terça-feira, 13 de abril de 2010

O pluralismo religioso no Brasil

PLURALISMO RELIGIOSO

 

Faustino Teixeira

PPCIR/UFJF

 

Segundo os dados mais recentes baseados no Censo Demográfico de 2000, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), começa a haver no Brasil neste início de milênio um processo crescente de diversificação religiosa (Jacob et alii, 2003, p. 33). Tomando-se com base o período que vai de 1980 a 2000, percebe-se com clareza a presença de três dados importantes, ressaltados pelo último censo: a diminuição da porcentagem de católicos (de 83,3% em 1991, para 73,77% em 2000, ou seja 124,9 milhões); o aumento da porcentagem dos evangélicos (de 9% em 1991, para 15,44% em 2000, ou seja 26,2 milhões); o aumento dos que se declaram “sem religião” (4,8% em 1991, para 7,28% em 2000, ou seja 12,3 milhões). Com respeito aos evangélicos, deve-se sublinhar que o crescimento mais substantivo ocorre entre os evangélicos pentecostais, que sozinhos concentram 10,43% do crescimento apontado. O número de pessoas que se declararam pentecostais no censo de 2000 foi de 17,68 milhões. Uma população com crescimento espantoso no Brasil: mais que dobra a cada década (Jacob et alii, 2003, p. 39; Pierucci, 2004, p. 20). Outro dado apontado, sobre o crescimento dos “sem religião” , merece algumas considerações. Este crescimento não traduz, necessariamente, um fortalecimento do ateísmo, mas é expressão de um enfraquecimento das instituições tradicionais produtoras de sentido. As pessoas que se declaram “sem religião” concentram-se, sobretudo, nas periferias das regiões metropolitanas, e o Censo mostrou que a cidade do Rio de Janeiro aparece em primeiro lugar na localização da população “sem religião”. A antropóloga carioca, Regina Novaes, mostrou em pesquisa que esta definição de “sem religião” nunca foi tão forte entre os jovens como atualmente. E isto não revela ausência de religião, mas a adesão a “formas não institucionais de espiritualidade que são normalmente classificadas como esotéricas, nova era, holísticas, de ecologia profunda etc.” (Novaes, 2004, p. 323). Além dos principais grupos religiosos presentes no Brasil, como os católicos e evangélicos (de missão e pentecostais), o Censo mostrou ainda a realidade das outras religiões. O que surpreende ao analista é verificar que as outras religiões praticados no Brasil não ultrapassam aos 3,5% da população brasileira, em torno de 6,1 milhões de fiéis. Dentre estas outras religiões inserem-se: os espíritas (2,3 milhões de fiéis); as religiões afro-brasileiras (a Umbanda, com 432.001 membros e o Candomblé com 139 328 membros); os neocristãos (que inclui religiões como Testemunhas de Jeová, Mórmons e Legião da Boa Vontade), que reune  1,1 milhão de fiéis; as religiões orientais (incluindo sobretudo o Budismo, mas também novas religiões como a Igreja Messiânica Mundial, Seicho No-Ie etc), com 427.449 membros; a religião judaica, com 101.062 membros; a religião islâmica, com 18.592 membros; e finalmente as tradições indígenas, abrangendo 10.723 (Jacob et alli, 2003, p. 103; Pierucci, 2004, p. 20).

 

Não se pode negar a presença hoje no Brasil de uma diversidade religiosa, mas os dados do Censo apontam para uma grande hegemonia do cristianismo. Somando-se os católicos e evangélicos, chega-se a 89,5% da população total. É verdade que já se produz no cenário religioso brasileiro uma quebra no monopólio católico-romano. Como já assinalva Pierre Sanchis em 1994, “a Igreja Católica está perdendo o seu caráter de definidor hegemônico da verdade e da identidade institucional no campo religioso brasileiro” (Sanchis, 1994, p. 36). O campo cristão se diversifica, sobretudo com a presença imponente dos evangélicos pentecostais, que densificam no país a novidade de um “regime forte de intensidade religiosa”, onde a dinâmica de exclusividade é bem acentuada. Mas na verdade, o cenário dominante é o do cristianismo. O sociólogo Antônio Flávio Pierucci, lança em artigo uma provocação sobre a pretensa diversidade religiosa no Brasil. Na sua visão, num país onde quase 90% da população se declara cristã, a diversidade religiosa fica ainda bem encolhida. Para ele, “o espectro do monoteísmo ainda ronda nossos confusos destinos pesadamente” (Pierucci, 2003).

 

A provocação de Pierucci procede, não há dúvida. O campo religioso brasileiro é ainda bem marcado pelo cristianismo, e sobretudo pela força do catolicismo. Mas não se pode negar, que a identidade católica no Brasil é bem complexa e plural, envolvendo “mecanismos de fagocitose” bem específicos e inusitados. Como mostrou Sanchis, “há religiões demais nesta religião” (Sanchis, 1992, p. 33). A forma de ser católico no Brasil é bem distinta do modo de inserção em outros lugares. Os processos de dupla filiação religiosa, de trânsito e sincretismo são comuns no Brasil, e nem sempre os censos conseguem captar tal realidade. O Censo de 2000 abriu esta possibilidade, mas apenas 10.500 pessoas declararam pertencer a mais de uma religião, o que demonstra que “os recenceados ainda não se sentem à vontade para assumir que possuem mais de uma filiação religiosa” (Jacob et alli, 2003, p. 9).  Há no catolicismo brasileiro uma dinâmica de complementaridade que simultaneamente inova e escandaliza. Os caminhos que levam a Deus para o devoto católico brasileiro, em especial o devoto popular, não são excludentes, mas envolvem trocas, relacionamentos e ajuntamentos. Como pontuou o antropólogo Roberto da Matta, “o que para um norte americano calvinista, um inglês puritano ou um francês católico seria sinal de superstição e até mesmo de cinismo ou ignorância, para nós é modo de ampliar as nossas possibilidades de proteção” (Da Matta, 1986, p. 115). É como diz o personagem de Guimarães Rosa, em seu livro Grande sertão: veredas: “Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só para mim é pouca, talvez não me chegue (...) Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca” (Guimarães Rosa, 1967, p.  15).

