quinta-feira, 30 de abril de 2020

Frestas para pensar num para além do excepcionalismo humano

Frestas para pensar num para além do excepcionalismo humano

Faustino Teixeira

           Se estamos desejando pensar para além do antropocentrismo, o estudo que envolve a percepção do valor característico dos animais se faz mais do que necessário. Lembro aqui os trabalhos essenciais de Donna Haraway e Vinciane Despret. Essa última autora tem se dedicado a refletir sobre o traço da inteligência e sensibilidade dos animais. Ela sublinha que temos hoje uma etologia dos golfinhos, ursos, lobos, elefantes e pássaros. Mas falta ainda, diz ela, estudos mais aprofundados sobre as vacas e os porcos. Indica a existência de uma “impressionante reserva de saber” a ser desenvolvida sobre os animais. Cito aqui o seu belo livro: “Être Bête”  (Actes Sud, 2007), publicado em colaboração com Jocelyne Porcher.

            No Brasil, acompanho de perto o excelente trabalho realizado por Maria Esther Maciel, que organizou o livro, “O animal – Ensaios de zoopoética e biopolítica”(Editora UFSC, 2011). Ao final do livro ela recolhe uma longa entrevista realizada por Sandra Azerêdo com Donna Haraway. Na entrevista aparece o belo conceito introduzido pela antropóloga americana: “espécies companheiras” (companion species). Ao longo da conversa, Vinciane Despret vem citada, em razão de assinalar o traço de subjetividade dos animais. Ela diz: “a capacidade para a subjetividade não é algo a ser procurado na natureza de um ser (...), mas algo tornado possível, talvez inventado, nos processos através dos quais os seres ´tornam uns aos outro capazes` de alguma coisa que é talvez nova no planeta Terra”. É o caminho que se abre, fabuloso, para romper com a ideia da excepcionalidade humana. Haraway sublinha, admirada, o fato de estarmos implicados e emaranhados na teia da vida: nós com todas as criaturas da Terra. E acrescenta: “Ainda me faz vibrar o fato de que a folha da ameixeira e minha carne compartilham uma grande parte de nossos genomas e também seguem nossos próprios caminhos inimitáveis geneticamente e em outros aspectos”.

            Em outro livro de Maria Ester Maciel, Literatura e animalidade (Civilização Brasileira, 2016), ela aborda de forma esplêndida a presença dos animais na literatura brasileira. Ela chama de zooliteratura. Recorrendo à ficção minimalista de Rosa, Maciel chama a atenção para o lugar dos bois em sua literatura. Cita, por exemplo, o conto “Entremeio com o vaqueiro”, que está inserido no livro póstumo, “Estas histórias” (1969). São magníficas as conversas relatadas entre Rosa e José Mariano da Silva, por ocasião de uma viagem de Rosa ao Pantanal do Mato Grosso em 1952. Mariano era alguém que conhecia os nomes de cada boi ou vaca, e fala deles como se falasse de grande amigos. Chega a dizer em certo momento: “Aqui o gado é que cria a gente”. 

            Maciel louva Rosa pelo carinho com que aborda os animais em seus contos e romances, inclusive considerando-os como “sujeitos dotados de sensibilidade, inteligência e conhecimentos sobre o mundo”. Não é sem razão que vem reconhecido como “o maior animalista da literatura brasileira do século 20”. Dizia Rosa que “amar os animais é aprendizado de humanidade”. Exemplar também é o conto “Meu tio Iauaretê”, que trata da estória de um onceiro que, “de tanto conviver com as onças, acaba por interagir com elas, assumindo suas características (unhas, cheiro, braveza etc.)”. Relato aqui uma das passagens mais interessantes do conto:

“Onça pensa só uma coisa – é que tá tudo bonito, bom, bonito, bom, sem esbarrar. Pensa só isso, o tempo todo, comprido, sempre a mesma coisa só, e vai pensando assim, enquanto que tá andando, tá comendo, tá dormindo, tá fazendo o que fizer... Quando algûa coisa ruim acontece, então de repente ela ringe, urra, fica com raiva, mas nem que não pensa nada: nessa horinha mesma ela esbarra de pensar. Daí, só quando tudo tornou a ficar quieto outra vez é que ela torna a pensar igual, feito em antes...”

            Se Rosa foi grande animalista, Machado de Assis foi seu precursor, como lembra Maciel. Foi ele um dos primeiros no Brasil a elogiar o vegetarianismo e nos advertir sobre nossa tremenda dificuldade em falar sobre os animais. Maciel cita uma passagem do romance Quincas Borba, onde o narrador tenta captar o fundo do olhar de um cão.  É um olhar que “parece traduzir alguma coisa, que brilha lá dentro, lá muito no fundo de outra coisa que não sei como diga, para exprimir”. Isto me fez lembrar um poema de Rilke, belíssimo, que fala do olhar da pantera no Jardin des Plantes de Paris. Rilke sublinha: “De tanto olhar as grades seu olhar / esmoreceu e nada mais aferra. / Como se houvesse só grades na terra: / grades, apenas grades para olhar”. Em outro conto, lembrado por Maciel, “Idéias de Canário” (1963), Machado descreve a conversa de um ornitólogo com um canário preso na gaiola. A conversa gira em torno de uma pergunta feita pelo narrador, indagando se o canário tinha saudade do espaço azul e infinito. O canário não conseguia decifrar para o especialista o que era o “espaço azul e infinito”. O ornitólogo então compra uma nova gaiola, ampla e arejada, e mais tarde repete-lhe a pergunta. O canário responde dizendo que para ele o espaço era “um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima”. A visão tinha se ampliado... Ocorre que depois o pássaro foge, e mais tarde o ornitólogo encontra-o e repete a pergunta. Como resposta, ouviu: “O mundo, conclui solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima”.

            Outros grandes nomes da literatura brasileira, como Clarice Lispector, debruçam-se sobre a riqueza da animalidade e apontam caminhos importantes e novidadeiros para a reflexão sobre o tema. Vemos assim toda uma linhagem de escritores, de toda parte, que estão “atentos à complexidade das relações entre homens e animais”, direcionando nosso olhar e reflexão para aquilo que Deleuze e Guattari tão admiravelmente definiram como “devir animal”.

            

terça-feira, 28 de abril de 2020

Tempos de temor e expectativa

Tempos de temor e expectativa

Faustino Teixeira


Estamos vivendo hoje no mundo uma situação extremamente difícil, onde a vulnerabilidade está exposta com toda a sua nervura. A pandemia em curso continua com sua letalidade única, virulenta. São nada menos do que 3 milhões de infectados no planeta, tendo os EUA na liderança, com 1/3 dos casos confirmados. A ameaça maior é com respeito aos riscos que vão acompanhar a presença da pandemia nos países do Terceiro Mundo: Índia, África, América Latina. No caso da Índia, é onde a vulnerabilidade está mais presente, uma vez ali estão concentrados o maior número de idosos no mundo. Na América Latina, o grande problema das favelas, desprotegidas do necessário distanciamento exigido. Fora o problema tremendo dos sem-teto, que não podem se dar o luxo de permanecerem em casa.

