terça-feira, 13 de abril de 2010

Teologia da libertação: eixos e desafios

TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO: EIXOS E DESAFIOS

 

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF

 

Introdução

 

A questão da teologia da libertação (TdL) volta hoje à tona num momento particular da conjuntura eclesiástica, marcado pelo início do pontificado de Bento XVI, nome que o cardeal Joseph Ratzinger escolheu para dar continuidade ao caminho trilhado por João Paulo II. Foi durante o período em que Ratzinger atuou como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Santo Ofício) que a teologia da libertação viveu inúmeras dificuldades. As resistências mais ativas ocorrerão nos anos 80. É nesta década que será publicada a primeira instrução da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) sobre a teologia da libertação (1984) e que alguns dos mais eminentes teólogos da libertação, como Leonardo Boff e Gustavo Gutiérrez sofrerão punições mais severas ou advertências a respeito de seu trabalho teológico. As críticas mais contundentes à reflexão teológica latino-americana, como serão expressas pelo mencionado documento da CDF, referem-se sobretudo ao que se denominou acento imanentista e unilateral sobre a ação libertadora e a utilização pouco crítica do instrumental de análise recolhido das diversas correntes do pensamento marxista.[1] Mas preocupava igualmente a CDF as interpretações teológicas e a nova hermenêutica que acompanhavam a teologia da libertação: a unidade da história, a compreensão do Reino de Deus, a politização da fé, a ênfase na noção de igreja do povo (em tensão com a igreja hierárquica), a releitura política das Escrituras, além de outras questões.

 

A avaliação da teologia da libertação em âmbito mundial não foi, felizmente, dominada pela visão sombria da CDF. Foi a teologia da libertação que favoreceu a percepção, a nível mais amplo, de um novo jeito de ser igreja, marcado pela participação ativa dos pobres e dos leigos, que mostrou de forma viva a íntima vinculação entre libertação e salvação e que colocou no centro da história o projeto de afirmação do reino de Deus. Importantes teólogos do primeiro mundo captaram o significado profético da nova experiência teológica da América Latina, sempre acompanhada pela nova fermentação eclesial.  Na bela imagem cunhada por Ernesto Balducci, em congresso sobre a teologia da libertação em Florença (1984), as caravelas que outrora partiram para as Índias ocidentais  retornam agora ao primeiro mundo com os novos anunciadores do Evangelho. Os teólogos das Índias ocidentais trazem, a seu ver, um novo perfil de teologia:

 

“Os teólogos daqueles países vivem mais no meio do povo que nas bibliotecas, devem se esconder da polícia,  conhecem o cárcere e a tortura, e viram com seus próprios olhos o sangue derramado pelo amor dos seres humanos. Seus pensamentos não são pensamentos, mas formulações conceituais de uma multiforme experiência cujo sujeito é o imenso movimento expresso e alimentado pela galáxia das comunidades que se encontram para elaborar os gestos singulares e públicos da esperança. São estas comunidades que cumprem o metabolismo providencial onde o Evangelho dos conquistadores transforma-se no Evangelho dos libertadores. E é seguramente por seu mérito que somos hoje, aqui, homens de esperança”.[2]

 

Para Johann Baptista Metz, as igrejas pobres do terceiro mundo trazem consigo uma enfática provocação e profecia, de importância providencial para os cristãos do primeiro mundo[3]. Para Karl Rahner e Edward Schillebeeckx, a experiência das comunidades eclesiais de base é vista não apenas como necessária para as igrejas cristãs, mas também como motivo de otimismo e esperança[4]. Em editorial publicado em 1974 na revista internacional de teologia, Concilium, o teólogo francês, Claude Geffré, reconheceu a dimensão profética da teologia da libertação, que para ele favoreceu não só uma nova maneira de fazer teologia, mas também uma nova interpretação da salvação cristã e a recuperação de uma virtualidade esquecida da contemplação cristã, ou seja, sua dimensão bíblica de compromisso[5].

 

 

O objetivo deste artigo é apresentar de forma sintética alguns eixos da teologia da libertação, sobretudo para aqueles que não acompanharam mais de perto a trajetória desta rica experiência teológica. Partindo de um resgate histórico da teologia da libertação, o artigo buscará abordar o método da teologia da libertação, sua contribuição para os movimentos sociais e os novos desafios enfrentados neste início de século XXI.

 

1.    O resgate histórico da teologia da libertação

 

A teologia da libertação nasce no final dos anos 60, como expressão viva de uma experiência de fé libertadora. Ela não traduz uma reflexão deslocada, mas surge sempre num segundo momento, enquanto expressão articulada de um processo histórico  marcado pela pobreza, esperança e busca libertadora. Não há como compreender a TdL fora do “humus eclesial e social” que marcou o continente latino-americano  a partir do final dos anos 50. Ela não é só reflexo de uma fé libertadora, mas exercício sistematizado de reflexão e aprofundamente desta fé.

 

A TdL nasce num momento histórico bem favorável, marcado pela irradiação de uma consciência libertadora muito ampla. Eram tempos de descoberta real e exigente do mundo do outro, sobretudo dos mais pobres e marginalizados. Acompanhando as experiências históricas inovadoras estava uma reflexão teórica singular, que apontava com vigor os limites do desenvolvimentismo que marcou o clima de otimismo da década de 50. Com o aporte da teoria da dependência, defendida por alguns cientistas sociais latino-americanos, surge um novo patamar de consciência, que favorece ver a situação de subdesenvolvimento  como um “subproduto  histórico do desenvolvimento de outros países”[6]. Os teólogos da libertação percebem na ocasião, com nitidez, que o desnível entre os países desenvolvidos  e subdesenvolvidos  vem radicalizado pelas relações de dependência  e que só uma “análise de classes” poderia captar a dinâmica de oposição entre os povos oprimidos e dominantes. Daí a aposta feita no movimento de libertação, entendido como processo de transformação profunda da realidade. Para os teólogos latino-americanos, a libertação era o instrumento necessário para a ruptura das condições sociais que marginalizavam e oprimiam os segmentos pobres do continente.

