quarta-feira, 23 de março de 2022

Fraternidade e Educação

 Fraternidade e Educação

 

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

Quero em primeiro lugar agradecer ao fraterno convite para falar aos profissionais que atuam no colégio da Companhia de Maria (Grajaú, Rio de Janeiro). Fiquei muito contente e com um interesse particular pela feliz escolha do tema.

 

Inicio como uma citação de Edgar Morin, publicada em recente entrevista no IHU-Notícias – 10/03/2022:

 

"O que me preocupa é a deterioração não só da nossa vida cotidiana, mas também da solidariedade. Assistimos a uma progressão na mecanização da vida – eu diria mesmo que à industrialização das nossas vidas pessoais. 

 

Vivemos constrangimentos cada vez mais burocráticos, comemos alimentos insalubres e industrializados. Mas há muitas coisas que podem ser ressuscitadas, porque há uma aspiração humana pela convivialidade e acredito que essa aspiração renascerá constantemente".

 

O tema solicitado está intimamente ligado ao do tema da atual Campanha da Fraternidade da CNBB, que aborda o tema pela terceira vez, já que a questão foi também desenvolvida nas Campanhas de 1982 e1998. O impulso desta vez veio certamente da inspiração do papa Francisco, que se dedica particularmente a esta questão em seu pontificado.

 

O papa Francisco completou 85 anos em 17 de dezembro de 2021, vem se encaminhando para o nono ano de pontificado em março de 2022.

 

Partimos do pressuposto de que “educar é um ato eminentemente humano”

 

Como podemos ler no texto da atual campanha, temos que nos conscientizar sobre os motivos educacionais de nossas escolhas, com o desafio de “alargar o horizonte de nossa compreensão a respeito da educação entendida não apenas como ato escolar, como transmissão de conteúdos ou preparação técnica para o mundo do trabalho”. Somo agora também advertidos a nos perguntar “pelos motivos, pela abrangência e pelas metas de qualquer processo educativo”.

 

Nessa minha reflexão com vocês vou estar particularmente atento ao tema da escuta: o papel da educação na formação humana e a dimensão educativa da fraternidade e da amizade, mas num sentido bem preciso, como apontado por Francisco na sua belíssima encíclica sobre o cuidado da casa comum, Laudato si (2015): 

 

O desafio de uma “fraternidade universal” (LS 228) e de uma “cultura do cuidado” (LS 231).[1]

 

Sobretudo o desafio de uma ESCUTA do grito dos pobres e do grito da terra (LS 49)

 

Sair de si e ir em direção aos outros: esse é o núcleo não só da dinâmica cristã, mas da autêntica humanidade[2].

 

Venho também recorrer a outra encíclica importante, a Fratelli Tutti(FT), sobre a fraternidade e a amizade social (2020)[3].

 

A encíclica recupera a fraternidade como valor central das relações não somente entre os humanos, mas entre os humanos e todas as demais espécies e o planeta. Nesse sentido o documento é, ao mesmo tempo, o testemunho de um mundo ferido e uma lúcida proposição de caminhos para enfrentarmos os dilemas contemporâneos a partir de uma visão que tem o amor e o cuidado aos mais vulneráveis como pano de fundo

 

Estamos diante de uma bela encíclica, marcada pela tonalidade do evangelho. Há nela a conjugação da coragem destemida, do cuidado com a casa comum e com os mais sofridos, bem como uma ternura que vem sendo um traço singular no pontificado de Francisco. Utilizando aqui uma expressão de Leonardo Boff, é uma encíclica que une vigor e ternura. É uma encíclica, que na mesma rota da Laudato si' (LS), convoca-nos a olhar para o alto, pedindo forças para enfrentar com coragem esses tempos sombrios, de escuridão, solidão e dor. 

 

A encíclica denuncia a perda dos sentimentos de pertença à mesma humanidade. O sonho da construção partilhada de um mundo de justiça e paz se esvanece, e ficamos à deriva de um perigoso narcisismo individual e de grupos. A indiferença avança a passos largos, uma indiferença “acomodada, fria e globalizada, filha de uma profunda desilusão que se esconde por trás dessa ilusão enganadora: considerar que podemos ser onipotentes e esquecer que nos encontramos num mesmo barco” (FT 30).

 

Um olhar atento ao evangelho nos possibilita ver que há uma cristalina opção pelos mais pobres. Junto com eles, o carinho que se derrama sobre os excluídos, os mais velhos e todos que se encontram abandonados num mundo carente de solidariedade. É o que lembra Francisco. Trata-se de “cuidar da fragilidade” (FT 188), ou seja, “assumir o presente na sua situação mais marginal e angustiante e ser capaz de ungi-lo com dignidade” (FT 188). 

 

O pontificado de Francisco será lembrado como aquele que defendeu com as garras do coração uma outra globalização, fraterna e solidária, contra todo o ritmo nefasto deste tempo do Antropoceno, ou como vem lembrando L. Boff, do necroceno, em razão da ação predatória do humano sobre a Terra[4]. Ela agora “geme e se rebela” (FT 34).

 

Como arauto do evangelho, Francisco convoca a todos a uma ira santa: “Fazem falta gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isto fala e faz parte da comunicação humana” (FT 43). Não há por que se calar nesse tempo de passividade e indiferença, é o que revela Francisco com a medula do evangelho. 

 

Sua dor vem acentuada com a indiferença como o mundo globalizado vem, em geral, tratando os tocados pela epidemia do coronavírus, sobretudo os velhos, rechaçados como força de produção falida. Idosos são abandonados e isolados, “sem acompanhamento familiar adequado e amoroso”. Tudo isso provoca a mutilação e empobrecimento da própria noção de família (FT 19).

 

Francisco adverte na encíclica sobre o empobrecimento da humanidade. Lembra que “seria bom se, enquanto descobrimos novos planetas longínquos, também descobríssemos as necessidades do irmão e da irmã que orbitam ao nosso redor” (FT 31). É o sentimento de “pertença à humanidade” que se fragiliza numa sociedade do “mínimo eu”, do narcisismo desenfreado, da defesa do particular com todo o aparato de muros intransponíveis. Francisco denuncia as “novas barreiras de autodefesa”, para que vibre solitariamente o mundo privado do eu, mas de um eu sem mundo. 

 

E as vozes que ousam contestar essa lógica perversa são caladas ou ridicularizadas, como percebemos na oposição à resistência dos povos originários (FT 17). Nos esquecemos que são essas vozes que podem nos salvar. Aliás, ninguém se salva sozinho, mas a salvação envolve o sentimento de comunidade, que vem se ofuscando a cada dia (FT 32). 

