terça-feira, 30 de julho de 2013

Paolo Dall´Oglio: o monge cristão enamorado do Islã


Paolo Dall´Oglio: o monge cristão enamorado do Islã

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF


O padre jesuíta, Paolo Dall´Oglio, nascido em 1954, fundou em 1991 no deserto de Mar Mussa (Síria), uma importante comunidade monástica autônoma e mista, dedicada à vida espiritual e ao diálogo interreligioso. Palavras chave presentes nesta comunidade foram sempre a acolhida e a hospitalidade. Seguindo com radicalidade um traço da tradição mística sufi presente em Damasco, Paolo buscou traduzir o que há de mais singelo na espiritualidade do cotidiano, vivenciado pelos santos muçulmanos desconhecidos. Os assim chamados abdâl, aqueles “amigos de Deus”, escolhidos para sanar as feridas do mundo mediante o dom de si. Como cerne de sua vocação monástica, a dedicação a dois amores: Jesus Cristo e os muçulmanos. Para essa aventura espiritual escolheu um lugar muito especial, um velho mosteiro que estava em ruínas e que foi descoberto casualmente num guia de turismo, em 1938. Tratava-se do Mosteiro de Mar Mussa (Mar Mussa el-Habbashi). Com muito empenho e tenacidade restaura o mosteiro, com ajudas diversificadas, e ali busca realizar o seu sonho de uma comunidade monástica interreligiosa. Na bela e áspera paisagem da região tudo converge para uma experiência inédita: o deserto, o silêncio a beleza e a hospitalidade. Para Paolo, a oração interreligiosa tinha um lugar de destaque, envolvendo diversos níveis: das intercessões comuns, da oração litúrgica cristã ou muçulmana, mas também da acolhida singela do Espírito, que com sua presença inusitada anima o encontro de irmãos e anuncia uma harmonia futura.

Marco Lucchesi, em sua notas de viagem (Os olhos do deserto – 2000), relata o encontro que teve com Paolo dall´Oglio – “padre do deserto” – em sua viagem a Síria. Sinaliza que o projeto do amigo estava todo voltado para os ideais de Massignon, Gandhi e Charles de Foucauld. No cerne, a dádiva da hospitalidade. E uma linda proposta de nova ordem religiosa, voltada para o encontro do rosto de Cristo no Islã. Como sublinha Lucchesi, todos os hóspedes são ali recebidos como “embaixadores de Deus”. Os novos monges encontram-se em casa nesse exercício de amor ao outro: sentem-se orientais por vocação e árabes por seu amor aos muçulmanos. Não visam “assimilações recíprocas” ou “equívocas misturas”, mas um “horizonte partilhado”, um sonho comum em favor de uma nova síntese que propicie um “pluralismo na comunhão”. A abertura ao outro, no caso ao muçulmano, não se dá em razão de uma dúvida a respeito da fé em Jesus Cristo, mas “em virtude da tranquilidade” que anima essa fé cristã.

Essa linda experiência comunitária e mística foi interrompida com a expulsão de Paolo Dall´Oglio da Síria, ocorrida em 2012. Em entrevista publicada no IHU-Notícias (janeiro de 2012), Paolo relatava as dificuldades que a comunidade de Mar Mussa vinha enfrentando nos últimos tempos, que coincidiam com os anos de trabalho cultural, partilhado pelos monges, em favor da cidadania, do amadurecimento democrático e do diálogo interreligioso. As represálias ao trabalho comunitário ganharam sinalização com a supressão do parque natural do mosteiro, em 2010, e a suspensão de todas as atividades promovidas pela comunidade, incluindo os congressos de diálogo interreligioso. Em março de 2011 veio o bloqueio de autorização de permanência de Paolo na Síria, e em novembro do mesmo ano a ameaça de sua expulsão. Conseguiu permanecer na região, mas com a condição de baixar o perfil de sua atuação política, evitando declarações públicas contra o regime. Ainda que mais cuidadoso, Paolo não interrompeu suas atividades em favor da paz e o traço profético de suas denúncias. Em 23 de maio de 2012 lança uma carta aberta a Kofi Annan, então enviado da ONU na Síria, e isso só aquece a polêmica. Com a intervenção do núncio apostólico da Síria, que previa sérias retaliações em razão da mencionada carta, o jesuíta deixa o país.

Já no exterior, Paolo lançou-se a um trabalho incansável em favor de uma intervenção não violenta de pacificação, com inúmeras propostas em favor da resolução do conflito, como a criação de um corpo de “acompanhadores” não violentos de várias partes do mundo, enquanto “expoentes da sociedade civil planetária”, visando o “amadurecimento democrático da Síria”. Tais iniciativas não vingaram, para a sua grande tristeza e revolta, também em razão da polarização e militarização do conflito na região. Diante desta situação, os cristãos na Síria encontram-se divididos: um importante número se inclina pelo governo, mas há também os que se engajam nos movimentos de oposição. O cenário é de guerra civil, com o agravante do fenômeno dos sequestros.

Uma das últimas notícias registradas pelo IHU-Notícias no Brasil sobre o monge jesuíta, foi a proposta feita por ele de um dia de jejum e de oração para a reconciliação e a justiça na Síria, previsto para a data de 3 de agosto de 2013, ainda no mês de Ramadã. O objetivo proposta era o de chamar a atenção de todos para o “massacre perpetrado por um regime criminoso sob os olhos de nossas sociedades civis”, mas também para o desastroso “jogo de equilíbrios geopolíticos internacionais”. Seria também um grito em favor da paz no Islã, de defesa dos refugiados sírios e da reconciliação entre sunitas e xiitas. Tudo isso visto como um passo essencial para a paz mundial das religiões e igrejas.

E hoje, dia 30/07/2013, em diversos periódicos italianos, sai a publicação da notícia sobre o sequestro do padre jesuíta Paolo Dall´Oglio. Os últimos contatos estabelecidos com ele foram através de e-mails, em 26 de julho, quando estava em Raqqa, cidade da síria controlada pelos rebeldes. Depois disso “algo” ocorreu com ele. Fala-se em sequestro, mas não se pode ainda assegurar isso com toda a certeza. O “monge jesuíta” tinha retornado à Síria, em fevereiro de 2013, depois de ter sido expulso do país em junho de 2012 pelas autoridades do regime de Damasco, quando então tinha se manifestado a favor do plano de paz do então enviado especial da ONU para a Síria, Kofi Annan. Seu retorno ao país onde viveu por 30 anos foi motivado por uma “peregrinação da dor e do testemunho”, mas também de solidariedade a um povo submetido por incessantes bombardeamentos. O possível sequestro teria sido realizado por um grupo de milicianos  nomeado  “Estado Islâmico do Iraque e do Levante”, que envolveria militantes da Al Qaida do Iraque a outros jihadistas da fronte al Nusra.

Paolo Dall´Oglio, que já tinha publicado recentemente os livros Amoureux de l´Islam, crouyant en Jésus (2009)  e La sete di Ismaele  (2011), estava preparando a tradução italiano de sua última obra, também publicada na França, sobre a sua atuação na revolução síria: La collera e la luce. Un prete cattolico nella rivoluzione siriana (Editrice Missionaria Italiana). 

(publicado no IHU-Notícias, de 31/07/2013:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/522349-paolo-dalla-oglio-o-monge-cristao-enamorado-do-isla )

domingo, 28 de julho de 2013

Francisco, mensageiro de alegria e esperança


Francisco, mensageiro de alegria e esperança

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

            Num dos mais bonitos e sensíveis documentos do Concílio Vaticano II (1962-1965), sobre a Igreja no mundo de hoje (Gaudium et Spes), encontramos uma chave importante para entender o pontificado de Francisco: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1). A viagem de Francisco ao Brasil traduz maravilhosamente essa busca de sintonia com o tempo, de testemunho evangelizador, de compromisso com o outro e de abertura dialogal. O papa que em sua chegada ao país pede licença para acessar o Povo Brasileiro, conquistou, de fato, o seu coração. É um encanto e sedução generalizados, que não se reduz ao circuito da Igreja católica. Dizia em sua chegada que o objetivo de sua viagem era o de “alimentar a chama de amor fraterno que arde em cada coração”. Esse objetivo foi realizado com sucesso, e por várias razões: pelo carisma de Francisco, pelo seu sorriso despojado, pelo seu testemunho de humildade, por sua atenção e generosidade, bem como sua coragem de anunciar um jeito novo de ser Igreja. Mas também acrescentaria, talvez como um segredo maior, sua linda experiência de Deus. Trata-se de alguém que se deixa “surpreender por Deus”, pelo toque inusitado de seu amor, e isso se irradia como fragrância sedutora por todo canto.

            Passos importantes de sua presença no Brasil já foram bem destacados, como a profética mensagem para a comunidade de Varginha, no complexo de favelas de Manguinhos. Ali pôde sinalizar que o traço de solidariedade é a grande lição que a gente simples do Brasil tem a oferecer ao mundo inteiro. E, curiosamente, foi esse o traço singular que envolveu a dinâmica das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e seu projeto de Igreja que ecoou por toda parte. Francisco busca resgatar vivamente essa lição.

            Na continuidade de sua peregrinação ao Brasil, a data de 27 de julho fica também marcada com os traços de sua presença acolhedora e profética. Uma parte importante do dia dedicou sua fala aos ministros da Igreja católica, seja no início da manhã, em missa realizada na catedral metropolitana do Rio de Janeiro, como no almoço oferecido no Palácio São Joaquim. Nos dois espaços, o tema da evangelização ganhou um lugar de destaque. Em sua homilia durante a missa, Francisco sublinha os três aspectos que devem animar os ministros na sua tarefa de anúncio evangelizador: a consciência do chamado de Deus, o compromisso do anúncio do Evangelho e a promoção da cultura do encontro. Enfatizou a importância de um anúncio animado pela coragem e ousadia. Como bem sinalizou Paulo VI na Exortação Apostólica, Evangelii Nuntiandi, evangelizar é “tornar nova a própria humanidade” (EN 18). Assim também o entende o papa Francisco. Mas adverte que o “permanecer” em Cristo não significa ensimesmamento ou entrincheiramento eclesial, mas “um permanecer para ir ao encontro dos demais”.

            No discurso mais longo de sua viagem, dedicado aos cardeais do Brasil, presidência da CNBB e os bispos da região, novamente esse tema da evangelização. Como de costume, faz recurso a uma passagem do evangelho – o episódio de Emaús ( Lc 24,13-15), para animar sua reflexão. Sublinha que hoje em dia há muitas pessoas que, como os dois discípulos de Emaús, encontram-se em dissintonia ou desafeição com a Igreja, seja na busca de “novos e difusos grupos religiosos”, seja numa vida distanciada de Deus. A passagem de Emaús serve como mote para uma reflexão mais ousada sobre o distanciamento eclesial da vida concreta das pessoas. Junto com essa consciência, a advertência em favor de um novo posicionamento:

“Serve uma Igreja que, na sua noite, não tenha medo de sair. Serve uma Igreja capaz de interceptar o caminho deles. Serve uma Igreja capaz de inserir-se na sua conversa. Serve uma Igreja que saiba dialogar com aqueles discípulos que, fugindo de Jerusalém, vagam sem meta, sozinhos, com o seu próprio desencanto, com a desilusão de um cristianismo considerado hoje um terreno estéril, infecundo, incapaz de gerar sentido”.

                  O desafio que se apresenta nesse tempo atual, marcado por uma crise eclesial sem precedentes, é o de uma Igreja que se faz presença. Na visão de Francisco, urge uma “Igreja capaz de fazer companhia, de ir para além da simples escuta; uma Igreja que acompanha o caminho pondo-se em viagem com as pessoas”. Para Francisco, a solução não está numa Igreja encastelada mas numa comunidade que seja “capaz de aquecer o coração”. E isso exige sintonia com o compasso do outro, para além da lógica da eficácia: de “tempo para ouvir” de “paciência para costurar novamente e reconstruir”, de “saber sintonizar o passo com as possibilidades dos peregrinos, com os seus ritmos de caminhada”. Na noite anterior, ao discursar após a Via Sacra, esse tema já havia sido abordado, e de forma ousada, quando tratou da situação de tantos jovens “que perderam a fé na Igreja, e até mesmo em Deus, pela incoerência de cristãos e ministros do Evangelho”.

