quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Falo Delas

 Falo delas 

Faustino  Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

Mônica Hortegas

Editora Venas Abiertas, 2021

 

São encantadores os poemas de Mônica Hortegas, minha ex-orientanda na pós graduação do PPCIR, na UFJF, e hoje uma amiga querida. Fez uma linda tese doutoral sobre o boi e o pastor. Delicio-me com seus poemas do recente livro: Falo Delas. Cito um deles:

 

Sou cidadã do mundo

colombiana por parte de minha mãe

espanhola e italiana por parte de pai.

Falo inglês e espanhol. Já pisei

três continentes e vivi em seis países.

Mas meus poemas só saem em português.

Se minha alma fala um idioma

é apenas este.

E ele às vezes sangra,

se enfurece com as guerras.

Outras tantas, dança 

e tem esperança de um dia

o mundo ter paz.

 

Cada poema de seu novo livro, Falo Delas, provoca um encantamento. Eles falam da “força das mulheres”, de sua “coragem de parir”. Das mulheres que “sabem limpar a casa e secar lágrimas”. Adoro o seu sotaque carioca, e vejo com carinho essa sua adoção de Minas Gerais, e seu amor pelos trens. 

 

Diz que Minas a recebeu bem e a acolheu, chamando-a de filha. Tem um carinho especial por seus filhos e sua casa... e os poemas vão nascendo, “desavisados, entre uma faxina e outra”. É um luxo, como dia, mas também uma alegria que partilha conosco.

 

É poeta atenta ao cotidiano, ao canto das coisas, admira-se com o sibilar dos pássaros, que a acordam diariamente anunciando um dia de paz. Diz que eles não guardam rancor de sua ignorância, e “voltam todos os dias”. 

 

É naturalmente contemplativa, deixando-se cobrir por “silêncios e estrelas”. E seu amor pelos bois, pelo mar, “denso e profundo”, que leva consigo e provoca inspiração. E anseia: “Quero esse grito estridente das ondas revoltas que me constitui”. Também é corajosa e ousada, com “pernas andantes para ir para bem longe”.

 

Aqueles homens “barbudos e sérios”, diz a poeta, enganam-se tremendamente com sua visão de Deus pairando em nuvens, de um Deus distante e sem pathos. Eles, na verdade, “não sabem de nada”. Deus, sim, “se encontra em cada respiração, em cada passo nosso, em cada célula de nosso corpo”.

 

Em seu último livro, mostra um lado ousado e bonito, falando corajosamente no lugar de mulher. Desvenda sem pudor, lados preciosos do corpo como a vagina:

 

Lugar feio, lugar sujo.

Feio? Lugar?

Este não-lugar

onde, de forma rara,

percebe-se o não-tempo,

o infinito.

Para adentrar suas portas

há de se ter coragem

de entregar todas as joias, 

despir a roupa,

abrir mão do próprio ser

e tornar-se transparente.

Gozo, orgasmo.

Deus! Deus!

 

Mônica nos revela uma visão erótica de Deus: 

 

Deus está entre nossa coxas

e goza no gozo

do prazer embriagado

do nosso orgasmo.

Deus faz-se humano.

 

Ela tem consciência de que cada mulher, com sua singularidade, é feita “de carne, pelos ossos”, rompendo os preconceitos que envolvem a ideia da “mulher correta”, que “tem que cruzar as pernas, não fala palavrão, não usa roupa decotada, não chega em casa tarde, não fica, só namora”. E desvenda com vigor a arte de amar: 

 

Fazer amor é

tatear seguro.

É sentir o cheiro conhecido

e saber exatamenteo tempo do outro.

 

Meditação é também “o corpo que sente”, o corpo que sofre, queima e, tranquilamente “bebe do amado e se ilumina”. 

 

Diz com razão que “sentimentos mornos não produzem poesia”. Há que buscar o excesso, sabendo que a vida não é só o ritmo cansativo dos dias comuns, mas que é “ensaio e erro”, é “nadar contra a correnteza”. 

 

Contrariando Freud, Mônica rebela-se com a ideia de as mulheres são carentes de falo. Diz, com razão, que “o corpo inteiro da mulher é seu falo”, e grita horizontes novos, de uma sabedoria inédita.

 

Com sua simplicidade e ternura, Mônica nos ajuda a visualizar um horizonte bonito:

 

O que é normal

é o amor delicado,

cuidar e ser acariciado.

Caminhar junto

e em pequenos detalhes

ainda estar apaixonado.

 

Diz com alegria que quando “um único casal se beija faz o planeta dormir em paz”. Tudo regado por um prazer que “vem de dentro”. 

 

Amor para ela não pode ser morno, mas algo capaz de “resgatar a beleza, os talentos, a textura da fala, o movimento dos cabelos. Resgatar a palavra, o olhar frente à vida”.

 

Essa é a poesia particular de Mônica, com seu jeito de traduzir a meditação sublinhando a alegria do corpo: “Meu Buda tem nome e é de carne e osso”. Vida, vida, vida, esse é o seu mais lindo lema:

 

É preciso ter a boca

cheia de flores.

