segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Experiência religiosa: abordagem das ciências da religião

Experiência Religiosa: abordagem das ciências da religião

Faustino Teixeira
PPCIR - UFJF


            Abordar a questão da experiência religiosa é adentrar-se por caminhos extremamente complexos e cada vez mais problematizados nesse tempo de crise das instituições tradicionais de sentido. A própria categoria “religião” ganha uma pletora de significados, assim como o “campo religioso” abrange hoje outros aspectos que não se enquadram precisamente no âmbito das religiões. Como assinalaram Carlos Steil e Rodrigo Toniol, o conceito mesmo de religião torna-se hoje inadequado para “designar um habitus que se expressa por meio de espiritualidades, filosofias de vida e experiências do sagrado que compõem determinado regime de crer” (STEIL & TONIOL, 2012).

            A noção de experiência veio definida com o rigor necessário pelo filósofo Henrique Cláudio de Lima Vaz, em clássico artigo do início da década de 1970. Justificava na ocasião a pertinência de uma não oposição entre experiência e pensamento. Em sua argumentação, a experiência vem definida como “a face do pensamento que se volta para a presença do objeto” (LIMA VAZ       , 1974, p. 76). A experiência envolve assim um campo de relação ativa entre a consciência e o fenômeno, suscitando sua tradução em linguagem, apesar de toda dificuldade que acompanha esta operação, sobretudo em razão da “inefabilidade da presença”. A linguagem busca, porém, traduzir a presença, mesmo com o limite de sua formalidade: “A presença sem a linguagem é opaca, a linguagem sem a presença é vazia” (LIMA VAZ, 1974, p. 79).

            A experiência religiosa diz respeito ao envolvimento com o sagrado, evocando na consciência questões que tocam o âmbito essencial do sentido. Na busca de situar a peculiaridade desta experiência religiosa vinculando-a à estrutura da experiência, pode-se dizer que

“na experiência do sagrado o polo da presença define-se pela particularidade de um fenômeno cujas características provocam, no polo da consciência, essas formas de sentimento e emoção que formam como que um halo em torno do núcleo cognoscitivo da experiência e que análises clássicas como as de Rudof Otto procuram descrever” (LIMA VAZ, 1974, p. 82).

                  A experiência religiosa pode ser captada por oculares diversificadas, envolvendo campos distintos de saber, que se inter-relacionam e dialogam, favorecendo perspectivas dinâmicas para a sua compreensão. Ao lado de um olhar sociológico, outras contribuições se somam, como as advindas da perspectiva fenomenológica, psicológica e teológica, de forma a abrir o campo da discussão em terreno tão complexo e removido como este da experiência religiosa.



O olhar sociológico

            A peculiaridade do olhar sociológico sobre o fenômeno religioso consiste em trazer a questão para suas formas concretas de inserção no tempo. O fenômeno está aí, acontecendo em expressões efetivas. São representações e crenças, são ritos específicos que traduzem, como indica Emile Durkheim, um “sistema de forças” bem vivo. Esse sentimento não pode ser ilusório, pois esteve sempre acompanhando a dinâmica da humanidade: tem correspondência a algo no real. Trata-se de um sentimento “demasiado geral” e que traduz a presença no humano de uma força dinamogênica inusitada, que o ajuda a suportar as dificuldades da existência e também superá-las. Como pontua Durkheim, a religião tem como função ajudar a viver, suscitar um agir, tudo isso animado por um sentimento peculiar de “poder” que eleva o ser humano acima de suas potencialidades, auxiliando-o a fazer frente às provas do dia a dia. Ela é mais um sistema de forças que de ideias.

            O que irmana as diversas crenças religiosas, indica Durkheim, é a percepção de classificação das coisas como sagradas ou profanas. As coisas sagradas envolveriam um círculo de objetos de extensão infinitamente variável, tendo como peculiaridade uma percepção de “dignidade” singular – e superioridade – com respeito às coisas profanas.  O caráter sagrado, por sua vez, não é algo intrínseco a uma coisa reconhecida como sagrada, mas é um dado “acrescentado”. Quando se fala em “força religiosa” o que está em jogo é um sentimento inspirado pela coletividade em seus membros e que vem projetado e objetivado.

            No mesmo movimento que estreita o laço do fiel com seu Deus, firma-se também os laços que unem o indivíduo à sociedade de que é membro. Isso acontece de forma precisa nas práticas do culto. Ali ocorre não apenas um “sistema de signos” que traduzem a expressão da fé, mas uma “coleção de meios pelos quais ela se cria e se recria periodicamente” (DURKHEIM, 1989, p. 494). A religião vem definida como um sistema solidário de crenças e práticas relacionadas às coisas sagradas, que congregam seus aderentes numa mesma comunidade moral (DURKHEIM, 1989, p. 79).

