sexta-feira, 31 de julho de 2020

Narrativa de uma Travessia

Narrativa de uma Travessia

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF


“Me dá licença de cantar
também de agradecer”

José Miguel Wisnik

Introduzindo

Sempre fui um apaixonado por árvores. É uma longa história de amor. Quando li o belo livro de Peter Wohlleben, A vida secreta das árvores, me dei conta deste maravilhamento. Um lindo aprendizado na forma de enxergar as florestas, com “suas árvores tortas, retorcidas, que antes eu considerava de menor valor”, mas que produziam encanto para tantas pessoas. Aprendi “a não prestar atenção só nos troncos e em sua qualidade, mas também em raízes anormais, padrões de crescimento diferentes e camadas de musgo na casca das árvores”. É um mundo sublime, que suscita amizades. 

Mais recentemente, lendo o livro da antropóloga Anna Tsing, Viver nas ruínas, meu aprendizado sobre as árvores ganhou em complexidade e beleza. Ela lança um lindo convite para quem busca se aventurar numa floresta. É o desafio de olhar para baixo e poder perceber a teia de vida que se encontra sob os pés, ou seja, uma “cidade” envolvida por malhas e emaranhados, de ação e interação. Nesse mundo subterrâneo existe uma ciranda vital, onde ocorrem “transações cosmopolitas”. Infelizmente nós, humanos, ignoramos esse cosmopolitismo e “construímos nossas cidades através da destruição e simplificação, derrubando florestas para substituí-las por plantações para cultivo de alimentos ou para viver no asfalto e concreto”.

O que é, porém, mais impressionante, é que apesar de toda destruição que ocorre por toda parte, não se impede a “ressurgência”. As violentas “perturbações” provocados neste tempo do Antropoceno não apontam para o fim do mundo, e vemos, admirados que as “ecologias habitáveis retornam: “Depois de um incêndio florestal, as mudas brotam nas cinzas e, com o passar do tempo, outra floresta pode crescer após a queimada”. Esse despertar da floresta e das matas é um exemplo fantástico do que significa “ressurgência”, como tão bem expressou Anna Tsing.

Um tempo de ressurgência

            Interessante que isto ocorreu analogicamente comigo, nestes últimos tempos. Passei por uma devassa corporal, que corroeu o meu organismo, em razão de uma grave doença, a mielofibrose, uma espécie de câncer no sangue, que produz fibrose na medula óssea. Cheguei a atingir o nível 3 de fibrose, num máximo de 4. A situação estava ficando brava para mim e os recursos médicos, existentes, potentes, podiam falhar a qualquer momento. Para vocês terem uma ideia, tomava um medicamento suíço, Jakav, cujo custo era de R$ 24.000,00 por mês, e foi coberto pelo meu plano de saúde. Ele foi o recurso disponível que tive por cerca de dois anos para manter minha doença sob certo controle. Os leucócitos, porém, teimavam em manter altos índices, permanecendo em torno de 24.000 ou 21.000, em momentos melhores. Todos os meses tinha que fazer o exame de sangue para controlar a doença. Uma situação bem delicada, que provocava aquela ansiedade mensal de ter que verificar os resultados pela internet e logo comunicar com meu doutor Ipê, conhecido em minha cidade, Boa Esperança, como uma das maiores autoridades no assunto.

            Ainda não me apresentei... Meu nome é Teixeira, um belo nome de árvore, muito comum na Península Ibérica, de nome científico Taxus Baccata, que chega a alcançar vinte metros de altura. Moro há algumas décadas numa cidade mineira, chamada Boa Esperança. É uma cidade mais fria e muito úmida, mas gosto muito de morar aqui. Venho de uma família numerosa, de uma matriz sadia, cultivada na reza e devoção. Meu pai era médico e minha mãe uma pessoa muito especial, que ainda vibra nos seus quase 103 anos. 

            O meu adoecimento foi percebido em 2005, quando depois de uma visita de rotina ao cardiologista ele se deu conta de um aumento do hematócrito. Foi quando me encaminhou ao hematologista, dr. Ipê, que depois de exames constatou a presença de uma doença mieloproliferativa, de nome curioso: policitemia vera. Por anos tratei pela forma tradicional, com as sangrias. Comecei então a frequentar o hemocentro da cidade e vivi uma primeira experiência delicada de exposição pública. As sangrias eram realizadas numa sala grande, com algumas cadeiras e várias camas, onde pessoas com problemas no sangue faziam seus tratamentos: em geral transfusão de sangue, plaquetas, sangrias etc. No início não foi fácil, em razão da dor das picadas, com aquelas agulhas mais calibrosas e o tempo de duração do procedimento, nunca superior a 30 minutos. O difícil era estar ali, diante dos outros, alguns sofridos, com leucemia ou doença falciforme. E as idas e vindas dos técnicos ou familiares acompanhantes. Eu ali, sempre acompanhado por minha esposa, Magnólia, no estranhamento diante dos olhares dos outros. Depois fui me acostumando. Lembro-me que no início adotei uma postura equivocada que foi ler tudo que podia na internet sobre a doença, e foi duro para mim. Vivi na pele a experiência da impermanência, constatando que minha vida seria diferente depois disso, ainda que os médicos me dissessem que disso eu não morreria. Não sabia ainda na ocasião que a doença poderia se desdobrar no futuro em mielofibrose ou leucemia aguda. Fui levando por anos a sangria, que controlava inicialmente o nível do hematócrito. Com o tempo, perdeu-se o controle do aumento dos leucócitos, e tive então que mudar de procedimento, com a adoção de um medicamento paliativo, que pudesse regular o índice dos leucócitos. Foi quando comecei a tomar a hidroxiuréia, que no início comprava e depois passei a receber pelo SUS. O medicamento foi eficiente no início, mas provocou com o tempo mudanças no meu corpo, com manchas nas unhas do pé e um escurecimento do corpo. Foi quando fiquei parecido com um indiano. Certamente, outros efeitos ocorreram no meu corpo, tanto que meu médico temia um uso prolongado dele. 

Com o tempo, depois de um doloroso exame de biópsia da medula, e a consciência da presença do JAK 2, veio a confirmação de uma mielofibrose. Repeti outras duas vezes, em momentos distintos, o mesmo exame, sempre muito sofridos, pois sem anestesia. Segurava firme na mão de Magnólia e aguentava o tranco daquela poderosa agulha que penetrava o meu osso para atingir o alvo necessário. Foi quando passei para o Jakav (Ruxolitinibe), não sem dificuldade, pois o medicamento novo não estava ainda na lista da Anvisa. Cheguei a aguardar por um ano, com um processo, a aprovação no SUS.  Consegui a vitória, mas nesse ínterim, o medicamento entrou na lista oficial da Anvisa, e o plano de saúde, depois de duas negativas anteriores, assumiu bancar o tratamento, com muita eficiência, pois todos os meses o Jakav chegava aqui em casa com regularidade impressionante. O dr. Ipê, que nunca chamava pelo título, era amigo da família e tornou-se mais do que um amigo para mim Revelou-se um anjo, que com grande ternura e carinho acompanhou todo o processo com a delicadeza que lhe é característica. O seu temor maior era que com o tempo, algo mais problemático pudesse acontecer comigo. Lembro-me que em 2010, mais ou menos, ele chegou a falar por alto em possibilidade de transplante de medula óssea. Nunca me esqueci de sua pergunta: “Quantos irmãos você tem? E qual a sua idade?”. Respondi: “Somos 13 irmãos e tenho 55 anos de idade”. E em seguida, pensativo, indagou: “Penso não ser o caso de um transplante de medula!” Foi algo que me assustou muito na ocasião, mas de forma inconsciente fui me preparando espiritualmente para essa possibilidade. Depois de dois anos com o Jakav, já em 2019, preocupado com a dimensão de meu baço e o índice dos leucócitos, sugeriu o procedimento do transplante, que prontamente aceitei, apesar do susto! 

Iniciei, então, com afinco, o trabalho de preparação interior para o transplante. Li também bastante a respeito, bem como conversei com Magnólia,  parentes e amigos da área de saúde, que reforçaram a importância do procedimento. Tinha urgência, pois a idade máxima para o transplante seria 65 anos, e eu já estava com essa idade, e em julho de 2020 completaria 66. Era o momento único para o processo. Aí veio a pandemia da Covid, que quase prejudicou os planos, mas consegui, por sorte e empenho do Ipê, realizar a internação no hospital de São João em tempo, no mês de junho de 2020. Antes tínhamos feito exames com quatro irmãos, e um deles, Garapa, revelou-se 100% compatível comigo.

O transplante vem precedido pela preparação do doador, que precisa tomar injeções de filgrastine, por cinco dias, para ativar as células tronco. A cada dia, em tempos de Covid, ele foi ao hospital para o procedimento. O protocolo indicava que nesse período eu já teria que estar internado, o que ocorreu numa sexta feira, dia 12 de junho de 2020. O protocolo exigia que antes fizesse junto com minha esposa o exame da Covid, que deu negativo para os dois. No dia anterior, aqui na porta de minha casa, para minha grande emoção, os irmãos, cunhadas e alguns sobrinhos, onze ao todo, fizeram uma serenata muito bonita e simbólica, que da janela do meu quarto pude admirar com alegria. Era uma despedida e desejo espiritual comum de uma boa sorte no hospital.