 

Termina seu livro com um conselho:

 

Se fosse dar um conselho,

daria apenas este: amem. Do amor

que temos dentro, todas nós saberemos

encontrar como fazer parte

dessa história que é a vida.

 

A sabedoria dos Xamãs da tradição tolteca

 A sabedoria dos Xamãs da tradição tolteca

 

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

 

Dentre as novidades da Editora Vozes, aconselho o livro de Don Jose Ruiz, A sabedoria dos xamãs, uma obra lançada originalmente em 2018 e lançada agora no Brasil em 2022. O autor é filho de Dom Miguel Ruiz, conhecido por seu precioso livro sobre Os quatro compromissos, em torno da filosofia tolteca. Com Jose Ruiz, retomamos o tema da tradição tolteca, concentrando-se na compreensão e função dos xamãs. O autor busca quebrar o preconceito existente em torno do lugar dessa autoridade religiosa, muitas vezes associada às figuras de feiticeiros e curandeiros. Os xamãs, na verdade, seguindo a tradição do povo tolteca, são os portadores dos naguals, ou seja, da força vital que atua no interior dos seres e de todas as coisas. Os que trazem viva essa consciência são capazes de vislumbrar a presença do mistério por toda parte, daí a importância essencial concedida à natureza e o respeito sagrado por tudo.

 

Na visão xamânica, recobra-se o domínio da consciência, entendido como um movimento de inserção no mundo interior e uma atenção profunda ao momento concreto e todas as suas manifestações. Não se trata de uma atenção comum, mas regada de cuidado e generosidade. Uma atenção que envolve todos os sentidos, visando a assimilação dos contornos do real. Estamos diante de uma espiritualidade singular, de celebração da vida, aberta à dimensão expansiva do coração, em sua esplêndida capacidade de captação de tudo de belo que a vida é capaz de proporcionar.

 

O exercício xamânico, na tradição tolteca, envolve o caminho da interioridade, com a visão transparente que desvela a dinâmica do mistério no mundo interior. Os que são dotados por esse dom não se prendem a exclusivismos ou organizações estabelecidas. São pautados pelo ritmo da liberdade. São conhecidos como artistas da vida, capazes de criar obras-primas do cuidado, cortesia e generosidade. São também portadores de um potencial de cura exemplar: capazes de reconhecer o que há de sombrio do mundo das pessoas e, através da energia pessoal acumulada, trazer à luz o que é motivo de sofrimento e ajudar os outros a desentranhar a luz escondida e encontrar o caminho da transformação.

 

O otimismo vital é a marca dos xamãs, que se inspiram também na pureza do mundo animal, com sua impressionante capacidade de viver a vida com naturalidade, sem nostalgia. Trata-se do desafio de “simplesmente viver” e “estar atento”. Os xamãs costumam ter os animais como símbolos exemplares, na medida em que não se deixam transtornar pelo vício do sofrimento. Os totens animais funcionam na filosofia tolteca como inspiradores de poderes particulares. No caso do autor do livro, ele escolheu como seus animais espirituais o morcego, a cascavel e a onça. Desses animais, colhe alguns ensinamentos importantes. Do morcego, a capacidade de interagir no mundo, contornando os obstáculos; da cascavel, a capacidade de controlar os venenos interiores; da onça, para lidar com as artimanhas pacientes da ação. Inspirado por ela, o ser humano é capaz de reconhecer as potencialidades de seu dinamismo interativo.

 

Com a leitura da obra, somos provocados a entender a realidade das sombras que nos habitam, ou de comportamentos estranhos e embaçados que dominam às vezes o ritmo da nossa vida. Com as energias dos xamãs, somos potencializados a reconhecer tais neblinas interiores e construir com atenção os passos de superação dos limites. Com o exercício do olhar interior, somos convocados a desocultar a própria verdade interior, dominar os mecanismos internos que nos aprisionam, e perscrutar caminhos novos de realização pessoal.

 

Mais ao final da obra, o autor busca recuperar a tradição do Dia de los Muertos, muito celebrado no México, tendo sua origem muito antes da conquista dos espanhóis, e presente na tradição tolteca. Para além de uma perspectiva dolorista, onde as pessoas ficam agarradas e viciadas em sofrimento, a novidade apresentada pela tradição está em justamente celebrar a vida. No dia dos mortos o que ocorre é uma conexão com o nagual que está dentro e ao redor de nós. Assim sendo, o dia dos mortos é fundamentalmente uma convocação à vida, como num chamado: “Ei, você está vivo! Você não está morto, está vivo! Vamos, acorde e celebre a vida! Chega de estar morto”. Celebrar os mortos é romper com o cotidiano de dor, trabalhando um outro jeito de lidar com o luto, que está pontuado pela irrupção de vida e a permissão para continuar a música vital da alegria.

 

Estamos, assim, diante de uma obra delicada, tocada de otimismo, com exemplos e exercícios bonitos para manter aceso o ritmo da esperança e da alegria. Algo mágico acontece no coração de todos aqueles que fixam seu olhar não naquilo que os abate, mas naquilo que os conforta, como os passos bonitos que existem no cotidiano de cada um de nós. Não custa nada reviver os momentos bonitos do dia-a-dia e deixar-se habitar pela emoção do viver com significado.