 

“A busca da libertação do subcontinente vai mais longe que a superação da dependência econômica, social e política. Consiste, mais profundamente, em ver o devir da humanidade como um processo de emancipação do homem ao longo da história, orientado para uma sociedade qualitativamente  diferente, na qual se sinta o homem livre de toda servidão, seja o artífice de seu próprio destino”.[7]

 

A reflexão da TdL estará intimamente articulada com a afirmação e crescimento dos movimentos sociais e populares de libertação dos anos 60, de majoritária inspiração socialista.  A título de exemplificação podem ser lembradas as fecundas experiências  relacionadas ao trabalho de educação popular (vinculadas  a Paulo Freire), a experiência das CEBs (comunidades eclesiais de base), do MEB (Movimento de Educação de Base) e da Ação Católica especializada, em particular a JUC (Juventude Universitária Católica), JEC (Juventude Estudantil Católica) e JOC (Juventude Operária Católica). [8]

 

Igualmente favorável era o contexto eclesial que favoreceu o nascimento da teologia da libertação. Ela nasce no solo fertilizado pelo Concílio Vaticano II (1962-1965)  e por sua dinâmica de abertura às diversas iniciativas  eclesiais inovadoras.  Foi enorme o impacto do Vaticano II na América Latina. Provocou uma grande ruptura eclesial, não só com o questionamento do tradicional  imobilismo eclesial imperante, mas sobretudo na afirmação de um movimento acelerado de transformação na vida da igreja,  despertando energias e criando um espírito novo de coragem e iniciativa pastoral. Para a questão da abertura ao social foi de fundamental importância o aporte das encíclicas sociais de João XXIII, em particular a Mater et magistra (1961) e a Pacem in terris (1963). A retomada do espírito conciliar e o seu enriquecimento com a perspectiva do pobre ganhará conteúdo na II Conferência Geral do Espiscopado Latino-Americano, em Medellín (1968). Foi o passo decisivo de suporte eclesial à teologia da libertação. Há que acrescentar igualmente o documento elaborado pelos bispos no Sínodo de 1971, dedicado à justiça no mundo, que vai inserir o compromisso libertador como dimensão essencial da missão evangelizadora da igreja. Serão tempos de primavera para a teologia da libertação. Mas cerca de uma década depois, infelizmente, nuvens sombrias cercearão os caminhos de sua irradiação na América Latina.

 

A igreja latino-americana acolheu com grande sensibilidade o movimento de libertação. Os diversos setores do povo de Deus  inserem-se no compromisso de libertação. Segmentos diversificados de leigos, de várias confissões cristãs, vão partilhar um “ecumenismo de base”, marcado por esforços singulares em favor da construção de uma sociedade mais justa. Este engajamento envolve também grupos de religiosos  e sacerdotes que vão apresentar na ocasião uma das facetas mais dinâmicas da igreja latino-americana. Vale destacar a criação de alguns grupos sacerdotais, entre os quais os “sacerdotes para o terceiro mundo” (Argentina) e o “Movimento sacerdotal ONIS” (Peru). Há que lembrar igualmente a atuação militante de alguns núcleos de bispos  das regiões mais carentes do continente que denunciam energicamente as injustiças e se expressam em favor da libertação.[9] Como assinalou Clodovis Boff, “antes que despontasse a TdL, nos fins dos anos 60, na América Latina já existia toda uma prática libertadora. Antes do teólogo da libertação tínhamos o bispo profético, o leigo empenhado e as comunidades libertadoras. Tudo isto desde os primeiros anos 60. A teologia chegou num segundo momento, como expressão desta prática libertadora da Igreja”.[10]

 

2.    O método da teologia da libertação

 

A discussão sobre o método é essencial para se poder compreender as regras internas da construção da teologia da libertação. Uma das contribuições mais decisivas para a elucidação desta delicada questão veio da reflexão do teólogo Clodovis Boff, em sua tese de doutorado sobre o tema da teologia e prática: teologia do político e suas mediações.[11] Era intenção deste autor aprimorar o rigor metodológico da reflexão teológica latino-americana, que a seu ver carecia de uma instrumentação teórica mais pertinente, ocasionando em casos específicos alguns desvios epistemológicos.

 

Foi no processo de busca de uma “linguagem mais consistente” para a teologia da libertação que nasceu a ídeia iluminadora das “mediações”, que servirá de matriz para o encaminhamento de uma metodologia mais concreta sobre o tema. Para Clodovis Boff, a idéia da “mediação” foi realmente útil e ordenadora para a reflexão, servindo para “situar as várias instâncias que a teologia põe em ação para se produzir (...)”.[12] Em sua visão, três mediações entravam na construção teórica da TdL: a mediação sócio-analítica (MSA), a mediação hermenêutica (MH) e a mediação prática (MP).

 

O recurso às “mediações” servia amplamente ao projeto proposto por Clodovis Boff de clarear o objeto da TdL, o seu modo específico de apropriação teórica e a relação entre teoria e práxis. Mas para tanto, deveria ser superada a visão limitada e estática de teologia, entendida como “depósito” de conhecimentos, em favor de uma visão mais dinâmica, ou seja, de teologia processual, de teologia como prática teórica. Um postulado fundamental regia toda a discussão e mostrava a plausibilidade da extensão do campo teórico da teologia: de que o não teológico pode tornar-se teológico mediante uma operação teológica determinada.[13] Justificava-se, assim, a validade da dinâmica teológica da TdL, que tinha por objeto material uma realidade não-teológica, o Político, mas que mediante um processo teórico específico ganharia uma apropriação teológica.

 

O primeiro passo no processo metodológico da TdL é o VER. Daí a necessidade do recurso à mediação sócio-analítica (MSA), que fornece o conhecimento positivo da realidade social. A teologia, como tal, não está provida dos instrumentos necessários para a captação da realidade, mas deve se colocar “à escuta” das disciplinas  que tratam desta questão. As ciências do social (CdS) entram como matéria prima do processo teológico, a nível de seu objeto material, mas não são elas que fornecem a “pertinência” própria da teologia como tal. Como assinala Clodovis, “o texto da leitura teológica a propósito do Político lhe é preparado e oferecido pelas CdS. A teologia o recebe delas e sobre ele pratica uma leitura correspondente ao seu código próprio, de modo a tirar daí o sentido caracterizadamente teológico”.[14] As ciências do social exercem um estatuto mediacional para a TdL, ajudando a teologia a melhor compreender a realidade sobre a qual teologizará. E é nesta condição de matéria prima que se fez também recurso, na ocasião, ao instrumental marxista. Sua validade não estava no plano do conteúdo interno da fé, sobre o qual não tinha nenhuma autoridade, mas no auxílio da compreensão do quadro social externo. Ele mostrava-se válido somente enquanto método de análise da realidade, ou seja, na medida em que possibilitava o conhecimento do real.[15] Há, porém, critérios bem precisos que ajudam o teólogo a escolher um determinado instrumental de análise. Clodovis Boff chama a atenção para o critério evangélico, que fornece elementos bem concretos para uma demarcação ética concreta, em particular a opção de Jesus pelos pobres, sua permanente atitude crítica diante do status quo e sua mensagem de justiça, solidariedade e fraternidade.[16]  