A situação no Brasil é preocupante. O país é o quarto no mundo a registrar o maior número de mortes nas últimas 24 horas, só sendo superado pelos EUA, França e Reino Unido. O Brasil já ultrapassou em óbitos a Itália, a Espanha e a China. Os números de hoje, como apontam os dados, indicam o registro de 5.017 casos fatais em razão da Covid-19. Um número superior ao da China, onde tudo começou. O registro na China indica 4.643 mortes. No Brasil, o estado com maior número de casos é São Paulo (21.696), seguido do Rio de Janeiro (7.944), Ceará (6.726), Pernambuco (5.358) e Amazonas (3.928). Os infectados estão presentes hoje em 13 estados e o Distrito Federal: todos com mais de 1.000 infectados.

Os casos de doença no Brasil também aumentaram significativamente: de ontem para hoje, 28/04/2020, o Brasil registrou 5.385 infectados, e o total alcança agora 71.886 casos da doença. Em vídeo de alerta que vem circulando hoje nas redes, a doutora Ana Escobar faz uma séria advertência: esta semana e a próxima são as mais difíceis, pois indicam o pico de incidência da pandemia no país. Ela faz um cálculo arrepiante: tivemos 40 dias para registrar a primeira morte. Daí em diante os dados são tremendos: 7 dias para registra mais 1.000 mortes; 5 dias para registrar outras 1.000, e agora 3 dias para registrar a mesma cifra.

Curiosamente, tenho amigos no Facebook que continuam não acreditando na presença da doença, achando que tudo não passa de enganação. Há uma coincidência entre os que desacreditam na pandemia e aqueles que defendem o atual presidente. Na entrevista publicada no dia 27/04/2020 na Carta Capital, o filósofo Vladimir Saflate fala dessa coincidência, ao comentar os recentes protestos reunindo os apoiadores do Bozo nas ruas de diversos cantos do país. Todos protestando contra a quarentena em curso. Na sua visão, os 30% de apoiadores do presidente vão se transformar em 30% de fanáticos camisas negras das milícias fascistas. Segundo Safatle, a pandemia “expõe o êxito do bolsonarismo em ´desrecalcar` características violentas de parte da população e promover uma ´transformação dos afetos na vida social brasileira`”. E no meio de tanto sofrimento, o tremendo “desgaste da compaixão”. Como aponta Safatle, “o que emerge é a expressão máxima da ausência absoluta de solidariedade pelos mais vulneráveis, a ponto de se zombar daqueles que estão morrendo”.

Em artigo publicado no O Globo de hoje, 28/04/2020, a pesquisadora Margareth Dalcolmo  observa que estamos no Brasil “correndo atrás do tempo e observando o cenário trágico da nossa obscena desigualdade social que a epidemia desnudou”. E termina seu artigo com a busca de alento em Teilhard de Chardin, num texto de janeiro de 1918, um pouco antes da primeira onda da gripe espanhola: “Será necessário que a humanidade, sob pena de perecer à deriva, se eleve à ideia de um esforço humano específico e integral.”

segunda-feira, 27 de abril de 2020

O cuidado com o cuidador

O cuidado com o cuidador

Faustino Teixeira

A questão do cuidado vem ganhando a cada dia maior importância na reflexão contemporânea: cuidar de si, dos outros, dos animais, do ambiente e do planeta. Aqui no Brasil quem vem se dedicando ao tema há muitos anos é Leonardo Boff, que inaugurou essa reflexão em livro que se tornou um clássico: Saber cuidar(1999). Voltou ao tema em outra obra, O cuidado necessário(2012). Nesse trabalho tratou de um tema que hoje torna-se fulcral neste tempo da pandemia do coronavírus: o cuidado com o cuidador. Dizia com razão que o operador de saúde lida com algo extremamente delicado, a saúde dos outros, e nesse sentido está sempre diante da vulnerabilidade humana. 

Em tempos normais isso já é difícil, mas em tempos de pandemia, diante de mortes que se sucedem a cada momento, o desafio torna-se muito mais difícil. Estar diante da dor do outro, das mortes em sequência, das precárias condições instrumentais, da falta de leitos ou de apetrechos para o trabalho que se exige, provoca uma profunda ansiedade, por mais que o profissional esteja preparado psicologicamente para enfrentar esses percalços. 

Nenhum profissional é onipontente, como assinalou Boff; como todos mortais, estão “sujeitos ao cansaço, ao estresse e à vivência dos pequenos fracassos e decepções”. Com o coronavírus, nada se revela pequeno, mas ganha uma dimensão tremenda, que desconcerta qualquer profissional, por mais gabaritado que seja. Daí a importância de se dedicar uma atenção muito particular ao cuidado com esses cuidadores. Diz Boff: eles precisam “se sentir acolhidos e revitalizados, exatamente como as mães fazem em relação aos seus filhos e suas filhas”. 

Firma-se a urgência de um aparato de apoio, o que Winnicot chamava de holding. Os profissionais da saúde precisam de mãos que os assegurem, que os confortem e animem. É um tratamento que singulariza a presença das mãos que afagam e sustentam. No alemão, a palavra tratamento, Behandlung, indica o exercício da mão, o acarinhamento, o cafuné espiritual. Todo tratamento, diz com acerto o filósofo Gadamer, começa com a mão. Os profissionais de saúde serão mais competentes e inteiros em seu sagrado trabalho se abrirem um espaço essencial para o cuidado de si, a busca de equilíbrio. Há que caçar essa “harmonia invisível”, a qual Heráclito percebeu uma força poderosa. Toda perturbação da saúde, que hoje está ocorrendo também com os profissionais da área, necessita de atenção e cuidado: saber o momento exato de buscar ajuda para o balanço de devido equilíbrio.

É não se deixar levar pela ideia de domínio absoluto da arte. Há que ter humildade e paciência diante do “caráter oculto da saúde”, dar-se conta de que “há limites para o ser-capaz-de-fazer”. E outra aporia importante: saber cavar o espaço de esquecimento. É necessário, para o equilíbrio interior, garantir momentos de esquecimento salutar, inclusive para favorecer um dos traços mais curativos da vida que é o de poder adormecer toda noite, sem ser tomado exclusivamente por perturbações ou preocupações. Saber perceber o momento certo para acolher  “o sono curativo do esquecer”.

domingo, 26 de abril de 2020

O Zen e o tiro com arco

O Zen e o tiro com arco – Uma leitura da obra de Eugen Herrigel

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF


Considerações Iniciais: as artes na tradição zen

            Aqueles que buscam entrar na atmosfera zen, captar os traços fundamentais que marcam sua perspectiva, não podem desconhecer o influxo zen sobre as artes tradicionais. Como indicou Raquel Bouso, estudiosa da Escola de Kyoto, as “manifestações artísticas surgiram especificamente como meios de articulação da experiência zen da realidade”[1]. A expressão japonesa para traduzir esse caminho da arte é geido. Trata-se de uma expressão que recolhe os gêneros artísticos tradicionais cultivados no Japão. O processo de criação presente nesta arte tradicional favorece uma penetração profunda no objeto, favorecendo uma rica identificação do artista com o motivo de sua arte. Como dizia Matsuo Basho (1644-1694), “o que diz respeito ao pinheiro aprenda do pinheiro; o que diz respeito ao bambu, aprenda do bambu”[2]. Em sua singular aventura, o artista se perde no cotidiano para captar o que é maravilhoso, ainda mais, ele se identifica com esse cotidiano, de forma a quebrar as dicotomias do sujeito com o objeto. Tudo isso é fruto de um complexo aprendizado de observação direta visando superar a “visão particular” (shi-i).