 

O papa se coloca ao lado daqueles que promovem os essenciais “gestos barreiras”, para utilizar uma expressão de Bruno Latour[5]. São aqueles que se opõem à dinâmica em curso, e que anseiam pela “interrupção” dessa globalização. Assim como o vírus conseguiu parar por um tempo o mundo, há esperança de que os “pequenos e insignificantes gestos, acoplados uns aos outros, conseguirão: suspender o sistema produtivo” (LATOUR, 2020, p. 131). 

 

A defesa da paz e do diálogo

 

Além da defesa de uma ira sagrada contra os donos do mundo, a encíclica defende com vigor o caminho da paz e do diálogo. A busca da paz é outro dos traços novidadeiros do pontificado de Francisco. Ele sublinha que em inúmeras partes do mundo urgem iniciativas que promovam “percursos de paz”, que possam “cicatrizar as feridas”, de “artesãos da paz prontos a gerar, com inventividade e ousadia, processos de cura e de um novo encontro” (FT 225). Providencial é a citação do livro dos provérbios (12.20): “No coração dos que maquinam o mal, há falsidade, mas aqueles que têm conselhos de paz, viverão na alegria” (FT 256).

 

Aqueles que são aquecidos pelo evangelho vivem o dom da alegria, é o que nos lembra todo tempo Francisco em sua travessia de amor pela vida. Sinaliza que o evangelho “convida insistentemente à alegria” (EG 5)[6]. Daí sua sensibilidade à capacidade de doação e misericórdia, que são dons absolutamente gratuitos. Os artesãos da misericórdia também estão por aí, ao nosso redor, com seus semblantes acolhedores e anônimos. Lembra-nos Francisco, 

 

“de vez em quando verifica-se o milagre de uma pessoa amável, que deixa de lado as preocupações e urgências para prestar atenção, oferecer um sorriso, dizer uma palavra de estímulo, possibilitar um espaço de escuta no meio de tanta indiferença” (FT 224). 

 

Sim, estamos diante da globalização da indiferença, é o que nos lembra Francisco a todo momento. Curioso, num tempo pontuado por tantas conexões, de velocidade louca, prevalece a surdez e a desumanidade. Diz Francisco, em pensamento lapidar e certeiro: “Hoje podemos reconhecer que alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza, e acabamos por comer distração, fechamento e solidão; empanturramo-nos de conexões, e perdemos o gosto da fraternidade” (FT 33). 

 

A centralidade do exercício do agape

 

O papa reage com vigor contra qualquer proselitismo. Indica que “o mundo vem percorrido por estradas que nos aproximam e distanciam, mas o importante é que nos levem para o bem”[7]. O caminho que leva à salvação não depende de um vínculo religioso específico, mas de um exercício efetivo de caridade. É o modo efetivo de amar a Deus. O agape é “o único modo que Jesus nos apontou para encontrar o caminho da salvação e das Bem-aventuranças[8]. Para o escândalo de alguns, Francisco sinaliza que “não há um Deus católico”[9], mas um Deus que é movimento e criação contínua, e que se deixa surpreender em cada passo. 

 

Com base em passagens de discursos no filme dirigido por Win Wenders sobre o seu pontificado[10], Francisco sinaliza: 

 

“Entre as religiões é possível um caminho de paz. O ponto de partida deve ser o olhar de Deus. Porque 'Deus não olha com os olhos, Deus olha com o coração. E o amor de Deus é o mesmo para cada pessoa, seja qual for a religião. E se é um ateu, é o mesmo amor'” (FT 282). 

 

Francisco lança assim um convite ao “amor universal”, que deve animar o caminho da igreja. Isso sem perder o referencial singular da pertença. O diálogo não se opõe ao amor à própria religião. Se outros bebem de “outras fontes”, também reconhecidas como expressão de beleza, os cristãos são brindados com um “manancial de dignidade humana e fraternidade” fundados no evangelho de Jesus Cristo (FT 277). Aqui o papa tenha talvez “escorregado numa visão mais tradicional” ao falar que o que existe de positivo nas outras religiões são “raios de verdade”, que encontram o seu remate na “música do evangelho”. É a visão predominante depois de Vaticano II, e que impregna os documentos mais tradicionais da igreja católica, como a declaração Dominus Iesus. É um passo de superação que ainda precisa ser dado com certa urgência para uma mais rica integração do pensamento eclesial com o ritmo do pluralismo religioso.

 

Como mostra Francisco, todos são cobertos com o manto da dignidade do Mistério sempre maior. O diálogo requer uma pedagogia singular, que envolve um aprendizado de abertura do coração e ampliação do olhar (FT 254). A igreja vem convocada a tal gesto de desprendimento e escuta, do Mistério que está por aí. Quando perguntam a Francisco o caminho de solução para o entendimento e a paz entre os povos e as religiões sua resposta é sempre certeira: diálogo, diálogo, diálogo, é como expressou em sua visita ao Brasil, no encontro com a classe dirigente, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro[11].

 

Um olhar crítico sobre o Antropoceno

 

A Laudato Si' ocupou-se do cuidado da casa comum. É uma encíclica que faz um diagnóstico severo sobre a realidade da terra no tempo do Antropoceno, com todas as consequências nefastas de uma atitude predatória do humano com relação ao seu mundo. 

 

À luz do evangelho da criação e de uma espiritualidade do cuidado, Francisco busca sublinhar o significado mais profundo do habitar a terra com respeito, reverência e simplicidade, captando o nexo de inter-relação que dinamiza a cadência da vida.

 

Sublinha o risco de catástrofes imprevisíveis caso o ritmo da aceleração produtivista continue no mesmo frenesi. Propõe uma “conversão ecológica” (LS 217) e uma espiritualidade do cuidado, na linha de Francisco de Assis. Sua Crítica ao Antropocentrismo é potente, ainda que não leve sua reflexão às últimas consequências, na medida em que mantém plausível um antropocentrismo cristão, justificando o lugar peculiar do humano “acima” das criaturas, como “administrador responsável” (LS 116). Sua crítica volta-se, mais a um “antropocentrismo desordenado” ( LS 119) ou “despótico” (LS 68). Esse é um limite, a meu ver[12].

 

Na encíclica Fratelli Tutti, o objeto de atenção é a fraternidade e a amizadesocial. Enquanto o foco da primeira encíclica, Laudato si, centrava-se mais no campo da relação de cuidado com o ambiente. Na nova encíclica o foco é mais social e político, abordando as exigências de uma fraternidade nova, distinta da “globalização da indiferença” que está em curso. 