A internação veio precedida por muitas mensagens de apoio, de torcida firme para o sucesso da empreitada, como uma mensagem que recebi do amigo Leonardo Boff, em 10 de junho de 2020, um pouco antes da internação:

Querido amigo Teixeira

A leitura de sua via-sacra me impressionou muitíssimo. Jamais imaginaria
que todo aquele entusiasmo e vibração que demonstrava, escondia muito
sofrimento, resiliência e luta pela vida.

Creio que a mística foi o sua medicina mais eficaz. Deu-lhe aquela
dimensão interior de acolher a condition humane frágil, vulnerável e, por
fim, mortal. Vc percorreu esse caminho com coragem sem perder a alegria de
viver, de trabalhar e de levar o peso da vida adiante.

Foi bom vc ter colocado esse seu padecimento no seu blog. Seguramente vai
ajudar a muita gente que passa por semelhantes travessias. Vc passou por
todas elas o que nos dá a esperança, diria, a certeza de que o transplante
será a última e derradeira travessia para uma vida saudável e plena. Mas
no fundo, vc sabe, estamos todos na mão do Deus que é Pai maternal e Mãe
paternal que nunca nos abandona. E não vai abandoná-lo agora.

A Internação ocorreu logo cedo, por volta de 09:30, sempre acompanhado por minha companheira Magnólia. No início quiseram barrá-la em razão da idade e do Covid, mas depois foi liberada e subimos para o quarto, que ficava num andar totalmente desocupado, o que foi muito bom e seguro. No mesmo dia começaram os exames. O protocolo do transplante indicava que deveria suspender o Jakav por 14 dias antes da internação. Houve um efeito rebote que provocou lesões no couro cabelo, nos pés e outras partes do corpo. Tive então que aproveitar o início da internação para fazer exame de sangue, raspagem de uma unha afetada e exame de swab, no anus, nariz e pé, bem como biópsia de dois fragmentos, um na perna e outro na barriga. Fiz ainda uma tomografia dos seios nasais. Tive também que raspar a barba, depois de décadas com ela. Na verdade, nunca tinha raspado a barba na vida, só mesmo aparado.

Eu, que sempre gostei de estar entre as árvores, morando num condomínio bem arborizado e tendo um sítio – Faixa de Gaia – com mais de duzentas árvores que eu mesmo plantei, tive que me submeter a um quarto sem janelas, para empreender o que chamei de Grande Travessia em cabine interna. O que levei comigo? Foi uma escolha feita a dedo. Escolhi uma coleção da obra completa de Beethoven, produzida pela Deutsche Gramophone, comprada recentemente na Europa. Também alguns filmes, incluindo Asas do Desejo (Win Wenders) e O carteiro e o poeta. Ainda três livros: a biografia de Lévi-Strauss (de Emmanuelle Loyer), as crônicas de Clarice Lispector e os contos de Guimarães Rosa. Acabei só conseguindo ler, na verdade, a biografia de L. Strauss, de 783 páginas. E nem sei como, pois a vida no hospital é cheia de interrupções e variações na saúde, fora a loucura de tantos medicamentos, quimioterapia, imunossupressor e soros... No período final, a partir do nono dia pós-transplante, consegui ler ainda algumas crônicas de Clarice Lispector, parando numa maravilhosa, sobre o Estado de Graça. Aquilo foi objeto de muita reflexão, e tive a ideia de levar o tema para um programa do Paz e Bem, coordenado pelo amigo querido, Mauro Lopes. Levei ainda para o hospital o meu Ofício das Horas e o Deus conosco, com as leituras bíblicas de cada dia. Todas as noites, durante os 35 dias de internação, dedicava um tempo garantido e especial para a minha meditação. Aquele tempo precioso do cuidado com o mundo interior, de que tanto falam Rilke e Etty Hillesum. Às vezes alguma passagem do Ofício ou mesmo das leituras litúrgicas, colidiam com minha percepção inter-religiosa e aquilo me produzia certo arranhão cognitivo. A irritação acabava se irradiando para o Facebook e as páginas de grupos que participo, como o de Emaús, com nomes singulares da teologia e das ciências sociais brasileira. Aconselhado pelo amigo querido, Fernando Altmeyer, levei também um anjo, que adquiri naquela tradicional igreja de Berlim, dividida ao meio pelos ataques dos aliados na II Guerra Mundial. Foi o anjo que estava ali, bem próximo de mim durante toda a minha internação.

No segundo dia de internação, no sábado, 13 de junho, continuei com os exames de rotina. Recebi a visita da doutora Mimosa, que fazia parte da equipe de médicos que me atenderam. Ela cuidava mais do meu pulmão, da pele e da garganta, evitando sobretudo os riscos de mucosite, que ocorrem em semelhantes situações. Além dela, compunha a equipe o doutor Mogno, mais tímido e precavido. Ele andava sempre com duas máscaras protetoras e tinha pavor do Covid. No início, me atendia de longe, evitando contato, para me proteger. Não tocava em meu corpo, mas fazia muitas perguntas e me explicava os procedimentos que envolveriam o transplante. Ao início temia muito pela minha sorte, em razão de ser um transplante em pessoa de idade avançada, com 65 anos, portador de uma doença grave e que tinha na contramão uma medula fibrosada, como um terreno hostil para qualquer pega. Aos poucos foi se dando conta da vantagem de meu preparo físico, num corpo ginastizado por décadas de exercícios físicos, desde o futebol, a ginástica olímpica, a capoeira e o Tai-Chi-Chuan, complementados depois por exercícios físicos em casa, com regularidade de quatro vezes por semana. No início ele dizia que eu tinha 65 anos num corpo de 55, e mostrava sua preocupação. Dizia ainda que o meu peso não ajudava, com  88 kg, não indicado para o transplante. Foi pessimista no início, e com o contato foi se entusiasmando e acreditando no sucesso. Enfatizava isso cada vez que me via. O contato foi se dando de forma mais íntima com o tempo, e as consultas ficaram mais pessoais, com o importante recurso do tato. Ele tinha preocupação com a quimioterapia. Daí ter estudado a fundo a melhor dose a ser indicada para um paciente como eu. Diminuiu a dosagem inicialmente prevista de Bussulfan, para evitar reações mais perigosas, inclusive o risco de internação no CTI ou mesmo morte. Dizia sempre um mote que ficou conhecido entre os mais próximos: “O seu transplante está saindo barato!” Podia ter sido mais violento e agressivo. Com o passar dos dias ele foi revelando que o meu “corpinho” não era bem de alguém com 55 anos, mas isso se transformou em 45 e acabou ficando em 35, sobretudo em razão do meu preparo físico e resistência a todo o processo que aconteceu.

A doutora Mimosa foi sempre muito simpática comigo. No início, examinava meus pulmões e coração com muito cuidado e demoradamente. Assim como minha pele e minha boca, buscando a melhor forma de proteção para o que poderia ocorrer. Foi ela quem receitou o antialérgico e o descongestionante nasal, que utilizei nos primeiros dias. Ela era bem cuidadosa, sempre atenta aos menores sinais que pudessem ocorrer. Preocupada com possíveis inchaços nas canelas ou nos pés, admirava-se como eles se comportavam bem, sem inchaços ou outras manifestações adversas. Abria um sorriso a cada vez que verificava que tudo estava em ordem. Fomos criando laços de proximidade e as conversas corriam soltas a cada encontro. Uma pessoa mesmo especial.

No segundo dia veio o resultado negativo do PCR (Covid), meu e de Magnólia, o que tranquilizou a equipe. Vale lembrar que o meu quarto estava bem blindado. Todos só entravam ali devidamente paramentados, com luvas, máscaras e outros apetrechos de proteção, eu e Magnólia podíamos ficar sem máscaras, o que foi um alívio. No quarto, o barulho incomodava muito, pois estavam fazendo obras no andar de baixo, e durante todos os dias, com exceção dos finais de semana, o som dos martelos e furadeiras eram constantes. Foi mais um dos obstáculos que enfrentamos em nossa Grande Travessia. 

Quando chegamos ao setor dos transplantes (TMO), tinha uma criança de um ano e seis meses internada. Tinha feito o primeiro de dois transplantes autólogos. Depois, ela e a mãe retornaram à casa com o intuito de voltar para novo transplante no mês seguinte. Ocorre que ficamos, na prática, sozinhos no quarto andar do hospital, e fui cuidado com carinho e atenção por toda a equipe de saúde, composta por três médicos, um chefe de enfermagem, três fisioterapeutas, psicólogo e equipes de enfermagem que se revezavam dia e noite. Eram sempre três pela manhã, com revezamento com outros três no dia seguinte; e dois durante a noite, com mesmo revezamento. Eram no total dez pessoas. Tinha ainda a equipe de limpeza, composta por Cambucá, Jatobá e Peroba, que se revezavam. O quarto estava sempre muito limpo. A cada dia, durante o banho, entrava uma equipe para a arrumação do quarto e troca diária da roupa de cama e toalhas. Era divertido, pois todos eram muito bem humorados, e isso facilitava com que o tempo passasse bem rápido.

