domingo, 30 de outubro de 2022

Jesus, o profeta da Galileia: reflexões em torno de um livro

 Jesus, o profeta da Galileia: reflexões em torno de um livro

 

Faustino Teixeira

IHU e Paz e Bem

 

 

Tenho a grande alegria de ter sido o grande incentivador da publicação do livro de José Antonio Pagola no Brasil, pela editora Vozes, em 2010. Assim que o livro foi publicado, escrevi uma longa resenha na Revista Eclesiástica Brasileira, celebrando a publicação no Brasil, três anos depois da primeira edição espanhola, publicada pela editora PPC em 2007. 

 

Tinha sido particularmente tocado pela leitura do livro, que identificava como uma das obras mais profundas e ricas sobre Jesus de Nazaré: Jesus  aproximação histórica. No Brasil a obra foi recebida com calorosa acolhida, estando hoje em sua sétima edição. Depois da publicação, seguiram-se outras tantas publicações na Vozes desse mesmo autor.

 

Na Espanha, acaba de sair publicado um livro maravilhoso, com uma enorme entrevista realizada com Pagola com seu sobrinho, Juan I. Pagola Carte, tendo como título: José Antonio Pagola, un creyente apasionado por Jesús (Modrid, PPC, 2022, 145 p.). O livro foi sendo trabalhado pelos dois ao longo dos últimos três anos, coincidindo com os momentos mais difíceis e duros da pandemia do Covid 19 e do confinamento que ela provocou. Foram dezenas de horas de entrevistas, depois ordenadas e sintetizadas pelo organizador do trabalho[1].

 

O que vemos nesse livro é um Pagola apaixonado por Jesus, como em suas obras anteriores. O sobrinho o define como um humanista, vitalmente ligado a Jesus de Nazaré e ao compromisso em favor da justiça. Numa de suas respostas ao longo do livro, Pagola reitera que seu desejo mais fundo ao publicar sua obra clássica foi apresentar com clareza, seriedade e simplicidade a figura humana de Jesus de Nazaré: “Quem foi este homem que marcou decisivamente a religião, a cultura e a arte do Ocidente”, movido por um enorme poder de atração e simpatia (CAJ, 90). Na visão de Pagola, Jesus representa aquilo que há de melhor apresentado pela Igreja à sociedade moderna de nossos dias. Continua sendo “o potencial mais admirável de luz e esperança contado entre os humanos” (CAJ, 90).

 

O livro vem dividido em nove capítulos, abordando todo o trajeto de vida de José Antonio Pagola, sobretudo suas reflexões sobre Jesus de Nazaré, o profeta da Galileia. Inicia sua reflexão falando sobre o impacto exercido pela sua experiência existencial na lago da Galileia, em maio de 1966, quando tinha 28 anos. Ali passou entre 15 de maio a 15 de junho, e navegar com pescadores nas águas daquele lago foi marcante em sua vida. Passava por momento importante em sua vida, buscando captar o sentido de sua vocação. Como ele disse, a experiência aconteceu num “momento afetivamente intenso” e mesmo “inexplicável” em sua vida. Tinha iniciado seus estudos de Ciências Bíblicas em 1965, na tradicional Escola Bíblica e Arqueológica de Jerusalém, sob a direção dos padres dominicanos.

 

Pagola nasceu em 16 de junho de 1937 no bairro Donostiarra de Añorga (Guipúzcoa), uma província do país Basco, no norte da Espanha. Revela no livro que recebeu de sua mãe, uma mulher que nunca tinha lido o evangelho diretamente, o importante testemunho de uma vida com espírito evangélico (CAJ, 21). Num acolhedor ambiente familiar foi sendo gestada sua vocação religiosa, “de forma natural, através de múltiplas circunstâncias” que povoavam o seu dia a dia. O ingresso nos estudos sacerdotais ocorreu em outubro de 1949, quando acabara de completar doze anos.