Ao discursar no Teatro Municipal para segmentos da sociedade civil e lideranças religiosas, no dia 27 de julho, o bispo de Roma volta a falar na “cultura do encontro” e o no desafio de um “diálogo construtivo”. O diálogo é a opção certeira contra a “indiferença egoísta” ou o “protesto violento”. E um diálogo que seja amplo, envolvendo partilha com as diversas gerações, com o povo, com as culturas e religiões. Não há saída feliz para o horizonte da humanidade a não ser pelo diálogo: “É impossível imaginar um futuro para a sociedade sem uma vigorosa contribuição das energias morais numa democracia que evite o risco de ficar fechada na pura lógica da representação dos interesses constituídos”. Francisco mostra mais uma vez seu estado de atenção ao ritmo das ruas, às “energias morais” que animam a juventude brasileira em seus protestos em favor de uma sociedade distinta e de uma democracia em tom maior. Reconhece ainda que as tradições religiosas têm um papel importante na construção desse futuro de paz, e que também o Estado atua positivamente em favor de uma laicidade mediadora, ou seja, de uma laicidade “que sem assumir como própria qualquer posição confessional, respeita e valoriza a presença do fator religiosa na sociedade, favorecendo suas expresses concretas”.

Ao final do dia 27, em seu discurso durante a Vigília de Oração, o papa Francisco fala explicitamente nos protestos protagonizados pela juventude brasileira desde o mês de junho. Indica estar acompanhando com atenção toda essa movimentação em favor de mudanças no país. E sua palavra não é em favor de uma omissão da juventude católica, mas de incentivo à participação nas ruas: “Os jovens nas ruas, vocês têm de ser protagonistas, vocês têm de superar a apatia e oferecer uma resposta cristã para as inquietações sociais. Que se envolvam em um trabalho pelo mundo melhor. Não sejam covardes, se metam, saiam às ruas, como fez Jesus”.

A presença de Francisco no Brasil marca um novo tempo na vida da Igreja católica, que busca estar sintonizada com a “mudança de época”. No espírito aberto do Vaticano II, convoca toda a comunidade para um real aggiornamento. Imbuído da mesma sensibilidade de João XXIII, sublinha a ousadia de novos passos para a Igreja, contra todos aqueles “profetas de desventura”, que se fixam numa lógica de mera continuidade com o passado ou que buscam acentuar sua prática pastoral com o reiterado exercício do “não”: não mudar a fé da Igreja, não mudar a doutrina, não mudar a prática pastoral etc. Os jovens mostram com energia e vitalidade sua expectativa numa Igreja que se firma num fermento evangelizador que propicia mudanças, para além de uma Igreja que só consegue fornecer “palavras seguras” mas desencantadas.

O que Bergoglio nos apresenta não é apenas um “estilo diferente” de exercício papal, mas “um outro modelo de Igreja”. É o que diz com acerto o vaticanista Marco Politi, em entrevista publicada no jornal O Globo (28/07/2013). Para ele, Francisco “abriu uma revolução” no âmbito da comunidade ecclesial. Como no Vaticano II, a primavera volta a mostrar seu rosto iluminado na Igreja, e a nova música que se apresenta tem os toques da acolhida, do serviço e da colegialidade.



           

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sexta-feira, 26 de julho de 2013

A marca de um pastor: a visita de papa Francisco ao Brasil


A marca de um pastor: a visita de papa Francisco ao Brasil

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

            O pontificado de Francisco trouxe um alento de esperança para a Igreja Católica. Como bem sublinhou Leonardo Boff, no Jornal Estado de São Paulo, o papa “trouxe esperança, alívio, alegria de viver e pensar a fé cristã. A Igreja voltou a ser um lar espiritual”. A trajetória de Francisco como bispo de Roma está ainda em seu início. São cerca de 135 dias de atuação nesse serviço eclesial, desde sua eleição em 13 de março de 2013. Antes de sua vinda ao Brasil poderia destacar dois significativos eventos que, de certa forma, preparam o clima de sua visita ao Brasil. O primeiro, em junho, de 2013, no encontro em Roma com a diretoria da Conferência Latino-Americana e Caribenha de Religiosas e Religiosos (CLAR). A conversa se deu em círculo, de forma generosa e acolhedora, como um encontro de irmãos que se estimam e se enriquecem. Foram diversos os temas debatidos: sobre a cúria romana, as correntes na Igreja, sobre a vida consagrada e a presença profética das congregações religiosas. Sobre esse último tema, o papa foi incisivo: “Abram as porta, façam algo aí onde a vida clama. Prefiro uma Igreja que se equivoca por fazer algo do que uma que adoece por ficar fechada”. Mostrou preocupação com o fechamento de certas congregações religiosas, que ficam mais “aferradas” às suas propriedades e ao dinheiro, esquecendo o traço mais vivo de seu carisma e o clamor do tempo. O segundo evento, no mês seguinte, foi a providencial visita a Lampedusa, a ilha italiana ao sul do Mediterrâneo – conhecida também como “a ilha dos desesperados” - onde já desembarcaram mais de 50 mil pessoas em fuga das guerras e fome. Na arriscada travessia, foram mais de 20 mil mortos no mar. Em Lampeduza, Francisco lançou seu grito contra “a indiferença do holocausto no mar”. Em sua forte homilia, Francisco assinalou: “Somos uma sociedade que esqueceu a experiência de chorar, de ´padecer com`: a globalização da indiferença tirou-nos a capacidade de chorar”. Ali em Lampeduza, como sinalizou Marco Politi, não ocorreu um mero exercício de retórica compassiva, mas se firmava um traço programático do pontificado de Francisco.

            A viagem ao Brasil se dá nesse clima profético de Lampeduza, no mesmo mês de julho. O clima chuvoso e sombrio do país não apagou ou arrefeceu o entusiasmo de todos os jovens, crianças e adultos que o acolheram com grande carinho no país. Já em seu primeiro discurso, no Rio de Janeiro, mostrou um toque de delicadeza. Sublinha que o acesso ao povo brasileiro se dá pelo “portal do seu imenso coração”. Pede com gesto de humildade licença para entrar, batendo delicadamente nessa porta. Sublinha que não tem ouro ou prata, mas traz consigo o que tem de mais precioso: Jesus Cristo. É em seu nome que vem ao país “para alimentar a chama de amor fraterno que arde em cada coração”. Sua saudação não vem destinada apenas ao circuito da Igreja, mas volta-se para todos. Traz também consigo uma larga abertura dialogal: “A delicadeza da atenção e, se possível, a necessária empatia para estabelecer um diálogo de amigos”. Vem movido ainda por sede de paz e fome de justiça. De uma paz que seja para todos e de uma justiça que se traduza na criação de um mundo de irmãos. Como sua vinda tinha uma destinação certa, a Jornada Mundial da Juventude, seu olhar estava centrado nos jovens. A eles destina uma das partes mais contundentes de seu discurso na chegada:

“A juventude é a janela pela qual o futuro entra no mundo e, por isso, nos impõe grandes desafios. A nossa geração se demonstrará à altura da promessa contida em cada jovem quando souber abrir-lhe espaço; isso significa tutelar as condições materiais e imateriais para o seu pleno desenvolvimento; oferecer a ele fundamentos sólidos, sobre os quais construir a vida; garantir-lhe segurança e educação para que se torne aquilo que ele pode ser; transmitir-lhe valores duradouros pelos quais a vida mereça ser vivida, assegurar-lhe um horizonte transcendente que responda à sede de felicidade autêntica, suscitando nele a criatividade do bem; entregar-lhe a herança de um mundo que corresponda à medida da vida humana; despertar nele as melhores potencialidades para que seja sujeito do próprio amanhã e corresponda ao destino de todos.”

                  Em sua homilia na missa celebrada em Aparecida retoma essa simbologia para falar da dinâmica evangelizadora: “A Igreja, quando busca a Cristo, bate sempre à casa da Mãe e pede: ´Mostrai-nos Jesus`”. Mas quem é esse Jesus de que fala Bergoglio? Não é, sem dúvida, o Jesus das “teias metafísicas”, que se perde no abstrato, mas alguém que viveu intensamente e com coragem o exercício da vontade do Pai. É o mesmo Jesus que vem transmitir aos jovens valores que são essenciais e que facultam o exercício de construção de um mundo mais justo, solidário e fraterno. Valores que se traduzem em três posturas, pontuadas por Francisco: conservar a esperança, deixar-se surpreender por Deus e viver na alegria. Em sua estadia no Brasil, Bergoglio retomou diversas vezes os temas da esperança e da alegria. Lembrou, com ênfase, que o cristão não pode jamais perder a esperança, mesmo quando tudo parece submergir. É o luzeiro que deve animar a dinâmica do coração. E junto com a esperança, a alegria essencial, como um traço de todo o cristão.

Um dos momentos mais bonitos de sua presença no Brasil foi a visita realizada na comunidade de Varginha, no Complexo de Manguinhos, no Rio de Janeiro. Estava ali muito à vontade. Foi recebido, mesmo sob chuva intensa, com um calor humano poucas vezes visto. Foi tocante o momento em que abraçou aquelas lindas crianças, que estavam ali com sorrisos esplêndidos, sedentos e hospitaleiros. Sem pressa alguma circulou por uma rua da comunidade e demorou-se numa das casas daquela gente simples. Ali o aguardavam mais de vinte pessoas da família, envolvendo parentes que vieram da Paraíba para o evento. Tinha desde criança de 15 dias a uma idosa de 93 anos. Foram momentos de muita emoção. Durante o seu trajeto na mesma rua, o papa deparou-se com uma igreja evangélica da Assembléia de Deus. Manifestou interesse em falar com os fieis. Parou ali, rezou com os assembleianos que estavam na porta e os mesmos pediram uma bênção ao papa. Segundo o porta-voz do Vaticano, padre Federico Lombardi, “foi um momento ecumênico, espontâneo e muito bonito”.

Já na cerimônia oficial, Francisco pôde ouvir a fala de um jovem da comunidade, Rangler, que com sua esposa Joana prepararam o terreno de sua fala pastoral. Foi um discurso vigoroso, profético, corajoso, na linha das mais ousadas reflexões de nossa Igreja Latino-Americana. O papa acompanhava atento e por diversas vezes partilhava com seu rosto os traços vivos daquele discurso admoestativo. E ali perto, num grande banner, o rosto solar de Dom Oscar Romero, a abençoar aquela tarde luminosa.

            Veio então a esperada mensagem de Francisco. Simples, concisa, bela e certeira. Uma palavra de calor pastoral. Começa com a imagem da porta, que virou traço comum nos seus discursos. Sinaliza que seu desejo era o de poder visitar não apenas aquela comunidade pobre, mas a “todos os bairros do País”, “bater em cada porta”, partilhar com os amigos o “cafezinho”, mas sobretudo ouvir o coração de cada um.  Foram momentos muito bonitos, de emocionar... Sublinha com alegria o gesto da linda acolhida comunitária, que faz parte do cotidiano das comunidades pobres, que sabem receber e entendem de generosidade. Francisco sublinha que a riqueza verdadeira “não está nas coisas, mas no coração”. A seu ver, essa é a grande lição que a gentes simples do Brasil oferece ao mundo inteiro: a lição da solidariedade. Aproveita a ocasião para convocar todos ali ao exercício dessa solidariedade, contra a “cultura do egoísmo”: “Não se cansem de trabalhar por um mundo mais justo e mais solidário! Ninguém pode permanecer insensível às desigualdades que ainda existem no mundo”. Sua voz profética ecoa também sobre os esforços em torno da “pacificação” em curso, mas acrescenta que nenhum esforço nesse sentido “será duradouro”, produtor de harmonia e felicidade, caso venha a esquecer ou ignorar “parte de si mesma”, os mais necessitados. E pontua: “A medida da grandeza de uma sociedade é dada pelo modo como esta trata os mais necessitados”. Estava dado o recado!!!  Retoma em seguida a ideia essencial da Igreja como “advogada da justiça” e “defensora dos pobres”, na linha viva do Documento de Aparecida. E os ministros devem ser servidores dessa causa, como já tinha expresso na missa realizada no Sumaré. Todos eles são “vasos de argila” e devem estar atentos contra o risco de sentimentos de superioridade que enfraquecem o dom de seu efetivo ministério. Ao final de sua mensagem o papa retoma a sua reflexão sobre os jovens. Assinala que eles são portadores de uma “sensibilidade especial frente às injustiças”, e se revoltam diante da corrupção. Para eles, a palavra do papa foi de incentivo: “Nunca desanimem, não percam a confiança, não deixem que se apague a esperança (...). Procurem ser vocês os primeiros a praticar o bem, a não se acostumarem com o mal, mas a vencê-lo”. E mais tarde, ao falar para os argentinos na Catedral do Rio, voltou a tocar no desafio das ruas: “Eu quero que a Igreja vá para as ruas, eu quero que nós nos defendamos de toda acomodação, imobilidade, clericalismo. Se a Igreja não sai às ruas, se converte numa ONG. A Igreja não pode ser uma ONG”.