            O traço dinamogênico da religião veio também sublinhado por Peter Berger em sua reflexão sociológica. A religião vem concebida como empreendimento fundamental na manutenção da plausibilidade do sentido, com derivação ainda mais substantiva por relacionar-se a uma fonte poderosa. Trata-se de uma “cosmificação” pontuada pela qualidade desse poder misterioso e envolvente que é o sagrado. Na medida em que transcende e envolve o ser humano nessa dinâmica de ordenação da realidade, o cosmos sagrado “fornece o supremo escudo do homem contra o terror da anomia. Achar-se numa relação ´correta` com o cosmos sagrado é ser protegido contra o pesadelo da ameaça do caos” (BERGER, 1985, p. 40)

            Dizia com razão Durkheim que as crenças “só são ativas quando compartilhadas”. É também o que reitera a socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger ao destacar uma importância singular ao exercício da crença numa tradição ou linha de continuidade do dispositivo devocional. A tradição ganha em sua reflexão um lugar singular, enquanto lugar de “conservação” e atuação da crença. Ela é “geradora de continuidade”.  Sua definição de religião é bem precisa: “Uma ´religião` é um dispositivo ideológico, prático e simbólico mediante o qual se forma, se mantém, se desenvolve e se controla a consciência (individual e coletiva) da pertença a uma descendência crente específica” (HERVIER-LÉGER, 1996, p. 129).

            Com o advento da modernidade e das sociedades pós-tradicionais ocorre uma crise de credibilidade dos sistemas religiosos e a emergência crescente de novas formas de crença. O que caracteriza o tempo atual não é a mera indiferença com respeito à crença, mas a perda de sua “regulamentação” por parte das instituições tradicionais produtoras de sentido. O que ocorre é uma “bricolagem de crenças”, uma individualização e liberdade na dinâmica de construção dos sistemas de fé. Como sublinha Hervier-Léger,

“o principal problema, para uma sociologia da modernidade religiosa é, portanto, tentar compreender conjuntamente o movimento pelo qual a Modernidade continua a minar a credibilidade de todos os sistemas religiosos e o movimento pelo qual, ao mesmo tempo, ela faz surgirem novas formas de crença” (HERVIER-LÉGER, 2008, p. 41)

                  Torna-se impróprio falar simplesmente de um “retorno” ou “revanche” do religioso no tempo atual. O processo é mais complexo. Há de um lado a desqualificação das “grandes explicações religiosas do mundo” que forneciam o sentido e plausibilidade para as pessoas e grupos religiosos. Mas por outro, essa mesma modernidade secularizada não consegue responder às demandas de nomização, acumulando não só utopia mas também opacidade, e com isso gerando simultaneamente “as condições mais favoráveis à expansão da crença” (HERVIER-LÉGER, 2008, p. 41).
           
O olhar fenomenológico

            A experiência religiosa foi objeto de muita reflexão também na fenomenologia da religião e na teologia, buscando resgatar o desejo de transcendência presente na dinâmica humana. Clássica é a posição do pensador romeno, Mircea Eliade, na busca de uma essência do fenômeno religioso, visando encontrar na experiência do sagrado o traço fundamental da experiência religiosa. Para Eliade, o sagrado não pode ser entendido como uma “fase” na história da consciência, mas um “elemento na estrutura da consciência” (ELIADE, 1978, p. 13). Nesse sentido, o dado religioso seria constitutivo do ser humano como tal. Segundo essa visão mais essencialista, o sagrado seria “o real por excelência”, fonte de vitalidade e fecundidade. Estar em relação com o sagrado, ou viver marcado por essa presença, é propiciar uma inserção na realidade objetiva (ELIADE. s/d, p. 42). Nesse quadro interpretativo, é o sagrado que possibilita a orientação e a construção de mundo, firmando propriamente a ordem cósmica. Não se poderia conceber a existência humana fora dessa comunicação com o numinoso, pois ele é por excelência o dossel protetor contra a ameaça de carência de sentido ou do caos.