            Há uma atenção peculiar para o que é imediato, o passo de cada instante, captado em suas finas e delicadas filigranas. Não são artes que visam dissolver a forma, mas “criar uma forma a partir do vazio”, ou como assinala Kitaro Nishida, penetrar “a forma do que não tem forma e escutar o som do silêncio”[3]. O que se busca na arte zen não é a regularidade ou perfeição, mas a “beleza do fragmentário em sua assimetria ou aspereza”[4]. Cada elemento no trabalho artístico busca garantir o que é essencial. 

            Entre as várias expressões artísticas, temos a que se refere ao cuidado com o jardim (kado). O jardim, como indicou Byung-Chul Han, é um “lugar de redenção”. O que ele faculta é a singularidade do maravilhamento, de um aprendizado de ser “tocado” pelas coisas e refazer com essa beleza o tecido do mundo interior. O jardim é lugar de “redenção” pois favorece uma experiência de “salvação”, ou seja, possibilita que “algo seja livre em sua essência”[5]. Aquele que cuida do jardim ouve o imperativo da terra, que é o de cuidá-la com delicadeza e esmero, e respeitar significa “louvar”. Trata-se de um sentimento nobre que veio sendo esquecido, mas que está vivo na arte tradicional japonesa. Quem visita os jardins de templos budistas percebe o cuidado com os jardins. A vida é reclusa, mas o contato com a natureza permeia as práticas de meditação, as caminhadas e o cultivo da terra. Outra forma artística tradicional que se relaciona com a natureza é o ikebama, que expressa uma grande habilidade de composição floral. Todo o material de composição vem trabalhado com elementos da natureza. Nesta arte vislumbra-se o passo da finitude, enquanto as flores ficam desprovidas de suas raízes: “a temporalidade desvela a absoluta e eterna vacuidade oculta nas profundidades de sua existência”[6]. A noção budista de impermanência está igualmente presente na cerimônia do chá (sado), outra arte tradicional que envolve harmonia, respeito, pureza e tranquilidade. O próprio espaço onde se desenvolve o ritual é despojado e destituído de tudo o que é supérfluo. No vazio da sala cria-se o clima essencial e a disposição mental para o relaxamento e a atenção. E todas as ações envolvidas na cerimônia são expressões da vida cotidiana: ferver a água, escolher e depositar o chá no recipiente adequado, atuar para dissolvê-lo na água quente e servir com delicadeza aos convidados.

            Outra expressão artística tradicional relaciona-se com a escritura, como é o caso da arte da caligrafia (shodo). O calígrafo é alguém que

“sabe captar a presença da energia vital das coisas e transmiti-la, e por isto, antes de recorrer ao pincel, deve livrar-se de todos os obstáculos – preconceitos, conceitos, opiniões, paixões e teorias – todos os canais físicos, psíquicos e racionais por onde circula essa energia”[7].

Da China esta arte foi transplantada para o Japão, onde ganhou grande expressividade, e as energias vitais a ela relacionadas receberam uma conformação singular com o influxo da reflexão sobre a vacuidade da tradição budista. Há que se mencionar ainda o caminho poético traçado pelos tradicionais Haikais, ou Haiku, um forma concisa e delicada de poema que “rompe com o fluxo narrativo e a ordem descritiva e introduz o vazio na composição mediante recursos formais e linguísticos”, que  suspendem ou quebram o fluxo da linguagem comum. 

Pode-se ainda acrescentar as artes cênicas, em  particular o teatro No, que de forma exemplar articular o drama, o canto, a dança e a música. É certamente uma expressiva habilidade artística, com uma nuance espiritual certeira, traduzida na expressão corporal. A vacuidade zen marca também sua presença na dança, numa ação que privilegia os pequenos detalhes, a calma e a paciência: “a ação se reduz ao mínimo”, produzindo uma tensão criativa, onde um passo pode significar ou expressar um longo caminho. É uma arte que requer singular prática e habilidade.

E aí chegamos nas artes marciais (budo), onde se insere a habilidade do tiro com arco (kyudo), também muito ligado à tradição zen. Deve-se lembrar que o zen foi amplamente acolhido no Japão entre os guerreiros samurais, conformando uma dimensão ascético-espiritual de disciplina na prática exercida, particularmente na psicologia e disciplina mental. O guerreiro “tinha necessidade de alcançar um estado de imperturbabilidade e de alerta só acessíveis mediante um elevado grau de concentração”[8]. Na tradição Rinzai, destaca-se a presença única do mestre Takuan Soho (1573-1645) na arte da espada; bem como o lendário Miyamoto Musashi (1584-1645), que se revelou o mais famoso samurai do Japão. Dele é o clássico Livro dos cinco anéis, um best sellerenvolvendo a estratégia samurai[9]. Entre as regras aventadas por Musashi para o exercício de sua arte marcial, destacam-se o conhecimento do caminho, o treinamento de um olhar de discernimento em todos os assuntos e a atenção desperta para as pequenas coisas[10].



A arte zen do tiro com arco

            Na clássica introdução ao livro de Eugen Herrigel (1884-1955), sobre A arte cavalheiresca do arqueiro zen(1948), Daisetz T. Suzuki sublinhou que “o zen é a ´consciência cotidiana`”[11], utilizando-se de uma expressão de Baso Matsu, que morreu em 788. O peculiar dessa consciência cotidiana é responder com tranquilidade ao ritmo da vida: “dormir quando se tem sono e comer quando se tem fome”. Nada muito complexo, mas simplesmente deixar-se envolver no fluxo do cotidiano, sem nostalgia. Em sua obra sobre a Filosofia do zen budismo, Byung-Chul Han ressalta que a iluminação (satori) não é uma experiência de êxtase ou arrebatamento, mas simplesmente o “despertar para o comum”[12]. Deste estar presente no cotidiano, sem nostalgia, é que brotam os passos da arcaica gentileza ou afabilidade. Ela surge não de uma experiência de plenitude, mas de despojamento que envolve a dinâmica do vazio[13].