            Em coluna publicada no Jornal O Globo, de 24/07/2013, Elio Gaspari assinalou que Francisco é um líder carismático e um pastor que “não tem medo do povo”, e nem tem o que temer, pois sua vida é um testemunho de doação e serviço. Em sua viagem, que ainda está em curso, o papa “ensinou a um país de tropas de choque que as ruas são um lugar de todos e não é nelas que mora o perigo”. As janelas abertas de seu carro, bem como as laterais livres do papamóvel, traduzem uma simbologia de seu pontificado: de destemor e  abertura ao povo. Mas também de uma agenda eclesial que envolve esperança, fé e alegria num tempo novo.

(Publicado na página da Amaivos:
http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=24019&cod_canal=66

O itinerário místico de Ernesto Cardenal


O itinerário místico de Ernesto Cardenal

Pelo Prof. Dr. Faustino Teixeira[1]
Juiz de Fora – MG (PPCIR – UFJF)

Síntese: Conhecido na América Latina e no Caribe como um poeta revolucionário, Ernesto Cardenal (1925-) produziu ao longo de sua vida, obras em prosa e em verso que estão marcadas igualmente por significativa densidade mística. Há que buscar captar ao longo desse singular itinerário os traços dessa presença espiritual que talvez esteja na base da riqueza e expressividade de sua vida e produção teórica. O poeta nicaraguense vem hoje reconhecido por vários autores como um dos mais fecundos e originais poetas do século XX e revela-se de fundamental importância desocultar as coordenadas contemplativas presentes na sua rica narrativa.

Palavras-Chave:  América Latina, Literatura, Mística, Religião

Introdução 

            Em âmbito latino-americano, Ernesto Cardenal veio sempre identificado como um poeta de viva inserção social, como ativista revolucionário com fortes vínculos com a teologia da libertação. Aqui ficou conhecido por seus salmos militantes,  pelo singular Evangelho de Solentiname (1976) e pela atuação na insurreição sandinista e presença pública no governo, depois do triunfo da revolução, em 1979. Há, porém, um outro lado de Cardenal que nem sempre veio salientado nos trabalhos e reflexões em torno de sua obra e trajetória. É o seu perfil espiritual e místico, destacado precocemente por Thomas Merton, seu orientador na vida monástica, quando passou pela Trapa, entre os anos de 1957 e 1959. No prólogo de Thomas Merton para o livro de Cardenal, Vida no amor, com data de 1966, ele relata que seu noviço nicaraguense já era na verdade “um mestre” espiritual, tecido com o “sinal da sabedoria e a humildade do amor”. Reconhece em correspondência para Cardenal, que a obra apresentada, Vida no amor, revelava-se “excelente: em alguns aspectos igual a Teilhard de Chardin e inclusive melhor, já que ele era somente meio poeta”[2]. Essa dimensão eclipsada de Ernesto Cardenal, “de altíssima vida espiritual”, veio na última década destacada pela estudiosa porto riquenha, Luce López-Baralt. Na visão dessa autora, Cardenal revela-se “um dos místicos cristãos mais originais do século XX”, e levanta a hipótese de que ele será conhecido pelas gerações futuras mais como um escritor contemplativo do que como poeta revolucionário[3]. Outros trabalhos em curso encaminham-se nessa mesma direção, destacando esse “cântico místico” de Ernesto Cardenal[4]. E esse é também o objetivo desse artigo, destacar o itinerário místico desse grande poeta nicaraguense através de um acompanhamento de sua trajetória existencial.

1. Acenos biográficos

 O enraizamento poético 

            Ernesto Cardenal nasceu em janeiro de 1925 na cidade de Granada, na Nicarágua. Sua primeira formação ocorreu com os jesuítas, no Colégio Centroamérica. Prossegue seus estudos na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Autônoma do México, onde conclui sua licenciatura em Letras, em 1947. Parte em seguida para os Estados Unidos, dando continuidade a seus estudos nessa área, e a literatura norte-americana em particular. Permanece em Nova York entre os anos de 1948 e 1949, na Universidade de Columbia. Nesse período, aprofunda-se na temática da poesia contemporânea norte-americana, sobretudo os poetas do movimento literário imagismo, com destaque para Ezra Pound, mas também Robert Frost, Carl Sandburg, William Carlos Wiliams e Walt Whitman[5]. Os estudos críticos sobre a obra literária de Cardenal coincidem nessa percepção do influxo de Ezra Pound em sua poesia. Foi um encontro que proporcionou uma significativa mudança em seu estilo poético e abertura decisiva para a compreensão da potencialidade poética de toda a realidade. A ideia de que “em poesia cabe tudo”, como o mesmo Cardenal bem sintetizou[6].

            Cardenal retorna à Nicaragua em 1950 e dá continuidade ao trabalho de tradução e divulgação da obra de grandes poetas norte-americanos. Junto com Coronel Urtecho publica uma volumosa coletânea: Antologia da poesia norte-americana, publicada pela Editorial Aguillar. Dedica-se igualmente a divulgar a poesia nicaraguense, dando a conhecer autores como Afonso Cortés, Pablo Antonio Quadra, entre outros.  Com a parceria de Coronel Urtecho define uma nova forma de expressão poética, por eles nomeada como “exteriorismo”. Trata-se de um novo caminho de percepção poética, “que se faz com os elementos do mundo exterior”; uma poesia penetrada pelos acontecimentos, coisas e pessoas[7]. O manifesto dessa nova maneira de compor veio expresso num clássico texto de Cardenal: Unas regras para escribir poesia[8], que traduz de forma viva a sua percepção a respeito. Dentre suas indicações sublinha a preferência pelo concreto, a naturalidade da linguagem falada e sua condensação[9], evitando o que não é absolutamente necessário, e a sensibilização tátil e gustativa. Para Cardenal, a poesia, mais do que devedora a ideias, deve ser receptiva a tudo o que entra pelos sentidos.

O enraizamento amoroso

            Como expressão de sua viva experiência relacional, depois de seu retorno à Nicarágua, Cardenal escreveu lindos epigramas amorosos. Um poeta de muitos amores, como ele mesmo destaca em suas memórias. Esses epigramas foram escritos entre os anos de 1952 e 1956. Cardenal relata em suas memórias, que já no tempo de seus estudos no México, as aulas não traduziam o seu maior interesse. A vida que corria lá fora, nos cafés e nos bares, essa sim habitava intensamente o seu coração. Ali encontrava seus amigos e seus amores, entre os quais Conchita Mantecón e Meche, esta última evocada no seu Cântico Cósmico[10]. Em seus epigramas aborda, sobretudo, os amores não correspondidos, que a seu ver são mais inspiradores[11]. Relata o dilema que sempre o acompanhou: a sedução de Deus e o amor às mulheres (suas muchachas). Ocorria-lhe, às vezes, ter duas vidas para corresponder a esses dois amores e aplacar essa dupla atração, irresistível, de entrega total a Deus e de entrega à união conjugal. O dilema envolvia sua vida e seus sonhos. Sentia-se “perseguido por Deus”, tinha plena consciência disso, e essa presença revertia-se em pânico diante de situações concretas onde vinha convocado a tomar uma decisão mais definitiva em sua vida. Dizia: “Deus me perseguia e eu perseguia as muchachas[12]. Essas “muchachas em flor” estavam sempre ao seu redor, com sua sedução e encanto. Não havia como delas se desvencilhar. Seus nomes permeiam suas memórias: Carmen, Sylvia, Adelita, Claudia, Myriam, Melba, Martha, Virgínia. Ao grande amor de sua vida, Carmen, dedicou um livro de poemas, escrito entre os anos de 1943 a 1947: Carmen y otros poemas[13]. Num dos versos que revela uma sensibilidade próxima a Pablo Neruda já se consegue vislumbrar o singular “afã espiritual” de Cardenal, capaz de desocultar na presença de Carmen a transparência de uma alma ainda mais bela, resguardada pelo mistério:

                        Porque no es cabello solamente
                                    no es la sonrisa sólo; no es el labio;
                                    ni la nariz que al verla yo perfillo;
                                    que yo mismo la formo con delicia.
                                    No es solamente el cuerpo ni el rostro en el aire.
                                    Debajo de la piel hay otra niña.
                                    Otra muchacha bela que se esconde;
                                    que en la mirada muda, en el cabello
                                    alguna vez se puede asomar de pronto.
                                    ¡Cómo sería entonces su beleza!
                                    ¡Oh, su cutis, su piel alegre, suave!
                                    Sus cabellos detrás de los cabellos.
                                    Detrás de ella, ella misma, ¡tan Hermosa![14]

                  Carmen foi seu primeiro amor, que irrompeu na cidade de Granada, quando os dois eram ainda muito jovens: ele com dezoito anos e ela com quatorze. Relata em suas memórias que jamais havia sentido tamanha beleza feminina e compara a densidade desse enamoramento com a experiência de sua conversão, ocorrida em junho de 1956, com a diferença de que em seu enamoramento ocorreu a experiência de amor a uma muchacha e não a Deus[15]. É no primeiro amor, sublinha Cardenal, que se dá o verdadeiro amor. Com ele, o traço de um “verdadeiro enlouquecimento”, e que não permite a partilha de um outro amor[16].

            Dentre os epigramas mais populares escritos por Cardenal estão aqueles dedicados a Cláudia Argüello, outro grande amor na sua vida. Um amor que acabou não correspondido. O mais conhecido de seus epigramas, que é um dos mais singelos, vem dedicado a ela, e foi escrito justamente depois de uma triste despedida:

                                                                       
Al perderte yo a tí tú y yo hemos perdido:
                                    yo porque tú eras lo que yo más amaba
                                    y tú porque yo era el que te amaba más.
                                    Pero de nosotros dos tú pierdes más que yo:
                                    porque yo podré amar a otras como te amaba a ti
                                    pero a ti no te amarán como te amaba yo[17].

                  Cardenal tinha predileção pelas muchachas mais jovens, como é o caso de Myriam, a quem dedicou também um lindo epigrama, em que capta não apenas a beleza daquela jovem, “delicada como uma mariposa amarela”, mas algo mais, como uma “beleza mais além de sua beleza”, como naquele dia em que a viu entrar na catedral para a missa dominical:

                                    Ayer te vi en la calle, Myriam, y
                                    te vi tan bella, Myrian, que
                        (¡cómo te explico qué bella te vi!)
                                    ni tú, Myrian, te puedes ver tan bella ni
                                    imaginar que puedas ser tan bella para mí.
                                    Y tan bella te vi que me parece que
                                    ninguna mujer es más bella que tú
                                    ni ningún enamorado ve ninguna mujer
                                    tan bella, Myriam, como yo te veo a ti
                                    y tú misma, Myrian, eres quizás tan bella
                                    ¡porque no puede ser real tanta belleza!
                                    Como yo te vi bella ayer en la calle,
                                    o como hoy me parece, Myriam, que te vi[18].

Outra grande paixão de Cardenal foi Ileana, a jovem de dezoito anos que envolveu seu coração. Assim como Cardenal, ela tinha paixão pela escultura, e os dois se encontraram nas sessões de modelagem do barro. Dessa singela amizade brotou um grande amor, cultivado com um respeito sagrado. Mas igualmente com ela o amor não vingou. Cardenal relata em suas memórias que ela numa noite pediu a ele para não mais retornar sem acrescentar nenhuma explicação. Ele a despediu com um beijo e ficaram as lágrimas. A ela dedicou depois um epigrama, escrito numa das noites marcadas por sua distante ausência:
 

                                    Ileana: la Galaxia de Andrómeda,
a 700.000 años luz,
que se puede mirar a simple vista en una noche clara,
está más cerca que tú.
Otros ojos solitarios estarán mirándome desde Andrómeda,
en la noche de ellos. Yo a ti no te veo.
Ileana: la distancia es tiempo, y el tiempo vuela.
A 200 millones de millas por hora el universo
se está expandiendo hacia la Nada.
Y tú estás lejos de mí como a millones de años.