            No olhar fenomenológico, o âmbito do sagrado circunscreve o “mundo do definitivo” e do necessário. Diante dele todas as realidades da vida ordinária e todas as criaturas passam a ser percebidas como penúltimas, envolvidas por um sentimento vivo de dependência. O sagrado traduz uma realidade que denota majestade, superioridade e transcendência. Diante dele não há sentimento possível senão o de criatura. É algo simultaneamente fascinante e tremendo, como mostrou com acuidade Rudof Otto. Por um lado, arrebata, desconcerta e comove, por sua qualidade de “tremendum” e de “totalmente outro”. Isto pelo fato de estar fora da alçada do domínio das coisas familiares e habituais, típicas do mundo profano. Por outro, provoca fascínio, encanto e atração. Como sublinha Otto, “provoca na alma um interesse que não se pode dominar” (OTTO, 1992, p. 41). É esse sentimento do numinoso, do totalmente outro, que está na base do sentimento religioso e da experiência religiosa, como indicam os autores da fenomenologia da religião.

            Essa abordagem fenomenológica vem sendo objeto de crítica de autores das ciências da religião, sobretudo em razão de sua perspectiva essencialista e sua tendência à generalização (GASBARR0, 2013, p. 93 e 95). Como assinala Frank Usarski, um dos mais fortes crítico a tal perspectiva no Brasil,

o maior desafio que o mundo complexo das religiões representa para um fenomenólogo ´clássico` é o da abstração da complexidade dos fatos reais para chegar ao ´conhecimento` do sagrado o mais imediatamente possível, ou seja, da suposta essência de qualquer ´verdadeira` religião que repercute no interior de um ser humano sensível para tal ´ultima realidade` (...). Enquanto os fenomenólogos pretendiam ir além dos aspectos particulares que constituem uma religião no contínuo  tempo-espaço, para chegar à essência da religião em si, as gerações posteriores dos cientistas da religião defendem o caráter multidisciplinar dos seus estudos e a necessidade de uma colaboração entre especialistas formados em diferentes subdisciplinas e interessados em todas as dimensões que compõem qualquer religião concreta” (USARSKI, 2006, p. 41-43).

                  Mas não se pode desconhecer a importância do aporte da fenomenologia da religião para acessar a experiência religiosa, sobretudo o destaque dado à importância do “tato religioso” para o pesquisador que se disponha a adentrar-se no domínio complexo desse fenômeno. Em casos particulares, a perspectiva contrária, animada pelo “ateísmo metodológico”, não consegue aproximar-se com profundidade do mundo do outro, ou o que é mais grave, acaba por favorecer uma cognição problemática, quando não miserável sobre a experiência da alteridade (PONDÉ, 2001, p. 54-59).

O olhar psicológico

            Não há como captar a experiência religiosa desconhecendo a “extraordinária polimorfia” que a caracteriza. Trata-se de uma realidade que vem carregada por múltiplos e complexos significados. A abordagem psicológica da religião busca uma aproximação do fenômeno tendo em conta suas tensões e polarizações constitutivas. O objetivo proposta é o de “observar” a conduta dos sujeitos e das instituições, com particular atenção aos aspectos subjetivos. Como indicou com acerto Edênio Valle, ainda que reconhecendo os inúmeros “desacordos” que dividem os praticantes dessa disciplina, a aproximação psicológica ao fenômeno religioso guarda alguns traços importantes:

“As definições deixam claro que as religiões reais – com seu peso institucional e sócio-histórico – e a religiosidade, sua face subjetiva, acontecem no jogo das múltiplas relações que se estabelecem entre o sujeito religioso, o grupo religioso ao qual se afilia e o universo das crenças e valores vigentes naquela dada sociedade, grupo ou época, considerados, inclusive, seus respectivos modelos civilizatórios e respectivos estágios de desenvolvimento tecnológico-científico e político-organizativo. Neste contexto de extraordinária complexidade, o psicólogo tenta chegar à opção vivencial e à realidade psicológica e humana dos indivíduos, assim como essa aparece em seu comportamento religioso (VALLE, 1998, p. 260).

