domingo, 17 de fevereiro de 2013

A Igreja em tempo de espera


A Igreja em tempo de espera

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

A Igreja Católica Romana viveu nesses dias uma situação inusitada com o anúncio da renúncia do Papa Bento XVI, prevista para o dia 28 de fevereiro. Dentre os argumentos apontados para esse gesto corajoso, destacou-se a princípio a fragilidade da saúde do pontífice, mas crescem também os indícios de que conflitos internos na Cúria romana, de “lutas fratricidas”, tenham contribuído para a decisão de Bento XVI. Num pontificado marcado por turbulências, algumas iniciativas tomadas em favor da transparência eclesial e da purificação de posturas problemáticas, como as relacionadas à pedofilia na Igreja, provocaram irritação nos segmentos mais conservadores, levando o papa a uma situação de solidão e a um “tormento” interior que acabaram incidindo na sua tomada de posição. Mas como sublinhou o vaticanista Marco Politi, citando Paulo VI, não há como fugir da solidão no papado. A questão mais séria relaciona-se com a escolha dos colaboradores e a eficiência das estratégias definidas. Nesse ponto, como em outros, fraquejou o pontificado. Como sinaliza Politi, “Ratzinger experimenta o fracasso de decisões que imaginava profícuas, dá-se conta da ineficiência de quem na Cúria deveria sustentá-lo e assiste impotente a uma revolta que se propaga nos meios de comunicação”. A renúncia do papa é apenas sintoma de algo muito mais grave que ocorre no tecido eclesial, de “crise de um sistema de governo e de uma forma de papado”. Com o gesto ousado do papa, talvez sua “única grande reforma”, abre-se agora um campo novo para as mudanças necessárias na vida da Igreja Católica, para que possa se reinventar a partir do fermento evangélico. Trata-se do grande desafio que se apresenta para o conclave que vai eleger o novo papa. Os caminhos de abertura estão embaçados, pois na atual composição do colégio de cardeais que vai eleger o novo papa, todos foram escolhidos nas gestões dos dois últimos pontífices: 51 no pontificado de João Paulo II e 67 no de Bento XVI. E a grande maioria está bem alinhada na dinâmica restauradora que marcou os últimos decênios. Mas tudo pode acontecer num conclave que se anuncia complexo e demorado. A maior parte dos eleitores procede do Norte, enquanto a maioria dos fiéis católicos encontra-se no Sul. O desafio que se anuncia para o novo papa é de índole pastoral: saber responder com dignidade, ousadia e profecia aos grandes reptos de nosso tempo. Não faz mais sentido continuar na tradicional cantilena da defesa de princípios não negociáveis. Há que saber ousar com criatividade e liberdade. Como bem sinalizou Juan Arias, “o importante é que o sucessor de Bento XVI seja capaz de entender que o mundo está mudando rapidamente e que de nada servirá à Igreja continuar levantando muros para impedir que lhe cheguem os gritos de mudança que provêm de boa parte da própria cristandade”.

(Publicado no Jornal Tribuna de Minas – Juiz de Fora, em 17/02/2013)

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Rasgar os corações para reinventar a Igreja