Essa mesma Ileana esteve presente na “hora cero” de Cardenal, ou seja, naquele momento decisivo, kairológico, de sua conversão a Deus[19], em dois de junho de 1956, ao meio dia, quando estava em sua livraria. Ali, naquele mesmo local, ouviu as estridentes sirenes da caravana de Somoza, dos carros que em cortejo voltavam das bodas de Ileana, celebradas na catedral da cidade[20]. Naquele dia e naquela hora, Cardenal rendeu-se a Deus. Esse episódio será recordado por Cardenal trinta e sete anos depois, num poema de seu Telescopio en la noche oscura:

Mi Consuelo es recordar lo que me hiciste aquel 2 de junio
Ahora estás tan lejos de mí como Ileana ¿te acuerdas?
y la galaxia de Andrómeda.
Quando Ileana estaba más lejos de mí en la calle Candelaria
Que la galaxia de Andrómeda.
Mi Consuelo es recorder lo que me hiciste aquel 2 de junio
Hace 37 años[21].

                  Em meio a tantos “conflitos de enamoramentos” Cardenal visualiza a presença de Deus, de um Deus “ciumento” que não suporta partilhas. E no dilema que sempre o acompanhou, entre a escolha do amor humano ou de Deus, esse último sai vitorioso, tendo como ponto de arranque a experiência da conversão. Relata em suas memórias que “estava condenado a ser de Deus”, daquele Deus que o perseguia sempre, com artimanhas das mais diversificadas, e de um Deus que é “beleza antiga”, mas “sempre nova”, como aponta Agostinho[22]. De forma muito curiosa, o penúltimo epigrama amoroso de Cardenal vem dedicado “vagamente a Deus”, como ele mesmo expressa, ou como uma “queixa da alma a Deus”. Trata-se de um epigrama muito sugestivo:

                        Como canta de noche la esquirina[23]
                                    al esquirín que está sobre otra rama:
                                                                        “Esquirín,
                                                      si quierés que vaya, iré
                                                      si quierés que vaya, iré”
                                    Y a su rama la llama el esquirín:
                                                                        “Esquirina,
                                                      si querés venir, vení,
                                                      si querés venir, vení”,
                                    y cuando ella se va donde él está
                                    el esquirín se va para otra rama:
                                                      así te llamo yo a ti,
                                                                        y tú te vas.
                                                      Así te llamo yo a ti,
                                                                        Y tú te vas.”[24] 

A experiência da conversão

            Algo profundamente significativo ocorreu com Cardenal em junho de 1956, e que vem identificado com sua experiência de conversão. Foi, na verdade, um profundo êxtase místico que transformou a sua vida. Como assinala Luce López-Baralt, “o que experimentou Cardenal no 2 de junho de 1956 mudou sua existência para sempre: foi o que nele detonou não apenas uma ampla experiência contemplativa mas também uma vida inteira dedicada ao serviço de seu povo oprimido”[25]. Na visão de Cardenal, foi como uma “morte”: “Eu morri naquele 2 de junho”[26]. Em suas memórias há o relato vivo desse acontecimento arrebatador. Era um sábado, meio dia, e se realizava uma cerimônia de casamento na catedral da Nicarágua, e a noiva era uma ex namorada sua, Ileana. Ele estava na livraria onde trabalhava, atendendo uma jovem, quando ouviu as estridentes sirenes da caravana de Somoza, que retornava da cerimônia realizada na catedral, atravessando rapidamente a Avenida Roosevelt. Para Cardenal, as rumorosas sirenes soaram como “clarins de triunfo” e naquele momento, como num flash, sua mente vivenciou uma “superposição de Deus e do ditador como se fossem um só”, um só a triunfar sobre ele. Em seguida veio um grande abatimento, que ele relata como semelhante ao expresso no salmo 130     ( De Profundis): “Das profundezas clamo a ti, Iahweh: Senhor, ouve o meu grito!”. Foi quando então se rendeu a Deus: 

Disse, do mais fundo de minha alma: Me entrego (...). Ao fazer essa entrega senti em mim um vazio que não tenho outra maneira de qualificá-lo senão como ´cósmico`. A pobreza total dentro de mim. Estava já sem nada (...). E senti  que entrava dentro de minha alma como uma brisa, algo sutil de que já havia provado antes um pouquinho: a paz de santo Inácio (...)[27].

            Na  medida em que se entregava a Deus, que se deixava acercar-se dele, experimentava uma “paz muito saborosa”, um grande deleite, um prazer imenso, que crescia em intensidade a ponto de se tornar intolerável. E sentia que Deus instaurava uma comunicação, e dizia: “Isto é o que eu queria há tanto tempo. Agora sim já nos unimos”. E o relato vivo de Cardenal impressiona: “E minha alma se sentia suja, se sentia envergonhada. E enquanto me apertava cada vez mais, era abraçado mais e mais forte por um prazer sem limite”. Roga então a Deus para que interrompa o prazer, pois ele conduz à morte. Não há como prolongar sem sofrimento tal gozo. E como resultado de tudo isso, que se passou tão rapidamente, a presença de um sentimento de atordoamento, e a percepção de que sua vida iria mudar completamente[28].

            Como tende a acontecer com experiências semelhantes vivenciadas por místicos de tradições diferenciadas, nem sempre o relato do ocorrido vem expresso imediatamente[29]. Busca-se guardar silêncio, como uma forma de reverência ao que de sublime ocorreu com o sujeito em dado momento de sua vida. Isso também se passou com Cardenal, que só tratou explicitamente dessa questão bem mais tarde. Ele indica em suas memórias que foi se consultar sobre sua vocação com seu conselheiro espiritual, padre Elizondo e falou sobre o episódio. Foi por ele orientado a não divulgar o ocorrido, “a não ser por razões muito especiais”, e reforçou sua posição com a sabedoria de santa Teresa, para a qual os “segredos do Rei” devem permanecer resguardados[30].  E Cardenal assim procedeu. Só depois de dez anos, na sua obra Vida no amor, expressa o significado de seu “transe extático” de julho de 1956, sem porém revelar que ele tinha sido o sujeito de tal experiência. O relato, de uma beleza única, fala por si:

De repente a alma sente Sua presença numa forma em que não pode equivocar-se e com tremor e espanto exclama: ´tu deves ser aquele que fez o céu e a terra!` E quer esconder-se e desaparecer dessa presença e não pode, porque está como entre a espada e a parede, está entre Ele e Ele, e não tem onde escapar, porque essa presença invade céus e terra e a invade também a ela totalmente, e ela está em Seus braços. E a alma que perseguiu a felicidade toda a sua vida sem saciar-se nunca e procurando todos os instantes a beleza, o prazer e a felicidade e o gozo, querendo sempre gozar mais e mais, agora em agonia, afogada num oceano de deleite insuportável, sem margens e sem fundos, exclama: ´basta, basta! Não me faças gozar mais, se me amas, porque eu morro!` Penetrada de uma doçura tão intensa que se transforma em dor, uma dor indescritível, como algo agridoce que fosse infinitamente amargo e infinitamente doce. Tudo é talvez em um segundo, e talvez não voltará a repetir-se em toda a sua vida, mas quando esse segundo passou a alma entende que toda a beleza e as alegrias e os gozos da terra ficaram desvanecidos, são ´como esterco` como disseram os santos (Skybala, ´merda`, como diz São Paulo) e já não poderá gozar jamais em nada que não seja Isso e vê que sua vida será a partir de então uma vida de tortura e de martírio porque enlouqueceu, está louco de amor e de nostalgia do que provou, e vai sofrer todos os sofrimentos e todas as torturas contanto que venha provar uma segunda vez, um segundo mais, uma gota mais, essa presença. Amizades, vinho, mulheres, viagens, festas, tudo se desvaneceu para sempre e a alma já não conhecerá jamais outra alegria maior do que a felicidade que sentiu[31].

                  A sua experiência de conversão, aludida na obra Vida no amor, vem extensamente descrita no seu primeiro volume de memórias. Não queria deixar passar em branco o que lhe havia sucedido naquela ocasião, e aos 72 anos de idade busca registrar por escrito. E a mesma experiência vem descrita com grande liberdade e em cores bem erotizadas no seu livro de poemas Telescopio en la noche oscura:

Cuando aquel mediodía del 2 de junio, un sábado,
Somoza García pasó como rayo por la Avenida Roosevelt
sonando todas las bocinas para espantar el tráfico,
en ese mismo instante, igual que su triunfal caravana
así triunfal tú también entraste de pronto dentro de mí
y mi almita indefensa querendo tapar sus vergüenzas.
Fue casi violación,
pero consentida,
no podía ser de otro modo,
y aquella invasión del placer
hasta casi morir,
y decir: ya no más
que me matas.
Tanto placer que produce tanto dolor.
Como una especie de penetración[32].

A vida na Trapa e o influxo de Thomas Merton

            Após a intensa experiência daquela sábado de junho, Cardenal buscou alimento espiritual nas páginas de João da Cruz. Ao chegar em casa, recebido por sua avó, Agustina, com quem compartia muitas leituras, mostrou a obra espiritual que trazia para a meditação do final de semana. A reação imediata da avó foi assinalar que ele tinha vocação religiosa e que deveria entrar numa ordem religiosa. E ao perguntar ele sobre a que ordem ingressar, a resposta veio imediata: “Trapense como Thomas Merton”. E a resposta, como um raio, produziu nele uma faísca de convicção fulminante[33]. Guarda por algum tempo essa convicção em seu coração, e quando a revela produz surpresa e espanto tanto na família como entre os amigos. Mas segue em frente. Antes de ingressar na Trapa recebe uma linda carta de Thomas Merton, então mestre de noviços, tranquilizando-o face a alguns possíveis temores[34]. Dizia que o ingresso ali não significaria para ele nenhuma mudança brusca em sua vida, e que poderia manter acesa sua “autêntica personalidade”, querida e aceita por Deus[35].

            O ingresso no noviciado da Trapa em Gethsemani, no estado de Kentucky (EUA), ocorreu na primavera de 1957, num mês florido de maio. No noviciado recebe o habito e também um novo nome, Frater Lawrence. Aos poucos vai se adaptando à nova vida, bem pesada para o seu ritmo habitual. A vida ali começava bem cedo, às quatro da manhã, com a missa celebrada por Thomas Merton na capela do noviciado, finalizando os trabalhos às sete da noite. E durante o dia, uma rotina pesada de leituras privadas, aulas e práticas com o mestre de noviços, canto coral, momentos de ofício,  missa solene e as aulas de latim. O ritmo de vida no mosteiro era privado de qualquer distração. Predominava o compasso do silêncio, ao qual Cardenal se adaptou bem, pois lhe era conatural. O mosteiro congregava na época em torno de duzentos membros, entre os quais vinte noviços, depois acrescidos de novos adeptos.
            Mesmo na condição de mestre de noviços, Merton levantava muitas ponderações ao estilo de vida levado na Trapa. Suas críticas ao mosteiro e à vida monástica em geral provocavam desassossego em Cardenal[36]. No início ele, Cardenal, estranhou a postura livre e aberta de Merton e resistia ao traço renovador de sua atuação junto aos noviços. Essas críticas ele não as fazia publicamente ou nas conferências aos noviços, mas privadamente a Cardenal, com quem sentia maior familiaridade e sintonia. Dizia a ele que a ordem trapista não era para poetas como eles, assim como os quarteis ou academias militares. Mas por alguma razão Deus os havia escolhido para estar ali. Cardenal relata que aos poucos foi se identificando com Merton e seu pensamento renovador, superando assim suas inquietudes iniciais. Aos poucos “estava já na conspiração”[37].