                  O olhar psicológico, aninhado num ramo específico das ciências da religião, busca examinar os fenômenos e manifestações religiosas tendo em vista a polifonia de suas dimensões comportamentais. É, porém, um olhar que se encontra ainda em “estágio de construção”, mesmo com uma história que já soma quase cento e cinquenta anos. Esse caminho veio recentemente traçado por Jacob Belzen, da Universidade de Amsterdã, que sintetiza de forma muito feliz os passos até agora percorridos pela Psicologia da Religião. A forma como se concebeu ou se exerceu esse campo temático foi muito diversificado: ora se firmou a serviço do religioso, ou então a serviço da crítica à religião ou do conhecimento científico. Perspectivas que se vinculam a um dos três caminhos são recorrentes. Mas uma outra perspectiva, sublinhada por Belzen, vem também se firmando, e é bem sugestiva. Trata-se do caminho nomeado como “Parecerista” (do alemão Rezensentin). Para usar uma metáfora do mundo da música, esta perspectiva tem como foco principal a “atenção” desperta para os que praticam a música, no caso, os executantes da religião. E o autor justifica esta posição: “Os psicólogos da religião que exercem sua profissão como Pareceristas sobre uma religião ou comportamento religioso não se sentem chamados a escrever sobre religião em geral, mas sim sobre um comportamento religioso concreto” (BELZEN, 2013, p. 326-327). Esse modo de procedimento é distinto de certa concepção exteriorista ou neutra, bem vigente neste campo, que destaca o pesquisador do objeto de seu estudo em vista de uma maior cientificidade. Ao contrário, os que seguem a nova orientação estão bem cientes da importância de uma maior aproximação da religiosidade particular para uma interpretação correta das manifestações subjetivas do exercício da religiosidade. Esta nova ocular vem assim recuperar a dimensão hermenêutica da Psicologia da Religião, instrumentando-a com novos atributos para conhecer o sujeito religioso tanto a partir “de fora” como “de dentro” de sua prática religiosa.

O olhar teológico

            O desejo de transcendência, já presente na ocular fenomenológica, vem também trabalhado em âmbito teológico, sendo destacado com ênfase por autores como Karl Rahner. Esse grande arquiteto da teologia católica dedicou-se a compreender os traços dessa “experiência transcendental” que, a seu ver, opera em todos os seres humanos. Para ele, não há como desvencilhar-se desse dinamismo que atua na consciência subjetiva, como traço necessário e insuprimível, mesmo que ocorra de forma anônima ou atemática. Cada consciência subjetiva estaria assim animada por esse “caráter ilimitado de abertura”. Enquanto ser de transcendência, o ser humano está sempre, e antes de qualquer ato de liberdade, situado e orientado na atmosfera de um “mistério santo e absolutamente real”. É este mistério, simultaneamente transcendente e familiar, o que existe “de mais evidente”, colocado sempre à disposição do humano.

            Segundo Rahner, esta experiência transcendental do sujeito vem marcada por universalidade, podendo ocorrer de forma atemática e mesmo “arreligiosa”, independente de uma experiência religiosa explícita. É uma experiência original, ontologicamente fundada.  Ela acontece de fato onde quer que o sujeito atue de forma livre e profunda a sua existência. É algo que se disponibiliza para todos, e que pode ocorrer “até mesmo em formas e conceituação que aparentemente nada têm de religioso” (RAHNER, 1989, p. 164). Ocorre quando o sujeito se vê defrontado, no âmbito de suas atividade cotidianas, com o “abismo de sua existência”, com a profundidade que escapa ao burburinho tranquilo das coisas familiares.

Um campo semântico em discussão

            Torna-se cada vez mais complicado querer hoje caracterizar a religião como uma atividade específica do ser humano, como definido em alguns campos da fenomenologia da religião. É verdade que alguns autores como Keiji Nishitani e Paul Tillich buscaram ampliar esse campo semântico, visando identificar um sentido mais lato de religião. Nesse caso, a expressão envolveria uma dimensão mais ampla, associada à metáfora da profundidade. Religião seria assim a “dimensão da realidade suprema nos diferentes campos do encontro do homem com a realidade” (TILLICH, 1968, p. 96). Igualmente Nishitani, da Escola de Kyoto, apresenta um conceito de religião mais amplo, que a associa à “real consciência da realidade”. Para ele, a exigência religiosa envolveria a “busca humana da verdadeira realidade de um modo real”, para além de uma expressão exclusivamente teorética (NISHITANI, 2004, p. 35-36).

            Com base nas experiências do sagrado ou espirituais que não se encaixam exclusivamente no conceito tradicional de religião, há que problematizar certa ideia rotineira de religião que a enquadra como um traço do humano. Estudiosos da história das religiões e das mitologias, como Jean-Pierre Vernant lançam suspeitas sobre os procedimentos analíticos habituais com respeito à cobertura da noção de religião. Há povos ou tradições que não trabalham com a distinção sagrado/profano, nem com noções como a de um Deus único, ou mesmo de Deus. Outras tradições que não trazem em seu repertório dogmas ou credos, um clero regular ou promessas de imortalidade. Critica-se a ideia mesma de religião como sendo “estreitamente etnocêntrica e ocidental” (GEFFRÉ, 2012, p. 15-16).