Durante os primeiros dias, busquei ver alguns filmes, mas isso não deu muito certo, pois baixava um pouco o astral. Preferi então me concentrar na música, que preenchia o tempo de forma bonita, com escolhas que fazia com recurso do Spotify, numa aparelhagem robusta da JBL que levei de propósito. O quarto estava sempre sob a ação curadora da música, e isso foi objeto de admiração de todos. Uma das enfermeiras da equipe da noite, a Eugênia, sugeriu-me em certo momento fazer uma playlist para o grupo, e acabei fazendo. Isso foi no dia 05/07/2020, no vigésimo quarto dia de internação. Foi uma operação que gostei de providenciar, numa grande lista de músicas, que depois presenteamos a todos, com quase 30 horas de música. A lista foi depois partilhada pelos amigos e parentes, inclusive no meu Facebook.

Magnólia foi minha acompanhante permanente e teve um papel essencial durante todo o tempo, com seu carinho, atenção e sorriso cativantes. Logo no segundo dia teve, porém, um problema de joelho, ao tentar fazer sozinha um dos exercícios indicados pelo fisioterapeuta Marmelo. Ficou meio desesperada no início, diante das responsabilidades que viriam. Com ajuda de um anti-inflamatório, tudo passou até o dia seguinte. Tínhamos já acertado com um filho um possível revezamento, caso ela precisasse, mas isso não ocorreu. Foram apenas três vezes que Magnólia precisou sair para a casa e resolver alguma pendência, mas só no início da travessia. Depois internou-se comigo sem mais sair do andar. 

Digo a vocês que minha preocupação maior era com as noites, pois tenho dificuldades para dormir e faço uso de medicamentos para auxiliar no sono. Sabia que as noites seriam mais difíceis, com as inúmeras intervenções que ocorrem durante o período, até às 24 horas, retomando a partir de 05:30, mas algumas vezes um pouco mais tarde. Tinha que tirar sangue todas as manhãs e, algumas vezes, durante o final da tarde também.

No quarto dia iniciou-se a quimioterapia, prescrita pelo doutor Mogno. Como o cateter definitivo não tinha ainda chegado, comecei o procedimento através de acesso venoso periférico. Foi o dia em que meu irmão Garapa terminou suas injeções. Nesse dia comecei também com o procedimento de tratamento na boca com laser, para evitar a mucosite. O trabalho foi realizado por Eugênia e Eucalipto, dois enfermeiros treinados para isso, que se alternavam na equipe da noite. A laserterapia durou muitos dias, até a pega da medula.  Permanecia nesse dia com uma lesão nos pés, fruto ainda do abandono do jakav. Os dois primeiros dias, o medicamento da quimio foi mais leve, com o recurso da fludara, e não senti muito mal estar. Com a chegada do cateter Hickman, tive que implantá-lo em centro cirúrgico, com cirurgião especializado. Foi também uma experiência estranha, pois a anestesia não chegou a me apagar, e pude acompanhar todo o procedimento, sentindo mesmo o momento da abertura para a inserção do cateter no peito. Ao final, o doutor reagiu à minha surpresa com uma expressão singular: “Isso aqui é coisa prá macho!”. Tudo bem, mas preferia não ter acompanhado o procedimento. E já fiquei pensando na retirada do cateter, seis meses depois – mais ou menos – e ter que enfrentar novamente o centro cirúrgico.

Entrei no transplante com 88 kg, e o procedimento adotado pelo protocolo é que esse peso não podia ser ultrapassado. Caso ocorresse eles teriam que fazer recurso ao lasix. Só precisei disso no oitavo dia de internação, mas interrompi à noite, com o peso voltando ao normal. Os dois pés ainda incomodavam, pois as pústulas continuavam. Fiz então recurso ao candicort, um creme à base de corticoide, para ajudar na cicatrização. E deu certo. Nesse oitavo dia comecei a ter sérias dificuldades com a alimentação. Há que lembrar que, apesar dos cuidados da equipe da cozinha, dirigida pela Sapucaia, Sucupira e Copaíba, os alimentos chegavam quase sempre frios e, definitivamente, não abriam o apetite, que já começava a ficar debilitado com a quimioterapia. Comia bem pouco, preferindo sempre o picolé, a gelatina e a salada de frutas. 

No nono dia de internação, no sábado, 20 de junho, começou a quimio mais violenta, com a introdução do bussulfan (nunca mais esquecerei desse nome). Foi no dia de implantação do cateter Hickman. Junto com o fludara, a introdução do medicamento quimioterápico bussulfan. Isso foi por volta de 11:55 da manhã. Aí começou uma zoeira leve na cabeça, que piorou à tarde com náuseas intermitentes. Foi difícil a noite. Lembro-me que escrevi para os irmãos no dia seguinte:

É gente, o nono dia de internação foi até agora o mais difícil. Pela conjunção de acontecimentos, e sobretudo pela introdução de um violento quimioterápico (bussulfan), toquei os limites da experiência da vacuidade. Com a cabeça zonza e depois a náusea interminável, há que ter muita força e energia para lidar com a sensação pesada da vulnerabilidade e contingência, que são as malhas do humano. Foi MUITO difícil... Devagarinho a situação foi se transformando, com a luta para comer, pelo menos, um biscoito salgado. E aquele gosto estranho na boca que já me acompanha há tempos, e que aqui se acentuou. Mesmo a água ganha um gosto amargo... Foi um momento propício para a narrativa e também para deixar o choro rolar. Faz parte da experiência do Zazen, picuan, que é o voltar-se para a parede. Hoje, amanheci outra pessoa, depois de uma noite tranquila. Cada dia com sua peculiaridade. E vamos em frente nessa Travessia.

No início de minha internação tinha pedido a um amigo querido, pe. Oscar Beozzo, para partilhar comigo um depoimento de sua dura experiência realizada no ano anterior, a pedido de sua médica. O depoimento é de 12 de junho de 2019. Ali ele tinha revelado abertamente tudo por que tinha passado em sua “noite escura”, onde sua vida esteve por um fio. Foi com dificuldade que ele escreveu sobre o que passou, a grande incerteza dos momentos que viveu. Foi quando a “enfermidade bateu inesperada e avassaladoramente” à sua porta. Ficou “longos cem dias, sem poder ler nem escrever” e tinha que recorrer a uma terceira pessoa para ajuda-lo nessa tarefa e responder às mensagens urgentes que iam aparecendo. Viveu tudo isso com profunda espiritualidade. Conforme seu relato, tinha a profunda convicção de “que estava nas mãos de Deus”. Sabia estar  iluminado por uma “fé serena e forte”, que vinha de sua mãe. Dizia: “Nas horas mais difíceis da enfermidade, diante da incerteza de novas complicações no quadro clínico e da total prostração, após cada sessão de quimioterapia, foi na experiência de Jesus que procurei luz e sustento para atravessar a ´noche oscura” da vida em perigo”. O fortalecimento veio igualmente da presença de tantas pessoas queridas em sua vida, como familiares e amigos e amigas, que permaneceram ao seu lado, no apoio, nas orações e na presença. Sua situação foi infinitamente mais difícil que a minha. As repetidas leituras de sua mensagem foram para mim um bálsamo que me ajudou, e como, nos momentos mais difíceis pelos quais passei em minha Grande Travessia. Já durante minha estadia no hospital, ele mandou uma mensagem para mim:

Acompanho com muita prece você e Magnólia, seu irmão, filhos e netos que estão tão unidos a você. Me faz recordar o que escreve os Atos dos Apóstolos a respeito de Pedro na prisão: ´Enquanto Pedro era vigiado na prisão, a Igreja orava intensamente a Deus em favor dele`(At 12,5). Abraço fraterno e ´coraggio` na sua travessia. Vai dar tudo certo e logo teremos você de volta recuperado. Abraço fraterno.

            Segundo o protocolo do núcleo do transplante, os dias que antecedem o transplante são sempre nomeados de forma negativa, por exemplo: D-6, D-5 etc. O D-6 correspondeu ao primeiro dia da quimioterapia, e o D0 ao dia do transplante da medula.

            No décimo dia de internação, no domingo (21/07/2020), chegava ao D-3. Passei o dia com náuseas, em razão de mais uma jornada de bussulfan. Foi também um dia de ansiedade e de temores. Com a indicação do plasil, o enjoo melhorou um pouco. Foi um segundo dia marcado por tremores nas mãos e suores frios. Era também a reação ao medicamento que foi introduzido com o bussulfan, o anti-convulsivante hidantal. A alimentação foi praticamente nula. Só aceitava mamão, e a glutamina diária, misturada em um pouco de suco. Não consegui adaptar-me bem a essa glutamina, embora percebesse sua importância. Não neguei nenhum dia. Tudo permaneceu semelhante no décimo primeiro dia (D-4). A noite tinha sido muito dura. No início da manhã do D-2, na segunda feira (22/07/2020), de descanso da quimioterapia, vieram as ânsias de vômito. Não podia pensar em comida que enjoava. Fui tomado por alguns sentimentos: falta de horizonte, de brisa, de céu. Uma sensação de estar numa abafada prisão. Algumas visões me ocorreram como a de ver os instrumentos médicos navegarem no teto do quarto. Era mesmo quase um pesadelo! Fizemos a proposta de aumentar um pouco a medicação noturna para facilitar o sono, mas o doutor Ipê achou melhor manter a mesma dose para evitar muita sedação. Propôs acrescentar o dramin, para facilitar o sono. Nesse dia, no final da manhã, tive a autorização para dar uma breve saída, nos arredores do quarto, para ver o céu, o que fez muito bem para mim.