            O grande sonho de Merton, relata Cardenal, era uma fundação latino-americana, um mosteiro diferente:

um mosteiro pequeno, revolucionário, talvez sem hábito, onde se pudesse ter uma vida simples e em contato com a terra, com os índios e com Deus, e onde se pudesse cultivar as artes não como mero ´apostolado` mas por seu valor intrínseco; e onde também se pudesse manter contato com os movimentos artísticos da capital e acolher escritores e artistas para descansar e criar[38].

                  Durante os dois anos e três meses passados na Trapa, Cardenal se encantou com Merton, com sua simpatia, receptividade e poder de comunicação. Ele tinha um cuidado especial com todos e um magnetismo que se irradiava por todo canto. E também um extraordinário senso de humor. Não tinha, como informa Cardenal, “nenhuma auréola especial de misticismo. E à primeira vista seu rosto não irradiava nada de extraordinário. Ao contrário, o que irradiava, se assim se pode dizer, é que era uma pessoa completamente ordinária. O que tinha de extraordinário era a grande simpatia que comunicava desde o primeiro contato com ele; tinha o dom da congenialidade”[39].

            Para Cardenal, um dos grande aprendizados recebidos de Merton foi a percepção de uma fina sintonia entre vida contemplativa e vida ativa[40]. Em sua direção espiritual, Merton conseguiu destacar que a verdadeira vida espiritual está profundamente ligada ao interesse humano. Com seu “método zen”, Merton suscitou uma dinâmica espiritual encarnada, uma vida contemplativa inserida no tempo. Dizia que “a vida do contemplativo era simplesmente viver, como o peixe na água”, e que tudo que envolve a história tem um sabor de vida espiritual, ou seja, que a vida de todo o dia é a “única vida espiritual”, não havendo outra[41]. Percebe-se que são traços que vão acompanhar Cardenal em sua trajetória espiritual.

            Pode-se também indicar o influxo de Merton na abertura interreligiosa de Cardenal. Este dado veio expresso por Santiago Daydí-Tolson na introdução do livro contendo a correspondência entre Merton e Cardenal. Esse autor fala do incentivo dado por Merton em suas lições aos noviços da Trapa ao conhecimento e aprofundamento da espiritualidade dos povos indígenas[42] e da necessária abertura às religiões pré-cristãs. Mas pode-se igualmente sublinhar uma sensibilização interreligiosa ainda mais ampla, envolvendo a mística oriental e o sufismo[43].

            A experiência na Trapa favoreceu a Cardenal um clima essencial para seu exercício contemplativo, bem como espaço propício para o seu amadurecimento pessoal. Os dois anos de vida monástica proporcionaram o alimento para três obras importantes do místico nicaraguense: Vida no amor, Gethsêmani, Ky e os Salmos. Na primeira obra, Vida no amor, que é um breve “tratado místico em prosa”, destaca-se o convite de aperfeiçoamento do olhar para a percepção da presença universal do amor[44]. Para que se dê essa percepção, torna-se necessário um radical exercício de despojamento e desapego. Na verdade, indica Cardenal, o maior obstáculo para a experiência profunda de Deus é o próprio ego com seus limites. Na segunda obra, Gethsêmani, Ky, encontram-se poemas que traduzem traços singulares da espiritualidade, marcados por concisão que lembra a literatura chinesa[45]. Por fim, Os salmos, traduzem a veia profética de Cardenal, ou seja,  uma mudança de toque poético, distinta da lírica “delicada e intimista” presente de livros anteriores e pontuada agora por dinâmica ativa[46]. Trata-se de uma tradução atual dos salmos, profundamente atenta aos sinais dos tempos. Em carta escrita por Merton a Cardenal sinaliza: “Teus Salmos são estupendos”. É a versão que a seu ver deveria estar sendo cantado no coro dos monges[47].

Os passos sucessivos e a fundação de Solentiname

            A permanência de Cardenal na Trapa foi interrompida por questões de saúde. Em razão de problemas estomacais e de dores de cabeça crônicas, foi aconselhado pelo médico do mosteiro a buscar um clima diverso. Parte então para o México, em 1959, com o propósito de dar continuidade aos seus estudos visando a ordenação sacerdotal. Permanece ali até 1961, vinculado ao mosteiro beneditino de Cuernavava. Segue depois para a Colômbia, na cidade de La Ceja, ingressando no Seminário de Cristo Sacerdote, indicado para as vocações tardias. O seminário estava muito bem localizado, circundado por bela paisagem dos Andes, em meio a lindas montanhas e colinas verdes. Pôde ali refletir com calma sobre a sua vocação, mas também sobre a sua “vida perdida”, que deu o título ao seu primeiro volume de memórias. Medita intensamente sobre o amor, essa breve palavra que traduz tudo aquilo que buscou e pontuou o seu saber. Reflete sobre o seu primeiro e grande amor, Carmen, arrancado por Deus, com quem encontrou um “amor correspondido”. E relata, com melancolia, que foi esse amor que fez de sua vida uma “vida perdida. Perdida no mosteiro trapista, perdida em Cuernavaca, perdida agora no seminário, e perdida, sem remédio, para o resto da  vida”[48].

O tema vem retomado em poema do Telescopio en la noche oscura:

                        Mi felicidade fue poca. La soledad es total.
                                    Yo quien un día fui tan romántico enamorado:
                                    abrazar sin brazos, amar sin emociones.
                                                      Dulce sería llorar pero es retórico.
                                    Tal vez te gustó lo romántico y enamorado.
                                                      De entre cien mil me escogiste.
                                    Atrás quedaron los epigramas y las muchachas[49].
                       
Apesar das perdas, manifesta alegria de viver essa nova experiência espiritual, resultado de sua intensa busca anterior. Reconhece que os “beijos limitados não saciam uma alma que quer uma eternidade de beijos”. Por decisão pessoal tinha devotado sua vida a Deus, e por ele vestia agora uma “feia batina preta”. Relata em suas memórias que apertava Deus junto ao peito, buscava unir sua alma à Dele, deixando-se inundar por seu amor. E seu caso com ele era de um ritmo de amor diferente: “um amor sem lábios, sem peitos para tocar, um amor sem nada, o puro amor”. Ao relembrar sua ligação amorosa com as muchachas, reconhece que ali havia um reflexo de Deus. Isso não nega em momento algum. Mas reconhece igualmente que nenhuma delas era Deus, ainda que tão lindas. Nenhuma delas “era a beleza total, mas apenas reflexos fragmentados dessa beleza, como pedaços de um espelho roto”. Depois do encontro com Deus, o resplendor de seus rostos perdeu o viço, como o brilho de uma vela diante da grandeza do sol. O que elas significavam agora era pouco ou quase nada, depois que pôde experimentar “um gole, só um gole, do deleite de Deus”[50].  Lembra ainda que não foi ele quem buscou a Deus, mas foi Deus quem o escolheu muito antes, podendo agora gozar a riqueza dessa “intimidade com o infinito”[51]. E sobre como explicar essa intimidade relata:

É uma união dentro do uno, e sem senti-lo com os sentidos, sinto-o, sua frente sobre minha frente, seus olhos sobre meus olhos, sua boca sobre minha boca, tão próxima de mim que já não sei qual é qual, qual sou eu e qual é Ele, onde começa Ele e onde acabo eu, porque já Ele e eu somo um, um só tu e um só eu, um tu que é eu e um eu que é tu. Fecho os olhos e o sinto junto a mim, e o sinto cada vez mais perto, e está sobre mim, e seu rosto e meu rosto transformam-se num só rosto, mas não necessito fechar os olhos para que esteja sobre mim, mesmo que não o pense, está sobre mim, o amante sobre o amante. E entretanto a alma está abraçada com o nada[52].

                  Depois de concluir os seus estudos sacerdotais na Colômbia, Cardenal ordena-se em agosto de 1965 em Manágua. Thomas Merton não esteve presente na cerimônia, mas mandou uma expressiva carta, onde sinaliza que Cardeal teve uma vida abençoada, com uma evidente vocação divina. Encoraja o místico nicaraguense a seguir firme no seu caminho, sempre acompanhado pela presença imorredoura do Espírito. E lança um singular desafio espiritual: manter acesa a coragem, sem temor, jogando-se nos braços de Deus como um menino. E dessa forma, terá muito o que fazer pelo seu país[53].

            Depois de sua ordenação, Cardenal viaja aos Estados Unidos para se encontrar com Merton e buscar orientações para a criação de uma comunidade contemplativa na Nicarágua[54]. O seu sonho, como também de Merton, era criar uma comunidade contemplativa leiga, enraizada no silêncio e na solidariedade. Merton não obteve autorização para sair de sua comunidade, tendo Cardenal que levar o seu projeto sem sua parceria. A comunidade nasce em 1966, com o nome de Nossa Senhora de Solentiname, situada no lindo arquipélago de mesmo nome, muito pouco visitado[55]. Dizia Cardenal que o lugar era bem adequado para a presença de uma comunidade contemplativa, fazendo recordar as “ilhas estranhas” de João da Cruz.

            Seguindo a ideia dada por Merton de que a primeira regra é “não ter regras”, Cardenal buscou uma presença diferente de comunidade contemplativa. O hábito escolhido era uma vestimenta bem tradicional na Nicarágua: uma bata branca de algodão, bem simples e singela. Acompanhando essa bata, uma calça jeans e sandália. Acrescentou-se depois a boina, que ganhou uma conotação  revolucionária.  Junto com a dinâmica espiritual e contemplativa, Solentiname representou também toda a irradiação de um trabalho alternativo de agricultura cooperativa, bem como um polo de vitalidade cultural, com importantes trabalhos nos âmbitos da pintura, da poesia e do artesanato.

Alguns participantes da comunidade ficaram bem conhecidos, em razão do livro de Cardenal El evangelio en Solentiname: William e Teresita, Marcelino, Rebeca, Laureano, Elbis, Felipe, Tomás Peña, Alejandro, Pancho, Julio Mairena e Óscar. Os famosos diálogos de Solentiname, na verdade os comentários evangélicos das missas dominicais, tecidos pelos participantes da comunidade ganharam grande irradiação, mesmo internacional, com as traduções feitas do livro para diversos países, incluindo o Japão e as Filipinas. Cardenal sublinha que esse livro, publicado originalmente em inglês, em 1976[56],  é a melhor de suas obras, e precisamente pelo fato de não ter sido ele o seu verdadeiro autor, mas os membros da comunidade de Solentiname[57].

            Com o avançar do processo revolucionário nicaraguense, a comunidade de Solentiname foi cada vez mais se identificando e se comprometendo com a dinâmica sandinista, sendo que ao final praticamente toda a comunidade estava nela incorporada. Foi um comprometimento que nasceu da leitura e partilha comunitária dos evangelhos, antecendendo uma prática que foi muito comum em toda a América Latina, com os círculos bíblicos e as comunidades eclesiais de base. No dizer de Cardenal, foi o Evangelho mesmo que suscitou tal radicalização, fazendo revolucionários os membros da comunidade[58]. Em entrevista concedida a Hermann Schulz e publicada em livro no ano de 1972, Cardenal afirma: “Na realidade, eu me politizei com a vida contemplativa. A meditação, o aprofundamento, a mística é o que favoreceu minha radicalização política. Não foi pela leitura de Marx, mas por Cristo. Pode-se dizer que o e evangelho me fez marxista”[59].

Há que sublinhar que no curso desse processo, ocorreu também uma viagem de Cardenal a Cuba, em 1970. Essa viagem vem por ele reconhecida como lugar de uma “segunda conversão”[60], e ocasião de verdadeira “revelação”. Foi quando se deu conta de que o marxismo era a solução para a América Latina[61]. A comunidade de Solentiname acabou sofrendo os reveses da revolução sandinista, sendo destruída pela Guarda de Somoza, em 1977, em represália a um assalto realizado no quartel de uma cidade vizinha, San Carlos, em que membros da comunidade de Solentiname tiveram participação[62]. Cardenal e outros membros da comunidade tiveram que partir para o exílio. Alguns se tornaram “mártires da revolução”, antes mesmo de seu triunfo, como Felipe, Elbis e Donald.