            O autor da clássica obra sobre o tiro com o arco, Eugen Herrigel, foi um dos divulgadores do zen no Ocidente, particularmente na Alemanha, onde fez sua formação e atuou profissionalmente. Como filósofo ensinou inicialmente em Heidelberg, tendo em seguida exercido seu ministério na universidade imperial Tôhoku de Sendai, entre os anos de 1924 e 1929. Durante sua estadia no Japão, seguiu o aprendizado da arte japonesa do tiro com arco(Kyudo) sob a supervisão do mestre Awa Kenzo (1880-1939), durante cinco anos. Ao retornar para a Europa dedicou-se a escrever o livro que o fez conhecido e que teve uma grande aceitação por toda parte.

            A técnica essencial do tiro com arco requer um exercício de concentração que é fundamental, e para isso o treinamento zen fornece elementos que são fundamentais, como o próprio Suzuki expressou para o amigo Herrigel, depois de ler o seu manuscrito. Na técnica desta arte compenetram-se elementos que são muito importantes como a respiração, o treinamento dos músculos, a postura corporal e, sobretudo, a integração do sujeito com o seu instrumento. O arqueiro e seu arco formam uma unidade essencial, e o lançamento do dardo passa a ocupar um lugar secundário numa experiência que ganha um significado bem mais amplo. Estamos aqui diante da superação da barreira entre o sujeito e o objeto, tema que foi abordado com maestria por Kitaro Nishida, fundador da Escola de Kyoto, que escreveu um livro precioso em torno do que denominou “experiência pura”[14]. Esta experiência precede todo discernimento reflexivo. Ela está presente antes, naquele átimo que se percebem as cores e os sons na sua pureza matriz. O estado “puro” sinaliza uma anterioridade isenta de juízos. É algo que envolve uma experiência imediata, anteriormente à cisão entre sujeito e objeto. No momento inicial não há ainda sujeito ou objeto, mas simplesmente um “modo puro de experiência”[15]. Como mostra Nishida, “a verdadeira experiência pura não tem nenhum sentido, é simplesmente a consciência no presente do real concreto assim como se dá”[16].

            Esse tema foi igualmente trabalhado por Toshihiko Izutsu, em sua obra Para uma filosofia do budismo zen(1977). Fala igualmente de uma pura subjetividade, ou “subjetividade elemental”, para usar uma expressão de Nishitani, outro filósofo da Escola de Kyoto[17]. É quando o sujeito toca a profunda “euidade”, ou seja, quando se rompe a distinção entre sujeito e objeto, alcançando-se um “estado epistemológico em que o ´eu` identifica-se tão plenamente consigo mesmo, tão uno consigo mesmo, que transcende mesmo o fato de ser ´eu`[18]”. Isto foi bem expresso pelo mestre Dôgen quando fala em “deixar cair corpo e mente”. É quando o corpo e mente precipitam-se no nada e alcançam a “não mente” (mu-shin), o “não pensamento”[19].

            Através da arte do tiro com arco podemos captar com mais acuidade a virada radical do zen para a imanência[20], e entender o “espírito do cotidiano” que delineia o zen. Um caminho propício para captar igualmente o traço fundamental do “sem porque”, da experiência livre de todo clamor ou nostalgia. A iluminação, como vimos, não é algo assim excepcional, de arrebatamento, mas simplesmente o despertar para o que há de mais comum, como na décima figura da tradicional história zen do boi e do pastor, quando o velho que passou pelo caminho entra despojado no mercado e faz as perguntas mais simples e singelas[21].

            Como já foi assinalado, o objetivo do arqueiro zen não é simplesmente atingir o alvo, mas unir consciente e inconsciente, de forma análoga ao que ocorre com o samurai com sua espada. A singularidade da arte está intimamente ligada a uma compreensão nova, relacionada com o “estado de não consciência”, de “não-mente”. Trata-se do estado de mushin, que desperta o prajna, que é o conhecimento “transcendental ou não discriminante”[22]. Não é fácil atingir essa percepção que rompe com o mundo das dualidades e retorna ao que Hui-neng nomeou como natureza-própria. A uma tal consciência só é possível acessar o arqueiro que desprende-se de si mesmo, sem, porém, romper com sua habilidade e preparo técnico[23].

            Em sua obra sobre a filosofia do zen budismo, Izutsu dá um exemplo interessante para mostrar o significado do estado da não-mente. Ele recorre ao equilíbrio do músico com seu instrumento. O artista, no exercício de sua execução, fica de tal modo envolvido e absorto no ato mesmo de tocar, que deixa de se distinguir de seu instrumento. A música flui de tal forma natural que ele deixa de ser consciente dos movimentos que realiza com seus dedos, como no casa da harpa, nem mesmo se dá conta de que está tocando. Nesse sentido, “a tensão estética da sua mente recorre tão intensamente em todo seu ser que ele mesmo transforma-se na música que está tocando”[24].

            Ao abordar a arte do tiro com arco, Herrigel busca desnudar a “natureza misteriosa dessa arte”, que na prática expressa um “combate do arqueiro contra ele mesmo”[25]. Como ocorre nas grandes obras da mística inter-religiosa, a aproximação da realidade só vem favorecida quando o praticante aconchega-se com o “coração puro, despido de qualquer preocupação” (AAZ, 17). No tiro com arco, e também nas outras artes japonesas, o que está pressuposto é uma “atitude espiritual”, que é característica do budismo” (AAZ, 18).

            Ao falar de budismo, Herrigel tem em mente sobretudo o budismo zen, o budismo dhiana, cuja compreensão exige um salto com respeito ao pensamento meramente especulativo, visando captar uma experiência que é única, para além do intelecto. Na busca da vivência de semelhante experiência o budismo zen percorre um caminho de “recolhimento metódico e sistemático”, e o resultado dessa busca é o encontro da intimidade de si com algo inefável, que “carece de fundo e de forma” (AAZ, 19). Nesse sentido, o objetivo da arte do arco e flecha é uma “experiência interior”. Os instrumentos utilizados são unicamente pretexto “para o arqueiro dar o salto último e decisivo” (AAZ, 19).

            Herrigel expressa sua sintonia com os clássicos Ensaios sobre o budismo zen, de Suzuki, publicados em três volumes nos anos de 1927, 1933 e 1934. Pontua que apesar dos esforços de divulgação do zen realizados no Ocidente, a começar por Suzuki, a tradição ainda carece de uma melhor apreensão (AAZ, 20). O que Herrigel tenta expressar é que o zen traduz como “o mais puro e contemplativo misticismo” (AAZ, 21).