 

São encíclicas que se complementam. A mensagem de vídeo endereçada à ONU, em setembro de 2020, vai na mesma linha de seu pensamento, recorrente nos seus textos.[13]Retoma a ideia de uma “solidariedade baseada na justiça”, em linha de tensão com o ritmo frenético de “atitudes de autossuficiência” que desenham a plataforma de muitos governos no mundo atual. Ali aparecem sua preocupação com o mundo afetado pelo coronavírus[14]; os efeitos tremendos que estão ocorrendo no mundo do trabalho, numa incerteza vinculada ao processo contínuo de robotização; a cultura do descarte e a violação visível dos “direitos fundamentais”. 

 

Retoma também sua preocupação social com os últimos, os desprezados do mundo, os excluídos, os migrantes e os deslocados da “música” da globalização. 

 

Aproveita igualmente a nobre ocasião para questionar o “nominalismo declamatório” da ONU, com sua escassa capacidade de cumprir suas promessas. Denuncia várias situações de devastação e flagelos, como os que vêm ocorrendo na Amazônia, acarretando graves prejuízos aos povos originários. E conclama os governos a uma responsabilidade única:

 

 “Não devemos impor às gerações futuras o fardo de assumir os problemas provocados pelas gerações precedentes”. Foi um discurso incisivo, destinado a provocar um “repensar o futuro” da casa comum. À luz do evangelho da criação e de uma espiritualidade do cuidado, Francisco busca sublinhar o significado mais profundo do habitar a terra com respeito, reverência e simplicidade, captando o nexo de inter-relação que dinamiza a cadência da vida.

 

Dentre as mudanças mais significativas vividas por Francisco em seu pontificado estão aquelas relacionadas com a nova consciência da Terra, de nossa responsabilidade planetária num tempo de crise ameaçadora. A nova consciência ecológica assumida por Francisco talvez seja o marco decisivo de seu pontificado. Com o advento da pandemia da Covid-19 a Terra mostrou o seu lado de intrusão, de reação violenta contra os descaminhos do homem-humano nesse tempo do Antropoceno. 

A pandemia serviu para acordar nas consciências a situação precária e ameaçadora de nosso tempo. Em sua encíclica Fratelli tutti, sobre a fraternidade e a amizade social (2020), Francisco sublinha que todos “perdemos o gosto e o sabor da realidade”. 

Ela nos trouxe tribulação, incerteza e a consciência dos limites, indicando a fundamental necessidade de mudança de perspectiva e rumo, tanto em nossas relações, estilos de vida e modo de organização da sociedade. O humano se vê nuamente diante da “realidade que geme e se rebela” (FT 34). 

Em outra encíclica inaugural, a Laudato si, sobre o cuidado da casa comum (2015), Francisco alçava sua voz contra a deteriorização do meio ambiente, que afeta sobretudo aos “mais frágeis do planeta”, aqueles muitos portadores de pouco mundo. 

É quando Francisco se vê desafiado a denunciar ao mundo inteiro o grande clamor da Terra e dos pobres, sempre conjugados. De forma corajosa fala sobre as “previsões catastróficas” que se anunciam para a humanidade caso não haja uma imediata reação e desaceleração da ânsia de dominação e desenvolvimento. 

Sublinha que tais previsões não são ilusão, mas ameaças bem presentes, arriscando o caminho vital das próximas gerações. Assinala que “o ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida atual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes” (LS 161).

O alvo de Francisco relaciona-se aos desmandos presentes nesse tempo do Antropoceno, quando o nível de intervenção humano sobre a realidade alcança um grau extremamente perigoso e ameaçador, num tempo em que a soberba e a onipresença da atividade predatória humana alcançam níveis fronteiriços. 

Estamos à margem de um verdadeiro caos advindo da “perturbação” humana. É o tempo da “terra perseguida pelo homem”, como sinalizou a antropóloga Anna Tsing[15]

O que assistimos é o ritmo ameaçador das mudanças climáticas, da extinção em massa das espécies, da acidificação do oceano, da poluição e contaminação da água doce, das intervenções violentas sobre o ecossistema e a acelerada industrialização. Junto a isso, o êxodo de enormes contingentes de pobres e excluídos, expulsos de seus países pela fome, pela falta de emprego e pela deteriorização do meio vital.

O grito de Francisco vai de encontro à indiferença mundial diante desses riscos iminentes. Propõe um despertar essencial, voltado para a retomada de uma unidade perdida, e de um novo e vigoroso repensar sobre o “sentido da nossa existência”. Sublinha que “alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza, e acabamos por comer distração, fechamento e solidão; empanturramo-nos de conexões e perdemos o gosto de fraternidade” (FT 33).

Laudato sié talvez o grande marco do pontificado de Francisco. Trata-se da encíclica que mais avançou na questão central de nosso tempo, relacionada com o destino da Terra. Nela encontramos a nova convocação de uma irmandade planetária, forjada na firme convicção de uma pertença comum, de uma “pertença como irmãos”. 

Talvez a palavra mais reverberante da encíclica seja a inter-conexão, a consciência de que “tudo está interligado” (LS 16, 42, 117;  FT 34). Os humanos necessitam despertar para essa consciência ubuntu, como dizem os africanos, a consciência de que não estamos isolados e de que necessitamos uns dos outros. Mas não só dos outros humanos, mas de todos os seres vivos que habitam o planeta. Não pode haver “salvação” solitária. Todos estão imbricados e envolvidos no tecido da vida.

Na linha de reflexão de Tim Ingold, singular antropólogo inglês, o ser humano é envolvido por um “nexo singular de crescimento criativo dentro de um campo de relacionamentos desdobrando-se continuamente”[16]. A vida do ser humano não se encerra em si mesma, mas avança e transborda para ruas e jardins, campos e florestas, favorecendo uma reverberação que é única.[17]O ser humano, ao se irradiar no mundo é o mundo mesmo que cresce nele.

Os humanos não passam de um “tecido de nós” situado num “emaranhado de linhas entrelaçadas”[18]. O entrelaçamento é, com certeza, a “textura do mundo”. E tudo encontra-se vivo e em movimento, pois onde há vida há movimento. Isso percebeu claramente Francisco na Laudato si, essa rede de interligação, que indica que todos precisamos uns dos outros.

E assinala que isso deve ser “reconhecido com carinho e admiração”. São diversos momentos, tanto na Laudato sicomo na Fratelli tuttionde essa questão vem sublinhada com vigor. Como diz Francisco, “tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs em uma peregrinação maravilhosa” (LS 92) .

Francisco não poupa críticas à pretensão antropocêntrica do humano, de um antropocentrismo que reconhece como despótico, desordenado e excessivo (LS 68 e 119). O papa admite que toda criação deve ser acolhida com respeito e carinho e que todo esse tecido vital não pode ser excluído como supérfluo. Todos são portadores de “direitos característicos”. 