A experiência no governo

            Com a vitória da revolução sandinista, em 1979, Cardenal foi convidado a integrar o governo como ministro da cultura. Ele aceitou o encargo e teve uma singular atuação ao longo de seu exercício. Cabe destacar o seu empenho em favor das oficinas de poesia e a criação de uma espécie de regras para os aprendizes de poesi[63]. Essas oficinas representaram uma “espécie de alfabetização da poesia”, voltada para os interessados em aprender esse ofício. Na visão de Cardenal, foi o programa “mais importante do ministério da cultura”. Ocorreu também o ressurgimento do folclore, o fomento da culinária popular, da cerâmica e do artesanato. E ainda a reabertura da Escola Nacional de Música e o incentivo ao teatro popular[64]. Em entrevista concedida a Teófilo Cabestrero, relata sua experiência no ministério: “Agora que me coube este outro ministério, além do sacerdotal: o da cultura, tenho como encargo promover toda a cultura do país (...). Juntamente aos bens materiais, também são prioritários os bens espirituais. Não concebemos o bem-estar material se não é acompanhado do bem-estar espiritual. E assim como Cristo encarregou seus apóstolos de repartir os pães e os peixes, sinto que Ele me encarregou de repartir a cultura[65]”.

            O compromisso assumido no ministério da cultura ocorreu com sacrifícios para Cardenal, sobretudo a renúncia à sua atividade literária, em razão da exiguidade de tempo disponível. Isso já tinha ocorrido antes, de certa forma, durante sua experiência na Trapa, onde também encontrou resistências  ao seu trabalho de escritor. Mas nesse período de ação no governo a quebra no seu trabalho literário foi muito mais marcante, com repercussões na sua produção poética[66].

            A sua relação com a igreja católica também ficou prejudicada nesse período, em razão das resistências eclesiais ao seu empenho político oficial. Ficou conhecido o episódio da admoestação pública de João Paulo II, durante sua visita à Nicarágua, em 1983, quando apontou duramente o dedo para Cardenal, que estava de joelhos para saudá-lo[67]. O Vaticano queria que ele abandonasse o cargo no Ministério da Cultura. Não tendo isso ocorrido, veio então, em 1985, a suspensão de seu sacerdócio a divinis, durante o mesmo pontificado de João Paulo II.

A retomada da produção literária

            A atividade literária de Ernesto Cardenal, interrompida no período em que esteve no governo sandinista, ganha novamente lugar por volta de 1989, quando deixa o cargo de ministro da cultura. Nesse período destaca-se a publicação de uma das mais importantes obras de seu repertório reflexivo, Cântico Cósmico, onde retoma o filão de seu discurso místico. Trata-se de uma obra que impressiona: são 43 cantigas que se apresentam numa volumosa obra de quase seiscentas páginas[68]. Veio identificada como uma “épica astrofísica”[69], onde se percebe a presença e radicalização do pensamento Teilhardiano, numa impressionante celebração do sentido do universo. Como indica o teólogo Jürgen Moltmann, o livro constitui “uma maravilhosa abertura ao novo mundo invadido pelo Espírito, aquele que nos fará redescobrir a imanência de Deus escondida na natureza e sua presença em todas as criaturas”[70]. Destaca-se também nessa obra a ousadia literária. Se no seu primeiro tratado em prosa, Vida no Amor, o autor apresentava-se ainda “cauteloso em suas expressões”, nos versos do Cântico percebe-se uma viva “desnudez expressiva”[71].  A penúltima cantiga do Cântico, de número 42, vem toda ela dedicada à experiência mística, e é de uma beleza impar.
            Quase como uma sequência ao Cântico, insere-se outra obra poética, Telescopio en la noche oscura, escrita entre os anos 1992 e 1993. Seguindo um semelhante estilo poundiano, a nova obra revela-se com uma “força poética extraordinária”, e com um toque místico vivamente erotizado. O amor ao divino vem celebrado com cores vivas, com requintes de grande e ousada intimidade:

                                    Para mí la gloria es
                                    Tener a Dios en mi cama o en la hamaca.
                                                      Gocémonos.
                                    Los alcaravanes van volando
                                    Gocémonos, amado[72].

                  Dedica-se também Cardenal, nesse período, a redigir suas memórias, que serão publicadas em três volumes. O primeiro deles, Vida perdida (1999), traz no título uma alusão ao evangelho de Lucas: “Aquele que quiser salvar a sua vida vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará” (Lc 9,24). Nesse primeiro volume, o tema referencial é o de sua busca de Deus, com um vivo influxo de João da Cruz. Relata as experiências que antecederam sua conversão, o momento crucial de seu encontro com Deus, sua presença na Trapa, o contato e influxo de Thomas Merton e a sequência de sua formação sacerdotal em Cuernava (México). No segundo volume, Las ínsulas extrañas (2002), aborda os anos de sua presença no Seminário de Cristo Sacerdote (Colômbia), sua ordenação sacerdotal e a rica experiência contemplativa em Solentiname, na Nicarágua. Aborda-se, ao final, o processo de ampliação da consciência crítica vivido na comunidade e os passos de comprometimento do grupo com a revolução sandinista. No último volume, La revolución perdida (2004), o tema central da abordagem é o processo que levou à vitória da revolução nicaraguense, em 1979. Um processo que teve momentos difíceis, como a destruição da comunidade de Solentiname pelas forças de Somoza, mas que acabou vitorioso. Uma parte importante da obra, que trata do triunfo revolucionário como “triunfo da poesia”, acompanha a presença e os feitos de Cardenal no ministério da cultura. Na conclusão, a descrição da derrota da revolução sandinista, para além das predições, e a vitória de Violeta Chamorro nas urnas (1990). Para Cardenal, foi o “maior pesadelo”, a noite “mais obscura” de sua vida. E conclui dizendo de forma otimista que toda revolução traduz uma aproximação do Reino dos Céus, mesmo quando é uma “revolução perdida”. Outras revoluções virão, sentencia: “Peçamos a Deus que seja feita sua revolução na terra como no céu”[73].

            Dentre suas últimas obras encontram-se Versos do pluriverso (2005) e Este mundo y otro (2011). A primera tem uma proximidade temática ao Cântico Cósmico. Como mostra López-Baralt, “narrada sua vida, morto seu mestre e amigo Thomas Merton, fracassada a revolução, impossibilitado ao amor humano, Ernesto Cardenal desvia sua mirada deste mundo cheio de decepções para o firmamento estrelado.” Dedica-se então a uma nova “meditação cosmológica”, buscando com o instrumental da astrofísica moderna refletir sobre o sentido do universo[74]. A segunda, apresenta textos de diferentes temas e épocas, tendo sempre como referência o eixo central da cosmologia[75]. O autor busca acentuar o enigma de um outro mundo que habita o nosso mundo e a força misteriosa que conecta cada indivíduo com o todo. Os humanos não são senão “pó de estrelas” que habitam um universo em expansão cósmica, cuja base está erguida sobre um “nada fecundo”, um vazio pleno. E o olhar religioso é capaz de desocultar nas cores do universo a presença de uma luz, diferente da ordinária, que abre a visão para uma nova realidade ou perspectiva: de uma luz que revela luz.

2. Traços de sua mística

            Há que sublinhar, em primeiro lugar, o traço da abertura ao todo. A mística de Ernesto Cardenal, como outros já sublinharam, é uma “mística cósmica”, de abertura ao mundo e de sensibilização ao real. Se o sentido etimológico da palavra mística (myein) envolve a ideia de fechar os olhos e a boca, há algo de “anti-místico” no misticismo de Cardenal[76], na medida em que sua perspectiva envolve um olhar profundamente aberto para a realidade, para o cosmos e para o seu tempo. A sua mística é profundamente ativa, compenetrada na história. Vale também insistir que toda a atividade social e política que marcou e vem marcando a trajetória de Cardenal “nasce de uma profunda introspecção espiritual que lhes dá sentido”[77]

            É também uma mística centrada na experiência. Aliás, esse é um traço muito presente entre os místicos das diversas tradições. É na força da experiência, no “livro da experiência” (S.Bernardo), que nasce toda vocação mística. A experiência de Deus está no núcleo da trajetória espiritual de Cardenal. Trata-se do centro nevrálgico do qual arranca sua dinâmica vital. Antes de qualquer movimento realizado pelo místico nicaraguense, estava ali o Mistério, convocando-o à intimidade: “A água grita ao sedento que a beba”[78]. Ele e Deus vivem a dinâmica de uma proximidade que é única e indissociável, ineludível e incancelável[79]. Assim como na imagem dos dois esquirines expressa no penúltimo epigrama amoroso, já citado, vale registrar também o poema das duas pombinhas de San Nicolás, presente na cantiga 42 do Cântico Cósmico: 

                                    Somos como essas duas pombinhas de San Nicolás
                                    que quando uma corre
                                                      a outra vai atrás
                                    e quando está e a que foge
                                                      aquela a segue
                                    mas uma não se afasta da outra
                                                      sempre estão em parelha.
                                    Quando Tu de mim te vais
                                                      eu sigo atrás de ti
                                    e quando sou em quem me vou
                                    tu vais atrás.
                                    Somos como essas duas pombinhas
                                                                                          De San Nicolás[80]

                  É tal a intimidade entre esses dois amantes que a única linguagem capaz de resgatar o seu significado mais profundo é aquela erótica, e que está tão presente na poética de Cardenal. Uma linguagem que escandaliza alguns, sobretudo os que não participam da intimidade da experiência, e não alcançam a poética dos amantes: “Y son cosas que los que se aman se dicen en la cama”[81]. Há que lembrar aqui a presença marcante do Cântico dos Cânticos tanto na sua prosa como em sua poesia. E as imagens encontradas são muito bonitas:

                        Fecho os olhos
                                    e chegas mais perto
                                    na noite do nada,
                                    como conheço bem o teu sabor
                                    e tu o meu,
                                    amado e amada, suspiros
                                    trêmulos com os da beira do rio,
                                    carícia calada
                                    na noite escura do nada[82].

                  Toda a paisagem vem poetizada na aclimatação dos versos do clássico epitalâmio hebraico, Cântico dos Cânticos, para o seu cenário natal, a bela Nicarágua:

- Amado:
                                    Vamos nos abraçar debaixo dos ramos
                                    daquela árvore indiana chamada pandano.
                                                      Voltaremos a comer maçã rosa.
                                    Nós dois debaixo do pandano.
                                    Ali a flor oyién floresce escondida
                                    e se ouve o canto da ave kagl e da ave waugle
                                    que sempre cantam aos casais (...).

                        - Amada: teu corpo de mogno escuro torneado e polido,
                                    tua língua como a flor de flamboiã.
                                    Teus dentes uma fileira de garças na ribeira de Ulalali.
                                    Teus peitos são da cor da nêspera
                                    e seu sabor de níspero leitoso.
                                    Que belo o colar de begônias rosadas em teu pescoço.
                                    Entre os saúcos amarelos te amarei (...).

                                    Amada:
                                    Já estão floridos os aromos alaranjados como chamas,
                                    as frutas-pão estão maduras,
                                    as oropêndolas estão gritando nos mamoeiros.
                                    Os icacos das ilhas já estão rosados.
                                    Os macacos estão guinchando nas árvores de mogno
                                    e o tucano canta entre os abacates.
                                                      Vêm à aldeia.
- Em minha cama de folhas de coqueiro
                                    meu amado é como o negro peixe-ura
                                    tatuado como o peixe negro de Ifaluk.
                                    Como o escuro peixe-ura
                                    ele veio de uma ilha distante (...)[83].

                  O que une Amado e amante é algo difícil de expressar em palavras, como indica Cardenal: “Eu tive uma coisa com ele e não é um conceito”[84]. Ao encontrar o Amante, que tanto procurou no universo, a alegria é profunda e, ao mesmo tempo, muito cotidiana:

                        Que um dia tu e eu nos acariciemos
                                    Como o fazem com olhos cerrados gemendo os amantes,
                                    num lugar infinito e numa data eterna
                                    mas tão real como dizer esta noite às 8[85].

                  O processo que leva à intimidade exige tempo. Há que tecer com paciência a dinâmica desse vínculo que descentra o sujeito de si e o faz perceber que no núcleo mesmo de sua vida, não é mais ele que vigora, mas um Outro. Mesmo quando Cardenal viveu irrupção daquela Presença avassaladora, em junho de 1956, reconhece que ainda não estava “enamorado”. O processo é mais sutil, delicado e exige tempo. Mas reconhece em dois trechos de seu poema que é bonito quando o outro é capaz de expressar com sentido o nome de seu amado:

                        Me eriza pensar
                                    cómo será que dices
                                    cuando dices mi nombre[86].