            O autor relata em seu livro, que sua formação prática nessa arte do tiro com arco se deu durante quase seis anos, que coincide com o período em que esteve no Japão. Apesar de todo esforço durante o aprendizado, no início a percepção ainda estava embaçada: “Eu era capaz, é verdade, de compreender o que se pode chamar de fenômeno místico primário, mas não me era possível transpor o círculo que, como uma alta muralha, cerca o misterioso” (AAZ, 25). Não se tratava de uma tarefa simples para um europeu, como informaram a ele. O desafio de “penetrar no âmbito da vida espiritual asiática”. Isto o assustou no início, como relata (AAZ, 27). Foi quando então recomendaram-no pedir ajuda ao célebre mestre Kenzo Awa. Apesar de resistências iniciais, o mestre acabou aceitando a tarefa complexa de ser o preceptor, sobretudo quando Herrigel sinalizou que seu objetivo não era o de divertir-se, mas de “penetrar na Doutrina Magna” (AAS, 28).

            O itinerário que tinha pela frente era árduo, envolvendo toda uma ascética particular, visando captar a “arte sem arte” do tiro com arco. Foram várias fazes de aprendizado, a começar pelo entendimento das características plásticas do bambu, de sua maleabilidade. A atenção desdobrou-se também para a peculiaridade do arco, com seus quase dois metros de comprimento, em sua “forma nobre”. Quanto mais estirado o arco, dizia seu mestre, mais ele seria capaz de abarcar o universo. Daí a necessidade de “saber curvá-lo adequadamente” (AAZ, 30).

            O grande objetivo da arte, dizia o mestre, era o de entender a dinâmica espiritual envolvida no trabalho. Só a partir de um estado particular de concentração e relaxamento permite-se entender a espiritualização do tiro (AAZ, 30). Os primeiros esforços de Herrigel em seu aprendizado não surtiam o efeito desejado, como ele indicou: “O gesto de estirar o arco continuou a exigir de mim grande esforço e, por mais que eu me exercitasse, não chegou a espiritualizar-se” (AAZ, 31). Na advertência do mestre, em torno das dificuldades implicadas, o segredo da arte ganhava uma pista importante: o exercício da respiração. Dizia o mestre: “Se o senhor não consegue, é porque respira de maneira inadequada” (AAZ, 32).

            Há uma íntima relação entre o ato de atirar e a prática da respiração. A ação implicada envolvia várias fases: “segurar o arco, colocar a flecha, levantar o arco, estirá-lo e mantê-lo no máximo de tensão e disparar” (AAZ, 33). No princípio, como lembra Herrigel, não foi fácil apreender o ritmo exigido para a respiração, aproximando-se do que o mestre havia indicado. Faltava uma “base firme de apoio”, que só viria aos poucos, com exercício de muita paciência e labor. Apesar dos esforços empreendidos, o mestre mostrava que a dinâmica estava equivocada, e equivocada por justamente envolver “esforço”. O problema estava em concentrar a mente para esse esforço e objetivo. O caminho tinha que ser mais leve. Isto me fez lembrar um aprendizado importante do taoísmo: o caminho da maleabilidade e suavidade. Diz o Tao Te Ching (ou Dao de Jing), em seu número 76, que aqueles que são suaves e adaptáveis são discípulos da vida, enquanto os que são rígidos e inflexíveis, são discípulos da morte[26]. Num belo poema de Chuang Tzu, vislumbramos algo bem semelhante à advertência feita por mestre Kenzo a Herrigel:

            “Quando um arqueiro atira sem alvo nem mira
Está com toda a sua habilidade.
Se atira para ganhar uma fivela de metal
Já fica nervoso.
Se atira por um prêmio em ouro
Fica cego
Ou vê dois alvos –
Está louco!

Sua habilidade não mudou. Mas o prêmio
Cria nele divisões. Preocupa-se.
Pensa mais em ganhar
Do que em atirar –
E a necessidade de vencer
Esgota-lhe a força[27].

            Retornando ao livro de Herrigel, verificamos então que o quidda questão, seu cerne, estava na atitude que acompanhava o arqueiro, ou seja, o desafio de “esticar o arco espiritualmente” (AAZ, 35). E para isso, toda uma técnica de respiração se fazia necessária. Tudo foi sendo realizado durante o primeiro ano de exercícios, voltado para a preparação do arqueiro em “estirar o arco de forma espiritual”. Estava-se diante de uma arte singular, uma “arte gentil” (que é tradução literal de jiu-jitsu). O símbolo de referência era a água, que “sempre cede, mas jamais é vencida” (AAZ, 36).

            Durante todo o aprendizado o mestre assinalava que as dificuldades estavam previstas, e aquele que não passava por elas, iria encontrá-las muito mais fortes posteriormente. Não era simples chegar ao objetivo proposto, e por mais cuidados que se cercasse, os disparos ainda vinham acompanhados de sacudidelas e trepidações (AAZ, 38). O aprendizado envolvia uma extrema atenção à postura do mestre, aos detalhes que acompanhavam a sua arte. Como exemplo, a destreza e leveza com que a abertura de sua mão direita, liberada de toda tensão, disparava com seu arco. Não havia movimento brusco, mas leveza e suavidade. Esse era o segredo!

            Em seu aprendizado, Herrigel foi se dando conta da importância do relaxamento e da respiração. A ação feita com espontaneidade surtia um efeito bem melhor. O mestre voltava a advertir: “O tiro justo no momento justo não ocorre porque o senhor não sabe desprender-se de si mesmo, um acontecimento que deveria ocorrer de maneira independente”, como o realizado por uma criança (AAZ, 41). Um passo a mais se fazia necessário: ultrapassar a ideia de que “sou eu” que atiro. A presença desse “eu” que estira o arco e atira era um empecilho. A arte genuína, advertia o mestre, não pode ocorrer pautada por uma finalidade ou intenção. Tem que ser gratuita. A obstrução do caminho está justamente na presença de uma “vontade demasiadamente ativa” (AAZ, 42).

            O processo exigia paciência, muita paciência. E também perseverança. Herrigel perguntava ao mestre: “O que devo fazer”. Recebia como resposta: “Tem que aprender a esperar”. E esse aprendizado só se realiza quando se dá o desprendimento (AAZ, 43). Se não houver desprendimento só restará a tensão, e o resultado não será satisfatório. O relaxamento físico tinha que ser acompanhado pelo relaxamento psico-espiritual. O caminho se fazia na abertura da libertação do espírito (AAZ, 45). Um novo nível devia se alcançado, para além do relaxamento psíquico, no sentido de uma liberdade espiritual. A ruptura do “eu” só seria alcançada com a quebra de todas as amarrar e apegos. Só assim se poderia alcançar o passo de um “poder” novo. Nesse caminho emergia novamente a importância e centralidade da respiração: superar a percepção de que estamos respirando, de forma que essa atividade se dê espontaneamente e com leveza. O estado de perturbação, que muitas vezes dificulta a serenidade, é um obstáculo a ser vencido, e o processo deve ser movido com tranquilidade: continuar “respirando tranquila e serenamente, aceitando-se de maneira agradável o que acontece, acostumando-se à perturbação, aprendendo-se a contemplá-la com indiferença e, finalmente, cansando-se de acompanhá-la” (AAZ, 47).

