terça-feira, 13 de abril de 2010

A noite escura de João da Cruz

Apresentação – A Noite Escura

 

Faustino Teixeira

PPCIR/UFJF

 

João da Cruz (1542-1591)  é um dos grandes expoentes da poesia mística de todos os tempos. Na visão de um de seus mais clássicos comentadores, Damaso Alonso, a sua poesia suscita admiração e silêncio. São poemas de tal densidade e complexidade que se encontram entre “os mais complexos de toda a literatura espanhola”[1]. A força inaugural de sua reflexão encontra-se na poesia, embora tenha também deixado um grande legado no âmbito da prosa, que na verdade resume-se a comentários ou explicações de sua poesia. O primeiro e fervoroso impulso veio com a poesia, e só depois sua reordenação analítica. A voz lírica é que abre as asas de sua reflexão, fazendo brotar a mística que pulsava no seu mundo interior. O “tratadista teológico” aparece num segundo momento. São ensinamentos doutrinais  que “permanecem pálidos diante das certezas gozosas e indizíveis” que o místico-poeta consegue “comunicar com absoluta liberdade em sua poesia”[2].

 

Um traço distintivo da perspectiva mística de João da Cruz, nem sempre freqüente na tradição católica, é o amor pelo todo e uma surpreendente “adesão à beleza cósmica”. É um místico-poeta que desperta “a nostalgia do mistério das coisas” e a gratuidade do Real. No universo dinâmico de seu “êxtase transformante” todas as coisas são absorvidas na alma, cantadas em sua dignidade, “descobertas em Deus e amadas apaixonadamente em sua grandeza”[3]. Na bela imagem cunhada pela pensadora espanhola, Maria Zambrano, o místico João da Cruz reproduz a autofagia da crisálida, que desfaz seu casulo e ganha asas para “atravessar os umbrais da vida”. Trata-se de uma “fecunda destruição”: a radical ruptura de todos os apegos para poder habitar o universo inteiro. Não se trata, em hipótese alguma, de um abandono da realidade, mas de um adentrar-se nela, de navegar a fundo em sua espessura. É toda a beleza cósmica que vem despertada na esplêndida experiência mística de João da Cruz: os “vales nemorosos”, os “rios sonorosos” e os “ares amorosos”. Na ousada aventura da “saída” mística de João da Cruz  não é o nada ou o vazio que ele encontra, mas a densidade das coisas, percebidas em sua profunda ligação com o mistério sempre maior. Trata-se de um encontro que só a poesia consegue traduzir, e de uma forma única e singular: “tudo, tudo está presente com uma fragrância como recém saída das mãos do criador”[4].

 

 Os estudiosos de João da Cruz reconhecem que uma das criações poéticas mais geniais criadas pelo místico espanhol é a obra “Noite Escura”. É onde talvez se encontre o seu “achado” mais significativo e profundo. É do vocábulo “noite” que “brotam o lirismo, o simbolismo e o mais secreto de sua mística, que incorpora uma intuição do universo”[5]. As oito estrofes do poema que abrem a obra expressam um dos mais inflamados e  apaixonados itinerários de amor da lírica espanhola. Elas traduzem o movimento que vai unindo a amada e o Amado, tendo a noite como mediadora e guia. É um “poema rico e misterioso que não pode ser reduzido a um sentido puramente profano ou sagrado. Sua arte transcende a divisão e enriquece a ambos, como poema de amor que funde suas raízes na experiência humana, mas que ao mesmo tempo abraça o divino”[6]. Como singular poeta, João da Cruz tem o dom e a arte de transfigurar as coisas, de abrir os olhos dos leitores para o outro mundo que habita o mundo, facultando a percepção de sua verdadeira beleza. A lírica moderna herdou de poetas religiosos como Dante e João da Cruz a capacidade única de refletir a “experiência mística por meio de imagens do mundo sensível” e  “conferir a força da carne e do desenvolvimento temporal às experiências espirituais”[7]. Em Dante encontramos a imagem vivida de uma Beatriz que “caminha, sorri e suspira”, incorporando as “alegorias atemporais da Amada perfeita”. Igualmente João da Cruz apresenta-nos um Amado que dorme no “peito florido” da amada, sendo por ela carinhosamente afagado.