 

Sua formação foi privilegiada, tendo a rica oportunidade de aperfeiçoar seus estudos em Roma e Jerusalém. Logo depois de sua ordenação sacerdotal conseguiu uma bolsa de estudos oferecida pela sua diocese para o aperfeiçoamento em Roma. Tinha um carinho especial pelos estudos bíblicos, a eles vai dedicar sua formação. O destino era o Pontifício Instituto Bíblico de Roma, que exigia, porém, uma prévia licenciatura em Teologia Dogmática,  o que fez então na Pontifícia Universidade Gregoriana, nas proximidades da Fontana de Trevi, em Roma. Na Gregoriana fez contato com importantes nomes da teologia, entre os quais o canadense Bernard Lonergan. Já no Instituto Bíblico, foi favorecido pela presença de prestigiosos professores, como Carlo Martini, Stanislas Lyonnet e Luis Alonso Schökel, todos exímios biblistas. Ele recorda que esse tempo de estudos no Bíblico, acrescidos aos que se seguirão em Jerusalém, foram os mais enriquecedores em sua formação (CAJ, 31).

 

O tempo era bem propício para os estudos bíblicos, com os singulares desdobramentos dos estudos no campo da interpretação bíblica, como por exemplo a descoberta da importância do evangelho de Marcos, o primeiro dos sinóticos. Tais estudos vinham incentivados pelo clima que envolveu a preparação e realização do Concílio Vaticano II (1962-1965), que coincidiu com sua presença ali. Pagola relata que o Concílio acendeu nele, com vigor, uma orientação renovadora em seu pensamento, indicando claramente os passos para o seu futuro. Teve o privilégio de visitar a aula conciliar por duas vezes, ali no interior da basílica de São Pedro. Num clima de primavera eclesial, fez contato com teólogos de ponta como Hans Küng, Bernard Häring e Yves Congar. O historiador brasileiro, José Oscar Beozzo, relata que durante o Concílio, por iniciativa do pe. Antônio Guglielmi, foram realizadas inúmeras conferências na Domus Mariae, nas proximidades do Colégio Pio Brasileiro, com a presença de teólogos dos mais importantes no trabalho conciliar. Foram conferências que ocorreram a partir da segunda sessão do concílio, em forma sistemática, com a presença de nomes fundamentais da teologia, entre os quais Karl Rahner. Foram cerca de 94 conferências, que exerceram, de fato, o papel de um verdadeiro curso de teologia para muitos bispos.[2]

 

Depois de sua estadia em Roma, Pagola retorna à Espanha para o seu trabalho pastoral. Sobretudo a experiência em Jerusalém, na Terra Santa, foi de grande inspiração para ele, possibilitando sua concentração “na figura, na vida e mensagem de Jesus de Nazaré”. Como ele apontou, “a pessoa de Jesus calou muito fundo em seu coração”. Veio transformado e amadurecido. Não sentia, porém, em si a vocação de padre ou homem de altar, mas de “evangelizador da Boa Notícia de Jesus” (CAJ, 44-45). Ele aterrou numa Espanha que repercutia o clima do Vaticano II, mas também o abalo que o evento provocou, suscitando crises em muitos sacerdotes ou seminaristas. Houve, sem dúvida, um impacto secularizador, com irradiações tremendas na pastoral. Pagola sublinha que encontrou na sua volta uma diocese e um seminário “que desconhecia”, com um vivo desconcerto em numerosos estudantes e seminaristas. Pagola insere-se no ensino, mas sentia-se “cada vez menos professor e mais evangelizador” (CAJ, 49). Aderiu com empenho ao trabalho em favor da renovação da diocese em que foi alocado. Dentre o seu trabalho, o apoio decisivo em favor do protagonismo dos leigos na Igreja (CAJ, 64). Teve igualmente uma bonita atuação no âmbito da pastoral dos enfermos, escrevendo inclusive um livro a respeito, em 2004. Também se destacou no trabalho de promoção da paz, sobretudo depois de assumir a responsabilidade de vigário geral, em 1979. 

 

Entrando no cerne de sua produção teológica, sobretudo em seus estudos sobre Jesus, verificamos que aí ele encontra o seu aconchego mais confortante e substancial. Sobre o tema de Jesus, tinha escrito um livro em 1981: Jesus de Nazaret. El hombre y su mensaje. Isto significa que o tema já estava bem presente no seu coração. Quando assumiu a direção do Instituto de Teologia e Pastoral, buscou abrir mais o campo para o aprofundamento da vida de Jesus histórico. Seu grande objetivo era “aprofundar a vida do Jesus histórico para favorecer o seu conhecimento de forma sensível mas rigorosa” (CAJ, 89). Foi quando então se deu o paciente trabalho de gênese de seu livro capital, Jesus, aproximação histórica. A publicação do livro veio precedida de quase sete anos de intenso trabalho exegético, com recurso ao que havia de melhor em termos de metodologia e meios biográficos. Já intuía na ocasião que o livro poderia suscitar debate e polêmica, e isto foi confirmado por amigos que leram as provas.

