terça-feira, 13 de abril de 2010

Santo Antônio Fujão

Apresentação

 

Faustino Teixeira

PPCIR/UFJF

 

Os dados sobre as religiões no Brasil, registrados no último Censo do IBGE, em 2000, mostram uma clara diminuição do catolicismo, que em termos percentuais cai de 83,8%, registrado no Censo de 1991, para 73,8% da população (Censo 2000). Vale, porém, registrar que em determinadas regiões onde predomina o “catolicismo santorial”[1], a presença do catolicismo permanece vigorosa, como nos estados do Piauí (91,3%), Ceará (84,9%), Paraíba (84,2%) e Maranhão (83%). O estado de Minas Gerais também mantém um índice maior do que o nacional, com 78,9% de católicos declarados[2]. O Censo dá a entender que, curiosamente, onde “a teia de símbolos e valores católicos tradicionais”, enraizados na cultura local, revela-se mais forte e determinante, fica mais difícil a penetração de outras expressões religiosas[3].

 

O “catolicismo santorial” é um catolicismo que vem pontuado pelas festas e devoções populares. Trata-se de uma das formas mais tradicionais do catolicismo presente no Brasil desde o período da colonização. Tem como eixo aglutinador o culto aos santos. Foi esse culto que marcou a peculiar dinâmica religiosa brasileira, de caráter predominantemente leigo, seja nas confrarias e irmandades, seja nos santuários, capelas de estrada e oratórios domésticos. O catolicismo brasileiro foi durante muito tempo um catolicismo de “muita reza e pouca missa, muito santo e pouco padre”. Nessa malha específica de catolicismo alguns elementos se destacam, como a crença no protetor, a força das promessas e o toque da emoção. De forma muito especial, os santos ocupam aí um lugar de destaque, manifestando a presença de um “poder” especial e sobre-humano, que penetra os diversos espaços da vida cotidiana e favorece a proteção diante das incertezas da vida.

 

No cenário devocional católico brasileiro destaca-se a presença de Santo Antônio (1195-1231), que é invocado seja como “Santo Antônio de Pádua” ou “Santo Antônio de Lisboa”. A devoção ao santo foi introduzida no Brasil no período colonial, e o seu culto assumiu uma importância crescente, sendo hoje um dos mais populares e difundidos no Brasil. A reputação de Santo Antônio deve-se, sobretudo, às narrativas de seus milagres. É muito conhecido o responso de Santo Antônio, atribuído a São Boaventura:

 

“Se milagres desejais, recorrei a Santo Antônio

Vereis fugir o demônio e suas tentações infernais.

Recupera-se o  perdido, rompe-se a dura prisão,

E no auge do furacão, cede o mar embravecido.

Pela sua intercessão, foge a peste, o erro, a morte,

O fraco se torna forte, e torna-se o enfermo são.

Todos os males humanos se moderam, se retiram,

Digam-nos aqueles que o viram, e digam-nos os paduanos”[4].

 

No Brasil, o santo vem conhecido apenas como Santo Antônio e assume entre nós uma faceta peculiar de “alegre”, “bonachão” e “festeiro”. Daí ser um santo que penetra a intimidade das casas, e possibilita a criação de laços de grande intimidade e ternura com seus fiéis. Possui ainda a fama de santo casamenteiro, estando os pedidos de namoro e casamento os mais comuns entre os conteúdos das promessas a ele realizadas. É tal a familiaridade que se estabelece no Brasil entre os devotos e o santo, que sua imagem é objeto de certas punições ou “castigos”, quando a promessa não vem realizada:  a retirada do menino Jesus dos braços do santo, a imersão da imagem na panela de feijão fervendo, a colocação do santo de cabeça para baixo ou o seu arremesso no fundo de um poço[5].

 

A devoção a Santo Antônio na cidade de Juiz de Fora acompanha a fundação da cidade. A presença da imagem dedicada ao santo, na região do Vale do Paraibuna, a devoção que se firma ao seu redor e sua institucionalização, são elementos agregadores importantes no processo de afirmação da cidade mineira. Foi o primeiro santo cultuado na região, e os raios de sua presença e capilaridade são duradouros: é nome de uma das principais ruas da cidade, da catedral metropolitana, da casa de formação do clero diocesano e de um tradicional bairro da região.

