, quando mencionou que antiga aliança jamais foi revogada[21]. Esta nova perspectiva aberta por João Paulo II significou  uma pista singular para o respeito à alteridade e o autêntico diálogo inter-religioso. Como bem   sublinhou Claude Geffré, a tomada de consciência da irrevogabilidade da antiga aliança e da irredutibilidade de Israel, abriu espaços fundamentais para a consciência da irredutibilidade das outras tradições religiosas, hoje defendida ardentemente por inúmeros teólogos[22]. Foi o caminho que possibilitou  a consciência do pluralismo religioso de direito ou  princípio, e a percepção, essencial para o diálogo, do valor das convicções religiosas dos outros e o reconhecimento de sua positividade nos desígnios misteriosos de Deus ou do Mistério Maior.

 

Em favor da cortesia espiritual

 

Aprofundar a dinâmica dos gestos de João Paulo II é recuperar um valor essencial no momento atual, que é o da “cortesia espiritual”. Trata-se de um valor muito especial na mística islâmica. Esta expressão é uma tradução do árabe, adab, e guarda um significado muito importante. Os verdadeiros buscadores do Mistério são animados pela cortesia espiritual. São dotados de uma sensibilidade especial, pois captam os toques sutis da graça (latifa) e percebem com nitidez sua presença universal. Por isto são grandes místicos, capazes de viver em profundidade a experiência da vida e da realidade última, do mistério maior sem nome. Buscadores são aqueles que conseguem ampliar o seu olhar, para além dos vínculos particulares de suas crenças, de forma a desfrutar de uma participação mais real e viva da visão do Real.[23] O grande místico andaluz, Ibn al-Arabi (1165-1240), soube como poucos captar e valorizar a positividade do pluralismo religioso, que para ele tem suas raízes em Deus. Cada tradição religiosa expressa um vínculo particular, que capta uma dimensão do mistério ilimitado. As religiões são como cores existenciadas pelo prisma da infinita possibilidade da Divindade maior[24]. Todas elas estão articuladas e envolvidas pelo Hálito do Todo Misericordioso. O maior risco consiste em fixar-se exclusivamente no “nó” (vínculo)  das crenças particulares e deixar de reconhecer a presença do Mistério em outras formas de sua manifestação. Ao contrário da “Divindade absoluta”, que jamais pode ser contida, a “Divindade das convicções dogmáticas” é sempre “prisioneira das limitações” e dos vínculos. Fechar-se no círculo limitado do nó específico é deixar escapar grandes bens[25].

 

A arejada visão de místicos como Ibn Arabi, vem hoje partilhada pelos teólogos cristãos que se debruçam com delicadeza espiritual  sobre a questão do pluralismo religioso. São teólogos que buscam responder seriamente ao desafio de honrar a singularidade e a originalidade das diferentes tradições religiosas. Para eles, não há como manter em curso procedimentos  que reduzem o valor das religiões à sua capacidade potencial de se abrir àquilo que elas ignoram, como no caso das teses relacionadas ao cristianismo anônimo ou implícito. O verdadeiro espírito dialogal impõe uma nova perspectiva, que leve, de fato, a sério a “verdade interna” de cada tradição religiosa, entendida na sua realidade de fragmento sempre aberto ao horizonte indefinido de uma sinfonia sempre adiada[26].

 

O teólogo jesuíta, Roger Haight, num livro extremamente provocador, levanta a hipótese de que aqueles “que não conseguem reconhecer a verdade salvífica de outras religiões podem implicitamente  estar operando com uma concepção de Deus distante da criação”[27]. A real consciência do mistério transcendente (e imanente) de Deus provoca, necessariamente, uma atitude de maior humildade e respeito diante dos  diversos  percursos religiosos  presentes na história, bem como uma atenção dedicada à ação universal do Espírito. Segundo Haight, “o reconhecimento da influência salvífica universal de Deus transforma o pluralismo religioso em uma situação positiva, na qual se pode aprender mais acerca da realidade última e da existência humana do que o que se acha disponível em uma única tradição”[28]. E a percepção de que Deus atua na história de forma diversificada não diminui ou prejudica “o compromisso do cristão com o que experiencia ter Deus feito em Jesus”. A experiência do amor profundo a Jesus e o desejo de partilhar esta riqueza com os outros permanecem vivos no cristão e não diminuídos ou enfraquecidos pela ampliação de seu olhar  ao reconhecer o Deus verdadeiro presente e atuante nas outras tradições religiosas [29].