Francisco nos convoca a todos, como fazem tantos místicos, a encontrar o Mistério em todas as coisas, pois “há um mistério a contemplar em uma folha, em uma vereda, no orvalho, no rosto do pobre” (LS 233). Tudo que nos rodeia é “carícia de Deus” (LS 84). 

A relação do humano com tudo isso deve ser permeada de ternura, cuidado e acolhida, e tudo pode ser realizado na simplicidade de gestos cotidianos, rompendo com a “lógica da violência” que vem marcando o ritmo dos humanos em nosso tempo empobrecido. Ele fala em “cultura do cuidado” e “espiritualidade ecológica”, dois desafios essenciais (LS 216 e 231).

De modo a realizar uma maior sintonia de sua reflexão com as significativas mudanças que vêm ocorrendo no campo da reflexão atual, tanto no campo da filosofia, antropologia, literatura e biologia, Francisco pode ainda avançar mais, tirando consequências nobres de sua reflexão elaborada na Laudato si

Uma real “conversão ecológica”, como ele propõe, implica num desdobrar mais radicalmente a sua reflexão, já arrojada. Significa sobretudo romper com laços ainda vigentes com certo antropocentrismo cristão, que ainda se mantém aceso nas suas elaborações teóricas. Há que avançar além, e alcançar o gesto poético nobre de João da Cruz, também lembrado por Francisco na Laudato si, e poder cantar: “Meu Amado, as montanhas”. 

Isso significa entender um passo evidenciado pelo grande mestre Dôgen da tradição Soto Zen, que evidencia o ritmo vital e o movimento das montanhas, vales e rios[19]. Tudo que vive está em movimento e é animado por espírito. Isto vale para os humanos, para os animais, os vegetais e os minerais. E tudo vibrando numa ressonância singular.

Vivos estão o sol, as árvores, os ventos. Como mostram com evidências os pensadores do vegetal, tudo que está sob a terra é objeto de “transações cosmopolitas” que desconhecemos profundamente quando destruímos as florestas e devastamos os campos. Nessa cidade subterrânea há uma “arquitetura de teias e filamentos”. Como aponta com pertinência Anna Tsing em seu livro Viver nas ruínas

“os fungos criam essas teias à medida que interagem com as raízes das árvores, formando estruturas conjuntas de fungos e raízes chamadas “micorrizas”. As teias micorrízicas conectam não apenas raízes e fungos, mas, através de filamentos fúngicos, árvores com árvores, conectando a floresta em emaranhados. Essa cidade é uma cena animada de ação e interação”[20].

Francisco dá um passo importante logo no início da Laudato si, ao reconhecer que “nós mesmos somos terra” e que nosso corpo é tecido por elementos do planeta. Esse é um passo importante, mas que envolve consequências que são fundamentais para entender o composto vital de todo o universo. 

Por razões de inscrição institucional o papa não conseguiu ainda prolongar e radicalizar essa reflexão, captando o giro extraordinário que acompanha a “virada animal”[21]e a “virada vegetal”[22]em curso, que, certamente, vai se complementar com uma “virada mineral”, numa perspectiva teilhardiana revisitada e transformada.

Em seu livro precioso, em torno do Pensamento vegetal, o pensador Evando Nascimento retoma pistas significativas lançadas por autores contemporâneos das áreas da literatura, botânica e filosofia, como os italianos Emanuele Coccia e Stefano Mancuso, com a intenção de apresentar os meandros novidadeiros do que denominou “pensamento vegetal”. 

Para além da tradição humanista, como as expressas por pensadores como Heidegger e outros, Evando abre portas e janelas para entender o humanusna sua rede de conexões[23]

Um humanismo que, sem desconhecer a singularidade dos seres humanos, ousa “pensar o mais impensado e mesmo o mais impensável até aqui, ou seja, nossas relações com outros viventes”[24]. Trata-se de dar um balzo in avante, de um passo ousado, para além de nosso “imaginário simbólico”. Fala-se hoje no despertar da florestania, dos direitos das florestas, como se vem falando também dos direitos animais etc.

O grande desafio que se coloca hoje para Francisco e toda a igreja católica é o de avançar para além do antropocentrismo, de poder captar a vida nesse “fluxo contínuo planetário”. É um campo novo e essencial para ampliar a visão de diálogo, de modo a envolver o inter-ser e o viver-com. Como diz Evando,

“o mais isolado dos humanos ou dos viventes animais ou vegetais convive com espécies e coisas que lhes são, ao mesmo tempo, alheias e vizinhas, dependendo delas para sobreviver. A solidão absoluta inexiste, pois, a solidariedade, natural e cultural, é uma lei mínima da existência, incontornável para quem ou o que vive”[25].

Apesar de todo o horizonte sombrio que nos ameaça, é possível acreditar em caminhos de sobrevivência, de tessitura de novas solidariedades, de encontrar brechas de luz nesse mundo nublado. 

É o que Anna Tsing nomeia como “ressurgência”, envolvendo o trabalho “de muitos organismos que, negociando através de diferenças, forjam assembleias de habilidades multiespécies”, como mostrou Anna Tsing[26]

O papa Francisco tem diante de si esse imensurável desafio, de tecer cordas, de recompor a ideia de diálogo nessa visão mais ampla e arejada, para além dos circuitos fechados das instituições tradicionais. O ver mais além é poder entender que o humano não é o umbigo do mundo, mas que é parte do ser. Entender que ele não é o único ser interessante que existe, mas que está inserido num campo vital e provocador. É possível e necessário cultivar uma nova reverência para com o todo e encontrar caminhos para “adiar o fim do mundo”.



[1]Ver o livro: Christoph Teobald. Fraternità.  Magnano: Qiqajon,2016, p. 70

[2]Ibidem, p. 81.

[3]Papa Francisco. Fratelli Tutti. Sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Paulus, 2020.

[4]Leonardo Boff. Habitar a terra. Petrópolis: Vozes, 2022.

[5]Bruno Latour. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020, p. 131. Ver ainda: Id. Onde estou? Lições do confinamento para uso dos terrestres. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

[6]Papa Francisco. Evangelii Gaudium. A alegria do evangelho. Sobre o anúncio do evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus/Loyola, 2013.

[7]Papa Francesco & Eugenio Scalfari. Dialogo tra credenti e non credenti. Torino: Einaldi/La Repubblica, 2013, p. 55.

[8]Ibidem, p. 56.

[9]Ibidem, p. 68

[10]Win WENDERS. Papa Francisco. Um homem de palavra, 2018.

[11]PALAVRAS do papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 82-83.