 

A primeira edição do livro foi publicada em 2007, com o imprimatur de seu bispo Juan María Uriarte, a quem ele o presenteou em primeiro lugar. Ele tinha recebido uma precisa legitimação da obra por parte de dois importantes biblistas. Toda a dinâmica da produção do livro está descrita na resenha que escrevi sobre o livro para a Revista Eclesiástica Brasileira. Sobre o tema saiu também uma entrevista minha na Revista IHU-Online,  na edição de número 336, publicada em 06 de julho de 2010[3].

 

Como mostrou Pagola na ocasião, o livro nasceu de sua fé e amor a Jesus Cristo, e estimulado por essa mesma fé buscou narrar a história de Jesus de forma viva e significativa para os tempos atuais. Direciona o livro não apenas para os que se confessam cristãos, mas também para aqueles que ignoram sua realidade ou aqueles que se afastaram ou desencantaram com a igreja e buscam caminhos alternativos de vida. Sua intenção foi favorecer a aproximação histórica de Jesus “estudando sobretudo a lembrança que ele deixou nos seus”. Central para ele é o “Jesus recordado” e vivo nos seus seguidores mais próximos: “Aquela vida surpreendente e cativante, que conheceram de perto e cuja memória guardam viva no coração”[4]. E esta aproximação é contagiante: “É difícil aproximar-se dele e não sentir-se atraído por sua pessoa. Jesus traz um horizonte diferente para a vida, uma dimensão mais profunda, uma verdade mais essencial”[5].

 

A primeira edição espanhola teve um enorme sucesso, com a venda inicial de mais de vinte mil exemplares. Mas logo em seguida apareceram as primeiras e duras críticas ao livro. No início de janeiro de 2008, só na web da diocese de Tarazona “aparecerem cinco textos condenando o livro” (CAJ, 92). Dentre as graves acusações feitas contra a obra, a de que “o Jesus de Pagola não é o Jesus da fé da Igreja”. As acusações chegaram à Conferência Episcopal Espanhola (CEDF), provocando novas e difíceis resistências contra o livro. A Comissão de Doutrina da Conferência Episcopal Espanhola fez chegar suas desconfianças e críticas ao secretário da Congregação para a Doutrina da Fé (CdF), o monsenhor Ladaria. O cardeal Rouco, presidente da CEDF, em visita ao cardeal Levada, presidente da CdF, manifestou sua preocupação com o livro de Pagola. A partir daí, deu-se prosseguimento em Roma a um estudo detalhado do livro, visando sua avaliação teológica. Não encontraram, propriamente, afirmações no livro contra a doutrina da fé, mas sugeriram algumas mudanças em pontos mais polêmicos, relacionados à questão da divindade de Jesus. Pagola acolheu tais sugestões e a segunda edição espanhola já continha as modificações indicadas. O que de certa forma “salvou” Pagola de procedimentos mais duros da MCdF foi a renúncia de Bento XVI e entrada em cena do papa Francisco (CAJ, 95).

 

Foram cinco as sugestões de mudança indicadas a Pagola, e ele não se recusou a colaborar nas modificações. O que ele sublinha agora na entrevista é que a grave advertência que foi realizada sobre os efeitos negativos do livro foram, em verdade, “desmentida pelos fatos”, e o que livro estava recebendo elogios dos mais diversos setores da população, desde ateus, agnósticos, divorciados etc. O livro estava sendo lido em vários cárceres da Espanha. Os leitores  “estavam descobrindo Jesus e sentindo-se pela primeira vez atraídos por ele” (CAJ, 98). Ao comentar o ocorrido, Pagola sublinha que sofreu muito diante das resistências ao seu livro, uma “estranha experiência que nunca tinha conhecido”. Ele diz: “Às vezes me sentia rechaçado pela Igreja. Outras vezes pensava que não me importava ser considerado herege e ariano. Só esse Deus encarnado em Jesus conhece o que existe em meu coração”. O seu desejo maior era poder estar sempre junto à Igreja que amava (CAJ, 100). Mantinha, porém, viva sua posição de buscar não uma Igreja qualquer, mas uma comunidade “cada vez mais fiel a Jesus, mais plena de seu espírito” (CAJ, 100), na verdade, um “movimento curador” que foi transformando o mundo pelo serviço e amor. Estava feliz ao reconhecer que seu livro estava “fazendo muito bem a milhares de pessoas”.