 

O livro de Antônio Carlos Ferreira busca responder a esse importante desafio: investigar a introdução da devoção a Santo Antônio na cidade de Juiz de Fora. O objetivo do trabalho vem assinalado logo na introdução: “demonstrar como a devoção a Santo Antônio chega à região de Juiz de Fora e como ela vai paulatinamente galgando espaços, institucionalizados ou não, a ponto de se tornar a devoção mais importante do catolicismo local, participando, inclusive, como elemento agregador do processo de fundação da cidade”.

 

Partindo de uma reflexão sobre o catolicismo popular tradicional, o autor busca desenvolver o processo de introdução da devoção a Santo Antônio na região de Juiz de Fora e sua consolidação na cidade. O toque singular da pesquisa encontra-se no terceiro capítulo, quando vem abordado o tema da institucionalização da devoção ao santo. Nesse momento, aborda-se a questão do “santo fujão”, que traduz um traço característico de narrativas comuns na sociedade colonial: de imagens que “fogem” dos lugares institucionalizados e retornam aos espaços do culto original. O autor busca trabalhar os relatos existentes sobre a procissão que levou a imagem de madeira do santo para a matriz, do outro lado do rio, e o seu retorno imprevisto – na calada da noite -, para o seu antigo e popular abrigo. Para o autor, essa saga do santo fujão traduz uma “resistência no âmbito religioso” contra a dinâmica institucionalizadora e romanizadora. Identifica-se no episódio uma “senha” que, detidamente analizada, “demonstra um processo de expropriação do mais forte contra o mais desprotegido, que só contava, dentro de um modelo do catolicismo popular tradicional, com o seu Santo Padroeiro, que de resto, pouco pôde operar para socorre-lo, numa sociedade originariamente secularizante”. O desfecho do caso, como sublinha o autor, foi diferente de outros lugares do Brasil. Em nova procissão, a imagem é novamente levada para a matriz, e o santo acaba conformando-se em seu estabelecimento no centro do arraial: “depois de muito vigiado, custodiado, dia e noite (...), o Santo Antônio não teve alternativa, senão conformar-se com a nova situação de culto oferecida. Aceitou a condição que as autoridades da época, gentilmente falando, lhe ´propuseram`”.

 

A presente obra foi originalmente apresentada como dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. Trata-se de um trabalho sério e importante, que exigiu um cuidadoso trabalho de investigação histórica e bibliográfica, cujo resultado revela-se muito positivo. O seu autor é uma presença conhecida e querida no bairro Santo Antônio, onde atua como professor. Estabeleceu laços duradouros com o bairro, antes conhecido como “Morro da Boiada”, lugar singular onde para ele “pulsa a alegria de ter sido o primeiro sorriso da cidade e a dor de uma imagem perdida”. O leitor tem muito a ganhar e a aprender com esse livro.



[1] Cândido Procópio F. de CAMARGO. Católicos, protestantes, espíritas. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 32.

[2] Antônio Flávio PIERUCCI. “Bye bye, Brasil. O declínio das religiões tradicionais no Censo 2000. Estudos Avançados, v. 18, n. 52, setembro/dezembro 2004, p. 20.

[3] Carlos Rodrigues BRANDÃO. Crença e identidade. Campo religioso e mudança cultural. In: Pierre SANCHIS (Org.). Catolicismo: unidade religiosa e pluralismo cultural. São Paulo: Loyola, 1992, p. 51; Marcelo Ayres CAMURÇA. A realidade das religiões no Brasil no Censo do IBGE-2000. In: Faustino TEIXEIRA & Renata MENEZES (Orgs). As religiões no Brasil. Continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 41.

[4] Apud Monique AUGRAS. Todos os santos são bem-vindos. Rio de Janeiro: Pallas, 2005, pp. 86-87.

[5] Renata de Castro MENEZES. A dinâmica do sagrado. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004, pp. 160-161.

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