[12]Ver ainda o discernimento crítico feito por Eduardo Viveiros de Castro a respeito: 

https://www.youtube.com/watch?v=Q77KZ2ivUQg(acesso em 21/03/2022)

[14]Leonardo Boff. Covid 19. A mãe terra contra-ataca a humanidade. Advertências da pandemia. Petrópolis: Vozes, 2020.

[15]Anna Tsing.Viver nas ruínas. Brasília: IEB Mil Folhas,  2019, p. 203.

[16]Tim Ingold. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 12.

[17]Ibidem, p. 138-139.

[18]Ibidem, p. 120-121.

[19]Maitre Dôgen. Shôbôgenzô. La vrai Loi, Trésor de l´Oeil. Tome 1. Paris: Sully, 2005, p. 103-104.

[20]Anna Tsing.Viver nas ruínas, p. 43.

[21]Para a virada animal, vejam os trabalhos de Donna Haraway e Vinciane Despret.

[22]  Para a virada vegetal cf. Evando Nascimento. O pensamento vegetal.  A literatura e as plantas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.

[23]Evando Nascimento. O pensamento vegetal, p. 145-146 e 158.

[24]Ibidem, p. 21.

[25]Ibidem, p. 34.

[26]Anna Tsing.Viver nas ruínas, p. 226.

segunda-feira, 21 de março de 2022

Novos desafios em tempos de mudança

 Novos desafios em tempos de mudança

 

Faustino Teixeira

IHU/Paz e Bem

 

Esse texto foi feito como provocação para um grupo de reflexão, Emaús, que reúne pensadores cristãos e que se encontra duas vezes por ano em Petrópolis. Em razão da pandemia, os últimos encontros foram virtuais. Além de reflexões sobre a caminhada pessoal de cada um, o grupo abre espaços importantes para o debate da conjuntura mais ampla: política e eclesial. Não há, necessariamente, um tema a ser discutido a cada ano, como foi o caso do último encontro, ocorrido em 19 de março de 2022. Partilho então a reflexão pessoal que fiz.

 

Nesses últimos 5 anos mudanças fundamentais ocorreram na minha vida e pontuaram um ritmo novo de reflexões. Pude me dar conta como “eventos fortuitos” e inesperados podem mudar o rumo da nossa vida, entre eles a experiência vital ou uma empreitada inédita motivada pelo cinema, pela música ou pela literatura.

 

No meu caso, o passo essencial foi a busca de um diálogo com a literatura e o cinema, e venho atuando minha reflexão em dois espaços específicos: no Paz e Bem, com Mauro Lopes, e no Instituto Humanitas da Unisinos, com o apoio do amigo Inácio Neutzling. 

 

A marca da literatura se fez presente com dois autores essenciais: Guimarães Rosa, com Grande Sertão: Veredas e Clarice Lispector. Venho dando cursos no IHU sobre esses dois temas.

 

Com o GSV pude me dar conta, de forma viva sobre a questão da ambiguidade que habita a nossa vida: somos todos portadores de luz e sombras. Além da presença da graça, somos também tocados por sombras, que expressam um lado torvo na nossa personalidade. Com GSV pude constatar que além da “vozinha” de graça que habita o nosso íntimo, há igualmente a presença de “avessos”, que expressam a dinâmica do mal. O ódio, como diz Rosa, não tem lógica, e emerge, assim, sem que nos demos conta. Com GSV pude descobrir o dado fundamental da importância de escolher o cavalo que a gente monta: ou o que se encaminha para a alegria ou para a tristeza. 

 

Esse foi um primeiro passo de descoberta, que remexeu com minha visão teológica “purificada” pela visão tradicional do tratado da graça: de que somos todos “criados em Cristo”.

 

A segunda mudança, mais recente, envolve o que se convencionou chamar de virada animal e virada vegetal. A encíclica de Francisco, Laudato si, foi muito importante na percepção essencial de nossa inter-ligação com o todo. Somos todos parte do vivente, envolvidos no emaranhado da vida. Assistir às conferências da 19ª FLIP, em formato virtual, em novembro de 2021 e início de dezembro de 2022, foi outro passo essencial de mudanças em minha percepção do mundo. Ali estavam autores importantes, alguns que vim a conhecer nessa ocasião, como o botânico Stefano Mancuso e o filósofo Emanuelle Coccia, ambos italianos. Pude também me aprofundar no pensamento de um crítico literário fantástico que é Evando Nascimento; além de outros nomes que ali estiveram presentes, como Eliane Brum, Ailton Krenak e Leonardo Froes.

 

Na reflexão de Evando Nascimento, expressa no seu lindo livro “Pensamento vegetal” (Civilização Brasileira – 2021), há uma crítica substantiva ao pensamento antropocêntrico e pistas importantes que nos provocam a pensar para além da tradição humanista. Ali estava o convite de “redimensionar o lugar do humano em sua relação ao mesmo tempo amorosa e conflitual com as alteridades que o cercam”: a alteridade humana, animal, vegetal e diria também mineral. Entender que a vida é um “fluxo contínuo planetário”. Ou como diz Bernie Krause, no seu maravilhoso livro: A grande orquestra da natureza (Zahar, 2013), “o planeta todo transborda com o vigor de uma ressonância tão completa e expansiva quanto delicada e equilibrada”; ou ainda: “todos os organismos são envolvidos por ondas de energia sonora”.

 

Para a virada animal, foram essenciais as contribuições teóricas de Donna Haraway e Vinciane Despret, que me ajudaram a compreender que somos “espécies companheiras” e que o ser humano não é o umbigo do mundo, mas parte do vivente.

 

Para a virada vegetal, cito aqui a importância de uma antropólogo fantástica, Anna Tsing que me ajudou a perceber a presença sob os nossos pés de um “cosmopolitismo vivo”, que enredam uma “arquitetura de teias e filamentos” (teias micorrízicas) que conectam raízes, fungos, que interagem com as árvores e possibilitam um emaranhamentos exemplar e fantástico. As árvores conectam entre si através de tais filamentos.

 

Com Stefano Mancuso pude reforçar a ideia de que as plantas são essenciais para acionar e manter aceso o motor da vida. Como diz esse autor, “nós, animais, representamos apenas 03% da biomassa, enquanto as plantas representam 85%” (A planta do mundo – Ubu, 2021). As plantas são assim “protagonistas” na sinfonia da vida. As plantas, diz o autor, “constituem a nervura, o fundamento, o mapa com base nos quais se constrói o mundo em que vivemos”. Ignorar isso, achando que nos encontramos acima da natureza “é um dos perigos mais graves para a sobrevivência da nossa espécie” (p. 11)

 

Essa nova perspectiva veio para mim radicalizada com a leitura do livro de Emanuelle Coccia, Metamorfoses  (Dantes Editora, 2020). Ele sublinha em seu livro que “a vida de cada ser vivo não começa com seu próprio nascimento: ela é muito mais antiga”. Nossa humanidade, igualmente, é um “produto originário e autônomo”, mas constitui um “prolongamento e uma metamorfose de uma vida anterior” (p. 14). Como ele sublinha, “cada espécie é a metamorfose de todas aquelas que vieram antes dela”. As espécies não são “substâncias”, mas “configurações instáveis e necessariamente efêmeras de uma vida que gosta de transitar e circular de uma forma em outra”.