            Como mostrou Pierre Gisel, o dado religioso não pode ser concebido como algo apriorístico, ou dimensão específica do humano, mas é algo que só se dá em formas determinadas de crenças ou religiões específicas. Trata-se, antes, de uma “construção cultural”. As religiões são historicamente firmadas e construídas. O termo “religioso”, distintamente da forma como veio concebido numa perspectiva mais substantiva ou essencialista, é um constructo:

“o que ele circunscreve não se encontra em todas as culturas ou em todas as civilizações, e quando ele designa um campo próprio – como na história ocidental permeada de cristianismo -, este campo é, de fato, um ´cenário`, no qual realidades antropológicas e sociais mais amplas vêm se apresentar” (GISEL, 2011, p. 169).

            Mudanças essenciais vêm ocorrendo no âmbito da modernidade pós-tradicional, com implicações bem precisas na dinâmica religiosa. Junto com a desinstitucionalização crescente, expressão da crise das instâncias sólidas que fundavam, enquadravam e regulavam o campo das experiências religiosas, instala-se a quebra de transmissão da memória religiosa. As filiações tradicionais sofrem impacto decisivo e novas crenças se firmam fora do circuito tradicional das religiões tradicionais. Como pontua Pierre Sanchis, “um dos problemas mais críticos que as instituições religiosas terão de enfrentar nos próximos tempos será de se haver com um significado menos totalizante para a relação identitária que seus fiéis manterão com elas” (SANCHIS, 2013, p. 13-14).

            Com todas as mudanças provocadas pela modernidade pós-tradicional, um dado permanece vigente: a incapacidade de lidar com as incertezas antropológicas que permanecem acesas no tempo. Ainda que superando certos fatalismos típicos das sociedades tradicionais, a modernidade não conseguiu responder à sede de sentido de seus indivíduos. É uma demanda que permanece viva e aguda (HERVIEU-LÉGER, 1996, p. 151). Isto  talvez ajude a explicar a grande sede espiritual que move um importante segmento de pessoas no momento atual, suscitando novas questões e indagações e ampliando o campo da discussão em torno da experiência do sentido.
           
A busca pela experiência espiritual

            Ainda que a experiência religiosa vigore como um dado presente e singular, talvez seja mais pertinente falar em experiência espiritual, caso se queira buscar um campo de maior universalidade. Há que distinguir entre religião e espiritualidade, como tão bem mostrou Dalai Lama. A espiritualidade está relacionada com “qualidades do espírito humano” tais como o amor, a compaixão, a paciência, a hospitalidade, a atenção, delicadeza e doação. São qualidades que independem de uma vinculação religiosa, e qualquer indivíduo é capaz de desenvolvê-las, mesmo em alto grau, mesmo não pertencendo a um sistema religioso determinado. Pode-se até dispensar a religião, mas não essas “qualidades espirituais básicas” (DALAI LAMA, 2000, p. 32-33).

            Uma série de autores não religiosos têm hoje sublinhado a importância da vida espiritual como traço elevado do ser humano, e capaz de ser experimentado mesmo fora de uma inserção religiosa. É o caso de André Comte-Sponville em seu trabalho sobre O espírito do ateísmo. Para ele, a espiritualidade tem a ver com a abertura do espírito e o defrontar-se com a vida em profundidade. Essa abertura ao infinito, à eternidade, ao singular que existe no próprio sujeito, despertando dimensões inusitadas, é de fato exercício de vida espiritual. Se é verdade que “toda religião pertence, ao menos em parte, à espiritualidade”, há também que afirmar que “nem toda espiritualidade é necessariamente religiosa” (COMTE-SPONVILLE, 2007, p. 129).

            A espiritualidade, sublinha Comte-Sponville, é algo que se dá, de forma simples e até mesmo banal, no domínio da experiência cotidiana, diante da força da “imanensidade”. Trata-se do sentimento essencial de estar diante do Todo, que se apresenta no tempo e que transborda o sujeito por todos os lados. Criando-se as condições para uma tal experiência, algo que requer atenção e disponibilização interior, a estupefação diante do Mistério revela-se imediata: “O mundo é nosso lugar; o céu, nosso horizonte; a eternidade, nosso cotidiano” (COMTE-SPONVILLE, 2007, p. 137).