 

O segundo passo metodológico relaciona-se ao JULGAR. Trata-se do momento propriamente teológico do método da TdL, de constituição de sua formalidade específica. É o momento do recurso à mediação hermenêutica (MH), quando vêm elaborados os critérios teológicos de leitura do texto sócio-analítico.  É aqui que entram os princípios da fé que conformam a pertinência teológica: a escuta da Fé, da Escritura, da Tradição e da Razão Teológica. Trata-se da instância mediante a qual se teologiza, o “à luz da fé” que garante a formalidade teológica. No processo de produção teológica é esta instância que mantém o primado, enquanto trabalha a matéria prima dada com o recurso da formalidade do olhar teológico. É a instância que garante a qualidade da produção teológica. Mas esta instância não pode ser concebida como uma realidade fechada, mas vem marcada por grande dinamicidade. O olhar hermenêutico favorece perceber de forma sempre criativa os recursos da fé, de forma a evitar qualquer interpretação definitiva ou cerrada. Mas é um olhar que respeita profundamente a mundanidade do mundo e a autonomia das realidades terrestres. A experiência da fé não entra para negar a dinâmica específica das práticas sociais: “a fé não é uma paisagem a se ver, mas óculos para ver. Ela não é um mundo, mas um olhar sobre o mundo. Ela não é um livro a se ler, mas uma gramática para ler – e ler todos os livros”.[17]

 

O terceiro passo relaciona-se à mediação prática (MP). É o momento sintonizado com o AGIR. Entra aqui em questão toda a complexa dialética entre teoria e práxis. Trata-se de do delicado momento da tradução em ação concreta do que se viu e julgou anteriormente à luz da fé. O patamar agora não é mais o do sócio-analítico ou teológico, mas essencialmente prático, e a ação tem outras leis e exigências. Neste diferente nível exige-se dos agentes uma especial capacidade de atenção às forças sociais em jogo e uma específica prudência pastoral: saber o que é possível e viável na conjuntura em questão. Neste terceiro momento a TdL recupera o seu “espírito” fundamental, ou seja, a “relação prática com a prática”, a relação com a vida do povo, de solidariedade efetiva com a sua causa na história. A singularidade da prática teológica latino-americana está na operacionalidade de uma fé articulada com a prática agápica, e também na compreensão de que “a Fé se vive hoje na tecitura de coordenadas inéditas, demarcadas por afrontamentos históricos, que se tornam assim o novo lugar de exercício do logos teológico”.[18]

 

3.    A contribuição da teologia da libertação para os movimentos sociais

 

A teologia da libertação nasce intimamente vinculada aos movimentos sociais.  Não há como entender a sua gênese e desenvolvimento deslocada da prática libertadora que marcou a América Latina a partir dos anos 60. A teologia nasce num segundo momento, dando expressão teológica ao grito dos pobres e excluídos. É no bojo de um processo histórico de sofrimento, luta e esperança, ou seja, de “irrupção histórica dos pobres”, que se consegue compreender o significado e alcance da teologia da libertação. Foram os movimentos sociais que forneceram o humus para a TdL, mas esta também, uma vez afirmada, pontuou, evidenciou e aprofundou traços essenciais presentes na vida e afirmação destes movimentos, dentre os quais: o acento no empenho libertador, o resgate da cidadania dos pobres, a abertura à positividade da política e a sinalização de um nova dinâmica pedagógica de respeito ao outro e à sua expressão religiosa.

 

a.    O acento no empenho libertador

 

A questão primeira e prioritária da TdL nunca foi a fixação exclusiva na reflexão teológica teórica, mas o compromisso libertador. A experiência viva e empenhada com os pobres e sua causa marcou desde o início a agenda do teólogo da libertação. A TdL, desde o seu início, concedeu grande importância às mediações históricas, pois para ela não podem existir duas histórias paralelas e indiferentes uma à outra, ou seja, a história profana e a história da salvação. Na perspectiva desta teologia, a libertação cristã acontece de forma concreta em fatos históricos e políticos libertadores, que estão densamente marcados pela misteriosa presença do mistério sempre maior. Como bem acentuou Gustavo Gutiérrez, “não há duas histórias, uma da filiação e outra da fraternidade, uma em que nos fazemos filhos de Deus e outra na qual nos tornamos irmãos entre nós. É isso o que o termo ´libertação` quer destacar”.[19]

 

O empenho libertador ganha viva inserção no processo de construção do Reino de Deus, que na TdL encontra-se intimamente articulado com a história. Enquanto realidade englobante e totalizante, o Reino de Deus diz respeito à libertação de todos os elementos que alienam e oprimem o ser humano. Ele expressa uma nova ordem das coisas, caracterizada pela dinâmica de irmandade, solidariedade e reconciliação. É simultaneamente dom e conquista. Começa a florescer na história na medida em que se dá o empenho na construção de um mundo mais justo e fraterno, sinalizado pelo espírito das bem-aventuranças. O Reino já está presente neste mundo, ainda que não se identifique com ele. O caminho, como mostra Clodovis Boff, é o da “identificação tópica”: o Reino está no mundo, identifica-se no mundo, embora não se identifique com o mundo.[20]

 

Falou-se no início da TdL em “níveis de libertação” profundamente articulados, começando-se pelo plano científico (da ação política transformadora), passando pelo plano utópico (do desdobramento das dimensões do humano), e chegando ao plano da fé (libertação do pecado).  Para Gustavo Gutiérrez, o processo libertador tem seu arranque no esforço de construção de uma sociedade mais justa. Por uma dinâmica de “aproximações” a libertação vai se achegando cada vez mais à alienação fundamental, identificada com o pecado, que é a expressão máxima do egoísmo e da negação do amor.[21] Esta colocação sobre os “níveis da libertação” foi posteriormente questionada por alguns, como teologicamente insatisfatória. Para se evitar o risco de uma abordagem que desse azo a uma justaposição ou um “continuum homogêneo” entre os vários níveis de libertação, preferiu-se falar em mútua implicação ou inclusão dos vários planos.[22]

 

 

 

b.    O resgate da cidadania dos pobres

 

