Teologia das Religiões
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
A teologia das religiões (TdR) destaca-se hoje não como um novo tema ou campo da teologia cristã, mas como um “novo horizonte” para a reflexão teológica no tempo do pluralismo religioso. A nova consciência planetária e a instigante presença das religiões, em sua diversidade irredutível e irrevogável, provocam um desafio singular e novidadeiro para a reflexão teológica, que se vê convocada a rever os diversos capítulos de sua dogmática: a antropologia teológica, a cristologia, a eclesiologia e a teologia da missão. A decisiva tarefa da TdR é “interrogar-se sobre o significado do pluralismo religioso no plano de Deus”[1]. O campo de abordagem deste verbete refere-se especificamente à teologia cristã das religiões, uma vez ser impossível elaborar uma “teologia universal” ou “supra-confessional” das religiões. Trata-se aqui de uma reflexão teológica domiciliada na tradição cristã, mas aberta à provocação e interlocução das diversas tradições religiosas.
O modo de abordagem das outras religiões na tradição teológica cristã foi até recentemente marcado pela questão clássica da salvação dos “infiéis”. A mudança de perspectiva, que favoreceu o nascimento da TdR, ocorreu num longo e tortuoso processo coroado na dinâmica atual de abertura ao pluralismo religioso, percebido como dado positivo e de direito. O ambiente intelectual acolhedor do pluralismo religioso foi sendo progressivamente gestado ao longo dos últimos três séculos, com a afirmação da modernidade plural. É neste contexto que se dá uma nova percepção da comunidade global e do desafio da diferença: o crescimento do nível de informação sobre as outras tradições religiosas, de abertura de novos canais de conhecimento sobre a sua realidade, a inédita proximidade com o mundo do outro, a crescente afirmação do dinamismo de certas tradições religiosas e o fenômeno das imigrações em massa. Os primeiros sinais de uma perspectiva de abertura às religiões no campo da teologia cristã ocorrem no âmbito da teologia liberal protestante, no século XIX, mas que encontrará forte resistência na teologia dialética de Karl Barth. No campo católico, esta incipiente abertura começa a ocorrer na literatura teológica por volta da década de 60, entre autores como Karl Rahner, Yves Congar, Henri de Lubac, G.Thils, entre outros. Uma das primeiras tentativas de sistematizar o tema se deu com a obra do teólogo Heinz Robert Schlette, As religiões como tema da teologia (1964)[2]. Pode-se também mencionar o primeiro tratado mais sistemático sobre a questão, publicado por Vladimir Boublìk: teologia das religiões (1973)[3].
Um marco referencial na afirmação da TdR foi o lançamento do livro de Jacques Dupuis, rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, em 1997[4]. É um momento importante no balizamento metodológico deste campo de reflexão teológica, quando confirma-se “um novo modo de fazer teologia num contexto inter-religioso”[5]. É uma teologia que privilegia o caminho indutivo, pois nasce no terreno propício do diálogo inter-religioso, e a partir dele busca processar a elaboração teológica[6]. Para este trabalho recorre-se à razão hermenêutica, ou seja, ao desafio essencial de buscar restituir a experiência fundamental cristã, mas depurando-a das “representações e interpretações que pertencem a um mundo de experiência que já se foi”[7]. O pluralismo religioso torna-se, assim, o novo paradigma experiencial a partir do qual se busca compreender a mensagem cristã. E o cristianismo, como mostrou com acerto Edward Schillebeeckx, é sobretudo uma “experiência de fé” que se traduz numa mensagem, e esta experiência deve ser permanentemente recolhida de forma viva e criativa a partir dos novos desafios do tempo. Daí também ser pertintente definir a TdR como uma “teologia hermenêutica inter-religiosa”[8].