            Em linha de sintonia com esta perspectiva, pode-se também assinalar a reflexão de Pierre Hadot, que fala em “exercício espiritual”, entendido como uma prática voluntária e pessoal de desapego e transformação de si mesmo, de descentramento do ego em favor de uma aliança superior do sujeito com a totalidade das coisas (HADOT, 2008, p. 119-120; MANCUSO, 2012, p. 143-144; ). Trata-se de uma experiência que não está destacada da vida cotidiana, mas que encontra aí o cenário vivo de sua realização. Citando uma passagem de Wittgenstein a propósito da mística, Hadot destaca essa singularidade da “maravilha pela existência do mundo”, de ser capaz de ver o mundo como um “milagre”. Não há como acessar a riqueza de uma tal experiência espiritual fora do cotidiano. É ali que os aspectos mais, simples, ricos e essenciais das coisas encontram sua guarida (HADOT, 2007, p. 16-17 e 77; PENA-RUIZ, 1998, p. 22).

Referências Bibliográficas

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BERGER, Peter. O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985.
COMTE-SPONVILLE, André. O espírito do ateísmo. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
DALAI LAMA. Uma ética para o novo milênio. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989.
ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas. Da Idade da Pedra aos Mistérios de Elêusis. Tomo 1. Das origens ao judaísmo. Volume 1. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
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GEFFRÉ, Claude. Le christianisme comme religion de l´Évangile. Paris: Cerf, 2013.
GISEL, Pierre. Che cosa è una religione? Brescia: Queriniana, 2011.
HADOT, Pierre. La filosofia come modo di vivere. Conversazioni con Jeannie Carlier e Arnold L. Davidson. Torino: Einaldi, 2008.
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MANCUSO, Vito. Obbedienza e libertà. Critica e rinnovamento della coscienza Cristiana. Roma: Fazzi, 2012.
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OTTO, Rudolf. O sagrado. Lisboa: Edições 70, 1992.
PENA-RUIZ, Henri. La laïcité. Paris: Flammarion, 1998.
PONDÉ, Luiz Felipe. Em busca de uma cultura epistemológica. In: TEIXEIRA, Faustino (Org). A(s) ciência(s) da religião no Brasil. Afirmação de uma área acadêmica. São Paulo: Paulinas, p. 11-66, 2001.
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STEIL, Carlos; TONIOL, Rodrigo. A crise do conceito de religião e sua incidência sobre a antropologia. In: GIUMBELLI, Emerson; BÉLIVEAU, Verónica Gimenéz. (Org.). Religión, cultura y política en las sociedades del siglo XXI. 1ed.Buenos Aires: Biblos editora, 2013, p. 137-158.
TILLICH, Paul. La mia ricerca degli assoluti. Roma: Ubaldini, 1968.
USARSKI, Frank. Constituintes da ciência da religião. São Paulo: Paulinas, 2006.

Publicado na Theologica Latinoamericana. Enciclopedi Digital:

sábado, 19 de novembro de 2016

Em torno do boi e do pastor. Anotações a partir de uma aula sobre a mística zen budista

Em torno do boi e do pastor: anotações de uma aula sobre a mística zen budista

Faustino Teixeira
Novembro/2016


O tema de minha recente aula no curso de mística zen budista (17/11/2016) girou em torno das sete primeiras figuras do boi e do pastor. A questão chave em toda reflexão: o desafio do tornar-se verdadeiramente humano, na descoberta do verdadeiro si mesmo (Jiko). Boa parte da aula desenvolveu-se em torno do magnífico texto de José Carlos Michelazzo: Desapego e entrega: atitudes centrais da meditação zen-budista e suas ressonâncias nos pensamentos de Eckhart e Heidegger. Pude constatar ao preparar mais uma vez esse tema, como o texto de Michelazzo é essencial para acessar o significado da prática do zazen, que já se inaugural na segunda figura: o encontro dos rastros do boi.

A prática meditativa tem importância substantiva no zen-budismo. Trata-se da meditação sentada (zazen), que envolve uma palavra simples e dileta: simplesmente sentar (shikantaza). Essa prática para Dôgen constituía o caminho de excelência, e todos os seus capítulos do Shôbôgenzô constituíam “apenas notas de rodapé do zazen”.

A prática continua (Gyôji), abordada num dos capítulos da grande obra de Dôgen, é a prática fundamental, comum “a todos os seres do universo”. Ela indica a presença de uma “teia de interdependência que faz com que todas as existências de todos os seres sejam regidas por uma trama global, total, cósmica”. Com o olhar animado pela “originação interdependente” o que podemos observar, por todo canto, é simplesmente essa prática contínua.

Nessa teia ou malha de interdependência cada ser está entregue, vivendo “tal como se é”. O peixe, por exemplo, vive essa taleidade na relação natural com a água: “a plenitude da vida do peixe é possibilitada por sua completa interpenetração com a água (…). Os caminhos surgem para o peixe ao praticar o nado”.