 

Não é simples esta dinâmica de abertura a alteridade. A realidade da diversidade  provoca no interlocutor não apenas uma experiência de maravilha e encantamento, mas também de agonia, pois  convoca a um exercício de liminaridade e fronteira, de um embate com um irredutível, que remove as entranhas intelectuais e afetivas. No diálogo experimenta-se a radical experiência da contingência e da vulnerabilidade.  Daí ser o diálogo um “lugar inquietante” onde a auto-compreensão dos interlocutores vem radicalmente provocada, no sentido da apropriação de outras possibilidades: o que era antes estranho, distante e diferente torna-se possível[30]. Mas o diálogo verdadeiro não dispensa os marcos identitários referenciais. Eles são fundamentais para qualquer disposição dialogal. É preciso pisar num chão fime para poder tomar um impulso de vôo. O diálogo autêntico requer o exercício permanente de amor à própria tradição. Como bem assinala Jurgen Moltmann, “somente a domiciliação na sua própria religião capacita para o encontro com uma outra”[31]. A verdadeira abertura dialogal firma-se na tranquilidade da própria experiência de fé e no exercício permanente do zelo a ela dedicado.  Mas é uma identidade que não descansa em si mesma, mas abre-se ao desafio da arte de compreender o outro e deixar-se transformar pelo encontro. Todo teólogo cristão, como sublinha Moltmann, “deveria poder dizer com que outra religião ele se ocupou de modo intensivo” em sua história.[32]

 

Conclusão

 

Estamos vivendo na Igreja Católica um novo momento, com a eleição do papa Bento XVI. Sua escolha acontece num início de século pontuado por muitas dificuldades. Um tempo de “crepúsculo e obscuridade”, como assinalou Eric Hobsbawm em sua recente biografia. As marcas da violência, do terrorismo e dos conflitos inter-religiosos  estão por toda a parte, assim como o “desgaste da compaixão”, o que é ainda mais preocupante. Como nova liderança dos católicos, o novo papa tem diante de si o grande desafio de manter acesa a esperança e renovar as malhas do sentido e da alegria. O nosso tempo carece sobretudo de esperança, solidariedade, cortesia, hospitalidade e afirmação da vida. Precisamos de lideranças que sejam referências morais seguras para um tempo de desencanto e aridez. Há que dar continuidade ao espírito do Vaticano II, em cujos rastros aprendemos a manejar a linguagem do diálogo e da abertura.

 

Não há porque embalar nossos sonhos com os discursos e práticas sombrios e pessimistas dos “profetas de desventura”, mas precisamos, sim, de vozes altivas e alvissareiras, que despontem horizontes novos e inusitados. Há, infelizmente, em muitos setores da Igreja Católica o predomínio de um discurso pessimista sobre a história, onde o temor fala mais forte do que a ousadia de desbravar novos caminhos. O papa Bento XVI tem diante de si a responsabilidade histórica e única de ser o guardião da esperança e da utopia, ou seja, de ser pastor e não simplesmente o controlador severo e taciturno da reta doutrina. Ao se tornar papa, o cardeal Ratzinger deixa de ser alguém que se ocupa de um setor específico, marcado por um peso institucional umbroso, para assumir a tarefa extremamente desafiante e luminosa de bispo e pastor da comunidade universal dos católicos.

 

A palavra e o testemunho do pastor devem ser de otimismo, de incentivo e encorajamento, de atenção e sensibilidade aos sinais dos tempos e de ousadia no diálogo com os povos, culturas e religiões. O desafio maior não é o de fixar a comunidade dos católicos nos estreitos domínios de uma fé surda e impermeável aos tempos modernos e ao apelo da alteridade, mas de alargar as cordas da identidade cristã e ampliar seus horizontes. Não há porque limitar ou avaliar negativamente o pluralismo religioso, mas ser humildemente capaz de perceber e acolher com alegria as transbordantes riquezas da “sabedoria infinita e multiforme de Deus” que se espalham por toda a história e seguir com entusiasmo sempre renovado os impulsos do Espírito. O pluralismo é um dom não só aceito mas desejado por Deus. Todas as pessoas devem ser respeitadas no seu direito inalienável de buscar a verdade em matéria religiosa, segundo os ditames de sua consciência. E as religiões devem ser respeitadas em sua dignidade singular e única. Esta é a verdadeira tarefa de um bispo-pastor, que é sempre um aprendiz da alegria e portador de boa-nova para todos os seres humanos.