                        Estás más cerca de mí que yo mismo.
                                    Por eso pues pareces tan lejos.
                                                      Imagino que me tendrás mucha lástima.
                                    Como será aquel día cuando dirás Ernesto[87].

                  O itinerário que leva ao encontro com o Amado, como expresso na poesia de Cardenal, não segue o roteiro previsto presente na dinâmica tradicional: via purgativa, iluminativa e unitiva. O que preside é uma lógica bem diferente, que não dá para aprisionar em esquemas, e Cardenal não está nada interessado neles:

                              ´Oración de quietude`, después de ´union`...
                                    Santa Teresa tiene el Vademécum.
                                    Rompé conmigo tus esquemas
                                    Aunque tengamos una relación clandestina, ilícita[88].

            Para Cardenal, o que conta mesmo é o desfrute dessa beleza e desse amor que tomou conta de sua vida, que produziu tal alegria na alma que tudo o mais se desvanece, e luta com todas as suas forças para sorver novamente ao menos “uma gota dessa presença”:

                        ´No entende como entiende` disse Santa Teresa
                                    si es oración o no es oración qué importa.
                                    Simplesmente mi alma está acostada boca arriba
                                    Esperando que te eches sobre mí[89].

                  Outro traço que transparece na mística de Cardenal é o despojamento para a acolhida do Mistério. A experiência mística, como mostrou com acerto Michel de Certeau, envolve sempre a narração de uma perda, de uma “ausência que multiplica a produção do desejo”[90]. No itinerário espiritual de Cardenal essa perda foi dolorosa, envolvendo bonitas histórias humanas de amor que se romperam para abrir lugar a uma experiência distinta. E Cardenal lamenta com Deus essa perda:                       

                                    Me quitaste todo,
                                    Dáteme todo pues[91]

            A passagem para esse “amor transcendido” não foi nada fácil para Cardenal. Passar de um amor sensível, pontuado pelo vigor e força dos sentidos, para um “puro amor”, “sem lábios” e “peitos para tocar”, como ele mesmo sublinha, exigia uma maturidade espiritual singular[92]. Em momento algum ele descaracteriza a riqueza que envolve o amor humano, expressão viva do reflexo de Deus. Mas sinaliza que esse amor traduz ainda um “reflexo fragmentado” dessa beleza maior e totalizante. O amor humano é visto, sim, como ponte para um amor maior. Animado com um “coração enamorado” – sublinha ele - o ser humano tem mais condições de viver a experiência amorosa transcendida[93]. Num poema enigmático de Cardenal ele diz:

El mar, la rosa, la mujer
                                    toda cosa nos habla de Dios.
                                    Pero la mujer con bikini en el mar
                                    también nos dice que nos es Dios.
                                    Todo ser es transparente, pero
                                    la transparencia no es otra cosa
                                    sino un no ser para que passe la luz[94].

                  Em rica interpretação dessa difícil passagem de Cardenal, Arianna Fabbri aponta uma pista que é decisiva. Indica como no poema não se dá uma negação ou recusa da materialidade, vista sempre por Cardenal – bom teilhardiano – como santa e positiva. O problema está no risco de um ensimesmamento na matéria, quando ela ganha uma tal proporção que passa a ocupar todo o espaço com si mesma, impedindo a percepção daquilo  que nela transparece. A reificação da matéria torna-se, na verdade, um sério obstáculo para a percepção da luz que a invade e habita, da luz que é a manifestação divina. A transparência implica em avançar para além da materialidade e ver ali a presença da luz[95].

            E aqui se toca dum dos pontos nucleares da compreensão da experiência mística de Cardenal. Sua experiência de Deus implica o mergulho no vazio, mas de um vazio pleno de sentido. A beleza visível é sempre uma “pauta” de acesso ao Mistério maior, que é sem atributos. E essa beleza vale para as muchachas, mas também para os vales, oceanos, mariposas etc. Deus envolve tudo isso, mas os ultrapassa infinitamente. Ver a Deus, como mostra Michel de Certeau, “é em definitivo, não ver nada (nulla), é não perceber coisa alguma particular, é participar de uma visibilidade universal que não comporta mais o fracionamento de cenas singulares, múltiplas, fragmentárias e móveis que compõem as nossas percepções”[96].

            Em seu Cântico Cósmico, na cantiga 42, Cardenal visualiza essa pista, ao indicar o caminho do “Grande Nada”, em profunda sintonia com a mística de Mestre Eckhart. Mostra como o maior empecilho para o encontro amoroso é o apego do eu: “Entre Tu e eu há um eu sou que me atormenta”. Mas superado esse obstáculo, abre-se o caminho de um encontro essencial: “Amada na amada grande nada transformada!”. Lança o desafio de abismar-se nesse Nada, num desnudamento que envolve Amado e amante. E assinala:

                        Algo dentro de mim, não em meu corpo, mais dentro
                        e abraçado, abraça e é abraçado,
                        unidos havendo de algum modo dois em um, dois um,
                        doçura com doçura, numa só doçura,
                        gozo de outro gozo, os dois gozos um
                        sem que nada se sinta sensivelmente conste:
                        é como que abracei a noite
                                    negra e vazia
                                               e estou vazio de tudo
                        e nada quero
                        é como se me houvesse penetrado
                                                                        o Nada[97] .


(Publicado na Revista Eclesiástica Brasileira, v. 73, n. 290, abril 2013, p. 381-408)