Rasgar os corações para reiventar a Igreja

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

Em sua primeira missa depois da renúncia, na cerimônia de quarta feira de cinzas, Bento XVI serve-se da leitura do profeta Joel para sinalizar a presença de difíceis conflitos e divisões na vida da igreja católica romana. O profeta diz: “Rasgai os vossos corações e não as vossas roupas” (Jl  2,13). Diz o papa: “Mesmo nos nossos dias, muitos estão prontos para rasgar-se as vestes diante de escândalos e  injustiças, naturalmente cometidas por outros, mas poucos parecem disponíveis para agir sobre seu próprio coração”.  Tudo indica que entre as razões de sua renúncia não esteja apenas as referidas razões de saúde, mas também o esgotamento provocado pelas “lutas de poder internas” que contaminam a cúria romana.
Em editorial do jornal italiano Corriere della Sera (13/02/2013), seu diretor, Ferrucio de Bortoli trata do anúncio da renúncia de Bento XVI. O título é forte: “Uma frágil grandeza”. Aborda o delicado tema do “tormento interior” que também contribuiu para a decisão de Bento XVI. Teólogo de relevo, mas de gabinete, o papa Ratzinger não estava preparado para lidar com as querelas cotidianas da cúria romana e das espinhosas questões da vida da igreja. O autor sugere que nos últimos tempos, o sentimento de solidão deve ter sido “devastador” para ele. Foi se sentindo cada vez mais só...  Em clássica obra sobre o pontificado do papa Ratzinger, Marco Politi sublinha que o papa “experimenta o fracasso de decisões que imaginava profícuas, dá-se conta da ineficiência de quem na cúria deveria sustentá-lo e assiste impotente à uma revolta que se propaga nos meios de comunicação. Coisa ainda mais amarga: é obrigado a abrir os olhos para a rachadura radical do mundo católico com respeito à sua linha”.  Encorajado pela insensibilidade de uma cúria mais voltada para os “jogos de poder” e pelas “lutas fratricidas”, acabou firmando sua decisão de renunciar ao cargo.
As resistências da cúria foram crescendo na medida em que o papa assumiu para si a responsabilidade de questionar certos abusos em curso na igreja, sobretudo no âmbito da pedofilia. Num dos documentos mais contundentes de seu pontificado, a carta aos católicos da Irlanda, em março de 2009, resolve denunciar “o grito dos inocentes” e reconhecer os graves pecados da igreja nesse campo dos abusos sexuais. Expressa com vigor, em nome da igreja, sua “vergonha e remorso”. É a primeira vez que um papa reconhece coletivamente a culpa da instituição eclesiástica pelos  abusos cometidos ao longos dos anos por seus membros. Bento XVI rompe também com outro “muro de silêncio” ao ordenar uma investigação mais séria sobre o fundador dos Legionários de Cristo, Marcial Maciel Degollado, acusado de abusos  sexuais reincidentes contra seminaristas. Tudo isso irritou segmentos conservadores da cúria, que preferiam manter o tradicional silêncio a respeito.
 Mas como diz com acerto Marco Politi, em artigo publicado no dia 14/02/2013 no Il Fatto Quotidiano, a solidão em que o papa se viu envolvido, tem a ver com os colaboradores que ele próprio escolheu ao longo de sua atuação no Vaticano e a carência de eficiência nas estratégias de realização de seu projeto. Como diz o adágio espanhol: “Cria cuervos que ellos te sacarán los ojos”. Essa é a verdade. O que acabou ocorrendo em âmbito mundial, foi uma crescente desafeição dos fiéis e da opinião pública com respeito à instituição igreja e também ao seu líder, como também mostrou Politi em seu ousado artigo.
Trata-se de um pontificado turbulento, dizem os analistas, pontuado por muitas indefinições e gafes: envolvendo posicionamentos negativos sobre os gays e os preservativos, sobre o celibato eclesial, a atuação das mulheres, de impasses na relação com o islã, titubeios ecumênicos, concessões aos lefebvrianos, infeliz reedição da oração de sexta feira santa que tanto desagradou segmentos do judaísmo e posicionamentos críticos contra o pensamento teológico mais aberto. Politi sublinha que a obsessiva repetição dos “princípios não negociáveis” provocou, na verdade, “um cisma subterrâneo, silencioso mas profundo, no âmbito do Povo de Deus”.
A renúncia do papa foi talvez sua “única grande reforma”, como salientou Politi. Não foi um gesto qualquer, mas um ato de governo de grande alcance, um profundo ato de “magistério spiritual”. Daí ter provocado novamente a irritação da ala conservadora da igreja. Um ato que guarda consigo um significado preciso, de “dessacralização” de um cargo, de visualização de seu limitado alcance. Como pontuou Ernesto Galli em editorial do jornal Corriere della Sera (13/02/2013), o gesto de Bento XVI coloca em discussão “o modo de ser da estrutura central do governo da igreja”, abrindo também espaço para sinalizar os limites da própria instituição, os costumes arraigados e os sombrios jogos de poder.
Com a renúncia abrem-se novas possibilidades de mudança no campo eclesial, como mostrou John L. Allen Jr, em artigo publicado na Folha de São Paulo (14/02/2013). Ela pode, “na realidade, abrir espaço para um conclave mais inclinado a colocar a igreja num rumo diferente”, e ele indica três razões: a quebra de normalidade, com a possibilidade de surpresas no âmbito de uma tradição tão conservadora; o indício de que “a igreja precisa de um reinício”; e a realização de um conclave “livre do efeito funeral”, favorecendo um espaço de mais liberdade para decisões novidadeiras.
Coloca-se agora em evidência a necessidade de uma reinvenção da igreja, de um novo tonus spiritual que illumine a instituição e seus fiéis para fazer frente à crise atual da cristandade. Trata-se de um aceno importante para o conclave que se anuncia. A necessidade da presença de um pastor autêntico para guiar a comunidade dos cristãos, de alguém que saiba comunicar, antes de tudo, vida e esperança, mais que simples conhecimento teológico. Que saiba erguer sua voz ativa e profética contra as dores do mundo e mostrar a dignidade de todos, sobretudo dos mais excluídos e espoliados. O novo pontífice deve ser alguém, como mostrou com acerto Juan Arias, “capaz de entender que o mundo está mudando rapidamente e que de nada serve à igreja continuar levantando muros para impeder que lhe cheguem os gritos de mudança que provêm de grande parte da própria cristandade”.

(Publicado no Boletim REDE – Rede de Cristãos – Ano 18, 15/02/2013)

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Reflexões em torno da renúncia de Bento XVI


Reflexões em torno da renúncia de Bento XVI

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF


Partilho aqui algumas reflexões que fiz no Facebook  em torno da renúncia de Bento XVI

Muito complexa a situação da Igreja Católica Romana (ICAR). Lemos hoje, 13/03/2013, na FSP, em reportagem de Patrícia Britto, que o cardeal Cláudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo (e que participará do próximo conclave) sublinhou que “dificilmente o papa que substituirá Bento XVI mudará a forma como a igreja lida com temas considerados polêmicos” e “que será difícil simplesmente dizer sim àquilo que é proposto pela sociedade ou pelos legisladores”[1]. Essa é, infelizmente, a cantilena que sempre estamos a ouvir por parte de segmentos da hierarquia atual. Uma dificuldade incrível de ousadia e profetismo.