 

Um dos grandes exemplos da tradição mística persa, Abd al Rahmân Jâmi (1414-1492), no prólogo de seu clássico trabalho Yusuf e Zuleika, fala sobre a beleza e sua renúncia ao ocultamento. A beleza aparece simultâneamene como metáfora e idéia do Mistério de uma Divindade que recusa ser aprisionada nos estreitos circuitos dos vínculos particulares. Não há melhor caminho para mostrar os novos desafios para a Igreja no campo do abertura e do diálogo no século XXI:

 

Aquela encantadora menina permanecia

em seu quarto nupcial:

Uma amada amável na sua solidão

Jogava sozinha o jogo do amor;

Bebia solitária o vinho da própria beleza.

 

Ninguém sabia nada sobre ela.

Nenhum espelho havia revelado o seu semblante.

 

Mas a beleza não sabe manter-se encoberta longamente.

A graça não suporta o grilhão do ocultamento:

Se lhe fechas a porta,

Mostrará seu rosto na janela.

 

Assim, ela armou sua tenda fora dos recintos sagrados,

Revelando-se na alma e em toda a Criação.

Em cada espelho manifestou a sua imagem,

E a sua história foi contada em todo lugar[33]

 (Publicado na Revista Eclesiástica Brasileira, v. 65, n. 260, outubro 2005, pp. 817-830)

 



[1] Jacques DUPUIS. O cristianismo e as religiões. Do  desencontro ao encontro. São Paulo: Loyola, 2004, pp.  24-25.

[2] Henri de LUBAC. Catholicisme. Les aspects sociaux du dogme. Paris: Cerf, 1947, p. 183 (cuja primeira edição ocorreu em 1938).

[3] Pierre SANCHIS. Uma “identidade católica”? Comunicações do ISER, v. 5, n. 22, 1986, p. 13.

[4] Este tradicional adágio será amplamente utilizado na luta da Igreja Católica contra o indiferentismo religioso. Segundo Bernard Sesboué, será elevado no século XIX à “categoria de dogma” (com papa Pio VIII, em 1830) e considerado como uma “referência intocável”: cf. Bernard SESBOUÉ. Hors de l´Église pas de salut. Histoire d´une formule et problèmes d´intérpretation. Paris: Desclée de Brouwer, 2004, pp. 153, 157 e 162.

[5] O tema se tornará título do capítulo  sétimo de sua clássica obra: Catholicisme. Les aspects sociaux du dogme. Op.cit., pp. 179-205 (veja em particular a p. 197).

[6] Bernard SESBOUÉ. Hors de l´Église pas de salut. Histoire d´une formule et problèmes d´intérpretation. Paris: Desclée de Brouwer, 2004, p. 355.

[7] E a idéia de pertença à Igreja não apenas como uma necessidade de preceito (aquilo que se recomenda), mas de meio (Igreja como “meio de salvação”). A sigla DzH refere-se à nova edição do Denzinger: Heinrich Denzinger. Enchiridion symbolorum. Bologna, EDB, 1995 (a cura de Peter Hunermann).

[8] É interessante ressaltar, como mostrou Sesboué, que o fundamento tradicional do adágio “Extra Ecclesiam...”encontra-se na “afirmação cristã de que o Cristo é o único Mediador  entre Deus e a humanidade e o único Salvador do gênero humano, e de que ele fundou a Igreja para exercer em seu nome uma missão de salvação universal”: Bernard SESBOUÉ. Hors de l´Église..., p. 279.

[9] Veja por exemplo esta noção na encíclica Mystici Corporis, de Pio XII: DzH 3813 e na Declaração Dignitatis Humanae, do Vaticano II: a Igreja como “o” caminho de salvação, como “única verdadeira religião” (DH 1 ). Paulo VI retoma esta idéia da Igreja como lugar onde as “multidões” não cristãs podem encontrar numa “plenitude inimaginável” as “riquezas do mistério de Cristo” (EN 53).

[10] Como mostrou Francis Sullivan, esta postura de Paulo VI na Evangelii nuntiandi “sugere que (ele) tinha pouca simpatia pelo desenvolvimento do pensamento católico sobre o papel salvífico das religiões não cristãs”: Francis SULLIVAN. Hay salvación fuera de la Iglesia? Bilbao: Desclée de Brouwer, 1999, p. 228.