            No dia 23 de junho, segundo dia de descanso da quimioterapia, D-1, começou a imunossupressão com a ciclosporina, já como preparação para o transplante. O estado geral melhorou, mas a alimentação manteve-se bem reduzida, com salada de frutas, gelatina e sorvete. A inapetência era grande à comida salgada. Consegui nova autorização para ir rapidamente à sacada, nas proximidades do quarto e me diverti vendo as crianças soltando pipa e papagaio no alto do morro. No quarto, a novidade de uma tabuleta indicando os riscos que estaria vivendo nos próximos dias: sangramento e queda... É sempre meio assustador. Você fica sob o efeito de uma expectativa estranha. Tudo pode ocorrer. Com a ciclosporina, a pressão sempre aumentava um pouco no início da noite, mas depois normalizava. Braúna e Resedá, sempre cuidadosas, constatavam na última aferição da noite que os valores já tinham abaixado.

            No dia de São João, 24 de junho, D0, acordei um pouco mais tarde, às 07:45, já perto do horário previsto para o transplante, às 08:00. Tudo aconteceu como uma linda cerimônia. Todos vestidos impecavelmente, com as devidas precauções, incluindo o meu irmão doador. Todos com seus olhares de emoção, que valiam por uma reza, como dizia Lispector. Eu fui coberto com uma espécie de manta esterilizada. Com todos alinhados, o chefe de enfermagem, Jacarandá, tomou a palavra explicando o procedimento que iria ocorrer: o processo, as possíveis reações. Falou também que o momento era de agradecimento pela linda possibilidade de vida que se abria. Passou então a palavra ao doutor Ipê, que expressou o seu contentamento com esse que seria o seu 99º transplante de medula realizado ali no hospital São João. Depois falei eu, agradecendo todo o carinho dedicado pela equipe, em especial ao doutor Ipê, que acreditou no transplante, mesmo sabendo de todos os limites envolvidos no procedimento. Agradeci também ao circuito de orações e preces que se formou em torno da minha recuperação e ao carinho e cuidado da Magnólia no dia-a-dia do hospital, sempre presente com um sorriso aberto e a atenção, dedicação e cuidado delicados. Magnólia também falou de sua alegria com o processo e o carinho de toda equipe envolvida e da energia amorosa da rede de parentes e amigos que, mesmo de longe, apostavam em minha recuperação.

            Antes de iniciar o procedimento técnico, ocorreu ainda uma linda oração proferida por Jequitibá, que vem da tradição evangélica. São sempre dois na equipe que tem esse dom da oração, e que atuam nesse momento solene. Há também a Araucária. Fiquei emocionado. Então seguiu-se a cerimônia, com sua solenidade peculiar. A bióloga Manacá, que tinha selecionado as células tronco de Garapa, ficava na sala contigua e ia passando ao poucos as bolsas com as células tronco, que estavam antes congeladas. Uma a uma, ela entregava para a enfermeira Quaresmeira, que vinha com cada bolsa, apresentava antes a mim, para a autorização do procedimento. Nas bolsas, o meu nome e outras informações. As bolsas eram pequenas e meio chapadas, dando para ver e se emocionar com a beleza da coloração do material. Fiquei encantado com aquela cor, meio rosada, que iluminou os meus olhos. Não podia jamais imaginar tamanha beleza. Estava no centro de uma das mais belas experiências da minha caminhada. Era ela, a vida, que chegava para reencantar os meus dias. Foi emocionante. Foram ao todo seis bolsas entre 100 e 200 ml, com cinco milhões e quinhentas mil células CD 34: células tronco hematopoiéticas. O procedimento durou cerca de uma hora e meia, ao som das músicas mineiras, com letras de Fernando Brant, do Clube da Esquina. Na segunda bolsa, como previsto, fiquei muito ruborizado e com intenso calor no rosto, mas ficou nisso. Na quarta bolsa, também passei um pouco mal, com ânsia de vômito e um leve vômito com bílis. Em seguida, e mais devagar, as outras duas bolsas foram colocadas e voltei ao normal, sempre muito emocionado. Era dia de São João, e essa data ficou marcada para mim como um novo nascimento. A linda música cantada por Bethânia sobre o João do carneirinho e o Xangô menino passou a fazer parte da minha vida neste novo nascimento. Na ocasião, reli um magnífico threader de Luiz Antônio Simas, falando da brasileirização de São João, que partilho:

Adoro São João. Nele vejo um detalhe comovente, que começa na Palestina e termina no São João virado em Xangô Menino. Como é que João Batista, primo de Jesus, um profeta iracundo, decapitado a mando de Herodes Antipas, virou na cultura popular o São João do Carneirinho? Isso é muito brasileiro. Aqui prevaleceu o João menino, filho de Isabel, primo de Jesus, aconchegando no colo o Cordeiro de Deus. O único santo comemorado no dia do nascimento, e não da morte. É linda a infantilização de João, o profeta que virou erê no cristianismo popular. E a fogueira, forte nos ritos agrícolas pagãos e reimaginada pela cristandade? Diz a tradição que Isabel mandou acender uma quando João nasceu, para que Maria, grávida de Jesus, recebesse a notícia. A fogueira, portanto, anuncia a chegada da criança e a afirmação da vida. A fogueira aproximou, nos cruzamentos brasileiros, João Batista e Xangô, dando um ar de meninice ao profeta palestino e ao pregador iorubano, celebrados em estandartes e bandeirolas, no milho assado, no quentão, nos sortilégios da boa sorte. Concluo dizendo que a beleza maior que vejo em São João é essa: não louvamos o João dos testamentos, mas o aconchegado pelo povo. Não o profeta decapitado, mas a criança encantada que brinca na fogueira e comemora a renovação da vida - a nov(a)idade - pela alegria da festa.

            Após o transplante, fiquei um pouco atordoado, também em razão da emoção, mas igualmente por causa das conversas que foram acontecendo na sala durante a operação. Um pouco depois, tomei um banho, meio a contra vontade, mas que me fez muito bem. Foi quando então pude tomar o café da manhã, com salada de frutas e gelatina. Em geral, quase não comi pão durante toda a minha internação. Não tinha nenhuma vontade disso. Na tarde, dormi por cerca de uma hora e tive autorização de ir um pouco na sacada. Era a minha despedida, das breves saidinhas do quarto. Retornei em tempo de assistir ao programa Paz e Bem sobre Clarice Lispector, às 17:00, com as presenças amigas de Mauro Lopes e Maria Clara Bingemer.

            Na noite depois do transplante, tive um pesadelo difícil, aliás o único que ocorreu durante todo o período hospitalar. O dia D1, uma quinta feira , foi um dos mais tranquilos no hospital. Curiosamente, fui me adaptando à rotina e o quarto deixou de ter aquele peso inicial violento, que atormentou um pouco os meus dias e noites. Adaptei-me também, sem nostalgia, às noites picadas e à familiaridade com o periquito, onde urinava. Era fundamental manter um estado psicológico positivo para poder enfrentar a leucopenia que viria pela frente. E duas coisas contribuíram para o meu astral: o prefácio do amigo querido, José Carlos Michelazo, de Campinas, para o meu livro sobre a mística zen budista e a Live do meu irmão Domingos, que dedicou uma das mais lindas músicas de Egberto Gismonti, à minha recuperação: Ano Zero. Aliás, muitas Lives que assisti no hospital foram dinamizadoras de minha energia vital, como por exemplo a da festa de aniversário de Gilberto Gil. Ao longo dos dias internado, o meu peso foi também diminuindo, tendo chegado aos 79 quilos. 

            Os dias seguintes ao transplante, marcados agora como D+, foram de um cuidado especial, pois entrava na leucopenia, quando então o meu organismo ia perdendo suas defesas particulares, em razão da queda dos leucócitos e das plaquetas. Assim ocorreu no D1, D2 etc. A alimentação era um problema delicado, que tinha que ser resolvido, evitando outras complicações. A mucosite também se acentuava, apesar do tratamento diário de laser-terapia, que fazia com Eucalipto e Eugênia, sempre muito atenciosos, cuidadosos e simpáticos. No D3 retomei a leitura do livro de biografia de Lévi-Strauss. Nos primeiros dias pós-transplante passei melhor as noites, dormindo até mais tarde, por volta de 07:30. Aproveitava também o início da tarde para dar uma dormidinha rápida. Fiquei menos cansado à noite, depois do lanche, podendo dormir no horário que gosto, a partir de 23:00.