A TdL favoreceu no âmbito teológico o resgate da cidadania dos pobres. Um resgate que acompanhou a dinâmica essencial de incorporação à experiência espiritual do povo pobre, vista como possibilidade de viver na América Latina o seguimento de Jesus. A TdL reconhece com vigor o privilégio evangélico essencial dos pobres. Eles constituem o objeto preferencial do amor de Deus, não por serem moralmente melhores ou mais religiosos, mas por serem pobres. Este dado foi excepcionalmente captado no documento de Puebla:

 

“Só por este motivo, os pobres merecem uma atenção preferencial, seja qual for a situação moral ou pessoal em que se encontrem. Criados à imagem e semelhança de Deus para serem seus filhos, esta imagem jaz obscurecida e também escarnecida.  Por isso Deus toma sua defesa e os ama”.[23]

 

Na verdade, a opção pelos pobres, tão evidenciada pela TdL, tem seu fundamento teológico no próprio mistério de Deus. Os pobres são bem aventurados não por sua pobreza, “mas por que o Reino de Deus se expressa na manifestação de sua justiça e de seu amor em favor deles”.[24] Quando Jesus assinala a bem-aventurança dos pobres (Lc 6,20) ele está sobretudo revelando o significado do Deus da vida, de seu desígnio de defensor e protetor dos pobres. Este dado a TdL captou com muita propriedade.

 

Com base na viva experiência das comunidades eclesiais de base (CEBs), a TdL pôde perceber e celebrar a dinâmica de intensificação da qualidade de ser sujeito vivenciada pelos pobres e excluídos. As CEBs favoreceram a reconquista de um espaço popular de religião. Instaura-se com esta experiência condições reais de reconstituição do tecido humano e social, num clima de solidariedade e partilha. Nasce um novo estilo de relacionamento entre os pobres, que começam a se reunir à luz da Palavra de Deus, a pensar, falar e agir. Ativa-se um potencial que é gerador de práticas efetivas de transformação social. Constrói-se comunitariamente o espaço de emergência de uma nova cultura e de uma nova prática das camadas populares. A dinâmica interna das CEBs constitui uma iniciativa singular de rompimento do isolamento forçado e condição de possibilidade para uma nova cidadania. Um dos traços mais salientados nos cantos das comunidades é a força e o elã vital que acompanham o nascimento de um novo sujeito: “De repente nossa vista clareou, descobrimos que o pobre tem valor”. Os participantes das comunidades afirmam ter passado a enxergar, o que para eles é uma forma particular de expressar a eclosão e o desenvolvimento de uma nova consciência, que os transformou em sujeitos e que será fundamental para a mudança de seu mundo. A experiência de comunidade possibilita também o despertar de uma dignidade até então eclipsada. Uma experiência vivida como enriquecimento pessoal. Juntamente com a afirmação de sua dignidade pessoal, os pobres nas CEBs vão percebendo a importância da dimensão comunitária. A comunidade emerge como espaço de reconstituição do tecido humano e social numa sociedade marcada pela tessitura dissociativa. A comunidade gera um clima de troca (partilha), afetividade, reconhecimento, convivência, sociabilidade e solidariedade. Um clima que confere identidade ao grupo e que é base fundamental para a emergência de uma consciência crítica. Os pobres em comunidade verificam que são comuns os problemas que os afligem, que todos têm os mesmo valor e merecem o mesmo respeito. É a partir desta percepção combinada da dignidade humana do sujeito e de uma carência coletiva, reforçada pela dinâmica evangélica de viver os valores do Reino, que vão se desdobrando as práticas efetivas em favor das transformações sociais. Na base de todo este processo de afirmação cidadã está a dimensão de fé, percebida como elemento essencial na conformação do universo motivacional dos pobres.

 

c.     A abertura à positividade da política

 

A TdL tem consciência de que não é possível uma identificação plena entre o Reino de Deus e a história. Isto não significa, porém, uma desconsideração da importância dada às mediações concretas, através das quais o Reino vai ganhando uma expressão histórica e social (realização tópica). Há nas reflexões da TdL o resgate da política, entendida em seu âmbito mais nobre, direcionada ao bem comum. Nesse sentido mais amplo a política relaciona-se com a dinâmica da realização da vontade primária de Deus: que as maiorias pobres tenham mais vida, que construam suas casas e as habitem, que plantem as vinhas e comam de seus frutos (Is 65,21-22). O teólogo Jon Sobrino fala na importância da política como novo âmbito para a santidade, bem como da espiritualidade para uma ação política mais humanizante. A TdL mostrou com pertinência que o exercício da santidade não exclui mas exige o amor político, entendido como resposta à vontade primária de Deus. Uma vontade “que não esgota outras formas do amor, mas é irredutível àquelas: amar os homens mais privados de vida e trabalhar para que cheguem a tê-la; segundo as palavras de Dom Romero, ´defender o mínimo que é o máximo dom de Deus: a vida`”.[25]   

 

O documento de Puebla (1979) traduziu com muita clareza esse sentido amplo de política, voltado para o bem comum. A dimensão política aparece neste documento como “constitutiva do homem”, traduzindo “um aspecto relevante da convivência humana”.[26] A atividade política ganha, assim, valorização e estima. Os bispos acentuam a importância e o dever da igreja estar presente neste campo da realidade, contestando vivamente a tendência de reduzir o espaço da fé à vida pessoal, pois o cristianismo “deve evangelizar a totalidade da existência humana”.[27] O documento assinala, de forma contundente, que a razão da presença da igreja no âmbito político “provém do mais íntimo da fé cristã: do domínio de Cristo que se estende a toda a vida”.[28]

 

d.    O respeito ao universo simbólico-cultural dos pobres

 

Foi um longo aprendizado que levou a TdL a reconhecer o valor e a riqueza do universo simbólico-religioso dos pobres. Isto foi favorecido pelo eixo de convivência mais profunda com as camadas populares; mas também pelo exercício de uma dinâmica pedagógica peculiar de respeito ao outro e de incentivo à sua participação. Houve no início da TdL, bem como na experiência das CEBs, um certo desprezo da religião popular, entendida como força alienante. Mas com o processo de convivência mais aprofundada com os segmentos populares esta tendência inverteu-se, e a religião popular “foi sendo descoberta como a grande história de resistência popular diante das múltiplas pressões culturais, políticas e econômicas. Então se passou também a valorizar estes aspectos da religião popular como um sinal de identidade e luta, de resistência e de esperança do povo”.[29] Muito contribuiu para esta mudança a presença de reflexões antropológicas mais substantivas sobre a questão da religião do povo e de sua dinâmica peculiar. Vale lembrar a importante contribuição das pesquisas e reflexões de Carlos Rodrigues Brandão, que assessorou durante anos a experiência de CEBs na diocese de Goiás. Em sua tese de doutorado, sobre “ os deuses do povo”, defendida em 1979 na USP, mostrou com grande rigor a forma original como o povo cria, trabalha e transforma os seus sistemas religiosos como forma de resistência política. Para Brandão, o trabalho dos sujeitos subalternos traduz não só “a reconquista de espaços populares de religião”, mas constitui sobretudo “um ato político de classe”, de “defesa religiosa da classe e de suas comunidades de vida”.[30] Com base nestes aportes, a TdL foi percebendo a importância essencial da religião popular, como porta de entrada da consciência. E igualmente constatando a dimensão de profundidade presente nas expressões religiosas populares, de reforço essencial da identidade social popular, de garantia de um sentimento de proteção e de afirmação do inventário de suas certezas fundamentais.[31]