            Em seu estudo do zen na artes, Alan Watts fala sobre a superação da respiração errática em favor da liberação da respiração. Não se trata simplesmente de inalar o ar, mas de criar as condições para que o ar venha com naturalidade. A respiração, assinala,

“não é apenas um dos ritmos fundamentais do corpo; é também um processo no qual o controle e a espontaneidade, ação voluntária e involuntária, encontram suas identidades mais óbvias. Muito antes das origens da Escola Zen, tanto a Yoga indiana quanto o Taoísmo chinês praticavam o ´assistir a respiração`, com uma visão de deixá-la – sem forçá-la - se tornar mais vagorosa e silenciosa possível”[28].

A espiritualização profunda vem acompanhada por aquilo que na tradição taoísta vem nomeado como wu-wei, ou seja, uma vontade passiva, um vazio pleno. A passividade aqui vem entendida no seu sentido técnico, que encontramos, por exemplo, na mística de João da Cruz: passividade como receptividade. Trata-se da renúncia a tudo aquilo que dificulta a ação do espírito. A passividade aqui não é inatividade, mas “preparação para receber um dom”[29].

            Na experiência de Herringel, foi fundamental a presença do mestre. Essa relação mestre/discípulo ganha um significado único no mundo oriental. É algo que pertence “às relações elementares da vida e ultrapassa muito os limites da matéria que ensina” (AAZ, 51). É o que mostrou com muita pertinência o pensador da Escola de Kyoto, Shizuteru Ueda, a respeito da figura de Suzuki. Assinalou que o que há de mais importante no mestre não são seus livros ou conferências, mas fundamentalmente a sua presença. Trata-se de algo que se percebe no mestre e que ilumina o cenário da vida[30].

            Em página das mais felizes de seu livro, Herrigel aborda esta relação entre o mestre e o discípulo. Vale transcrevê-la integralmente pela riqueza de seu conteúdo:

“Áspero é o caminho do aprendizado. Muitas vezes, a única coisa que mantém  o discípulo animado é a fé no mestre, em que só agora reconhece o domínio absoluto da arte: com sua vida, dá-lhe o exemplo do que seja obra interior, e convence-o apenas com a sua presença. Nessa etapa, a imitação do discípulo atinge a maturidade, conduzindo-o a compartilhar com o mestre o domínio artístico. Até onde o discípulo chegará é coisa que não preocupa o mestre. Ele apenas lhe ensina o caminho, deixando-o percorrê-lo por si mesmo, sem a companhia de ninguém” (AAZ, 57).

            Com o passar do tempo, sob a supervisão do mestre, Herrigel foi se afeiçoando à arte, sendo por ela cativado (apprivoiser). É como se o discípulo seguisse a indicação de Rilke numa de suas belas reflexões. Ele falava sobre a importância da paciência no processo criativo. As respostas não aparecem imediatamente, elas precisam de seu tempo. Há que ter “paciência com tudo que é insolúvel” no coração; há que “se afeiçoar às próprias questões”, sem pressa de alcançar resultados. É com o tempo e a serenidade que elas podem surgir, quem sabe, num dia distante[31].

            E esse dia chegou, finalmente, para Herrigel, para a alegria de seu mestre. Surpreso, ele pede ao discípulo que atire mais uma vez, depois de surpreendido com o sucesso da empreitada. O segundo tiro teve ainda um sucesso maior (AAZ, 61). O aprendizado continuou, e em certo momento, Herrigel ouviu a palavra-chave, que abria o horizonte da compreensão: não sou “eu” que disparo mas “algo dispara!” (AAZ, 63)[32]. Num certo dia, depois de executar o tiro, o mestre sinalizou reverência e deu a aula por encerrada. Para a surpresa de Herrigel, exclamou: “algo acaba de atirar”. Era a senha para indicar a espiritualização do tiro. E o mestre acrescentou: “O mérito desse tiro não lhe pertence, pois o senhor permanece esquecido de si mesmo e de toda intenção, tal qual uma fruta madura. Agora, continue praticando, como se nada tivesse acontecido”. A passagem me fez lembrar um dito fabuloso do poeta e místico Rûmî no seu clássico Masnavi, citando o livro do Corão: “Não fostes tu que atiraste quando atiraste”[33].

            O aprendizado ganhava, assim, o seu precioso remate, se é que se pode falar em realização no processo amplo de caminhada. Mas, de fato, ocorreu uma iluminação interior, provocando uma sensação única de alegria, semelhante à provocada pelo início da luz do dia (AAZ, 65). Depois disso, “o arqueiro se sente apto a praticar toda espécie de ação perfeita ou a mergulhar no mais puro ócio” (AAZ, 65). O tiro, como lembra Herrigel, já ao final de seu trabalho, “não depende do arco, mas da presença de espírito, da vivacidade e da atenção com que é manejado” (AAZ, 66). A alegria do ato realizado com primor é como “dançar a cerimônia”, com a transmissão de uma energia diversa do mundo interior (AAZ. 67). Diante da alegria do discípulo, o mestre dá o exemplo da aranha: 

“A aranha dança sua rede sem pensar nas moscas que se prenderão nela. A mosca, dançando despreocupadamente num raio de sol, se enreda sem saber o que esperava. Mas tanto na aranha, como na mosca, algo dança, e nela o exterior e o interior são a mesma coisa” (AAZ, 69)

            Na sequência da experiência, ocorreu a cerimônia do chá reunindo o mestre e o discípulo, um diante do outro. Como único ruído, o “do vapor fervendo na chaleira” e a presença da haste de incenso. Mais que um encontro, foi uma cerimônia dançada. Ao refletir sobre todo o processo, Herrigel sublinhou que as flechas disparadas causaram nele um impacto, como se tivesse passado por uma “transformação profunda” e imarcescível. Pôde então constatar com vitalidade o que significa uma comunicação direta com o mestre. 

Depois daqueles anos, o aprendizado tomou um novo rumo, quando o mestre e o discípulo, deixam de ser dois e passam a ser um. Mesmo que se separem por vastos oceanos, o sentimento de presença permanecerá aceso. Este é o resultado do tiro com arco: “uma luta do arqueiro contra si mesmo, que lhe penetra nas últimas profundidades” (AAZ, 78). Ao final, Herrigel recorda o importante tratado do mestre zen, Takuan, em torno da arte da espada: A impossível compreensão(AAZ, 80). Na visão de Takuan, lembrada por Herrigel, a perfeição da arte da espada só vem alcançada “quando o coração do espadachim não for mais afetado por nenhum pensamento a respeito do ´eu` e do ´outro`, do adversário e da sua espada, da sua própria espada e da maneira de usá-la nem sequer sobre a vida e a morte” (AAZ, 85). O que permanece é o vazio, a plenitude do vazio. O que vale para a esgrima, vale também para as outras artes tradicionais, como na arte do nanquim. A habilidade se manifesta quando a mão que executa é movida pelo espírito. A bela pintura ocorre de forma automática, espiritualizada. A mão que contempla o bambu durante anos converte-se nele, e tudo cai no esquecimento (AAS, 86).