O itinerário seguido pela teologia cristã, no seu esforço de compreender a relação do cristianismo com as outras religiões pode ser sintetizado em três diferentes perspectivas adotadas no tratamento da questão. O caminho mais tradicional de abordagem sobre o tema identifica-se com o paradigma exclusivista, presente tanto em âmbito católico-romano como protestante. Trata-se de uma posição que vincula a possibilidade de salvação ao conhecimento explícito de Jesus Cristo e a pertença à Igreja. Sua vigência encontra-se mais rarefeita no tempo atual, restringindo-se a grupos católicos mais conservadores e núcleos de fundamentalistas protestantes. Um caminho hoje mais partilhado identifica-se com o paradigma inclusivista, que se apresenta diversificado em modelos diferenciados. É uma perspectiva que já admite a atribuição de valor positivo às religiões, sem contudo conferir-lhes uma autonomia salvífica, em razão da defesa da unicidade e universalidade da salvação em Jesus Cristo. Podem-se destacar três posições presentes neste paradigma. Em primeiro lugar, o que se convencionou chamar de “teoria do cumprimento”, defendida por teólogos como Jean Daniélou, Henri de Lubac e Hans Urs von Balthasar, entre outros. Nesta posição, são reconhecidos os valores positivos das outras religiões, mas estas são destinadas a encontrar o seu “acabamento” ou “remate” no cristianismo. As outras tradições religiosas, tidas como naturais, são concebidas como “preparação evangélica” ou “marcos de espera” para a sua realização no cristianismo. Uma segunda posição, associada ao pensamento de Karl Rahner, marca uma mudança de perspectiva. Em razão de uma compreensão mais aberta da dinâmica da revelação, as outras religiões deixam de ser vistas como simples expressões “naturais” de uma busca humana, e passam a ser reconhecidas em sua dimensão sobrenatural, definida pela operante presença do mistério de Jesus Cristo em seu interior. Rahner enfatiza a presença de um “componente existencial sobrenatural” nas diversas religiões. Mas permanece para ele em vigência a idéia da constitutividade salvífica de Jesus Cristo, ou seja, de Jesus como causa da salvação. Uma terceira posição, hoje dominante entre teólogos como Jacques Dupuis e Claude Geffré, afirma a defesa de um pluralismo religioso inclusivo. Trata-se de uma posição que busca conciliar o “cristocentrismo inclusivo” com o “pluralismo teocêntrico”[9]. É uma perspectiva que reconhece e acolhe o pluralismo religioso de princípio, entendido como realidade que se insere positivamente no desígnio misterioso de Deus. Mas que ao mesmo tempo mantém vigente e vinculante a afirmação de fé e a doutrina nuclear cristã sobre a unicidade de Jesus Cristo, enriquecida, porém, com uma compreensão mais dinâmica e aberta do processo das auto-manifestações de Deus e de seu Espírito na história. O pluralismo inclusivo defende com vigor o “valor intrínseco” das outras tradições religiosas, enquanto vias misteriosas de salvação. Mas há também um outro caminho de resposta à questão, identificado com o paradigma pluralista, que envolve uma gama de posicionamentos teológicos, e que vem defendido entre outros por John Hick e Paul Knitter. Como traço característico deste paradigma está o reconhecimento das outras tradições religiosas como instâncias legítimas e autônomas de salvação, como religiões verdadeiras e não como um cristianismo diminuído. Mas para tanto, torna-se necessário romper com a idéia da constitutividade salvífica de Jesus Cristo. Na hipótese pluralista de Hick, firma-se a idéia da centralidade do Real, que é fonte e fundamento de tudo, em torno do qual as diversas tradições religiosas encontram-se alinhadas, podendo a ele responder positivamente mediante um processo de transformação que leve do autocentramento ao recentramento no mistério maior da alteridade.