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[1] Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Pesquisador do CNPQ e professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora – MG.
[2] Thomas MERTON & Ernesto CARDENAL. Correspondencia (1959-1968). Madrid: Trotta, 2003, p. 164 (carta de 18/01/1966).
[3] Lúce LÓPEZ-BARALT. El cántico espiritual de Ernesto Cardenal. Hacia la fundación de la literatura mística hispano-americana. In: ____. & Lorenzo PIERA (Orgs). El sol a medianoche. La experiencia mística: tradición y actualidad. Madrid: Trotta, 1996, p. 25-26; Ernesto CARDENAL. Telescopio en la noche oscura. Madrid: Trotta, 1993, p. 11-12 (prólogo de Luce López-Baralt).
[4] Ariana FABBRI. “E son cosas que los que se aman se dicen en la cama”. La poesia mística de Ernesto Cardenal. Tesi dottorale. Dipartimento di Lingue e Letteratura Straniere Moderne. Università di Bologna, 2007; Sylma García GONZÁLEZ. “Yo tuve una cosa con él y no es un concepto”. Originalidad y modernidade en la literatura mística de Ernesto Cardenal. Madrid/Frankfurt am Main: Iberoamericana/Vervuert, 2011; Luce LÓPEZ-BARALT. El cántico místico de Ernesto Cardenal. Madrid: Trotta, 2012.
[5] Sylma González chama a atenção para o impacto exercido por Whitman em Cardenal, de modo particular a força simbólica das imagens eróticas de sua poesia mística. Os dois comungam de uma mesma “paixão erótica”, que desborda explicitamente no repertório poético de ambos: Sylma García GONZÁLEZ. “Yo tuve una cosa con él y no es un concepto”, p. 82 e127.
[6] Sylma García GONZÁLEZ. “Yo tuve una cosa con él y no es un concepto”, p. 11,  36 e 59; Ariana FABBRI. “E son cosas que los que se aman se dicen en la cama”, p. 7-8.
[7] Mario BENEDETTI. Ernesto Cardenal: evangelio y revolución. Apud Sylma García GONZÁLEZ. “Yo tuve una cosa con él y no es un concepto”, p. 38.
[8] Apud Ariana FABBRI. “E son cosas que los que se aman se dicen en la cama”, p. 6-7.
[9] Como sublinha Ariana Fabbri, o exteriorismo – enquanto marcado pelo influxo poundiano, opta pela “essencialidade das palavras”, bem como pela inserção de traços não propriamente literários na composição poética: Ariana FABBRI. “E son cosas que los que se aman se dicen en la cama”, p. 9.
[10] Ernesto CARDENAL. Vida perdida. Memorias 1. Madrid: Trotta, 2005, p. 41-42.
[11] Ibidem, p.21.
[12] Ibidem, p. 49.
[13] Lúce LÓPEZ-BARALT. El cántico místico de Ernesto Cardenal, p. 17. Esse livro de poemas vai ser objeto do estudo de Luz Marina Acosta: La obra primigênia de Ernesto Cardenal. Managua, Anama, 2000.
[14] Apud Lúce LÓPEZ-BARALT. El cántico místico de Ernesto Cardenal, p. 17-18. Nesse artigo, os poemas de Cardenal que não foram ainda traduzidos em português, como nos Epigramas e no Telescopio en la noche oscura, estarão sempre registrados na língua original. Os outros poemas ou passagens em prosa, já traduzidos em português, estarão versadas na língua portuguesa. Esse foi o critério adotado aqui.
[15] Ernesto CARDENAL. Vida perdida. Memorias 1, p. 385-386.
[16] Ibidem, p. 36.
[17] Ernesto CARDENAL. Epigramas. Madrid: Trotta, 2001, p. 13; Ernesto CARDENAL. Vida perdida. Memorias 1, p. 27-31.
[18] Ernesto CARDENAL. Epigramas, p. 32; Ernesto CARDENAL. Vida perdida. Memorias 1, p. 32-36.
[19] Tema que será objeto do próximo tópico.
[20] Ernesto CARDENAL. Vida perdida. Memorias 1, p. 67-75.
[21] Ernesto CARDENAL. Telescopio en la noche oscura. Madrid: Trotta, 1993 , p. 50.
[22] Ernesto CARDENAL. Vida perdida. Memorias 1, p. 60-61.
[23] São como pequenas corujas.
[24] Ernesto CARDENAL. Epigramas, p.58. Ver também: Ernesto CARDENAL. Vida perdida. Memorias 1, p.74. Como assinala López-Baralt, o epigrama sobre os esquirines aponta para um “Amado muito elusivo, como aquele cervo do ´Cântico Espiritual` pelo qual clamava a ´branca palomita` que representava a desejosa amada”: Luce LÓPEZ-BARALT. El cántico místico de Ernesto Cardenal, p.
[25] Luce LÓPEZ-BARALT. El cántico místico de Ernesto Cardenal, p. 34.
[26] Ernesto CARDENAL. Vida perdida. Memorias 1, p. 90. A experiência mística, como indica Michel de Certeau envolve um “golpe”, sua ação é “devastadora” para o sujeito. Ela cava uma tal situação no sujeito, que ele não pode mais prescindir da Presença que ali se instalou. Só num segundo momento, depois do aniquilamento, é que se dá o processo de reconstrução e restabelecimento do sujeito, mas agora sob novas bases: Michel DE CERTEAU. Sulla mística. Brescia: Morcelliana, 2010, p. 59.
[27] Ernesto CARDENAL. Vida perdida. Memorias 1, p. 75.
[28] Ibidem, p. 75-76.
[29] A experiência de encontro com o Mistério é algo muito difícil de expressar. E o místico tem dificuldade de falar sobre isso. O que muitas vezes ocorre, como sinaliza Michel de Certeau, é uma “descrição que percorre ´sensações`”, na tentativa de ao menos balbuciar algo da verdade que a experiência provocou no sujeito e que pode ser traduzido em linguagem: Michel DE CERTEAU. Sulla mística, p. 55.
[30] Ibidem, p. 77. Relatou também para Thomas Merton, já na Trapa, o que lhe havia ocorrido em junho de 1956, e Merton ficou impressionado com a descrição. No prefácio que Merton escreveu para outra obra de Cardenal, Gethsemani, Ky, ele assinala que Cardenal se resguardava de divulgar os “aspectos mais íntimos e pessoais de sua experiência contemplativa”. Cf. Ernesto CARDENAL. Vida perdida. Memorias 1, p. 78. Em passagem de seu Cântico Cósmico, na cantiga 2, dirá Cardenal: “Meu segredo é só para o meu amado”: Ernesto CARDENAL. Cântico Cómico. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 22. Ver ainda:  Luce LÓPEZ-BARALT. El cántico místico de Ernesto Cardenal, p. 99-100; Ariana FABBRI. “E son cosas que los que se aman se dicen en la cama”, p. 48.
[31] Ernesto CARDENAL. Vida no amor. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 63-64.
[32] Ernesto CARDENAL. Telescopio en la noche oscura, p. 67-68. Assinala ainda, em poema na mesma obra que naquele meio dia de junho de 1956, quando se viu penetrado por Deus, não estava ainda enamorado: ibidem, p. 54.
[33] Ernesto CARDENAL. Vida perdida. Memorias 1, p. 79.
[34] Como sinaliza Santiago Daydí-Tolson na introdução ao livro que resgata a correspondência entre Merton e Cardenal, o influxo de Merton sobre Cardenal remontava aos tempos de presença de Cardenal na Universidade de Columbia, quando ali descobre a poesia de Merton. Sublinha algumas coincidências que uniam os dois: ambos tinhas estudado em Columbia, partilhavam o mesmo desejo de experimentar a vida até o fundo e eram poetas e espíritos religiosos em busca permanente: Thomas MERTON & Ernesto CARDENAL. Correspondencia (1959-1968). Madrid: Trotta, 2003, p. 13-14.
[35] Ernesto CARDENAL. Vida perdida. Memorias 1, p. 93.
[36] Em certa ocasião, Merton chegou a comparar o mosteiro com um circo, e a vida no mosteiro como a de um asno numa arena, repetindo sempre a mesma volta: Ernesto CARDENAL. Las ínsulas extrañas. Memorias 2.
[37] Ernesto CARDENAL. Vida perdida. Memorias 1, p. 142-143.
[38] Ibidem, p. 141. Merton chegou a aventar a possibilidade de uma fundação na Nicarágua, ou também na Venezuela ou Colômbia: cf. Ibidem, p. 138.
[39] CARDENAL. Vida perdida. Memorias 1, p. 171.
[40] Maria Enrica CASTIGLIONI. “¿Para qué metáforas?” La poetica di Ernesto Cardenal. Firenze, La Nuova Italia, 1990, p. 67 (Pubblicazioni della Facoltà di Lettere e Filosofia dell´Università degli Studi di Milando, 138).
[41] CARDENAL. Vida perdida. Memorias 1, p. 144 e 204.
[42] Santiago DAYDÍ-TOLSON. Introdução. In: Thomas MERTON & Ernesto CARDENAL. Correspondencia (1959-1968), p. 24. Cardenal sublinha em suas memórias que foi sob influxo de Merton que se abriu para “a sabedoria, a espiritualidade e o misticismo dos índios da América – da Américas”: Ernesto CARDENAL. Las ínsulas extrañas. Memorias 2. Madrid: Trotta, 2002. E sobre o tema também escreveu um livro de poemas: Ernesto CARDENAL. Homenaje a los índios americanos. Buenos Aires: Carlo Lohlé, 1972.
[43] Ariana FABBRI. “E son cosas que los que se aman se dicen en la cama”, p. 18.
[44] Trata-se, como bem mostrou Sylma González, do “primeiro livro de tema puramente místico” de Cardenal: Sylma García GONZÁLEZ. “Yo tuve una cosa con él y no es un concepto”, p. 54.
[45] Thomas MERTON & Ernesto CARDENAL. Correspondencia (1959-1968), p. 53.
[46] Ariana FABBRI. “E son cosas que los que se aman se dicen en la cama”, p. 49.
[47] Ernesto CARDENAL. Las ínsulas extrañas. Memorias 2, p. 61.
[48] Ernesto CARDENAL. Las ínsulas extrañas. Memorias 2, p. 29.
[49] Ernesto CARDENAL. Telescopio en la noche oscura, p. 56.
[50] Mas o amor foi essa ponte. Exclama Cardenal: “Hiciste que las amara tanto, para que después, con este corazón enamorado, te amara más a Vos. Vos que tanto tempo has soñado conmigo”: Ernesto CARDENAL. Las ínsulas extrañas. Memorias 2, p. 31.
[51] Ernesto CARDENAL. Las ínsulas extrañas. Memorias 2, p. 30-32. São páginas de extrema beleza e intensa profundidade espiritual.
[52] Ibidem, p. 32.
[53] Thomas MERTON & Ernesto CARDENAL. Correspondencia, p. 69-70.
[54] O encontro entre os dois se dá no eremitério de Merton e seu relato encontra-se no segundo volume de memórias de Cardenal: Las ínsulas extrañas. Memorias 2, p. 80-84, e na sequência, a carta escrita por Merton e endereçada ao papa Paulo VI, solicitando autorização para dar sequência ao seu trabalho contemplativo na Nicarágua. Essa autorização não lhe foi concedida.
[55] O arquipélago de Solentiname compunha-se de trinta e oito ilhas, algumas bem pequenas. Só as maiores estavam habitadas.
[56] A primeira tradução espanhola saiu publicada em 1983, em quatro volumes, na Nicaragua. E mais recentemente, uma nova edição espanhola, publicada pela editora Trotta, em 2006.
[57] Ernesto CARDENAL. El evangelio en Solentiname. Madrid: Trotta, 2006, p. 12. Ao comentar sobre este livro, Cardenal relata que os diversos comentários expressam a peculiaridade de cada um dos participantes. Alguns falavam com mais frequência, como Marcelino (bem místico), e seus comentários eram, segundo Cardenal, os mais ricos: Cardenal: Las ínsulas extrañas. Memorias 2, p. 105.
[58] Ernesto CARDENAL. Las ínsulas extrañas. Memorias 2, p. 435.
[59] Ernesto CARDENAL. La santidade de la revolucion. Salamanca: Sigueme, 1976, p. 20.
[60] Ernesto CARDENAL. Las ínsulas extrañas. Memorias 2, p. 259.
[61] Ernesto CARDENAL. La santidade de la revolucion, p. 27. Sua viagem a Cuba será relatada no livro: En Cuba, publicado em 1972. Dirá em entrevista concedida a Teófilo Cabestrero que “não foi levado ao marxismo pela leitura de Marx mas pela leitura do Evangelho”: Teófilo CABESTRERO. Ministros de Deus, ministros do povo. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 38.
[62] Veja a respeito: Ernesto CARDENAL. La  revolución perdida. Memorias 3, p. 29s.
[63] Essas regras se tornaram bem conhecidas. Cardenal relata em suas memórias que um periodista do The Tablet, de Londres, ficou assombrado com a forma simples e sensível com que Cardenal traduziu complexas normas poéticas para os operários e camponeses da Nicarágua:  Ernesto CARDENAL. La  revolución perdida. Memorias 3. Madrid: Trotta, 2004, p. 354.
[64] Ernesto CARDENAL. La  revolución perdida. Memorias 3, p. 353s.
[65] Teófilo CABESTRERO. Ministros de Deus, ministros do povo, p. 24-25.
[66] Ibidem, p. 25 e também: Maria Enrica CASTIGLIONI. “¿Para qué metáforas?” La poetica di Ernesto Cardenal, p. 65-66.
[67] Sobre as tensões envolvendo a visita do papa João Paulo II à Nicaragua cf. Ernesto CARDENAL. La  revolución perdida. Memorias 3, p. 301s. O episódio específico da advertência feita pelo papa a Cardenal, rogando-lhe “regularizar a sua situação” está na p. 302.
[68] Isso na primeira edição publicada em Manágua (1989). A segunda edição, publicada em 1992 pela editora Trotta (Madrid) soma 410 páginas. O livro ganhou também uma edição brasileira em 1996, pela Hucitec, com tradução do poeta Thiago de Mello, que aliás tinha sido também o tradutor de Vida no Amor (Civilização Brasileira, 1979).
[69] O tema da astrofísica aparece como nuclear nas cantigas de Cardenal. Com um impressionante aparato multidisciplinar, que vai da teoria da relatividade à mecânica quântica, busca estabelecer singulares relações entre ciência e misticismo: Lúce LÓPEZ-BARALT. El cántico místico de Ernesto Cardenal, p. 66.
[70] Jürgen MOLTMANN. Dio nel progetto del mondo moderno. Brescia: Queriniana, 1999, p. 25 (e também p. 64).
[71] Sylma García GONZÁLEZ. “Yo tuve una cosa con él y no es un concepto”, p. 109.
[72] Ernesto CARDENAL. Telescopio en la noche oscura, p. 55.
[73] Ernesto CARDENAL. La  revolución perdida, p. 473.
[74] Lúce LÓPEZ-BARALT. El cántico místico de Ernesto Cardenal, p. 107. Como indica Sylma González, Cardenal busca com essa obra “expressar poeticamente o cosmos”, e o plural do título – pluriversos – quer expressar o traço multiforme e infinito desse cosmos em seu mistério: Sylma García GONZÁLEZ. “Yo tuve una cosa con él y no es un concepto”, p. 138.
[75] Ernesto CARDENAL. Este mundo y otro. Madrid: Trotta, 2011. Além de textos de índole mais cosmológica, há neste livro outros textos que tratam de temas como: a reinterpretação da filosofia grega, Heráclito luminoso e Lao Tzé, profeta de Cristo.
[76] É o que sugere Arianna Fabbri em sua tese doutoral: “E son cosas que los que se aman se dicen en la cama”, p. 105 (e também p. 19).
[77] Lúce LÓPEZ-BARALT. El cántico místico de Ernesto Cardenal, p. 16.
[78] Ernesto CARDENAL. Cântico Cósmico, p. 392.
[79] Para usar duas expressões queridas a Michel de Certeau. Dirá num dos versos de seu Telescopio: “Hay infinitos Amados, uno para cada uno. / Yo lo sé. Yo tengo el mío. / Yo lo conosco, y él infinitamente / me conoce”: Telescopio en la noche oscura, p. 35.
[80] Ernesto CARDENAL. Cântico Cósmico, p. 391. Muito rica essa imagem das “palomitas de San Nicolás” para expressar a intimidade da união mística de Cardenal com Deus. Linda e muito musical a versão original em espanhol: Ernesto CARDENAL. Cántico Cósmico. 3 ed. Madrid: Trotta, 1999, p. 391.
[81] Ernesto CARDENAL. Telescopio en la noche oscura, p. 31.
[82] Ernesto CARDENAL. Cântico Cósmico, p. 390.
[83] Ibidem, p. 366-367.
[84] Ibidem, p. 385.
[85] Ibidem, p. 389.
[86] Ernesto CARDENAL. Telescopio en la noche oscura, p. 59
[87] Ibidem, p. 55.
[88] Ibidem, p. 52.
[89] Ibidem, p. 49.
[90] Michel DE CERTEAU. Sulla mística, p. 155. Ver também Arianna FABBRI. “E son cosas que los que se aman se dicen en la cama”, p, 200.
[91] Ernesto CARDENAL. Telescopio en la noche oscura, p. 36. Em diversos momentos, em sua prosa e poesia, Cardenal lamenta essa perda, como na clássica passagem da “aparição de Hamburgo”, quando vislumbra numa jovem que assistia a seu recital de poesia, a mesma jovem que trinta anos antes tinha sido objeto de seu amor: “Quem me diria que tu estarias outra vez, a que Ele, com maiúscula, arrancou de meus braços, a que eu larguei para abraçar o Invisível (...)”:Ernesto CARDENAL. Cântico Cósmico, p. 297.
[92] E dribla essa dor recorrendo muitas vezes ao humor, típico de sua poesia: “En la hamaca sentí que me decías / no te escogí porque fueras santo / o con madera de futuro santo / santos he tenido demasiados / te escogí para variar”: Ernesto CARDENAL. Telescopio en la noche oscura, p. 47. Para esse tema do humor na poesia de Cardenal ver: Sylma García GONZÁLEZ. “Yo tuve una cosa con él y no es un concepto”, p. 134-135.
[93] Ernesto CARDENAL. Las ínsulas extrañas. Memorias 2, p. 31. Cardenal retoma aqui uma ideia já apontada em seu livro Vida no amor: das paixões e afetos como “combustível do amor a Deus”, que inflamam no sujeito o amor a Deus. Id. Vida no amor. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 75.
[94] Ernesto CARDENAL. Telescopio en la noche oscura, p. 43.
[95] Ariana FABBRI. “E son cosas que los que se aman se dicen en la cama”, p. 228-229.
[96] Michel DE CERTEAU. Sulla mística, p. 185.
[97] Ernesto CARDENAL. Cântico Cósmico, p. 386.