            O espírito zen é um espírito singular, diz Herrigel, que nos possibilita estar no mundo, viver o cotidiano, mas sempre pronto para acolher a impermanência derradeira. Cada um deve estar pronto para também abandonar o mundo. Rompe-se com a sensação do medo: a vida e a morte vencem todo temor. Para usar a terminologia de Yagyu Tajima-no-kami, mestre-espadachin, “o último segredo da arte da espada é atingir a libertação da ideia da morte”.
            

            



[1]Raquel BOUSO. Zen. Barcelona: Fragmenta Editorial, 2012, p. 67.
[2]Paulo FRANCHETTI & Elza Taeko DOI. Haikai. Antologia e história. 3 ed. Campinas: Editora Unicamp, 1996, p. 25.
[3]Apud. Raquel BOUSO. Zen, p. 70.
[4]Ibidem, p. 71.
[5]Biung-Chul HAN. Loa a la tierra. Un viaje al jardín. Barcelona: Herder, 2019, p. 33. 
[6]Raquel BOUSO. Zen, p. 77.
[7]Ibidem, p. 80.
[8]Ibidem, p. 85.
[9]Miiyamoto MUSASHI. O livro dos cinco anéis. O verdadeiro sentido da estratégia. 3 ed. São Paulo: Clio Editora, 2010; William Scott Wilson. O samurai. A vida de Miyamoto Musashi. São Paulo: Estação Liberdade, 2006.
[10]William Scott Wilson. O samurai, p. 160.
[11]Eugen HERRIGEL. A arte cavalheiresca do arqueiro zen. São Paulo: Pensamento, 1998 ( o original alemão é de 1975). Ver ainda. Passe sans porte, um texto essencial do zen, em sua regra 19: “O coração cotidiano é o caminho”: Passe sans porte(wou-men-kouan). Paris: Villain et Belhomme, 1968, p. 79 (traduzido por Masumi Shibata).
[12]Byung-Chul HAN. Filosofia do zen budismo. Petrópolis: Vozes, 2019, p. 43.
[13]Ibidem, p. 168.
[14]Nishida KITARO. Uno studio sul bene. Torino: Bollati Boringhiere, 2007.
[15]Ibidem, p. 11.
[16]Ibidem, p. 12.
[17]Keiji NISHITANI. La religione e il nulla. Roma: Città Nuova, 2004, p. 100.
[18]Toshihiko IZUTSU. Hacia una filosofia del budismo zen. Madrid: Trotta, 2009, p. 15.
[19]D.T. SUZUKI. A doutrina zen da não-mente. São Paulo: Pensamento, 1993 (O original inglês é de 1969).
[20]Nishitani vai identificar o budismo como a “religião” do “aldiquà assoluto”, ou seja, da celebração do aquém: Keiji NISHITANI. La religione e il nulla, p. 140.
[21]Migi AUTORE (Ed.). Le dieci icone del bue. Storia zen in dieci quadri. Città di Castello: Lantana, 2012, p. 102-105.
[22]Toshihiko IZUTSU. Hacia una filosofia del budismo zen, p. 22; D.T. SUZUKI. A doutrina zen da não-mente, p. 101.
[23]Eugen HERRIGEL. A arte cavalheiresca do arqueiro zen, p. 10 (Introdução de Suzuki).
[24]Toshihiko IZUTSU. Hacia una filosofia del budismo zen, p. 25.
[25]Ibidem, p. 17. Em seguida, o livro será citado no texto mesmo com a abreviação AAZ (Arte do Arqueiro Zen) e o número da página.
[26]LAO TSU. Tao Te Ching. Madrid: Gaia Eticiones, 1999, n. 76.
[27]Thomas MERTON. A via de Chuang Tzu. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 139.
[29]Colin P. THOMPSON. Canciones en la noche. Estudio sobre san Juan de la Cruz. Madrid: Trotta, 2002, p. 209.
[30]Shizuteru UEDA. Zen e filosofia. Palermo: L´Epos, 2006, p. 64.
[31]Rainer Maria RILKE. A melodia das coisas. São Paulo: Estação Liberdade, 2011, p. 152.
[32]Nesse enigmático conceito de “algo” percebe-se a presença da assimilação zen budista do conceito taoíta de wu-wei(AAZ, 64, nota 13).
[33]Jalaluddin RUMI. Masnavi.São Paulo: Attar,1992, p. 103 (Livro II).

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Fragmentos de estrelas

Fragmentos de estrelas

As músicas escoam, ecoam em nossa vida e a atenção paralisa diante de questões que elas nos apresentam. Uma delas é a colocada por Caetano Veloso em sua bela canção "Oração ao Tempo". Eu a ouvia na tarde de 20 de abril (2020), no repertório do show Ofertório. Caetano coloca para nós algo complexo, com uma visão de baixa definição, para não dizer pessimista, quanto ao futuro do humano. A frase enigma é esta: "Quando eu tiver saído para fora do teu círculo, não serei nem terás sido".
Depois de assistir a Live de Ailton Krenak com Macelo Gleiser e ouvir atentamente o que Gleiser disse sobre nossa íntima relação com a terra, com o tempo, indicando que estamos enredados numa teia de vida, num domínio de emaranhamento, como lembra também Ingold, a reflexão sobre essa parte da letra de Caetano ganha outra figura.

Na live com Krenak, Gleiser fala da cadeia de vida em que estamos enredados, mas que dela nos esquecemos com frequência. O ser humano, diz Gleiser, entrou bem atrasado numa festa que tem 14 bilhões de anos. E cada ser humano carrega consigo em cada átomo de seu corpo fragmentos de estrelas, de estrelas que viveram há bilhões e bilhões de anos. Somos simplesmente “poeira de estrelas”, e nossa mãe é uma bactéria. O nosso ancestral comum é uma bactéria que viveu há três bilhões de anos, composta de uma célula só. Estamos embrenhados nessa conexão de vida, da qual ninguém escapa. E hoje somos convocados a celebrar essa memória comum. Ninguém sai do círculo do tempo. Como aponta Gleiser, 25% de nossos genes revelam-se iguais às árvores. 

A textura do mundo é o entrelaçamento, antes e depois da morte. Ninguém escapa desta reverberação, que é nexo e inter-relação.

E aí entra a sabedoria de Gilberto Gil, fazendo um contraponto positivo com a visão de Caetano. É cada vez mais problemático dizer que estaremos um dia fora do círculo do tempo. Aliás, com a canção "Tempo Rei", Gil sinaliza seu contraponto a Caetano, encaminhando-se nessa linha da mais ousada antropologia:
"Não me iludo
Tudo permanecerá do jeito que tem sido
Transcorrendo
Transcorrendo
Tempo e espaço navegando todos os sentidos"
Gil assinala é o que é essencial, a TRANSFORMAÇÃO por que todos sempre passamos e passaremos, mesmo nos caminhos diversos que a vida oferecerá para nós depois.

