sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Clarice entre luminosidade e sombras

Por indicação de Nádia Gotlib fui ler a crônica de Lêdo Ivo sobre Clarice. O título é impactante: Clarice Lispector ou a travessia da infelicidade (Revista TriploV de artes, religiões e ciências - abril 2010). Gostei muito do trabalho. O autor sublinha um dado nem sempre lembrado pelos biógrafos de Clarice que é sua passagem por Maceió. A família em sua sofrida itinerância chega em Maceió e "pôde enfim respirar o ar de segurança e esperança numa cidade nordestina". Ele fala sobre o grande impacto em Clarice da "luminosidade solar" da cidade, tão diferente daquele neblina triste de Berna na Suiça, onde Clarice viveu suas mais duras depressões.

Lêdo Ivo sinaliza que a alagoanidade de Clarice "sempre foi escondida pelos seus biógrafos e intérpretes", que passam rapidamente por esse momento importante na vida da escritora.
Quando chega ao Brasil, Clarice chega despossuída de tudo: "Na operação transplantadora ela perdeu tudo o que trazia: a pátria, a língua e o nome. Uma nova pátria se abriu a seus passos e à sua imaginação. Uma lingua nova passou a substituir a lingua perdida. E um novo nome substituiu o nome verdadeiro, perdido para sempre, e para sempre escondido".
Como mostra Lêdo Ivo, Clarice Lispector acolheu com alegria a nova lingua, naturalizou a lingua, "um idioma sola, alagoanamente solar, destinado a narrar as tribulações de pequenas criaturas rodeadas de si mesmas e desaparelhadas para efetuar o trajeto em direção aos outros; uma prosa de escancarada diurnidade mesmo quando ela fala da noite e relata a escuridão".
Não foi fácil a travessia de Clarice, desde as dificuldades de publicação de suas obras que foi encontrando pelo caminho. As resistências de críticos literários, como Álvaro Lins e Otto Maria Capeaux. Lêdo Ivo relembra os tempos de desapontamento editorial, quando quase ninguém queria publicar Clarice; e quando depois de separada de diplomata, passou por muitas dificuldades financeiras. Até mesmo nas roupas, aproveitava daquelas dos tempos áureos do mundo diplomático, "que lhe conferiam um ar dessueto e estrangeiro, de fora da estação", num "processo de sua própria destruição e infelicidade".
Das influências que sofreu, Lêdo Ivo assinala as presenças de Katherine Mansfield, Rosamond Lehman, Clemence Sane e Virgínia Woolf, com quem Clarice partilhava muitas afinidades. Reitero aqui o influxo de Katherine Mansfield, lembrado por tantos outros autores. Entre ela e Clarice havia uma
"espécie de identidade de olhar: um olhar deslumbrado e pronto para enxergar as coisas miúdas ou quase imperceptíveis, a subterrânea fervilhação d a vida cotidiana, e captar o segredo das paisagens e o mistério engasgado nas criaturas aparentemente banais - um olhar de quem está vendo as coisas pela primeira vez e consigna essa descoberta num estilo poético partilhado entre a concretudo e a evanescência".
Lêdo Ivo conclui o seu texto falando do túmulo de Clarice, no cemitério judeu do Caju, onde a lápide apenas menciona o seu nome, sem indicar a idade. E sublinha: "Foi a sua última viagem de emigrante. Agora, mudada em pó e glória, ela está, ao mesmo tempo, perto e longe do coração selvagem da vida".

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

O fardo dos inocentes: pedofilia na igreja católica


O fardo dos inocentes: pedofilia na igreja católica

No impressionante conto de Clarice Lispector, "A pecadora queimada e os anjos harmoniosos", a figura do sacerdote foi a que mais me marcou. Trata-se de alguém perpassado por dúvidas difíceis, diante da condenação de uma mulher que pecou. No fundo, ele está dilacerado diante do julgamento pois ninguém nesse mundo está livre de pecados e falhas. Em certo momento do conto ele relata: "Os inimigos do homem estão na sua própria casa". Sua grande dor estava em ser cúmplice de um "pecado de castigar o pecado".

O conto serviu de base para uma reflexão minha e de minha turma sobre o grave problema da pedofilia na igreja católica, e nas igrejas em geral. O problema é grave e universal. Imagina o que significa para o fiel viver essa experiência com alguém que deveria ser para ele um exemplo de vida...
Em matéria de página inteira do Jornal O Globo, de 06/10/2021, essa questão vem tratada de forma viva e ardente. Com o título, "Indiferença até cruel", o artigo expõe as veias abertas da pedofilia no âmbito do catolicismo mundial.
Na França são 216 mil vítimas de abuso sexual desde 1950, como apontou um recente relatório. Nos Estados Unidos conhecemos o escândalo que envolveu o ex-arcebispo Bernard Law, que encobriu os abusos sexuais envolvendo 90 padres durante décadas; na Alemanha, um relatório de 2018 apontou o abuso de pelo menos 3.677 crianças, com 13 anos ou menos, por 1.670 membros do clero entre 1946 e 2014; No Chile, outro relatório apontou a presença de 158 pessoas ligadas à igreja católica envolvidas em abusos sexuais desde 1960; na Polônia, país tradicionalmente católico, os casos de abusos sexuais também foram inúmeros. Um relatório revelou casos de abusos sexuais envolvendo 382 membros da igreja pelo abuso sexual de 625 crianças, e a grande maioria menor que 16 anos.

De forma ousada e corajosa o papa Francisco, na audiência geral de 06 de outubro de 2021, no Vaticano, retomou o relatório acolhido pela Conferência dos religiosos e religiosas franceses, redigido por uma comissão independente, a respeito dos abusos sexuais ocorridos no âmbito eclesial desde a década de 1950. Emocionado, o papa expressa sua tristeza e dor diante do que ocorreu com todas as vítimas dessa violência e mais ainda, sua vergonha, que é de todos, sobretudo pela incapacidade da igreja em colocar tudo isso no centro de suas preocupações. E partilha uma oração: "A ti Senhor a glória, e a nós a vergonha". Em seguida, encoraja "os bispos e superiores religiosos a continuarem a cumprir todos os esforços a fim de que semelhantes dramas não mais se repitam".
O caso dos Legionários de Cristo e de seu fundador, Marcial Maciel Degollado, foi desentranhado por Marco Politi, grande vaticanista, em precioso livro: "Joseph Ratzinger, crisi di un papato" (Laterza, 2011). Ainda no pontificado de Ratzinger (Bento XVI) foi divulgada uma impressionante carta aos católicos da Irlanda, em 19 de março de 2010, em que o papa faz um mea culpa pelos graves pecados da igreja. Pela primeira vez, um papa reconhece coletivamente esse pecado no interior da igreja católica. E todas as vítimas, como em geral ocorre, ficaram submersas num "muro de silêncio".
Revelações impactantes nesse campo da violência sexual na igreja católica são apresentadas em filmes como Em nome de Deus (2012), O clube (2015), Spotlight (2016); Graças a Deus (2019), Não conte a ninguém (2019), Exame de consciência (2019), dentre outros.