O ser humano, “dentre todos os seres, é o único que se esqueceu da teia cósmica, que perdeu a memória de sua originação interdependente, de sua não dualidade. E por esse esquecimeno e perda lhe é exigido um esforço difícil e contínuo para se entregar ao que originalmente ele é e, assim, fazer o caminho de volta à sua própria casa” (veja a sexta figura).

Trata-se do essencial “retorno” mediante duas atitudes fundamentais: o desapego e a entrega. Isso também nos faz lembrar Mestre Eckhart, citando o evangelho de Lucas: “Um homem nobre partiu para uma terra distante, a fim de tomar posse de um reino, e regressou” (Lc 19,12).

A prática meditativa possibilita o desvelo desses dois binômios: desapego e entrega. Para além do estado da vigília ou do sono, essa prática revela um estado novo, meditativo, possibilitado pelo zazen. Como mostra Michelazzo, trata-se de um “exercício bastante difícil” testemunhado pelos principiantes, e isto porque “a mente quando colocada na postura de meditação procura reproduzir o seu típico padrão binário de vigília-sono, isto é, ou ela ´quer` continua rem sua agitação ou, caso contrario, é tragada pelo irresistível sono”.

O caminho do zazen passa pela estratégi de “colocar o corpo em uma espécie de casulo”, favorecendo a combinação de duas condições: imobilidade e relaxamento. Um estratégia que faculta o aquietamento da mente. E o desafio maior está em “nada focalizar”, com o recurso da concentração. E com o exercício da prática, uma concentração “em nada, no vazio ou, como dizem os hindus, no sûnyata”. É o nobre momento da atenção plena. Em todo o processo, o papel essencial da respiração.

Em todo esse trabalho, a importância do mestre revela-se essencial. O praticante só consegue perseverar na presença de um mestre. Como tão bem assinala Eugen Herrigel na sua obra, A arte cavalheiresca do arqueiro zen, o mestre é aquele que fornece o exemplo da “obra interior”. É alguém que “ensina o caminho”, deixando depois o discípulo percorrer por si mesmo a via.

Com o tempo e a maturidade espiritual o buscador dá o salto essencial, o que exige constância e perseverança. Como indica Michelazzo:

“Existe também outra metáfora do zen que diz que sentar-se diante da parede em zazen é o mesmo que polir, polir, polir, a parede por muito tempo. Os primeiros lampejos da iluminação aparecem no dia em que a parede se torna vidro e pela transparência se vê coisas que estão do lado de for a do zendô. É preciso continuar a polir, pois, caso contrário, o vidro volta a se tornar parede. Caso o praticante continue a polir, um dia o vidro, de repente, se estilhaça e, aí, ele é envolvido imediata e diretamente com as coisas e os âmbitos de dentro e de for a do zendô desaparecem: é a iluminação. Sobre o momento inesperado em que se dará o estilhaçamento do vidro é algo envolto em mistério que sempre se mostra de forma fortuita ou contingente nas narrativas zen, sempre muito singulares para cada despertar: o toque de um sino ou a batida de uma porta, a repreensão enérgica de um mestre ou o barulho de uma tigela se partindo ao chão, etc. Tais eventos que sempre têm algo de natureza tangível, concreta e até mesmo banal, parecem desempenhar um papel semelhante à de um gatilho ou de uma centelha, ou seja, tem a função de disparar um acontecimento cujas condições para o seu aparecimento estariam perfeitamente entrelaçadas, à espera somente de apenas mais uma única condição. Daí seu caráter abrupto, repentino”.

E o mais interessante nisto tudo é que o buscador, depois do despertar, RETORNA.

“Como qualquer escalada em uma grande montanha, após todos os acontecimentos estonteantes e incomuns pertinentes ao sucesso da experiência, é preciso descer. No caso do meditador desperto é imprescindível voltar ao cotidiano, ao mundo da dualidade, mas a experiência da não-dualidade deixará nele uma marca indelével que doravante o afetará por toda a sua existência na forma de um dejà vu que nunca mais poderá afastá-lo da experiência de ter-se percebido em um todo não-dual com o Universo. Essa marca o colocará em um estado de constante atenção em suas atividades simples e rotineiras de seu dia a dia protegendo-o de seus antigos apegos, colocando-o em um estado de constant ´desprendimento de categorias, eventos e doisas dualísticas que nossas percepçoes e intelecto criam`”.


Outro texto essencial também em torno das dez clássicas imagens do zen: Shizuteru Ueda. O nada absoluto no zen em Eckhart e em Nietzsche. É um texto muito denso, cuja leitura deve ser feita com atenção e zelo. A tradução brasileira saiu na Revista Natureza Humana 10 (1): 165-202, jan-jun de 2008.