As orações inter-religiosas: uma história

As Orações Inter-religiosas ilustradas: uma história

Faustino Teixeira

Durante a nossa inteira existência,
com a nossa força e vontade,
torna-se necessário pronunciar
palavras de amor

Dôgen


Tive sempre uma ligação orgânica com as orações. Elas fazem parte da minha trajetória de vida e estão sempre presentes como fonte de sustento e animação. Privilegiei nas minhas compras de livros, aqueles que tratavam da mística e da oração, sobretudo nas últimas décadas. Foi assim que nasceu a obra que organizei junto com o colega e amigo, o frei franciscano Volney Berkenbrock. Juntos trabalhamos na publicação do livro Sede de Deus, pela editora Vozes em 2002. 

Na introdução do livro, de minha autoria, falava sobre a importância do fenômeno da oração, sobretudo para a experiência religiosa humana. Dizia, citando um teólogo italiano, que ela é o “respiro das religiões”. Recorri ainda ao antropólogo Marcel Mauss para indicar o traço social da oração. Um fenômeno, que como ele diz, favorece uma “impressão de vida, riqueza e complexidade”. A oração como um “rito total”, no sentido de abarcar a totalidade do ser humano. O mais interessante quando se estuda a oração, é perceber o seu alcance universal. Como mostrou Claude Geffré, numa de suas clássicas homilias, a oração “é mais universal que a fé explícita no Deus personalizado”. Não há tradição cultural no mundo desprovida desse sussurro multiforme.

Na ocasião, Volney e eu decidimos optar pelas orações das tradições monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islã. No total, foram 303 orações, num livro de 342 páginas. Foi bem feliz a escolha das orações, algumas de beleza ímpar. Elas serviram de estímulo a muitas pessoas, independentemente de sua domiciliação religiosa. Foram utilizadas por diversos grupos e comunidades, auxiliando nas dinâmicas comunitárias. Não foram poucas as pessoas que elogiaram a iniciativa. A edição, com 10.000 exemplares, se esgotou rapidamente.

Um tempo depois, voltamos a publicar um novo livro – Volney e eu -, retomando as orações dos monoteísmos, mas acrescentando inúmeras outras, de tradições diversas. O leque da escolha se ampliou, hospedando agora outras religiões ou expressões de espiritualidade. O livro ganhou novo título: As orações da humanidade, e foi publicado pela Vozes em 2018, 16 anos depois da edição da primeira obra, com 362 orações em 326 páginas.

Mais ou menos no período em que o livro Sede de Deusfoi lançado, nasceu a ideia de divulgar as orações com o recurso da internet. Foi quando nasceu o projeto das Orações Religiosas Ilustradas, ali nos primeiros anos do início do novo milênio. O espaço de publicação das orações, uma a cada semana, foi o portal do Mosteiro da Anunciação do Senhor, localizado na cidade de Goiás. Na ocasião, o prior era o Monge Marcelo Barros, que recebeu com grande carinho a iniciativa e disponibilizou o canal do Mosteiro para a divulgação do projeto. Junto comigo, meu irmão Pulika (Paulo Couto Teixeira), dotado de impressionante criatividade artística. A cada semana eu escolhia uma oração e ele ilustrava. Impressionava-me a rapidez com que reagia aos poemas e irradiava em seguida com seu toque de inspiração singular. O projeto durou por cerca de cinco anos. Guardo com carinho na memória a beleza do trabalho realizado, e da riqueza e impacto das ilustrações escolhidas a cada semana. Há que recordar outro elemento importante no projeto. O nosso entendimento de oração não era estrito, mas lato, acolhendo igualmente poemas que na nossa ocular refletiam uma densidade espiritual.

 Depois do Mosteiro da Anunciação, o trabalho ganhou continuidade no Instituto Humanitas da Unisinos (IHU). Não sei precisar exatamente a data de início dessa continuidade, mas isso ocorreu por volta de 2011. Dei a ideia para o amigo jesuíta Inácio Neutzling, diretor do IHU, e ele logo acolheu o projeto com alegria. A iniciativa foi alocada no setor de espiritualidade do IHU, com o título Orações Religiosas Ilustradas. Nas ilustrações contei com a presença do Pulika, e depois com o artista plástico de Juiz de Fora, Paulo Talarico. Passando os olhos hoje no IHU, 22/04/2020, verifiquei que já temos ali 183 orações publicadas. A peridiocidade é  semanal, nas sextas feiras. No momento, as ilustrações são tiradas de fotos pessoais ou ilustrações divulgadas na internet. Na ajuda técnica para o projeto tenho contado com a preciosa colaboração de Cristina Guerini, que trabalha no IHU, e ficou responsável pela operacionalidade semanal da iniciativa.

Agora nasceu uma nova ideia, também surgida em conversa com Inácio Neutzling, que continua na direção do IHU. Venho percebendo que nos últimos tempos surgem por todo canto iniciativas de divulgação de poemas através de vídeos ou lives. E isto ganhou uma dimensão ainda maior com este nosso momento de quarentena em razão da pandemia do coronavírus. O portal do Paz e Bem, onde atuo semanalmente num curso de espiritualidade, sob a coordenação de Mauro Lopes, lançou recentemente a iniciativa de divulgar a cada semana uma oração (também em sentido lato), com ilustrações, recitadas por Sumaya Fuad. Muitas das orações são retiradas do portal do IHU. Trata-se de um belo trabalho, incentivado por Mauro Lopes. Vejo que outros poetas, como Mariana Ianelli e Alberto Pucheu vêm atuando em trabalhos semelhantes, com a divulgação de poemas próprios ou de outros. 

A nova iniciativa do IHU, com as orações declamadas, está para começar a acontecer, sob a direção de Ricardo Machado, escolhido por Inácio Neutzling para operacionalizar a ideia. As orações inter-religiosas ilustradas semanais continuarão a ser publicadas nas sextas feiras, agora acrescidas também das orações inter-religiosas declamadas. Atuaremos em conjunto, Ricardo e eu, semanalmente, para oferecer à comunidade que segue o IHU mais esse brinde. É algo muito oportuno nestes tempos sombrios, onde grande parte das pessoas vive uma quarentena forçada. É igualmente um dom para aqueles que não conseguem ler ou têm dificuldades para leitura. É provável que a iniciativa já comece nessa segunda semana da Páscoa. 

A iniciativa não se fecha no círculo dos cristãos ou religiosos, mas busca envolver um leque bem maior de pessoas, também aquelas que vivem uma espiritualidade singular, fora das filiações tradicionais. O espectro é bem amplo,  e certamente vai ser do agrado das pessoas que buscam fortalecer sua vida com  palavras de amor e de alegria.


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