            No D4, tive uma conversa aberto com meu médico, dr. Ipê, que me falou dos riscos que teria com o avançar da mielofibrose. Aguardava-me um destino sombrio. O transplante era mesmo a melhor solução, apesar dos riscos da idade. Foi uma decisão solitária acertada. Sabia que os dias seguinte do pós-transplante seriam delicados e difíceis, e me preparava espiritualmente para isso, com muita reza e oração, e o apoio constante do meu circuito de amizades. Alguns dos amigos, como Marco Lucchesi e Marcelo de Barros, me escreviam diariamente, com belos textos, como o que Marco escreveu um dia antes do transplante:


meu querido Teixeira
bom dia meu irmão
vc lembra quando vimos o grande silêncio
o monge que não olhava para a paisagem todo
envolvido quase no seu armário ou oratório?

sim mas o seu monacato é outro eu sei, mas pense
que é um rito de passagem  a descida é áspera
no sentido da atual provação, mas a subida será leve
e terá uma visão ainda mais espessa de tudo, sairá mais
forte e iluminado

acho que vai criar inclusive uma nova ordem, monacal,
escritural e outras

força meu irmão

            Para os dias vindouros, aguardava o período mais difícil, com a queda dos leucócitos e plaquetas. Era o efeito previsto pela ação dos quimioterápicos. No D4 os leucócitos e plaquetas ainda estavam num nível tranquilo: 10.000 e 150.000, respectivamente. Nesse dia, ainda estava bem, com a boca sob controle, sem alterações respiratórias e a alimentação tranquila. No final da tarde, infelizmente, tivemos a notícia do assalto ao nosso filho, que tinha ido ao Rio levar sua companheira e foi abordado por dois homens armados ao entrar em casa. Roubaram o meu carro que estava com ele, com computador, celular e mochila, com os documentos. Foi uma notícia forte, mas consegui manter-me tranquilo, e tomamos as devidas providências com a seguradora. O carro foi encontrado no dia seguinte.

            No D5, os leucócitos começaram sua queda, para 7.000 e as plaquetas para 85.000. Era o efeito esperado. Os cuidados passaram a ser redobrados, com intervenções de controle definidos para cada duas horas. O médico aconselhou uma maior atenção e não pude mais sair do quarto, a não ser para pesar, o que fazia diariamente, pela manhã e final da tarde. Continuei a ler a biografia de Lévi Strauss – que terminei no dia seguinte -, deliciando-me com algumas ideias maravilhosas do livro, que confirmavam a minha visão atual de crítica ao Antropoceno. Lévi-Strauss falava sobre o risco de um “humanismo pervertido”, que produzia uma “separação do homem de sua matriz natural”, levando a firmar-se uma ideia equivocada da centralidade e excepcionalidade humana. Ele foi pioneiro no questionamento de um “ciclo maldito” onde se erigiram fronteiras “entre a humanidade e o resto do vivente (reinos animal, vegetal e mineral). Era o início de sua profética crítica ao “humanismo sem restrição e sem limite”, de um “humanismo generalizado”. Não podíamos dar conta, na época, de suas decisivas críticas, em razão da visão predominante na esquerda de crítica ao estruturalismo. Lévi-Strauss, na verdade, lançava um grito profético e radical, com uma lição que nos levaria bem longe. Ao longo da década de 1960 e depois, lançava-se contra um “humanismo arrogante e imbecilizante”. E tudo desdobrou-se nas suas maravilhosas mitológicas. Acentuou-se também sua crítica aos monoteísmos. Dizia que “nada é mais perigoso para a humanidade do que as religiões monoteístas” com seus exclusivismos e pretensão ao domínio da verdade. Ele foi se aproximando do Zen Budismo, e uma das páginas mais ricas a respeito ele escreveu ao final de sua obra Tristes Trópicos: 

Na verdade, o que mais aprendi com os mestres que escutei, com os filósofos que li, com as sociedades que visitei e com essa própria ciência da qual o Ocidente se orgulha, senão fragmentos de lição que, unidos uns aos outros, reconstituem a meditação do Sábio ao pé da árvore? Todo esforço para compreender destrói o objeto a que estávamos ligados, em benefício de um esforço que o suprime em benefício de um terceiro, e assim por diante, até chegarmos  à única presença durável, que é esta em que desaparece a distinção entre o sentido e a ausência de sentido: a mesma de onde partíramos (...). O budismo pode se manter coerente mesmo aceitando responder aos chamados de fora. Talvez até, numa vasta região do mundo, haja ele encontrado o elo da corrente que faltava.

                  Como diz Emmanuellle Loyer, em sua biografia sobre Lévi-Strauss, o antropólogo foi avançando numa “zenitude” que se acentuou com a idade. Apesar de não ser apreciador de viagens, ele realizou cinco delas ao Japão entre 1977 e 1988, o que possibilitou a ele um retorno à infância, mas também uma linda abertura a “uma imagem possível do futuro”, sintetizada no traço enigmático dos koans e sua “imperturbável amenidade e a leveza do jogo de construção sempre preservados por suas elaborações teóricas”.

            Outra coisa que me ajudou muito durante minha Travessia, foram os jornais diários que minha cunhada carioca mandava para mim religiosamente. Podia, assim, ficar antenado com o que passava ao meu largo. Como agradeço a ela por esse gesto delicado e atencioso. Lia com carinho as inúmeras mensagens que recebia diariamente e conversava com os filhos, aproveitando essa riqueza da tecnologia, apesar do limite da internet no hospital, com inumeráveis falhas.

            A partir do D6, meu médico insistiu comigo para avisar imediatamente todo e qualquer sintoma que pudesse apresentar, para que a equipe tomasse as devidas providências. Isso produzia em mim uma sensação estranha, de expectativa, diante do que poderia acontecer. O medo maior, confesso, era o de ter que ir para o CTI... Graças a Deus, as noites estavam tranquilas, e os dias amenizados com muita música, como no caso desse dia, com a atenção dedicada à audição da sexta sinfonia de Beethoven, um grande mestre no meu envolvimento musical. A imunossupressão continuou, com injeções de metotrexato nos dias D1, D3, D6 e D11, além das duas doses diárias de ciclosporina.

            O dia do meu aniversário, 02 de julho, coincidiu com o D8, e foram inúmeras as mensagens de felicitações e apoio, que alegraram meu dia. Recebi também dois livros presenteados pela minha orientanda em Curso, Flávia Amaro. Ocorreu à noite uma linda Live da família. Foi um aniversário diferente, mas cercado de carinho por todos os lados e poros. Entre as manifestações de afeto, a alegria de receber o carinho especial de minha mãe querida, com os 102 anos de experiência e santidade. E também uma mensagem poderosa do irmão no diálogo, Marco Lucchesi:

meu querido Teixeira eu peço infinitas desculpas. sempre tive imensa dificuldade
em registrar o natal das pessoas. minha mãe usava um caderninho que não encontro
meus parabéns e que preciosa condição: sua mãe centenária e lúcida, que dom mais
forte e imponderável, cercado de sua querida mulher de seus filhos amados e irmãos
e como não bastasse um oceano de amigos. e a vitória dia após dia, com o seu equilíbrio,
a elaboração da paciência e a semiótica da mística suficientemente capaz de iluminar
cada gesto que seria tão pobre se esgotado em si mesmo e cada sacrifício e sobretudo
a direção. sinto você na melhor fase de sua vida, sem as correntes da universidade, mas
nem por isso fora do diálogo de alunos e colegas mas em outra chave, mais bela, mais fértil
mais integrada no cosmos

abraço apertado e ainda feliz aniversário  , embora passado,   marco, seu irmão esquecido

Outro presente maravilhoso que ganhei nesse aniversário veio de meu filho, de Belo Horizonte, Tiago, que estava na Faixa de Gaia, e mandou uma foto da sagrada Samaúma, que tinha plantado com a ajuda de seu filho, Sérgio, justamente para me presentear. As lágrimas vieram, com muita emoção. Que precioso presente. Essa maravilhosa árvore ficará na memória e iluminará com sua sombra as gerações que virão. Outra grande amiga, de longe, Mariana, que aniversaria no mesmo dia, me fez lembrar que a nossa música é Tempo Rei, de Gilberto Gil:

Não me iludo
Tudo permanecerá do jeito que tem sido
Transcorrendo
Transformando (...)

Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei
Transformai as velhas formas do viver
Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei
Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei.

            No D9 e D10 continuei passando bem, ainda que os leucócitos continuassem a baixar. Nesse último dia chegaram à faixa de 570, e as plaquetas a 23.000. Ainda estava com certo nível de segurança. No D10 pude assistir a uma linda Live de James Taylor, um dos meus mestres musicais preferidos. Eu assistindo do Brasil e minha irmã assistindo da França. Uma coincidência linda. E fomos nos falando no espaço das mensagens. Aliás, o Spotify foi um recurso maravilhoso durante toda a Travessia. Podia escolher a música preferida e ir anexando na minha Playlist, que concluí no D12, mas que nunca fechava definitivamente. Em conversa com o meu médico, Ipê, ele me confessou que descobriu com o meu transplante a importância decisiva da musicoterapia para ajudar no processo de restabelecimento e manutenção da saúde. O meu quarto era o espaço da festa musical permanente, mesmo nos dias mais difíceis. 

            Sobre a playlist, lembro-me que escrevi no meu Facebook:

Essa longa playlist fui montando em três dias aqui no hospital onde fiz um transplante de medula neste mês de julho. Como a música tem sido minha fiel companheira nessa longa travessia, resolvi presentear a dedicada equipe que vem cuidando de mim nestes dias. São 420 músicas, mais de 27 horas de audição, que reflete um pouco minha amorosa trajetória nas ondas da música. 