No amplo leque das propostas teológicas em curso visando responder de forma satisfatória ao desafio do pluralismo religioso, vislumbra-se uma hipótese que ganha plausibilidade por ajustar-se bem à compreensão histórica da realidade. Trata-se da posição defendida por Roger Haight, que se situa entre a posição mais recorrente do inclusivismo constitutivo e do pluralismo mais arrojado[10]. É uma perspectiva que no campo da relação de Jesus Cristo com a salvação humana defende uma “postura normativa mas não constitutiva”, aceitando a interlocução fecundante do pluralismo. É um modelo de reflexão teológica que reconhece o valor de verdade para os cristãos da revelação normativa de Deus em Jesus, mas que é também capaz de reconhecer a dinâmica reveladora de Deus alhures. Esta posição “afirma que Jesus proporciona uma norma ou medida representativa da verdade religiosa e da salvação de Deus para toda a humanidade, embora não cause a ação de Deus em prol da salvação que se desenrola fora da esfera cristã”[11].
Um dos grande limites apontados na perspectiva inclusivista é a sua dificuldade em reconhecer o “direito à diferença”, a singularidade e irrevogabilidade das outras tradições religiosas. Para Haight, esta posição não resiste à “internalização da consciência histórica”. Há que honrar a extraordinária diversidade das religiões e a singularidade que as anima, e não simplesmente reconhecer que seu valor está em sua “capacidade de abertura positiva ao que ignoram ou talvez mesmo combatam”[12]. Desconhecer a verdade salvífica que opera nas diversas tradições religiosas é não levar a sério o pluralismo de princípio e desconhecer as “riquezas da sabedoria multiforme de Deus”, que faz sua morada no espaço diversificado da criação. Levando-se em conta a perspectiva interna da fé cristã, esta adesão ao pluralismo de princípio não mina o valor normativo de Jesus Cristo para a apropriação cristã da realidade última, mas exclui sua aplicabilidade universal. Há que reconhecer a validade, também normativa, de outras legítimas mediações religiosas[13]. Na verdade, as riquezas da experiência de Deus ou do mistério último vividas e partilhadas no espaço da alteridade são também nutrientes fundamentais para a ampliação de horizontes religiosos.
Bibliografia
DUPUIS, Jaques. Verso una teologia cristiana del pluralismo religioso. Brescia: Queriniana,1997.
GEFFRÉ, Claude. Croire et interpréter. Le tournant herméneutique de la thélogie. Paris: Cerf, 2001.
HAIGHT, Roger. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003.
HICK, John. Teologia cristã e pluralismo religioso. O arco-íris das religiões. São Paulo: Attar/PPCIR, 2005.
KNITTER, Paul. Introduzione alle teologie delle religioni. Brescia: Queriniana, 2005.
Dados do Autor: Faustino Teixeira. Teólogo e Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. Doutorado e Pós-Doutorado e Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. E-mail: teixeira@ichl.ufjf.br
[1] Claude GEFFRÉ. A teologia das religiões: um novo capítulo da teologia. In: Faustino TEIXEIRA (Org). O diálogo inter-religioso como afirmação da vida. São Paulo: Paulinas, 1997, p. 116.
[2] Heinz Robert SCHLETTE. Die Religionen als Thema der Theologe. Fribourg: Herder, 1964.
[3] Vladimìr BOUBLÌK. Teologia delle religioni. Roma: Editrice Studium, 1973.
[4] Jacques DUPUIS. Verso una teologia cristiana del pluralismo religioso. Brescia: Queriniana,1997.
[5] Jacques DUPUIS. Il cristianesimo e le religioni. Brescia: Queriniana, 2001, p. 34.
[6] Id. Verso una teologia..., p. 34; Jean-Claude BASSET. Le dialogue interreligieux. Paris: Cerf, 1996, p. 412.
[7] Claude GEFFRÉ. Croire et interpréter. Le tournant herméneutique de la thélogie. Paris: Cerf, 2001, p. 17.
[8] Jacques DUPUIS. Il cristianesimo e le religioni, p. 34
[9] Ibidem, p. 180.
[10] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003.
[11] Ibidem, p. 460.
[12] Christian DUQUOC. L´unique Christ. La symphonie différée. Paris: Cerf, 2002, p. 239.
[13] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus, pp. 464.
(Publicado no Dicionário Brasileiro de Teologia. São Paulo: Aste, 2008, pp. 969-972)
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