 

4.    Novos desafios para a teologia da libertação

 

A TdL sempre esteve aberta e disponível aos desafios e sinais dos tempos. Sua identidade foi sempre marcada por dinamicidade e abertura: uma identidade em permanente construção. Foram inúmeros os desafios assumidos ao longo de seu itinerário. Alguns acompanham a TdL desde seus primórdios, outros foram sendo percebidos ao longo de sua trajetória histórica.

 

a.    O desafio da espiritualidade

 

A questão da espiritualidade da libertação vem acompanhando a TdL desde seus primeiros desenvolvimentos. Já no clássico livro de Gustavo Gutiérrez, ele apresenta uma específica reflexão sobre o tema. Mencionava na ocasião a importância e urgência da espiritualidade, entendida como “atitude vital, global e sintética” de animação da totalidade da vida. Viver o evangelho com espiritualidade. É o que propunha Gustavo Gutiérrez em seu livro. Uma forma precisa de testemunhar o evangelho, sob a inspiração do Espírito. Já se acenava na época sobre os problemas que podem acompanhar o compromisso libertador, sobretudo os riscos da aridez, da prepotência e da superioridade ética.

 

“A verdade é que um cristianismo vivido no compromisso com o processo libertador,  apresenta  problemas próprios que não se podem descurar e encontra escolhos que importa superar. Para muitos, o encontro com o Senhor, nessas condições pode desaparecer em benefício do que ele próprio suscita e alimenta: o amor do homem. Amor que desconhecerá,  então, toda a plenitude que encerra”.[32]

 

Na visão de Gutiérrez, uma espiritualidade da libertação está centrada na conversão ao próximo e exige o compromisso com o outro. Mas também a abertura à experiência da infância espiritual, de disponibilidade interior para a vivência da gratuidade como dom. Como ele assinala, “na raiz de nossa existência pessoal e comunitária se acha o dom da autocomunicação de Deus, a graça de sua amizade enche de gratuidade a nossa vida. Faz-nos ver como um dom nossos encontros com os outros homens, nossos afetos, tudo o que acontece”.[33] É a abertura ao dom gratuito de Deus que despoja o militante, desaloja-o de seu egoísmo e arrogância e potencializa de gratuidade o seu amor aos demais.[34]

 

A percepção da importância desta dimensão de espiritualidade foi posteriormente retomada por Gutiérrez numa de suas mais expressivas obras, que trata do itinerário espiritual dos pobres na América Latina: “Beber no próprio poço”. A obra reflete a profunda preocupação com a questão da espiritualidade, que acompanha o autor ao longo de sua trajetória teológica. O tema da gratuidade é retomado com sensibilidade  e vigor. Esta vem compreendida como um “um clima que invade e se instala em toda a busca de eficácia”.[35] É esta experiência da gratuidade que provoca o despojamento necessário para o encontro pleno e verdadeiro com os outros:

 

“Assim, desprendidos de nós mesmos, chegamos ao outro libertos de toda tendência de impormos uma vontade que lhe seja alheia, respeitosos de sua própria personalidade, de suas necessidades e de suas aspirações. Dado que o próximo é o caminho para chegarmos a Deus, a relação com Deus será a condição necessária para o encontro, para a verdadeira  comunhão com o outro”.[36]

 

Em semelhante linha de reflexão, Jon Sobrino pontuou a importância de uma política que exige santidade. A TdL percebeu, por um lado, a importância da política para a santidade, mas também a exigência da santidade para a ação política. E isto por uma razão bem precisa. O âmbito da política é marcado por limitações históricas bem precisas. Como sinaliza Sobrino, por sua própria natureza a ação política  

 

“pode tentar, em maior ou menor medida, substituir a libertação dos pobres pelo triunfo do que se converteu em causa própria, pessoal ou grupal, a dor dos pobres pela paixão que gera a política, o serviço pela hegemonia, a verdade pela propaganda, a humildade pela prepotência,  a gratuidade pela superioridade ética”.[37]

 

São limitações que traduzem o que Sobrino chamou de concupiscência do âmbito político. É para fazer frente a tais riscos que este autor indica a necessidade de “viver o político com espírito”, de buscar uma libertação com espírito. É só assim que o amor político pode se manter como amor e os projetos libertadores podem manter-se abertos para o horizonte mais amplo do Reino de Deus.[38]   

 

A questão da espiritualidade, tão presente na TdL, emerge hoje como uma das questões essenciais e decisivas. Num tempo caracterizado pela crise do paradigma civilizatório, surge por todo canto uma sede de espiritualidade, entendida também como convocação a uma experiência profunda do ser humano, como busca de um novo modo de inserção no mundo. A espiritualidade é essencial na formação do sujeito e na ampliação do olhar para o compromisso de transformação social. A espiritualidade aponta para a presença de um outro mundo neste mundo, onde a vida não teme a morte e onde o sonho permanece possível. A espiritualidade é fator de mudança, pois é capaz de transformar paisagens com o trabalho interior de oxigenação do sentido, propiciando a emergência de um ser humano integralizado.