A ação da quimioterapia estava em curso e o cabelo começou a cair no D11, 05 de julho seguindo exatamente a previsão de meu médico. Resolvi então raspar a minha cabeça para evitar o desconforto de ver a cada dia o travesseiro e a cama com os resíduos capilares. Apesar de ter uma máquina maravilhosa em casa, tive que recorrer aos aparelhos existentes no hospital, de qualidade bem inferior. Mas tudo ocorreu bem, e pude também inaugurar um tesoura que tinha comprado alguns dias antes e tinha levado para o hospital. Nunca me tinha visto careca. Foi estranho no início, mas depois me adaptei bem, com uma touquinha que trouxe da Noruega. A imagem mudou bastante, tanto que minha mãe ao ver a foto assinalou: “Esse não é meu filho!”. 

No D12 permanecia com a garganta bem dolorida, em razão da mucosite que se acentuava em razão dos quimioterápicos. A resistência à comida salgada se acentuou. Durante a noite, uma nova Live com os filhos, motivo de grande alegria. Quando vinha a tristeza, era surpreendido com gestos semelhantes que inseriam o astral no seu devido lugar. Era importante resistir às sombras, mantendo o espírito aceso e a vitalidade em ação. Evitava ficar na cama, utilizando o recurso da poltrona, que era bem confortável. Continuava a fazer a fisioterapia duas vezes por dia, sem nenhum desânimo, e até surpreendendo os profissionais Marmelo, Angico e Acácia que me atendiam diariamente.

No D13, durante a visita médica, foi constatada a presença de petéquias na perna, o que era sinal de baixa nas plaquetas, embora estivessem ainda num limite seguro, de 20.000. O dr. Ipê achou melhor proceder uma transfusão de plaquetas, o que ocorreu no final da tarde. Os leucócitos tinham sofrido nova queda, com o índice de 180. Era a leucopenia em ação. A transfusão transcorreu normal no início, mas aos poucos provocou uma reação alérgica impressionante, pipocando toda a cabeça e provocando manchas por todo o corpo. E também uma coceira tremenda. Aí foi então aquela correria para buscar o corticoide e o antialérgico, aplicados com precisão e rapidez. Tudo foi se normalizando aos poucos. Não deixou, porém, de ser um risco importante. À noite, mais uma Live musical, celebrando os 80 anos de Ringo Star. Na noite falei também ao telefone com duas amigas queridas, Virgínia e Carol. Esses telefonemas também foram fundamentais. 

A quarta feira, 08 de julho, D14, foi um dos dias mais difíceis para mim no hospital. Em razão da leucopenia e da mucosite persistente, com fortes dores na garganta ao engolir qualquer coisa, mesmo água, o meu médico decidiu passar uma sonda naso-enteral. Quando recebi a indicação, fiquei bem apavorado, pois como minha mãe sempre detestei inserir qualquer coisa em meu nariz. Passei o dia na expectativa de como seria o procedimento no início da tarde. Só pedi para adiantarem o processo para poder assistir ao Paz e Bem às 17:00. O objetivo da sonda era facilitar a alimentação e evitar irritar ainda mais a garganta com ingestões. A ação foi bem delicada e difícil. As duas tentativas de realizar a inserção da sonda na narina esquerda foram frustradas. Nem posso lembrar de como sofri, encharcando o corpo de suor. A enfermeira Quaresmeira, auxiliada pela Sibipiruna, tentava, com calma, me incentivar a engolir a sonda, com um mote que ficou conhecido entre a equipe. Ela dizia: “engole, engole, engole, engole!”. Eu tentava engolir a sonda, sem sucesso, pois ela parava em determinado lugar e ia para o pulmão, sendo expelida por forte tosse. Após as duas tentativas frustrantes, ela tentou a narina direita. E novamente, com insistência mais decisiva, bradou: “Engole, engole, engole, engole!”. Desta vez consegui, aliviado. A sonda tinha alcançado seu objetivo, fixando-se no final do estômago, na entrada do intestino delgado. Para confirmar o sucesso do procedimento, tive que fazer um raio x para averiguar a localização precisa da sonda. Estava tudo certo. Foi curioso, eu, com aquela sonda fiquei catatônico por todo o final do dia, sem conseguir mexer a cabeça, até adaptar-me a ela, o que só ocorreu no dia seguinte. A noite foi mais complicada, inclusive para ir ao banheiro, agora com uma sonda de um lado e o cateter do outro, com todos aqueles fios interligados. Na mesma noite tive febre de 37.9, o que significa sinal de alerta. O protocolo adotado nesses casos é logo introduzir outro antibiótico injetável, pois antes tomava o cipro, um antibiótico oral. Ainda segundo o protocolo, deveria fazer hemocultura com sangue colhido em três pontos, um deles periférico. Com o nível de plaquetas baixo o procedimento para a retirada do sangue na veia periférica deveria ocorrer com muito cuidado, evitando as veias calibrosas. Para alcançar esse objetivo, a enfermeira Eugênia, buscou acertar uma veia menos calibrosa para evitar hematoma. O que senti no procedimento foi uma dor inenarrável, das mais difíceis que tive na vida. E isto em alguém acostumado a fazer sangria e tirar sangue mensalmente, sem problema algum... Passou um pouco de tempo e ela, com delicadeza, veio me informar que não tinha conseguido o objetivo. Na ocasião, perdi a paciência e me rebelei. Não podia imaginar passar por semelhante provação. Insisti para que a coleta de sangue ficasse restrita às duas retiradas feitas por cateter, o que contrariaria o protocolo. Com muito jeito e paciência, Eugênia lançou a ideia de chamar uma enfermeira especializada do laboratório do hospital para tentar acertar o procedimento. Reiterou comigo que ela não iria tirar sangue, mas apenas me examinar. Com temor e tremor acabei aceitando. De repente, em pouco tempo, a porta do quarto se abriu e uma enfermeira preta, gordinha, adentrou o recinto com um largo sorriso, que iluminou o quarto e minha vida. Foi uma experiência de graça, com aquela acolhida maravilhosa. Ela se aproximou de mim, colocou o garrote em meu braço direito, o mesmo do procedimento anterior, olhou firme e disse que iria me examinar. Passou as mãos sobre o meu braço, examinando com cuidado as veias e, de repente, olhou para mim e disse: “Achei a veia, posso tentar ?”. Com muito temor, mas com renovada confiança, acabei aceitando. E ela, com toda a sua habilidade, acertou de primeira e conseguiu retirar o sangue. Não senti absolutamente nada! Minha vontade foi de levantar da cama, abraça-la e beijá-la agradecendo infinitamente pela delicadeza e cuidado. Para ela, escolhi um nome muito especial: Samaúma. É das árvores aquela que mais me emociona e seduz. Depois disso, ainda assisti, meio atordoado, um pouco do jogo do flamengo e fluminense. Depois fiz minhas orações e fui dormir tranquilo. O médico tinha autorizado a aumentar um pouco mais a dosagem do remédio noturno. Tinha passado pelo dia mais difícil no hospital.

A noite foi tranquila, e amanheci bem no meu D15, no 28ª dia de internação. A alegria do novo dia era também facultado pelo aniversário de 10 anos de minha primeira neta, a quem sou ligado por imensos laços de afetividade. Na visita diária do dr. Ipê, pudemos juntos constatar que as duas decisões tomadas, a da transfusão das plaquetas e da inserção da sonda tinham sido bem positivas para melhorar o meu estado geral, prevenindo possíveis complicações. Falou ainda que percebia claramente que as células de meu irmão, Garapa, estavam mostrando sinais de vida. Com todos aqueles apetrechos no corpo o banho ficava mais complicado, mas mantive a rotina, sem reclamações. Era imensa a ginástica que fazia para não molhar o cateter, embora ele estivesse bem protegido por curativo. Tudo deu certo!

Estava surpreso e feliz com minha condição física, essencial para o sucesso dos procedimentos. Não tinha maiores tonturas ou desequilíbrios e conseguia ir ao banheiro sozinho e mesmo tomar banho sem ajuda, a não ser na parte final para a aplicação do creme protetor, feito carinhosamente por Magnólia. Aliás, nem sei como agradecer toda a sua dedicação, cuidado e carinho em todos os dias de internação. Ela ficou comigo todo o tempo, mesmo sabendo que tinha um filho preparado para o rodízio, caso necessário. Sua presença no quarto foi como a de um anjo a me proteger e amparar. O difícil era ficar tanto tempo sem nos poder tocar, a não ser levemente nas mãos. Ela conseguiu igualmente algo fundamental, que foi a licença para permanecer no quarto todo o tempo sem máscara. A partir do D15, Teita passou a ser convidada a tomar um cafezinho com a “diretoria” todas as manhãs. Ficou super feliz, pois o café oferecido aos acompanhante era mesmo muito ruim. Foi outra coisa que ajudou minha companheira a aguentar o tranco de ficar tanto tempo internada comigo.