Impressionei-me hoje ao ler algumas notícias dos periódicos internacionais sobre a atual crise no Vaticano, em particular as reflexões de Massimo Franco no Corriere della Sera[2]. Na sua avaliação, o que assistimos hoje é o “sintoma extremo, final, irrevogável da crise de um sistema de governo e de uma forma de papado”. E fala da deriva de uma igreja-instituição que em poucos anos passou da condição de “mestra de vida” para “pecadora”, de “ponto de referência moral da opinião pública ocidental, a uma espécie de ´acusada global`, agredida e pressionada por segmentos diversificados.

 Clovis Rossi chega a falar em sua coluna na FSP de uma “guerra civil no Vaticano” [3]. E o filósofo italiano Gianni Vattimo, em seu blog – reproduzido no jornal Il fato quotidiano (13/02/2013) – sublinha que a demissão era a única coisa que um papa poderia seriamente fazer. Ele acrescenta que se Jesus vivesse hoje entre os seus pseudo-sucessores “abandonaria imediatamente o Vaticano, e talvez retornasse à Palestina para estar junto aos perseguidos e expropriados daquele lugar, e não perderia mais seu tempo, e alma, seguindo as vicissitudes da política italiana (...)”. Para Vattimo, a renúncia papal indica um distanciamento das “funcionalidades terrenas” e a necessidade de apontar, talvez, a “face anárquica, e autenticamente sobrenatural, do Evangelho”, abrindo a possibilidade para o cristianismo de se tornar novamente “uma escolha de vida possível para as pessoas de nosso tempo”[4].

Leonardo Boff fala também no último texto de seu blog[5] sobre a importância de retomada de um modelo dialogal para a igreja, de sintonia com o Vaticano II, Medellin e Puebla, de uma “Igreja-aprendiz e aberta ao diálogo com todos”, de liberdade e criatividade. E Hans Kung em seu recente livro – Salviamo la Chiesa -, indica a necessidade de um tratamento para a igreja, de uma “terapia ecumênica” que ajude a vencer a “osteoporose do sistema eclesiástico”[6]. E coloca o dedo na ferida, ao falar da necessidade imperiosa de uma reforma da cúria romana à luz do Evangelho. Uma reforma que deverá contemplar: humildade evangélica (com renúncia de todos os títulos honoríficos estranhos à Bíblia), simplicidade evangélica, fraternidade evangélica e liberdade evangélica.

Nesse delicado momento de preparação do conclave que escolherá o novo papa, os analistas chamam a atenção para problemas internos da cúria romana, que também pressionaram a decisão de renúncia de Bento XVI. Em entrevista publicada hoje no O Globo, o renomado teólogo espanhol, José Ignacio González Faus faz menção a tais pressões. Ele sinaliza: "Não estranharia que a renúncia estivesse ligada a problemas com a Cúria". O papa "já arrastava problemas com a Cúria desde que afastou do sacerdócio Marcial Maciel, acusado de abusos sexuais"[7]. Chama a atenção para aquela oração proferida pelo então cardeal Ratzinger na cerimônia da sexta feira santa em Roma, em comentário da IX estação da via sacra. Reproduzo aqui o que ele disse no ocasião:

"Quanta sujeira há na Igreja, e precisamente entre aqueles que, no sacerdócio, deveriam pertencer completamente a Ele! Quanta soberba, quanta auto-suficiência! Senhor, muitas vezes a vossa Igreja parece-nos uma barca que está para afundar, uma barca que mete água por todos os lados. E mesmo no vosso campo de trigo, vemos mais cizânia que trigo. O vestido e o rosto tão sujos da vossa Igreja horrorizam-nos. Mas somos nós mesmos que os sujamos! Somos nós mesmos que Vos traímos sempre, depois de todas as nossas grandes palavras, os nossos grandes gestos."

Segundo González Faus, os intérpretes em avaliação feita na época, achavam que ele estivesse se referindo à pedofilia na igreja, mas em verdade, os indícios apontam que poderia ser uma alusão à Cúria romana, essa mesma cúria que terá voz ativa na eleição do próximo papa em 2013.




[5] L.Boff. Que tipo de papa? As tensões internas da Igreja atual: http://leonardoboff.wordpress.com/2013/02/12/que-tipo-de-papa-as-tensoes-internas-da-igreja-atual/ (acesso em 13/03/2013)
[6] Hans KUNG. Salviamo la chiesa. Milano: Rizzoli, 2011.
[7] José Ignacio GONZÁLEZ-FAUS. “Sua maior contribuição foi a renúncia”. O Globo, 13/02/2013, p. 26 (Mundo).