 

b.    O desafio da abertura ao pluralismo religioso

 

A questão do desafio da abertura ao pluralismo religioso vem se afirmando com radicalidade cada vez mais decisiva no âmbito da reflexão teológica contemporânea, sempre com um impulso vitalizador e provocante. Isto ocorre em particular no campo da teologia cristã do pluralismo religioso. A maior parte dos autores que vêm desenvolvendo esta delicada questão estão situados na Ásia, Europa ou América do Norte. Historicamente, a TdL concentrou seus esforços na temática dos pobres e de sua libertação. Foram bem mais residuais ou fragmentários os esforços de reflexão envolvendo a questão do diálogo com as tradições religiosas do continente. Como assinalou Carlos Palácio,

 

“não se pode ocultar, contudo, que, em nome da ´teologia da libertação` e do que considerava já o específico e quase diríamos ´autóctone` da reflexão teológica na América Latina, houve não poucas resistências a enveredar por esses novos caminhos, por violentar os temas, reduzindo-os de alguma forma à questão dos pobres. É a impressão que dava, em um primeiro momento, a tentativa de revitalizar a ´opção pelos pobres` com a problemática do negro, do índio ou da mulher. Ou, de forma mais explícita, não reconhecendo a relevância de outras perspectivas aparentemente não-libertadoras como a da modernidade, a das culturas ou a das religiões”.[39]   

 

Nesta última década começa a haver uma inversão nesta tendência, com um reiterado interesse da TdL nas questões relacionadas ao diálogo inter-religioso e o pluralismo religioso. Uma primeira incidência na linha de um novo direcionamento aconteceu a partir da reflexão em torno das questões indígena, das religiões afro-brasileiras e da inculturação.[40] Afirma-se uma reflexão que acentua a especificidade de uma peculiar experiência de Deus no continente, que aponta a singularidade da temática da alteridade e a necessidade de um novo tratamento para a questão. A nova abertura foi favorecida pelo progressivo processo de imersão dos teólogos na vida das comunidades, e a percepção de uma especificidade étnica que não se reduz à questão da classe social. Foi neste processo de aproximação ao mundo do outro que se abrem novos caminhos, como bem mostrou Xavier Albó:

 

“Num momento inicial, esta preocupação da Igreja, ou de certos setores da Igreja, de estar mais perto dos pobres, teve sobretudo uma dimensão econômica, social. Mas uma vez estando mais perto de gente que é ao mesmo tempo distinta, foi-se descobrindo que não se tratava só de superar uma situação de pobreza, mas simultaneamente  encontrar sua identidade. Reconhecia-se  que aí  havia uma grande vitalidade distinta”.[41]

 

Trata-se de uma reflexão que ajudou a TdL a ampliar e enriquecer sua visão teológica. Mais recentemente, no desdobramento desta nova sensibilidade,  surgem iniciativas inovadoras  no âmbito da TdL em favor de uma reflexão mais específica sobre a questão do pluralismo religioso. Pode-se registrar a riqueza do trabalho empreendido pela seção latino americana da Associação Ecumênica de Teólogos e Teólogas do Terceiro Mundo (ASETT) e sua busca de construção de uma “nova teologia cristã latino-americana do pluralismo religioso”.[42]

 

O pluralismo religioso emerge hoje como um novo paradigma para a teologia. É toda a reflexão teológica que se vê provocada a recriar-se e refazer-se a partir deste desafio fundamental. Não se trata de um dado conjuntural passageiro, mas de uma realidade de direito ou princípio, enquando dado de valor irrecusável. Com a acolhida do pluralismo, impõe-se o reconhecimento da irredutibilidade e irrevogabilidade das demais tradições religiosas. O outro é portador de um “mistério pessoal intransponível”, mas de um mistério que não impossibilita o diálogo ou o enriquecimento recíproco. A grande riqueza do diálogo consiste justamente nisto: fazer com que o que era antes estranho e diferente entre no domínio do possível, ou seja, “apropriar-se de outras possibilidades”.[43] O diálogo deixa sempre “uma marca” que amplia e transforma a visada.

 

Esta consciência irreversível do valor do pluralismo e do diálogo reforça a idéia de que nenhuma tradição religiosa tem condições de sobreviver fechada em seu âmbito interno, como mônoda deslocada da interlocução criadora. Todas as tradições religiosas são provocadas ao desafio da acolhida da diferença, da cortesia e hospitalidade inter-religiosa,  da abertura plural e do aprendizado enriquecedor. O desafio dialogal, complexo e laborioso, é imprescindível para as religiões. Na ausência deste intercâmbio criativo as religiões fragilizam-se, carecendo da atmosfera essencial para a sua afirmação e crescimento. O diálogo não nega a importância e o valor das convicções e da essencial adesão à tradição, mas evidencia que “a tradição não se esgota no que sabemos de nossa própria tradição e da qual temos consciência”.[44] Toda tradição é marcada por um dinamismo criador, estando também aberta à interlocução e escuta. Não há como entender a fundo uma tradição específica senão na abertura dialogal a outras tradições religiosas. Como assinala Raimundo Panikkar, “aquele que não conhece senão sua própria tradição, não a conhece verdadeiramente”.[45] É no processo e dinâmica de uma sinfonia inter-religiosa, cujo horizonte está sempre adiante, que se abre o espaço para uma melhor manifestação da plenitude inesgotável do místério sempre maior.

 

c.     O desafio da teologia feminista da libertação

 

Esta questão vem se afirmando com radicalidade cada vez mais decisiva  no âmbito da reflexão teológica, sempre com um impulso vitalizador e provocante. Houve inicialmente na TdL resistências específicas à acolhida deste desafio. Tratava-se para alguns teólogos de uma questão pertinente para o primeiro mundo, mas não para a América Latina, onde a questão da libertação social era a decisiva. Aos poucos esta resistência foi sendo relativizada, sobretudo em razão da presença crescente da reflexão de teólogas inseridas na reflexão e no processo de libertação. A discussão sobre a teologia e a questão da mulher começou a se irradiar no Brasil e na América Latina a partir da década de 70. Num primeiro momento deu-se a descoberta da mulher como sujeito histórico oprimido. Em seguida veio o trabalho teológico, com forte ênfase na bíblia, de delinear uma teologia “com rosto de mulher”, com desdobramentos posteriores na linha de um forte questionamento do discurso patriarcal e racionalista presente na reflexão teológica, também latino-americana. Igualmente de grande importância para a afirmação de uma reflexão própria sobre a identidade feminina foi a aproximação com a teologia feminista elaborada nos Estados Unidos e na Europa, a partir da década de 80. Uma nova fase emerge a partir da década de 90, com a afirmação de um discurso em favor de uma “teologia feminista da libertação”. Nesse momento firma-se então um quase-consenso entre as teólogas latino-americanas.[46] A categoria “gênero” entra na reflexão como um instrumento interpretativo ou mediação analítica para a elaboração do discurso teológico. Uma categoria que entra para somar com outras também presentes, como as de classe, raça, etnia etc. Não se pretende reduzir a teologia feminista à questão de gênero, pois isto significaria reduzir e empobrecer o raio de sua reflexão. Mas é verdade que ao utilizar o referencial de gênero, a teologia feminista abriu caminhos para a emergência de uma nova sensibilidade teológica, bem como à explicitação de novas reflexões capazes de dar conta de inúmeras formas de expressão da sexualidade que não são as heterosexuais e que ainda estão distantes do foco de abordagem das teologias libertadoras.[47]