O enfrentamento da Travessia foi também facilitado por algo impressionante: a rapidez com que o tempo passava. Acordávamos por volta de 07:30, e eram tantas as atividades programadas que quando nos dávamos conta, já estava chegando a noite, embora no quarto todo blindado era difícil discernir em que dia estávamos e se era noite ou dia. Mas fomos nos habituando ao quarto, ao ritmo da vida, e tudo foi ficando mais fácil. Só precisamos trocar de quarto uma única vez, e quando fomos para o outro quarto, o dr. Mogno manifestou felicidade, dizendo que o novo quarto dava mais sorte. Isso foi meio atemorizador para mim, pois não nos adaptamos no novo quarto e tivemos autorização para voltarmos para o quarto que estávamos antes, que era aquele quarto mais “perigoso”, pois ali tinham ocorrido experiências mais traumáticas com os transplantes realizados. Uau! Tivemos que lidar com mais essa informação desnecessária! Tudo bem, estava fortalecido interiormente para lidar com essas adversidades. Voltamos para o quarto e nada mais ocorreu no âmbito das complicações. Foi tudo dando certo.

Como em toda Grande Travessia, tinha dias que o mar estava mais calmo e outras vezes mais agitado (mar mosso). Na noite do D15 para o D16, a agitação foi maior, tendo acordado várias vezes. Com a visita do dr. Ipê na manhã, tudo foi se acalmando. Impressionante a capacidade que ele tem, de simplesmente com o olhar, acalmar qualquer agitação. Tem sempre uma palavra de incentivo. É o que os grandes mestres zen provocam nos seus discípulos. Não são tanto os livros ou discursos que delineiam a paz do discípulo, mas a simples Presença, o Olhar e a Atenção. Isso é o que revela o que um grande mestre significa. E foi assim todo o tempo com o dr. Ipê, alguém que jamais irei esquecer na vida, e com quem partilhei momentos de muita luz.

A disciplina de dormir sempre durante uma hora depois do almoço, diminuir a sonolência depois do jantar e facilitou minha disciplina de dormir sempre depois das 23:00, evitando acordar de madrugada e perder o sono. Aí sim, seria difícil para mim. Nesse D16, comecei a ter uma intuição de que o dia da pega estava se aproximando. O prognóstico do dr. Ipê era em torno do D23 e do dr. Mogno era mais ampliada. Chegou a nos dizer para ficar calmos, pois a possibilidade de pega poderia se estender ao D30. Os índices sanguíneos no D16 eram: 444 leucócitos, 8,1 de hemoglobina, e 30.300 de plaquetas. Curioso é que as plaquetas foram aumentando antes mesmo dos leucócitos, evitando assim o risco maior de sangramento.

Durante a visita médica do D17, recebi a grata notícia de que a minha medula já começava a dar sinais de ação de meu irmão Garapa. Foi uma alvissareira notícia, que iluminou o dia. Durante a visita do fisioterapeuta Marmelo, pedi uma massagem para suavizar uma dor nas costas. Foi preciosa para mim, logo melhorando o incômodo que estava sentindo. As visitas diárias dos fisioterapeutas foram decisivas, pois cada dia de internação significava uma perda importante de massa muscular. A fisioterapia estava voltada para amenizar isso. Tinha perdido muitos quilos durante minha internação, tendo chegado a 79 quilos, 9 a menos de quando me internei. Nesse mesmo dia, no meu sítio, Faixa de Gaia, comemorou-se o aniversário de 10 anos de minha neta querida. Estavam os filhos e netos presentes para celebrar o acontecimento. De longe, no hospital, ficava aliviado de ver a harmonia entre os filhos e o carinho por eles dedicado a mim. Estavam também já preparando a casa para a minha chegada. Resolveram mudar o meu escritório para o quarto de um dos filhos, que ficava ao lado do meu, e fizeram uma cuidadosa limpeza dos dois ambientes para evitar qualquer risco de infecção. Eu tinha também providenciado no hospital a compra de equipamentos para melhor higienizar o quarto, com proteção contra vírus e bactérias. Em razão da umidade do meu quarto, comum no meu condomínio, providenciou-se também um bom desumidificador elétrico, que foi fabuloso. Lembro-me que escrevi no grupo de Emaús:

Hoje completam-se trinta dias de internação e 17 dias pós-transplante. Acabo de receber a visita de meu anjo-médico, Ipê, e ele me trouxe boas novas. Os índices sanguíneos estão todos em elevação; a alimentação enteral ajudou muito, apesar do incômodo da sonda. Continuo com um pouco de dificuldade para engolir, por causa de presença da mucosite na garganta, que se concentrou ali e não desceu para a faringe e o esôfago. Isso foi uma benção, graças também ao precioso tratamento diário com laser. A tendência é de melhoria na garganta, antes mesmo da pega. Passei momentos muito difíceis na leucopenia, uma verdadeira “noite escura”, mas busquei manter o astral elevado e a vitalidade espiritual. Não deixei de fazer todas as fisioterapias, mesmo nos dias mais sombrios e lutei para não me render à cama. Ia para a cadeira, buscava dar uns passinhos... A minha sorte é que tinha um bom preparo físico, cultivado regularmente desde minha adolescência. Esse capital energético concentrado foi decisivo. A violência da quimioterapia não afetou nenhum órgão, e sobretudo o pulmão comportou-se maravilhosamente. Fiz o transplante no limite da idade, correndo todos os riscos, mas tenho vencido bem. A notícia que recebi hoje de meu médico é de que a ação das células do meu irmão, Garapa, começam a dar mostras de sua força. Isso significa que a aguardada pega pode acontecer por volta da segunda feira D19 (19 dias pós transplante). Estarei completando amanhã o quinto domingo internado, nessa longa Travessia, mas pode ser que no sexto domingo já poderei passar em casa, cercado por meus queridos. Tudo ocorrendo aos cuidados de Deus.

            No domingo, D18, recebi a visita do dr. Mogno, cada vez mais encantado com o meu rendimento no pós-transplante. Suas palavras foram só de incentivo e suas expressões de alegria. Perdeu todas as resistências e temores com a Covid, e se aproximou de mim, examinando-me com cuidado e verificando que tudo corria muito bem. E não cansava de repetir o seu mantra predileto: “O seu transplante saiu muito barato!”. Manifestou também muita alegria com a minha playlist. Disse que ele e a esposa estavam curtindo muito as músicas escolhidas. Esse processo de aproximação progressivo me fez muito bem, e os laços de carinho e amizade com ele ganharam bonitas dimensões. Nesse dia, senti uma boa melhora na garganta, e a dor na deglutição melhorou significativamente. Ja conseguia tomar meio copo de água sem interrupção e dor. Esse era o sinal mais positivo de que algo novo estava para ocorrer comigo. O dia foi também de muitas mensagens calorosas, de amigos queridos, incentivando-me e suscitando alegria. Uma mensagem de minha mãe foi maravilhosa e acalentadora. Todas as manhãs, recebia uma mensagem animadora do monge Marcelo Barros, que incluía o texto do Ofício lido a cada dia no Mosteiro da Ressurreição, em Goiás. Virou o objeto de minha primeira meditação no dia. Como agradeço a gentileza e atenção desse irmão querido, que animou com sua presença, o início de cada dia no hospital.

            Gostaria de ressaltar a presença de tantos amigos que rezavam por mim e que mandavam notícias: Marco Lucchesi, Mauro Lopes (do Paz e Bem), Dora Incontri, Carla Pavão, Fernando Altmeyer, Pedro Vasconcelos, Renata Menezes, Aparecida Vilaça, Beth e Marcelo Camurça, Regina Novaes,  Márcia e Leonardo Boff, frei Betto, Monja Coen (que orava diariamente por mim), Ricardo Gonçalves, Ricardo Resende, Regina Novaes,  pe. Regis (de Roma, e que tinha feito um transplante alógeno no ano anterior, com muito sucesso), frei Carlos Mesters, Francisco Orofino, Inácio Neutzling (do IHU), Ligia Toledo, Virgínia (minha comadre, com quem falava ao telefone quase todos os dias), Fafá, Carlos Drawin, Délcio e Carla, Beth, Chico Pinheiro, Lili e Bruno (mensagens lindas), Eduardo Losso, Marcus Reis, Bia Dias, Luiz Felipe Pondé, Mary Joe (tão querida), Maria Helena Arrochelas, Celso Carias e Leu, Teresa e Pedro Ribeiro de Oliveira, Cesar Kuzma, Teresa Cavalcanti, Benedito Ferraro e Francisco Junior, Eleny e Francisco (cunhada e irmão), Ricardo e Cibeli, Rose, Cecília, Ricardo Vasconcelos, Anna Cunha, Eduardo Gross, Maria Clara Bingemer e Einardo, Claudio Ribeiro e Magali, Edward, pastor Edson Fernando, Edson Ricardo (meu parceiro nos tempos de CEBs em Volta Redonda), Luiz Alberto e Lúcia (amigos queridos do grupo de Emaús), Neuza e Marina Mauad e as irmãs de Magnólia.

            Numa das mensagens do grupo de Emaús – muito presente -, o amigo querido, Pedro Oliveira, dizia:

Grande Teixeira! Você descreve tão bem os passos que vai dando, que parece que a gente vai se curando junto. Só posso agradecer e continuar enviando energias boas para você e Magnólia.