 

A vida, na verdade, “alimenta-se da vida”. Os vários alimentos “não são apenas formas de vida confinadas nos limites de seus corpos: são corpos capazes de transformar sua vida assim que entram no corpo de outrem” (p. 109). Para o autor, a morte é apenas “o limiar de uma metamorfose”. Cada ser vivo “é um casulo pelo qual a vida constrói alguma coisa diferente”. “O destino de todos os seres vivos é torna-se o corpo de uma outra espécie”. Na verdade, “nós nunca deixamos de trocar de casa, de ocupar a vida e o corpo de outros (...). Ninguém está “totalmente em casa”.

 

Tudo isso para entender que aquilo que Francisco disse no início da Laudato si tem uma dimensão impressionante: de que “nós mesmos somos terra” e que o “nosso corpo é constituído pelos elementos dos planeta”. Há que tirar consequências concretas dessa fala de Francisco.

 

Para concluir, dando uma aula sobre o livro de Clarice Lispector, “Perto do coração selvagem” (seu romance inaugural, de 1943, quando ela tinha apenas 23 anos), algumas reflexões surgiram, ligadas a essa ideia de Metamorfose. A personagem Joana, ao olhar para o quinta do vizinho, percebeu “o grande mundo das galinhas-que-não-sabiam-que-iam-morrer”. Via também a minhoca que se espreguiçava “antes de ser comida pela galinha que as pessoas iam comer”. Clarice parou ali: não tinha ainda dado o salto fundamental: de que as pessoas que iam comer a galinha, por sua vez, seriam também comidas pelos vermes, iniciando um ciclo novo de vida e metamorfose. Tudo isso tem consequências bem vivas para a nossa noção de nascimento, morte e ressurreição. 

 

segunda-feira, 14 de março de 2022

Passos da incomunicabilidade: Paris Texas de Win Wenders

 Passos da incomunicabilidade: Paris Texas de Win Wenders

 

Faustino Teixeira

Paz e Bem/IHU

 

 

Das iniciativas bonitas realizadas pelo Instituto Humanitas da Unisinos (IHU) e do Paz e Bem podemos falar dos “Filmes em Perspectiva”. São encontros periódicos que abordam alguns filmes que fizeram e fazem história. O projeto vai ganhando corpo, e conta com a colaboração de amigos queridos como Mauro Lopes, Angelo Atalla e Rodrigo Petrônio. Eu também estou sempre presente, com minhas reflexões pessoais e reações existenciais, já que não sou um perito em análise cinematográfica. Tem sido, porém, uma experiência singular no meu atual momento de vida, depois da aposentadoria na UFJF, em 2017.

 

Dos recentes filmes comentados gostaria de apontar Paris Texas, um filme maravilhoso de Win Wenders, de 1984, ganhador da Palma de Ouro do Festival de Cannes no mesmo ano, tendo no júri as presenças preciosas de Dick Bogarde (presidência), Isabelle Huppert e Enni Morricone. Entre os atores do filme podemos assinalar as presenças de Natassja Kinsk (1961-)[1], no papel de Jane; Harry Dean Stanton (1926-2017), no papel de Travis; Dean Stockweel (1936-2021), no papel de Walt; Aurore Clément (1945-), no papel de Anne; Hunter Carson (1975), no papel do menino Hunter. 

 

Vale também destacar a magnífica trilha sonora de Ry Cooder, em particular sua interpretação da belíssima Canción Mixteca, de José Lopez Alavés (1889-1974). Outro destaque do filme é a fotografia de Robby Müller (1940-2018), tradicional parceiro de Win Wenders, desde o seu primeiro longa metragem, em 1970: Verão na cidade. O diretor de fotografia vinha da graduação na Escola de Cinema de Munique.

 

Na minha visão, este é um dos grande filmes do século XX. O diretor é um dos singulares nomes do Novo Cinema Alemão, que expressa a viva renovação que ocorreu nesse campo na Alemanha a partir da década de 1970. Junto com Wenders, encontraremos outros importantes diretores, entre os quais: Rainer Fassbinder (1945-1982)[2], Volker Schlöndorf (n. 1939)[3]e Werner Herzog (n. 1942)[4].

 

Win Wenders é um cineasta das paisagens, das ricas tramas existenciais e dos grandes deslocamentos. É também um diretor que aprecia a obra de cineastas americanos, e isto podemos perceber em vários de seus filmes. Não se sai impune dos filmes de Wenders, que sabe, como poucos, emocionar seus espectadores com sua singular sensibilidade estética. 

 

Paris Texas tinha sido a inaugural e bem sucedida experiência  com a cor, e o que ocorrera antes nesse campo era para o diretor algo estranho. Ele disse uma ocasião: “A cor, antes, era para mim uma abstração, o preto e branco me pareciam mais realista, a cor me parecia qualquer coisa de exagerado”[5]. O seu receio era sempre o de se “perder nas cores”. O preto e branco expressava mais vivamente o seu pertencimento cinematográfico.

 

O cenário favoreceu bastante a nova experiência do cineasta, que escolheu, depois de muita pesquisa, a cidade de Paris, no norte do Texas[6], para a realização de boa parte das filmagens. Para o diretor, a “colisão” entre Paris e Texas corporificava passos essenciais do roteiro idealizado por ele e o dramaturgo americano Sam Shepard, que tinha nascido no Texas. Shepard vinha de uma experiência bem positiva com Antonioni, no filme Zabriskie Point, de 1970. Para um dos personagens do filme, Travis, Paris no Texas simbolizava a cisão e desequilíbrio vividos por ele. Ele dizia que tinha conhecido sua mulher, Jane, em Paris, e com a sua evasão, a cidade passou a ser identificada como “o lugar da separação”. Era também considerada um “lugar mítico” onde poderia, quem sabe, reunir novamente a família dispersa[7]

 

Wenders é um cineasta que adora paisagens. E assim começa o seu filme, com um longo plano sequência mostrando a paisagem aérea sobre o deserto texano, que já revela um dos traços da cinematografia do diretor, que a dificuldade de aproximação do mundo e dos outros. É uma sequência que se inicia com o deserto, para depois se fixar no personagem Travis, que caminhava perdido e maltrapilho no deserto, revelando sua posição “estranha” e sofrida no mundo. Como indica India Martins em seu trabalho, “a câmera passeia sobre cânions, uma paisagem árida, sol inclemente, céu azul, pedras – e, finalmente, localiza uma figura pequena caminhando com determinação no centro da paisagem”. Surpeendente a cena em que ele olha para a cima, para para beber o resto de água que tinha, e avista um condor predador no alto da pedra. A imagem sugeria o risco que ele corria na empreitada solitária e desesperada.