[11] Joseph RATZINGER. Situação atual da fé e da teologia. Atualização,  n. 263, 1996, p. 544 (conferência proferida no encontro de presidentes das comissões episcopais da América Latina para a doutrina da fé).

[12] Tissa BALASURIYA. Alcune questioni asiatiche sulla dittatura del relativismo. Adista, v. 39, n. 56, 23 luglio 2005, p. 8-9.

[13] Ibidem, p. 11.

[14] Giancarlo ZIZOLA. L´altro Wojtyla. Riforma, restaurazione e sfide del millennio. Milano: Sperling & Kupfer Editore, 2003, p. 33 e 31.

[15] Para uma análise pormenorizada da Jornada de Assis cf. Faustino TEIXEIRA. O paradigma de Assis. Concilium, v. 291, n. 3, 2001, pp. 122-133.

[16] Pontificio Consiglio per il Dialogo Interreligioso. Il dialogo interreligioso  nel magistero pontificio  (documenti 1963-1993). Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1994, pp.. 345-355.

[17] Carl BERSTEIN & Marco POLITI. Sua santidade João Paulo II. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996, p. 416.

[18] Pontificio Consiglio per il Dialogo Interreligioso. Il dialogo interreligioso..., p.  456.

[19] Ibidem, pp. 381 e 383 (discurso aos representantes das várias religiões da Índia – fevereiro de 1986). Foi nesta viagem à Índia que nasceu em João Paulo II a idéia da Jornada de Oração em Assis, que se realizará  um pouco depois, em outubro do mesmo ano.

[20] Pontificio Consiglio per il Dialogo Interreligioso. Il dialogo interreligioso..., pp. 391-398.

[21] Norbert LOHFINK. L´alleanza mai revocata. Brescia: Queriniana, 1991, p. 9.

[22] Claude GEFFRÉ. Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia. Petrópolisss: Vozes, 2004, p. 187.

[23] William C. CHITTICK. Mundos imaginales: Ibn al-Arabi y la diversidad de las creencias. Sevilla: Alquitara, 2003, p. 282.

[24] Seguindo a visão de Ibn Arabi , “as crenças são as inumeráveis cores que as pessoas impõem à luz incolor por meio de suas próprias existências delimitadas”: William C. CHITTICK. Mundos imaginales..., p. 283.

[25] Ibidem, p. 324 e Ibn ARABI. Le livre des chatons des sagesses. Tome second. Paris: Al-Bouraq,  s/d, p. 713. Na visão de Ibn Arabi, o coração do verdadeiro  buscador  não se deixa aprisionar por uma única cor, mas é capaz  de captar  a epifania da coloração dos diversos nomes divinos. Trata-se de um coração que se deixa colorir a cada instante pela presença inusitada das epifanias diversificadas. Mas, infelizmente, na maior parte das vezes,  os olhos dos crentes não conseguem ver senão a forma de sua crença professada (o Deus das crenças ou das convições dogmáticas) e diabolizam as outras epifanizações. Daí a tendência do combate entre as crenças dogmáticas. Só os “virtuosos do pluralismo” rompem um tal  limite e se abrem para as “metamorfoses das teofanias”: Henri CORBIN. L´immaginazione creatrice. Le radici del sufismo. Roma/Bari: Laterza,  2005, pp. 170-174.

[26] Christian DUQUOC. L´unique Christ. La symphonie differée. Paris: Cerf, 2002, pp. 239 e 122.

[27] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 479. Para uma análise do livro cf. Faustino TEIXEIRA. Uma cristologia provocada pelo pluralismo religioso. Reflexões em torno ao livro Jesus, símbolo de Deus, de Roger Haight. REB, v. 65, n. 258, 2005, pp. 293-314.

[28] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, p. 485.

[29] Ibidem, p. 474.

[30] David TRACY. Pluralidad y ambiguedad. Madrid: Trotta, 1997, pp. 141-143.

[31] Jurgen MOLTMANN. Experiências de reflexão teológica. Caminhos e formas da teologia cristã. São Leopoldo: Unisinos, 2004, p. 28; Jean-Marie TILLARD. Dialogare per non morire. Bologna: EDB, 2001, pp. 34-35.

[32] Jurgen MOLTMANN. Experiências de reflexão teológica, p. 28.

[33] Virgínia Del Re McWEENY. Persia mystica. Poeti sufi dell´età classica. Pisa: Edizioni ETS, 2004, pp. 80-81.

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