Todo esse carinho me fez lembrar uma passagem bonita do livro de Thomas Kempis, A imitação de Cristo:

Grande coisa é o amor. É um bem verdadeiramente  inestimável que por si só torna suave o que é penoso e suporta sereno toda a adversidade (...). Nada mais doce do que o amor, nada mais forte, nada mais sublime, nada mais profundo, nada mais delicioso, nada mais perfeito, ou melhor no céu e na terra.

Pude constatar isso na carne, durante minha internação. Essa presença amorosa de uma ciranda de alegria e esperança em torno de mim, que me revigoraram e facilitaram ver com clareza para além da noite escura. Outros tantos nome de amigos e parentes poderia citar aqui, que se manifestaram com emoção nas redes sociais. Seria muito difícil enumerar todos.

            Fiquei sabendo que o dia seguinte, D19 era dia de Santo Henrique II. Intuía que a pega ocorreria nesse dia. Poderia ser também no dia posterior, de São Boaventura, da tradição franciscana e muito querido. Essa terça feira, 13 de julho foi mesmo muito especial em minha vida. Recebi a visita de meu médico logo cedo. Trouxe a notícia que “bati na trave”, com os leucócitos próximos da pega: 904 leucócitos (precisava de 1.000). Ousadamente, pedi a ele a autorização para fazer um novo exame de sangue à tarde, pois intuía que a pega ocorreria nesse dia de santo Henrique II. Com sua autorização fiz o novo exame às 15:30, mesmo sabendo que ele não estaria  no hospital à tarde. A bela e esperada notícia veio com os resultados do exame, com a equipe de enfermagem invadindo o quarto com balões, bolo e sorrisos ensolarados. Era o esperado dia da pega. Foram recebidos com a música por mim escolhida para esse dia especial: Dia de Festa, de João Bosco (música) e Francisco Bosco (Letra). A bela letra, do CD Na Esquina, que foi lançado em Juiz de Fora, anunciava a alegria desse dia especial:

            Sol, porta-voz da manhã
Hoje acordei num altar
Benção no ar
É dia de festa
Tá no Redentor
Nos aviões
Nos corações
Hoje até os mais ateus
Vão jurar
Vão jurar que estão num
Sonho de Deus

É dia de festa
Tá no celular
Tá no jornal
Tá no andar
Se acabar o mundo eu tô
Nem aí
Eu tô nessa festa

Manda a barafunda
Sarabandar
Fuzuê
Tererê
No bafafá
Ramo de Hosana
Pra saravar
Me benzer
Muzambê
Aleluia

Nada pula mais
Que alegria e esperança
Peço pro meu santo
Pra me embalar
Só carola reza pra Deus que não dança
Música é o pão que não pode faltar
A tristeza é faca
Que não tem cabo nem ponta
Calundú
É coisa de espantar
Vem amor
Pro calor
Laça, me abraça
Deixa o teu corpo falar
Vem beber
Do prazer
Na minha taça
É dia de festa!

            A festa da pega foi linda e emocionante. Em certo momento, quando a música anuncia um trecho de frevo, eu rompi a amarra da cama, saí feliz entre fios, tubos e bombas de infusão, e dancei animadamente com Magnólia e Araucária, quebrando todos os protocolos. Paineira e Jacarandá também dançaram observados por Aroeira. Não dava para segurar o coração diante de tanta emoção. E confesso a vocês, não tive nenhum mal estar ou tonteira. Os anjos, santos e energias sagradas tinham me proporcionado um intervalo para poder cantar e dançar com a alegria singular do momento. De fato, um dia de festa! E tudo foi partilhado em Live com os meus filhos, noras e netos, e também com o doador Garapa e sua família.

            Um pequeno susto durante a noite, após a festa. Estava conversando tranquilo com Magnólia, deitado em minha cama, e não me dei conta que estava sangrando. Houve um vazamento no cateter e o sangue saiu, molhando a camisa branca da CCCP, pela qual tenho o maior luxo, a calça de moleton a cueca e também o centro do lençol. Quando o enfermeiro Eucalipto chegou, logo percebeu o “acidente” e providenciou rapidamente a limpeza e a troca de roupas. Foi só mesmo um susto pequeno, para dar mais emoção à festa.

Eu tinha lançado no Facebook e nas minhas redes de amigos um desafio para quem conseguisse acertar a música escolhida, dentre as inseridas na playlist que tinha feito. Ninguém acertou, impressionante... Nem meus filhos que me conhecem tão de perto, ou meus irmãos, chegaram perto da resposta. Apenas uma amiga querida de São Paulo, do grupo de mística, Mary Joe, apontou numa lista de 7, a canção escolhida, em último lugar. Mas esse não era o trato. O tiro tinha que ser certeiro e único. Portanto, ninguém ganhou o prêmio. Foi a música que mais tocou no andar do meu quarto a partir da pega. Todos que chegavam para me cumprimentar eram recebidos com o Dia de Festa.

A comemoração com o dr. Ipê veio no dia seguinte, na terça (14 de julho), no D20. Ele chegou com o rosto carregado de alegria, com uma emoção que escapava por todos os poros. Era o momento de vitória, celebrada por alguém que teve que viver quase solitariamente uma séria decisão em favor de um transplante com um paciente idoso, com sério comprometimento de saúde. Daí a alegria ter sido ainda mais viva. Junto à Quaresmeira, Jequitibá e Sibipiruna, a equipe do dia, dançamos e festejamos mais uma vez. Em seguida o tempo foi regado com a alegria de tantas mensagens recebidas, de toda parte, celebrando mais essa vitória. Por volta do horário do almoço, sem que quase notasse, o técnico de enfermagem, Jequitiba, tão querido, retirou a sonda naso-enteral, para a minha tranquilidade. Foi um toque de ouro na minha liberdade. Agora estava mais autônomo para as minhas atividades. No final da tarde liguei e falei longamente com um amigo querido que participou comigo de um grupo antigo (Tropa Maldita), Carlos Drawin, e pude relatar pormenorizadamente, para seu estupor, tudo o que tinha ocorrido comigo durante a internação. Foi uma espécie de desabafo! A festa continuou com a equipe da noite. Novamente comemoramos e nos emocionamos, agora com Eugênia e Resedá, esta última sempre com os olhos d’agua. A chegada de uma caixa de isopor repleta de chocolates da Kopenhagen, que são os meus preferidos, enviadas por Virgínia e Fafá, finalizou a noite.

A noite foi maravilhosa, com a alegria e a emoção acalentando o sono justo. A visita do dr. Ipê foi um pouco diferente, nessa quarta feira D21. Ficou de longe, em razão de uma leve gripe, mas anunciou a alta. Modificou a medicação venosa pela oral, para facilitar a preparação da alta. Nesse dia o almoço foi especial, pois o meu médico liberou um almoço árabe, escolhido numa casa especializada da cidade. Comi 5 pequenos quibes e arroz com lentilha, com um apetite novo. É a minha comida preferida. Podia ter pegado menos pesado, pois o tempero do quibe provocou diarreia no dia seguinte, um pouco antes de minha liberação. Mas sabia que tinha sido ele o vilão, o que não provocou muito temor. Falei sobre isso com muito jeito com o chefe de enfermagem, que não alterou os planos de alta. Ainda assisti o Paz e Bem da semana, com a presença do amigo querido Marcus Reis. Tivemos em seguida conversas com o chefe de enfermagem, Jacarandá e também com a nutricionista, Amendoeira, que nos explicaram todas as providências a serem tomadas em casa, depois da alta: os cuidados com a alimentação, com a limpeza, asseio e os contatos com as pessoas. Tinha que saber que agora era um Teixeira-Bebê, sem as devidas proteções. As primeira vacinas seriam tomadas só a partir de dezembro de 2020. Corria ainda outros riscos como a transmissão do citomegalovirus, que já tive mas está negativado. O risco de contrair esse vírus implicaria em nova internação, de quinze dias, para tratamento com antiviral venoso.

A alta ocorreu no 35º dia de internação. Antes de sairmos a equipe foi se despedir e pedimos que Araucária fizesse uma oração de agradecimento. Ela falou lindamente baseando-se no Evangelho: “Alegrai-vos!!!”. Emocionado, pedi a ela uma benção. Foi um momento tocante!

A alta não significou a cura, tenho ainda um longo caminho pela frente, em torno de 155 dias. Já estou no D35, e passo muito bem. Vou ao hospital são João duas vezes por semana para exames de sangue e controle da situação, bem como para a troca de curativos no cateter que carrego comigo, e deve permanecer assim por mais seis meses, quando então volto ao centro cirúrgico para a sua retirada. Agora é manter aceso os cuidados, com muito dedicação e atenção, evitando todos os riscos e celebrar intensamente cada dia como uma vitória a mais. Eu que gosto tanto das árvores estou agora cercado por elas na minha casa no Tiguera, que é belíssima, com tantas espécies e pássaros de todos os tipos. Essa nova integração vem produzindo em mim uma alegria cósmica inaugural. Agora com os filhos e netos por perto a festa há de continuar, sob os cuidados de Deus e de todos os anjos, com as orações e preces dos amigos e parentes que me cercam. Fica o meu sincero agradecimento a toda a equipe do hospital são João, que se desdobrou para manter acesa essa chama que habita em mim. Viva a Vida!

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