 

Vamos aos poucos sendo introduzidos num roteiro maravilhoso, onde vibram as palavras, os sons, os silêncios e as cores, num caleidoscópio de emoções que prendem o espectador do início ao fim. Todo esse clima serve de porta de entrada para uma narrativa familiar pontuada por muito sofrimento, mas também por momentos únicos de sutileza e delicadeza que delineiam a arte do diretor.

 

 

 

 

Como indica o cronista Ricky Sanchis[8],

 

“o filme começa abordando a vida de Travis Henderson, que, após ficar mais de quatro anos desaparecido, é achado vagando sem rumo pelo deserto. Seu irmão, Walt Henderson, fica incumbido de ir ao encontro de Travis para trazê-lo de volta a sua casa. Aos poucos, assim como o protagonista, vamos assimilando tudo o que acontece naquele ambiente. Travis vai recuperando sua saúde mental e física e tem a difícil missão de reatar o laço com seu filho pequeno, Hunter, que tinha abandonado após desaparecer. Hunter não fora somente abandonado pelo pai, sua mãe também decidira por deixá-lo aos cuidados de Walt e sua esposa, a fim de não comprometer o desenvolvimento da criança. A trama ganhará sua essência quando Travis decide reencontrar Jane, sua esposa, junto com seu filho.”

 

Num ritmo que é lento, embalado por uma trilha especial, vamos nos introduzindo nas delicadas nuances que fazem emergir do meio do nada o personagem Travis. Estamos no coração da incomunicabilidade, diante de um personagem que perde por um tempo sua sociabilidade, mergulhando num silêncio que demorou a ser rompido. Vagando perdido por quatro anos, ele vinha de uma “tragédia”, marcada pelo rompimento abrupto com sua mulher (Jane), num conflito comunicacional que o fez seguir para o deserto, abandonando também o pequeno filho Hunter, de quatro anos. Eles moravam como nômades, num trailer, mudando de cidade em cidade por motivos do trabalho de Travis.

 

É toda uma “carga misteriosa” que habita Travis e contagia também o espectador, que vai se adentrando no seu estranho modo de agir e no tom silencioso de seu momento particular. Nos últimos tempos a relação entre Travis e Jane vinha sendo carcomida por um ciúme atormentador, que acabou destruindo a relação. Até que Travis escapa adolorado para o deserto.

 

Depois de muito caminhar, ele encontra uma parada na estrada, quando então ali desmaia, sedento e faminto. No posto médico em que vem atendido conseguem achar o endereço de seu irmão, Walt, que, comunicado por telefone, vai ao seu encalço para resgatá-lo. Vemos assim “emanar dos dois personagens toda essa preocupação que essa volta de Travis para o lugar que abandonara outrora iria implicar para a vida de todos”[9].

 

Seu retorno à casa do irmão vem favorecido com a receptividade atenciosa oferecida pela família, e em particular por Anne, irmão de Walt. Os dois passaram a cuidar do menino Hunter, filho de Travis e Jane, depois que a mãe decidira deixar o garoto com a família por incapacidade de dar a ele o afeto e a proteção necessários. Ela também “desaparece”, mas manterá contato secreto com Anne, pedindo no início fotos e notícias do filho. Com o tempo a comunicação foi se rarefazendo, e numa das últimas conversas entre as duas, Jane tinha passado o nome do banco na cidade em que se encontrava, Houston, a mais populosa do estado do Texas. Dali mandava mensalmente parcos recursos para ajudar na manutenção do filho e auxiliar na garantia de seu futuro.

 

Momentos delicados ocorrem quando Anne começa a sofrer com a possibilidade de perder o menino, que se adaptara tão bem à nova família. Algumas conversas do casal são permeadas por aflição e dor, mas Walt explica para a mulher a importância do resgate afetivo entre o pai sanguíneo e o filho. No começo, a relação não foi assim tão fácil, tendo que ocorrer toda uma dinâmica complexa de aproximação entre os dois. A sorte é que o garoto tinha sido abandonado muito novo e uma possível “raiva” do pai tinha sido atenuada pela falta de lembranças. Curioso perceber que a “inabilidade” dos dois em retomar a comunicação constituiu o fio propiciador para o novo liame. Travis vai, aos poucos com a ajuda do irmão e da cunhada, vivendo uma mutação que o fará recuperar a sociabilidade e a aproximação do filho. Há cenas bonitas a esse respeito, como a ida do pai à escola para buscar o filho, dos desajeitos iniciais à naturalização de uma relação de amor.

 

O contato acolhedor da família facilita que Travis 

 

“recupere, em seu próprio ritmo, algo que escolhera deixar para trás quatro anos antes. E essa recuperação de sua saúde mental é evidenciada em uma das cenas mais simbólicas do filme, quando Travis atravessa uma ponte e encontra a figura de um homem completamente atormentado gritando coisas sem nexo. Travis se dá conta neste momento do que fora meses antes, vendo no homem uma espécie de espelho e se compadecendo disto. Medo e aversão surgem no protagonista. Aversão pelo que havia sido durante um fragmento de sua vida e medo de que isto não tenha se acabado por completo. E esse medo será fundamental para os desnivelamentos finais da obra.[10]

 

Uma das mais belas cenas do filme ocorre quando o pai e o filho assistem episódios felizes da infância do menino com os pais na super 8. Ao fundo a linda canción Mysteca, na arte interpretativa de Ry Cooder. Vamos adentrando aos caminhos percorridos por Travis para recuperar a estima do filho. Vai ser através desse filme em super 8, sobre férias em família, que se dá a primeira aproximação entre pai e filho; o filho abandonado quando tinha 4 anos. Agora o menino estava com 7 anos. A filmagem exerce a função de chispa para o despertar da memória de Travis, reavivando as lembranças felizes de um bonito período da vida familiar, tecido por acolhida, carinho, ternura e amor. Tudo vai servir de base para a aproximação de pai e filho.

 

Após assistir a passagem festiva no super 8, já à noite, o garoto se despede de Travis chamando-o de pai, um momento rico de emoção. Na sequência, em conversa com a mãe no quarto, o garoto indaga:

 

Você acha que ele (Travis) ainda a ama (Jane)?

E a mãe: Como eu vou saber, Hunter?