 

Durante as polêmicas envolvendo a publicação do livro, Pagola recebeu apoio de todo canto do mundo. Um grupo importante de teólogos e teólogas de toda Espanha marcaram sua posição em apoio ao livro, reconhecendo o seu valor e sua fidelidade ao “método histórico-crítico”, consagrado pela exegese mundial. Dentre os apoios, um texto importante assinado pelos mais singulares biblistas e teólogos, dentre os quais: José Ignacio Gonzalez Faus, Javier Vitoria, Rafael Aguirre, Santiago Guijarro, Carmen Bernabé, Andrés Torres Queiruga, Juan Martin Velasco, Lucia Ramón, Juan Antonio Estrada. O circuito de apoio se firmava com vigor e serenidade. Outras cartas de apoio de sacerdotes foram aparecendo. Numa delas, de sacerdotes guipuzcoanos, vinha o apoio bonito, para que continuasse firme, esperançado, Naquele que sustentou sua vida e que nos ensinou a conhecer e amar”. Do Brasil, veio o apoio de dom Pedro Casaldáliga, reiterando a boa fundamentação do livro e sobretudo a bonita vivência a ele subjacente. Para o bispo catalão, de profética atuação no Brasil, o livro revelava “um autêntico testemunho” e muito oportuno para a ocasião (CAJ, 105).

 

Durante toda a polêmica, a presença amiga e o apoio de José Ignacio Gonzalez Faus, prestigioso teólogo e biblista. Ele estava surpreso pelos ataques ao livro, uma vez que a obra tinha aproximado tanta gente de Jesus. O mesmo ocorreu com Juan Martin Velasco, que louvou a produção, num tempo tão carente de cristologias mais abertas e livres com respeito às vinculações a dogmas e próximas aos Jesus vivente. Pagola lembra ainda do apoio que recebeu do teólogo jesuíta José Maria Castillo, aquele que o defendeu com mais audácia. Para Castillo, o livro “encontrou mais acolhida que nenhum outro livro de teologia escrito em língua castelhana nos últimos tempos” (CAJ, 107).

 

Após a produção do livro, Pagola continuou nesse precioso trabalho de divulgação do “Jesus recordado” pelos seus discípulos. Vale citar os volumes em tornos dos quatro evangelhos: O caminho aberto por Jesus, publicado na Espanha em 2010, já traduzido ao português pela editora Vozes. Escreveu também É bom crer em Jesus(reediação ampliada), em 2012. Mais recentemente, A boa notícia de Jesus, em 2016 e Jesus, mestre interior, uma leitura orante do evangelho, em 2019. Ao comentar sobre este último livro, Pagola sublinhou a importância de retomar a vitalidade de um Deus presencial, aberto ao conhecimento sensível de todos. Fala também da importância de reavivar “a espiritualidade revolucionária de Jesus”. Trata-se de uma espiritualidade animada por “uma força humanizadora e um potencial de luz para abordar os problemas do mundo de hoje, e que dificilmente se poderá encontrar por outros caminhos de espiritualidade” (CAJ, 134). 

 

Pagola mira seu foco num Jesus que nos favorece caminhar seguros e serenos, num Jesus que nos convida a um “mundo mais humano, fraterno e solidário, mais digno e bem aventurado para todos”. Sob o influxo de Leonardo Boff, foi sendo igualmente desperto para a necessidade “de uma espiritualidade criadora de responsabilidade ecológica” (CAJ, 135).

 

Concluindo, o que percebemos nesse lindo trabalho e nessa linda vocação evangelizadora de Pagola, é o desejo límpido de “estabelecer uma qualidade nova de nossa relação vital com Jesus”. É também o desejo de “recuperar o ´seguimento` de Jesus como “o centro nuclear do cristianismo” (CAJ, 114). Vemos em seu trabalho uma fina sintonia com o projeto do papa Francisco.