O texto aborda as questões relacionadas a uma antiga história zen, do boi e do pastor, que trata do processo de auto-realização humana em dez estações.

É um texto propício para aqueles que buscam entender as três últimas estações, que correspondem as três últimas imagens da história.

A oitava imagem apresenta o círculo vazio, símbolo do zen. Uma imagem desvestida de boi e de pastor. O tema é o do nada absoluto, daí sua analogia com o pensamento de Eckhart. Esse nada não quer dizer vazio inexistente, mas um vazio pleno de tudo, que traduz o humano libertado de todo pensamento substancializado. É quando se dissipa a ideia do "eu sou eu". Como mostrou com acerto Hisamatsu (1889-1980), discípulo de Nishida, o vazio (ou nada) do budismo zen revela o coração desta tradição, o núcleo essencial do zen.

Como indica Ueda, este "eu sou eu" vem marcado por uma tripla intoxicação: ódio contra os outros; cegueira elementar e cobiça.
O verdadeiro si mesmo é marcado pelo despojamento de si mesmo.O caminho que vai da primeira à sétima figura aponta "o processo de desprendimento do eu-sou-eu".

A oitava figura, que é fundamental, conduz ao SALTO decisivo, que é o "salto ao nada absoluto, aonde não há mais nem pastor que procura nem boi que é procurado, nem homem nem Buda, nem dualidade nem unidade".

É o momento chave da irrupção do verdadeiro si-mesmo, que corresponde ao incondicional despojamento de si mesmo. É o momento do "grande morrer" (que no sufismo vem entendido como "morrer antes de morrer"). Nesse oitavo passo não há mais apegos, nem mesmo religiosos. E o buscador vem provocado a não se sentir bem nem mesmo "onde o Buda mora". Vem comvocado a passar "depressa pelo lugar onde não mora mais nenhum Buda".

O nada que se encontra, então, é o nada da "dissolução do pensamento substancial". Com base em Goethe, podemos dizer que esse momento é aquele do devenir: "morre e advém!". É a partir desse vazio que ocorre a "ressurreição", esta "mudança radical da absoluta negação para o grande ´sim`". O verdadeiro si-mesmo vem agora representado, na nona estação, com a imagem da árvore em florescência à beira do rio. Tudo muito singelo. Como diz Ueda: "O florescer da árvore, o fluir da água, é aqui, portanto, assim como acontece, ao mesmo tempo um jogar da liberdade despojada do si-mesmo".

Há uma co-pertença entre o "nada" da oitava estação e o "simples" da nona estação: penetram-se reciprocamente.

Na última e derradeira estação há um ENCONTRO precioso. Agora, "o verdadeiro si-mesmo, ressuscitado do nada, age e joga entre homem e homem como uma dinâmica despojada do ´entre`. Neste caso esse ´entre` é, agora, o próprio campo de ação, o campo interno de ação do si-mesmo, ou também: o si-mesmo que, cortado, aberto pelo nada absoluto, se desenvolve com o ´entre`".

Os dois interlocutores, o velho (ressuscitado do nada) e o jovem inclinam-se mutuamente. Algo precioso, que vai para além de uma simples cortesia. A inclinação expressa o movimento em direção ao nada, na profundidade da ausência de fundamento, rompendo com as cadeias do ego. A relação eu-tu ganha assim um lugar distinto, uma vez que procede de uma penetração no nada do nem-eu e nem-tu.

A imagem do velho que pertence a uma geração desconhecida (ou seja, do nada absoluto) é preciosa nessa décima estação. O iluminado não se reserva a uma experiência de esplendor, mas ele desce ao mercado, com a consciência viva das coisas mais simples: suas perguntas são do âmbito do cotidiano. Como assinala Ueda, "o verdadeiro si-mesmo, no encontro com outras pessoas, não habita o chamado ´nirvana`e sim a TÃO PERCORRIDA ESTRADA DO MUNDO, responsável por muitos encontros, porém sem abandonar o nada absoluto". Ele traz consigo o nada absoluto... sempre.


Muito interessante, com a décima estação não se fecha um ciclo, mas indica o início de um novo ciclo: abre-se agora para o jovem que se inclina para o velho um caminho a seguir: "A 10ª estação não é, portanto, o fechamento e sim o início da primeira estação para um outro, para um jovem que o velho, em seu ´entre`, aberto, encontrou e que por suas perguntas é despertado para o verdadeiro si-mesmo".