 

Este quadro de diversificação religiosa em processo no Brasil tem levantado uma série de questões para os estudiosos de ciência(s) da religião, dentre os quais os que estão trabalhando no campo da teologia cristã do pluralismo religioso. Como entender e avaliar o pluralismo religioso? Cresce na América Latina e no Brasil, o número de teólogos que defendem o pluralismo religioso de direito e de princípio, contra uma tendência até então dominante de considerar o pluralismo religioso como um dado conjuntural passageiro, destinado a encontrar o seu acabamento e realização numa única tradição religiosa tida como verdadeira, ou seja, o cristianismo. Na linha da nova reflexão teológica sobre o pluralismo religioso, as religiões são compreendidas não apenas como genuinamente diferentes, mas também autenticamente preciosas. Há que honrar esta alteridade em sua especificidade particular. E honrar a alteridade é ser capaz de reconhecer algo de irredutível e irrevogável nestas diversas tradições; de captar o valor e a plausibilidade de um pluralismo religioso de direito. A diversidade religiosa deve ser reconhecida não como expressão da limitação humana ou fruto de uma realidade conjuntural passageira, mas como traço de riqueza e valor. A diferença deve suscitar não o temor, mas a alegria, pois desvela caminhos e horizontes inusitados para a afirmação e crescimento da identidade. A abertura ao pluralismo constitui um imperativo humano e religioso. Trata-se de uma das experiências mais enriquecedoras realizadas pela consciência humana: o reconhecimento do valor da diversidade como traço e riqueza da experiência humana.

 

A teologia latino-americana vem reconhecendo com vigor a importância da temática do pluralismo religioso e do diálogo interreligioso, essenciais para o tempo atual. Trata-se de uma reflexão que vem enriquecer os estudos da teologia da libertação, uma matéria reconhecida como pendente nos estudos empreendidos pela teologia latino-americana até então. O tema vem ganhando cada vez mais importância no continente latino-americano. Para Gustavo Gutiérrez, o pluralismo religioso emerge como uma das grandes provocações e tarefas para a teologia da libertação: um “território novo e exigente” (Gutiérrez, 2003, p. 97). A Comissão Teológica da Associação Ecumênica de Teólogos e Teólogas do Terceiro Mundo (ASETT) na América Latina vem empreendendo um belo trabalho de produção de textos e livros envolvendo o desafio de se fazer teologia do pluralismo religioso a partir das opções latino-americanas. Dentre as publicações, merece destaque duas obras: Pelos muitos caminhos de Deus: desafios do pluralismo religioso à teologia da libertação (ASETT, 2003) e Pluralismo e libertação: por uma teologia latino-americana pluralista a partir da fé cristã (Tomita & Barros & Vigil, 2005).

 

Referências Bibliográficas:

 

ASETT., 2003. Pelos muitos caminhos de Deus. Desafios do pluralismo religioso à teologia da libertação. Rede, Goiás.

 

Da Matta, R., 1986. O que faz o brasil Brasil. Rocco, Rio de Janeiro.

 

Gutiérrez, G. Situazione e compiti della teologia della liberazione. In: Gibellini, R., 2003. Prospettive teologiche per il XXI secolo. Queriniana, Brescia, pp. 93-111.

 

Jacob, C.R. & Hees, D.C. & Waniez, P. & Brustlein, V., 2003. Atlas da filiação religiosa e indicadores sociais no Brasil. Loyola-CNBB, São Paulo.

 

Novaes, R., 2004. Os jovens sem religião: ventos secularizantes, “espírito de época” e novos sincretismos. In: Estudos Avançados USP, v. 18, n.52, pp. 321-330 (Dossiê Religiões no Brasil).

 

Pierucci, A.F., 2004. “Bye bye, Brasil”. O declínio das religiões tradicionais no Censo 2000. In: Estudos Avançados USP, v. 18, n.52, pp. 17-28 (Dossiê Religiões no Brasil)

 

Pierucci, A.F., 2003. Cadê nossa diversidade religiosa? Folha de São Paulo, 29/12/2002.

 

Guimarães Rosa, J., 1967. Grande sertão: veredas. José Olympio, Rio de Janeiro.

 

Sanchis, P., 1994. O repto pentecostal à “cultura católica brasileira”. In: Antoniazzi, A. Nem anjos nem demônios. Vozes, Petrópolis, pp. 34-63.

 

Teixeira, F., 2005. Teologia de las religiones. Abya-Yala, Quito.

 

Teixeira, F. 2002. Diálogo interreligioso: o desafio da acolhida da diferença. Perspectiva Teológica, v.34, n.93.

 

Tomita, L.E. & Barros, M. & Vigil, J.M., 2005. Pluralismo e libertação. Por uma teologia latino-americana pluralista a partir da fé cristã. Loyola, São Paulo.

 

Sanchis,P. Catolicismo: modernidade e tradição. 1992. Loyola, São Paulo.

 

(Publicado na Revista Horizonte, v.3, n. 6, 2005, pp. 27-32)

 

 

 

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