 

Ao final do livro, Pagola revela que, depois de todo esse seu trabalho, reconhece a beleza de uma vida marcada pelo agradecimento: “viver agradecido”, sobretudo a Deus, que possibilitou “o grande presente da vida”. Agradece igualmente a possibilidade concedida a ele de publicar um livro tão fundamental, JesusAproximação histórica. A publicação dessa obra foi para ele o “momento culminante” de sua vida (CAJ, 137). Reconhece com alegria que na presente etapa de sua vida, deixa-se abandonar à misericórdia de Deus (CAJ, 138).



[1]As citações utilizadas no meu texto estarão abreviadas com a sigla CAJ (Creyente Apasiondo por Jesus), seguida da página indicada no texto.

[2]José Oscar Beozzo. A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 195-198.

[4]José Antonio Pagola. Jesus, aproximação histórica. Petrópolis, Vozes, 2007, p. 528.

[5]José Antonio Pagola. Jesus, aproximação histórica, p. 22.

sábado, 22 de outubro de 2022

As neblinas e o vapor do mal

 As neblinas e o vapor do mal

 

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

 

Há tanto tempo estudando Grande Sertão:Veredas, tendo desvendar com cuidado e atenção o difícil tema do Mal e do Demo. 

 

Em minha viagem à Espanha, pude conversar profundamente sobre o tema com o amigo Pablo Beneito Arias, especialista em Ibn Arabi. Sua visão da positividade é incrível, e com o olhar da mística sufi é capaz de perceber para além do bem e do mal a presença de uma dinâmica da graça e misericórdia do grande mistério, que tudo envolve.

 

Eu, por minha vez, influenciado por Grande Sertão e pela leitura de Antonio Candido, em seu precioso artigo sobre "O homem dos avessos", vejo o ser humano como marcado profundamente por ambiguidade. 

 

Não consigo mais me deter naquela visão cristã, aprendida e desenvolvida na teologia, na qual capta-se no íntimo do ser humano a presença do bem. Vejo, agora, que ali no fundo estão juntos, entrelaçados, a "vozinha do bem" (o ponto virgem, como diz Hallaj, Massignon e Merton) e o "vapor do mal", como expresso por Rosa no GSV. 

 

Em passagem brilhante do texto de Antonio Candido sobre a ambiguidade do ser humano, do lado torvo ou crespo que o habita, entramos de cheio no grande paradoxo do livro GSV: ter que pactuar com o demo para alcançar o bem. Cito aqui o trecho de Antonio Candido:

 

"Para vencer Hermógenes, que encarna o aspecto tenebroso da Cavalaria sertaneja - cavaleiro felão, traidor do preito e da devoção tributadas ao suserano - é necessário ao paladino penetrar e dominar o reino das forças turvas. O diabo surge então, na consciência de Riobaldo, como dispensador de poderes que se devem obter; e como encarnação das forças terríveis que cultiva e represa na alma, a fim de couraçá-la na dureza que permitirá realizar a tarefa em que malograram outros chefes"

(A.Candido. O homem dos avessos. In: Eduardo Coutinho (Org). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 303).

 

O momento decisivo do embate entre Diadorim e Hermógenes, em luta de morte, Riobaldo não pode fazer nada, uma vez tomado pela presença do demo... O que pode é apenas ver, do alto, a sangrenta luta de faca, onde a vitória sobre o cavaleiro felão se dá, mas, ao mesmo tempo, Diadorim também perde a vida. 

 

A dor que envolve Riobaldo depois do ocorrido provoca nele a decisão de deixar a jagunçagem, e vem salvo da depressão pela presença amorosa de Cumpadre Quelemém.

 

Estamos diante de um tema extremamente difícil, que tem irradiações profundas no momento político brasileiro em que vivemos. Estamos, radicalmente, diante da presença do mal, expressa pela figura tenebrosa de um presidente que se enquadra muito bem na imagem da sintonia com o mal. 

 

E um mal que vem corroborado por mais de 1/3 da população brasileira. A pergunta que fica para nós: em que medida teremos que, de alguma forma, fazer o pacto para vencer esse Hermógenes do tempo atual...