Ele: Acho que ama.

Ela: Como você sabe?

Ele: O jeito que ele olha para ela.

Ela: Percebeu quando ele a viu no filme?

Ele: Sim. Mas não era ela...

Ela: Como assim?

Ele: Era só ela num filme. Há muito tempo... Numa galáxia muito... muito distante...

 

Em outro momento do filme, o menino indaga ao pai (Travis):

 

Menino: Você se lembra dele (de seu pai)? Quando ele andava e falava

Travis: Sim

Menino: Então, conseguiu sentir que ele foi embora?

Travis: Sim, de vez em quando. Sei que ele morreu.

Menino: Nunca senti que você tinha morrido. Podia sempre sentir você andando e falando em algum lugar. Também sinto a mamãe.

Travis: sente?

Menino: Voce não?

Travis: Com a cabeça faz o gesto de sim...

 

Como lembra Sanchez em sua análise, 

 

“A confusão intrínseca aos personagens, por diferentes motivos, acaba incitando os mesmos a encontrarem o elo perdido que talvez propicie o conforto necessário. Esse elo é a figura de Jane. Somente ela poderia providenciar essa recuperação do buraco na vida de Travis e Hunter. E a jornada dos dois pela busca da mulher é linda. Veremos surgir nessa jornada os sentimentos de aceitação e amor nos protagonistas.

 

Pai e filho decidem ir ao encalço de Jane num velho carro, sem sequer avisar a Walt e Anne, que ficaram desesperados com o sumiço dos dois. Ao longo da viagem, numa parada, o menino avisa a Anne que estavam viajando para Houstou, em busca de Jane. 

 

A longa viagem empreendida por pai e filho não está apenas definida pelos quilómetros percorridos, estendendo-se também a uma travessia emocional de tréguas com o passado, consolidação do presente e resignação com o futuro pela parte de Travis, que, essencialmente fruto do vínculo que criou com o filho, ganha pela primeira vez coragem e determinação para se encarar a si próprio.”[11]

 

O encontro de Travis e Jane é uma das cenas mais impactantes já feitas no cinema. Tudo que envolve a construção dessas passagens, separadas em dois momentos em um único ambiente, acaba arrepiando quem as assiste. A intensidade do filme, que até então era mais tranquila e suave, acaba se elevando consideravelmente. As conversas entre Jane e Travis, separadas por um vidro num peep show, onde apenas o homem via a mulher por trás do obstáculo. Tudo vem permeado por um tom nostálgico, acentuado pela trilha de Ry Cooder. A início, Jane não se dá conta de quem está falando com ela, até que, aos poucos ela vai perceber que a história contada é a dela com Travis. Então tudo muda.

 

Foram dois encontros, sendo o primeiro mais rápido. No segundo é que se dá a revelação de Travis. De forma dramática, ele revela a ela a impossibilidade de um encontro pessoal entre os dois, em razão da carga incompatível e autodestrutiva do passado relacional. Isto me fez lembrar uma passagem do romance de Nizami, Laila & Majnun (século XII), quando a amante diz ao amado que “a proximidade traz o desastre, pois os amantes só estão seguros separados”[12]

 

É todo um processo catártico que ocorre na conversa entre os dois, tanto no momento em que ele fala para ela, como naquele em que ela fala para ele. Em passagem nevrálgica, quando ela descobre que a história revelada é a dos dois, ela se achega ao vidro e com as mãos trêmulas alisando o vidro diz o nome Travis. O que se assiste é a narrativa ou testemunho de um “amor tão profundo e destrutivo, capaz de vandalizar a sanidade daquele que o detém, emoldurado por uma fotografia inconfundível”[13].

 

Como indica Inês Bom, os dois

 

“voltam pela última vez a percorrer o passado intenso, febril e sombrio que viveram juntos. É o testemunho cândido de um amor tão profundo e destrutivo, capaz de vandalizar a sanidade daquele que o detém, emoldurado por uma fotografia inconfundível e por duas das melhores prestações do filme, que tornam esta cena simbólica num marco difícil de esquecer.[14]

As cenas que ocorrem são paralisantes, de emoção intensa. Ao final, vemos Travis, humilde e virtuoso, conseguir a façanha de unir mãe e filho num hotel, estando ele embaixo, assistindo ou imaginando o encontro derradeiro dos dois queridos. É linda a cena em que Jane abraça, sem palavras, o filho querido. É o momento crucial onde ele vence a culpa que o destroçou e pode então seguir caminho na sua velha  caminhonete Ford Ranchero 59, retornando à sua condição de peregrino. 

Como mostrou Ricky Sanchez, ao final de sua resenha, 

“Win Wenders entrega a obra mais relevante de seu cinema, mostrando aqui todos os elementos que acabam por compor seus filmes. Toda a nostalgia presente em cada fragmento de cena traz um misto de tristeza e felicidade no próprio espectador, nos fazendo olhar para nossos próprios passos, atrás da construção de nossas identidades no mundo.[15]

 



[1]Filha do ator Klaus Kinsk (de A cólera dos deuses eFitzcarraldo). Teve belas atuaições nos filmes Tess, de Roman Polanski e Tão longe, tão perto, de Win Wenders).

[2]Dentre seus filmes: O casamento de Maria Braun (1979).

[3]Um de seus clássicos filmes: O tambor (1979 – Oscar de melhor filme estrangeiro em 1980).

[4]Dentre seus filmes: Aguirre a cólera dos deuses (1972), O enigma de Kaspar Hauser (1974), Stroszek (1977) e Fitzcarraldo (1982).

[5]India Mara Martins. A paisagem no cinema de Wim Wenders. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2014, p. 94.

[6]Trata-se de uma pequena cidade no condado de Lamar, que no início de 2017 contava com cerca 25 mil habitantes.

[7]India Mara Martins. A paisagem no cinema de Wim Wenders, p. 94.

[8]Ricky Sanchez. Paris, Texas (1984) de Win Wenders – 08/03/2017 (Cinefilia incandescente):

https://www.dn.pt/artes/paris-texas-o-sonho-americano-e-um-lugar-distante-5661000.html(acesso em 13/03/2022).

[9]Ibidem.

[10]Ibidem.

[11]Inês Bom. Paris Texas: o reencontro com o que há de melhor em nós. Comunidade, cultura e arte, 19/04/2017:

https://comunidadeculturaearte.com/paris-texas-o-reencontro-com-o-que-ha-de-melhor-em-nos/(acesso em 13/03/2022)

[12]Nizami. Layla & Majnum. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 162.

[13]Inês Bom. Paris Texas: o reencontro com o que há de melhor em nós. 

[14]Ibidem.

[15]Ricky Sanchez. Paris, Texas.