 

d.    O desafio do respeito e cuidado para com a comunidades de vida

 

O teólogo americano, Paul Knitter, vem sublinhando nos últimos anos a urgência de uma responsabilidade global das religiões mundiais em favor da salvaguarda da criação e da defesa da terra. Chega mesmo a sublinhar que esta responsabilidade comum torna-se hoje a grande e essencial motivação para o diálogo inter-religioso. São muitas as religiões mas uma única terra. E o cuidado para com a comunidade de vida deve envolver e comprometer todas as religiões.[48] Esta é uma questão que vem sendo colocada com vigor por importantes teólogos da libertação, entre os quais Leonardo Boff. Refletindo sobre o doloroso acontecimento de setembro de 2001, nos Estados Unidos, Boff fala da presença de uma “demência originária” que aterra os humanos, mas que ao mesmo tempo provoca um alerta essencial:

 

“Ou todos cuidamos uns dos outros, e assim sobreviveremos na mesma Casa Comum, ou poderemos ir ao encontro do pior. Cabe a nós decidir que futuro queremos. Quem conhece a história da vida, tira dela esta lição bem-aventurada: depois de cada grande catástrofe, a vida sempre floresceu – e floresceu como nunca antes. Agora, assim esperamos, não será diferente. Floresceremos com mais convivialidade, com mais senso de inclusão de todos, com mais veneração pela natureza, com mais acolhida das diferentes tribos da Terra e com mais abertura à Fonte de todo ser”.[49]

 

A teologia da libertação defronta-se hoje com este desafio fundamental: do respeito e cuidado com a comunidade da vida. Leonardo Boff fala da necessidade de um “resgate da dívida ecológica”, que envolve a recuperação da ecologia ambiental (uma melhor qualidade de vida), da ecologia social (em favor de uma sociedade sustentável e de uma organização social e política mais humanizada),  da ecologia mental (aberta ao reconhecimento da teia de relações que envolve os seres humanos), e da ecologia integral (que compreende o ser humano integrado num todo maior).[50]

 

No documento conhecido como “Carta da terra”, cuja primeira versão foi apresentada em 1992 no Rio de Janeiro durante a Cúpula da Terra e que posteriormente, após mudanças, foi acolhido em 2000 pela Unesco, são elencados alguns princípios fundamentais para uma nova sensibilidade ecológica: o respeito e o cuidado com a comunidade da vida; a integridade ecológica; a justiça social e econômica; a democracia, não violência e paz. Num momento crucial e crítico da história da humanidade, a “Carta da terra” vem convocar toda a a família humana para uma soma de esforços em favor de uma sociedade global sustentável, fraterna e solidária. Não há saída para a humanidade: ou “formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e a da diversidade da vida”.[51]

 

Conclusão

 

A teologia da libertação tem uma longa e bela história. Foram inúmeras as dificuldades, embates e desafios enfrentados ao longo destes quase quarenta anos de trajetória. Tem sido uma teologia capaz de assumir as novas questões sem perder o seu carisma original, marcado pela profunda e axial ligação com os pobres e excluídos. Trata-se de uma teologia que esteve sempre sintonizada com os sinais dos tempos, na busca constante de revisão crítica e de abertura ao novo. O olhar retrospectivo favorece perceber este potencial de acolhida da TdL, o que vem possibilitando sua renovação permanente. Enganam-se aqueles que afirmam que a TdL morreu. Ela sobrevive às críticas e incompreensões e renasce oxigenada por sua capacidade de recriação constante. É uma teologia cuja identidade não se encontra fixada e cristalizada, mas continuamente alimentada e enriquecida. Talvez hoje o maior desafio da TdL é o de acordar nos corações e mentes a “ecumene da compaixão”, num tempo marcado pelo desgaste da sensibilidade e pelo assustador embrutecimento das pessoas, dominadas pela lógica do mercado, da produtividade e da competição.

 

(Publicado no livro: Fernando TORRES et al. Teologia da libertação e educação popular. São Leopoldo: CEBI/CECA/CELADEC, 2006, pp. 27-65)



[1] Congregazione per la Dottrina della fede. Istruzione sulla teologia  della liberazione. Bologna: Dehoniane, 1984, pp. 3-4 e Joseph RATZINGER. Rapporto sulla fede. Cinisello Balsamo: Paoline, 1984, pp. 179-2003.

[2] Ernesto BALDUCCI. Dalla teologia della dominazione alla teologia della liberazione. Testimonianze, Firenze, n. 271-271, 1985, p. 22 (Teologia della liberazione – Atti del Convegno Nazionale di “Testimonianze”).

[3] Johann Baptist METZ. Al dilà della religione borghese. Brescia: Queriniana, 1981, pp. 5 e 18.

[4] Karl RAHNER. Sollecitudine iper la Chiesa. Roma: Paoline, 1982, p. 319; Edward SCHILLEBEECKX. Il ministero ordinato: si assopiscono le polemiche non i problemi. Il Regno-Attualità, v. 12, 1983, p. 261 (intervista a cura di Francesco Strazzari).

[5] Claude GEFFRÉ. A comoção de uma teologia profética. Concilium, v. 96, n. 6, 1974, pp. 693-701 (número especial dedicado à teologia da libertação).

[6] Gustavo GUTIÉRREZ. Teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 76.

[7] Ibidem, p. 87.

[8] Como bem salienta Luiz Alberto Gómez de Souza, “foi no Brasil e, mais precisamente na JUC, no início dos anos 60 que, muitas das intuições do que constituiria mais tarde a teologia da libertação latino-americana, começaram a concretizar-se, num lento processo ligado a uma prática e, sobretudo, a uma prática política”: Luiz Alberto GÓMEZ DE SOUZA. A JUC: os estudanes católicos e a política. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 9.

[9] Gustavo GUTIÉRREZ. Teologia da libertação, pp. 90-97.

[10] Clodovis BOFF. Teologia della liberazione: che cos`è realmente?. Testimonianze, n. 271-272, 1985, p. 49.

[11] Esta tese foi publicada em português: Clodovis BOFF.  Teologia e prática. Teologia do político e suas mediações. Petrópolis: Vozes, 1978.

[12] Clodovis BOFF. Como vejo a teologia latino-americana trinta anos depois. In: Luiz Carlos SUZIN (Org.). O mar se abriu. Trinta anos de teologia na América Latina.  São Paulo: Loyola/Soter, 2000, p. 84.

[13] Clodovis BOFF. Teologia e prática, p. 85.

[14] Ibidem, p. 84.

[15] Ibidem, p. 119.

[16] Ibidem, p., 125.

[17] Ibidem, p. 224.

[18] Ibidem, p. 374-375.

[19] Gustavo GUTIÉRREZ. A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 96.

[20] Leonardo BOFF & Clodovis BOFF. Da libertação. Petrópolis: Vozes, 1979, pp. 82-83.

[21] Gustavo GUTIÉRREZ. Teologia da libertação, p. 44 e tb. pp. 154 e 203.

[22] Leonardo BOFF & Clodovis BOFF. Da libertação,  p. 72.

[23] III Conferência Geral do Episcopado  Latino-Americano. A evangelização no presente e no futuro da América Latina. Petrópolis: Vozes, 1979, n. 1142 (Documento de Puebla).

[24] Gustavo GUTIÉRREZ. A força histórica dos pobres, pp. 211 e 134.

[25] Jon SOBRINO. Espiritualidade da libertação. São Paulo: Loyola, 1992, p. 99.

[26] Documento de Puebla, n. 513.

[27] Ibidem, ns. 514-515.

[28] Ibidem, n. 516.

[29] Entrevista  a Oscar Beozzo. In: Faustino TEIXEIRA (Org.). Teologia da libertação. Novos desafios. São Paulo: Paulinas, 1991, p. 92. Ver também p. 90-91 (as reflexões de Diego Irarrazaval e Clodovis Boff).

[30] Carlos Rodrigues BRANDÃO. Os deuses do povo. São Paulo: Brasiliense, 1980, p.p. 138-139.

[31] Ibidem, pp. 140-141.

[32] Gustavo GUTIÉRREZ. Teologia da libertação, p. 173.

[33] Ibidem, p. 174.

[34] Ibidem, p. 175.

[35] Gustavo GUTIÉRREZ. Beber no próprio poço. Itinerário espiritual de um povo. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 120.

[36] Ibidem, p. 125.

[37] Jon SOBRINO. Espiritualidade da libertação, p. 102.  Sobrino mostra como aqueles que viveram o processo libertador dos anos 70 experimentaram os limites da fragilidade humana. Puderam perceber “que o caminho escolhido, embora necessário e correto, gera também sua própria concupiscência, conforme se pode notar, por exemplo, nas tentações de protagonismo, no alardeamento de superioridade ética ou na crença de as pessoas se julgarem imunes à tentação do pecado”: Ibidem, . 13.

[38] Para esta questão ver também: Faustino TEIXEIRA. A espiritualidade do seguimento. São Paulo: Paulinas, 1994.

[39] Carlos PALÁCIO. Trinta anos de teologia na América Latina. In: Luiz Carlos SUSIN (Org.). O mar se abriu. Trinta anos de teologia na América Latina. São Paulo: Soter/Loyola, 2000, p. 63.Veja ainda na mesma obra um reconhecimento semelhante nos depoimentos de Diego Irarrazaval (p. 101) , João Batista Libânio (p. 147) e Jon Sobrino (p. 169).

[40] Esta primeira incidência já se afirmava sobretudo a partir da década de oitenta. Destacam-se entre os autores para a questão indígena ou dos povos originários: Paulo Suess, Diego Irarrazaval, Xavier Albó, Bartolomeu Meliá, Eleazar Hernández; para a questão afro: Antônio Aparecido da Silva, Marcos Rodrigues, Heitor Frisotti, José Geraldo da Rocha, Sílvia Regina de Lima, Edir Soares; para a inculturação: Paulo Suess e Marcello Azevedo.

[41] In: Faustino TEIXEIRA (Org.) Teologia da libertação, p. 103. Ver também, na mesma obra,  a reflexão de Oscar Beozzo (pp. 96-97).

[42] Na linha desta nova reflexão proposta pela ASETT já foram publicados dois livros: Pelos muitos caminhos de Deus. Desafios do pluralismo religioso à teologia da libertação. Goiás: Rede, 2003 (também publicado em castelhano e italiano); Pluralismo e libertação. Por uma teologia latino-americana pluralista a partir da fé cristã. São Paulo: Loyola, 2005 (também publicado em castelhano). Estão ainda previstos mais três volumes. O próximo, que já está no prelo, versando sobre a teologia latino-americana pluralista da libertação;  um quarto abordando o mesmo tema a partir de um âmbito intercontinental,  e o último sobre uma teologia da libertação multirreligiosa mundial do pluralismo religioso.

[43] David TRACY. Pluralidad y ambiguedad. Madrid: Trotta, 1987, p. 141.

[44] Hans Georg GADAMER. Verdade e método II. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 312.

[45] Raimon PANIKKAR. Entre Dieu et le cosmos. Paris: Albin Michel, 1998, p. 74.

[46] É bom frisar que o interesse pela teologia feminista vem também envolvendo os teólogos da libertação, entre os quais podem ser mencionados: Leonardo Boff, Diego Irarrazaval, Milton Schwantes; bem como outros estudiosos vinculados à teologia da libertação: Luiz Alberto Gómez de Souza, Eduardo Hoornaert, Martin Dreher, Otto Maduro etc.

[47] A utilização do referencial de gênero abriu possibilidades novas de acolhida de outras expressões teológicas, como por exemplo a teoria queer, que trata de todas as outras expressões da sexualidade que não são heterosexuais. Para esta questão ver por exemplo os últimos trabalhos do sociólogo venezuelano Oto Maduro. Mas ainda há inúmeras dificuldades para esta reflexão, como vem mostrando os estudos de André Sidnei Musskopf, em particular: À meia luz: a emergência de uma teologia gay. Seus dilemas e possibilidades. São Leopoldo, Cadernos IHU idéias, v. 3, n. 32, 2005, pp. 1-34.

[48] Paul KNITTER. Una terra molte religioni. Assisi: Cittadella Editrice, 1998, pp. 146 e 160.

[49] Leonardo BOFF. Do iceberg à Arca de Noé. O nascimento de uma ética planetária. Rio de Janeiro: Garamond, 2002, p. 14.

[50] Ibidem, pp. 64-71.

[51] Ibidem, p. 149 (a “Carta da terra” veio publicada como anexa no livro de L.Boff, nas pp. 147-159).

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