A obra “Noite escura” ganha seu título da expressão que aparece no primeiro verso do poema: “Em uma noite escura”. Ela é composta por um poema de oito estrofes seguida de um longo comentário, ou declaração em prosa. Assim como ocorre em outra obra, “Subida do Monte Carmelo”, os comentários que dão seqüência ao poema permanecem inconclusos. A obra foi interrompida sem o remate que se esperava. Somente as duas primeiras estrofes do poema serão comentadas pelo místico. A terceira estrofe recebe apenas uma apresentação sumaria ou geral, antes da interrupção da obra. As razões que motivam tal circunstância permanecem ainda marcadas por mistério[8]. Há também que assinalar a diferença que marca tais comentários, se comparados com aqueles do “Cântico Espiritual”, tanto com respeito ao seu conteúdo como forma estrutural e literária. A composição do poema aconteceu primeiro, provavelmente entre o final de 1578 ou início de 1579. Já os comentários foram desenvolvidos posteriormente,  no período em que João da Cruz esteve em Granada (1582-1588), embora já esboçados ou iniciados mesmo antes. Os versos do poema traduzem vivamente a experiência que o místico viveu por quase nove meses no cárcere conventual carmelitano de Toledo, desde dezembro de 1577, bem como sua fuga, ocorrida em agosto de 1578. Há um lapso de tempo relativamente breve entre a fuga da prisão e o início da redação do poema. Na dinâmica simbólica que envolve o poema não está excluída a experiência histórica e dramática do místico carmelitano: “em sua fantasia de poeta, a realidade desnuda e dolorosa daquela treva carcerária e daquela disfarçada fuga perde, pouco a pouco os contornos reais e se transmuta paulatinamente em visão alegórica, com perspectiva cada vez menos definida e projeção muito mais ampla”[9].

 

Entre os principais influxos sofridos por João da Cruz na redação da “Noite” encontra-se o clássico epitalâmio “Cântico dos Cânticos”. Este texto bíblico que faz parte do cânone dos livros inspirados, seja na tradição judaica como cristã, é um dos mais belos e preciosos testemunhos de celebração do amor de todos os tempos. Também este Cântico fala da saída da amada pela noite em busca do Amado de sua vida (Ct 3,1-4). A mesma imagem abre a obra de João da Cruz analisada: a amada que sai, numa noite escura, com “vivas ânsias inflamada”, em  busca do Amado que “bem conhecia” (N 1 e 4).

 

O poema de João da Cruz pode ser dividido em três partes. Nas quatro primeiro estrofes (I-IV) aborda-se a peregrinação da amada na noite escura e ditosa, que parte para  o Amado guiada pela luz que em seu coração ardia. Na quinta estrofe (V) celebra-se a chegada da amada no “sitio onde ninguém aparecia” e o festejado anúncio da união mística: “Oh! noite que juntaste Amado com amada, amada já no Amado transformada”. A cena mesma da união acontece nas últimas três estrofes do poema. É o momento de maior densidade lírica, onde fala a força do poeta, com a presença de imagens de uma intensidade inusitada.

 

Uma chave essencial para se compreender o clássico poema de João da Cruz é buscar aproximar-se de sua simbologia da noite. Trata-se de uma das criações mais originais e rigorosas de seu pensamento místico, de uma complexidade singular. O que caracteriza um símbolo é a impossibilidade de sua tradução. Como mostrou com acerto Jean Baruzi, o símbolo “quase nunca se realiza em sua essência”. Ele guarda uma relação intransponível com uma experiência e vem acompanhado de um complexo de sentimentos que suscitam imagens sempre novas e contrastantes. Não há como capturar radicalmente o seu significado, ele sempre escapa. A essência metafísica do autêntico simbolismo místico envolve a quebra ou expulsão de imagens com imagens. O símbolo nunca figura uma experiência, como ocorre com um signo ordinário, embora sempre esteja vinculado a ela, suscitando sentimentos que busquem expressá-la[10]. Para João da Cruz, o símbolo da noite traduz uma “profundidade estelar”, e expressa um “estado de ânimo” muito particular, que indica as “obscuras” e misteriosas vias que encaminham a amada para a doce e serena união divina[11]. A noite torna-se para o místico espanhol “um símbolo intraduzível, capaz de gerar novas situações e emoções que se captam paulatinamente: de início, apenas o ambiente em que a alma solitária começa sua jornada arriscada; agora, o guia e (além de toda tradução) a mediadora entre o amante e o amado. A própria noite é atraída para a esfera de amar: noche amable[12].

 

Um traço que une João da Cruz a outros tantos místicos é a “desnaturação da linguagem”, ou seja, em razão de uma “manipulação técnica”, a linguagem deixa de reproduzir ou imitar as coisas e passa a ser modelada pela paixão de quem vive uma experiência inefável. Daí os contrastes que acompanham a poesia mística, marcada por paradoxos e oximoros. É uma linguagem que se insinua, que busca “mostrar” algo que deve permanecer escondido e resguardado. Trata-se de uma linguagem que sugere um mistério, que aponta para um “no sé qué” (CB 7) que transcende ilimitadamente as alegorias ordinárias da experiência. Daí a dialética da noite escura que é também ditosa, dos vivos contrastes entre a obscuridade da noite com a luz das chamas que ardem no coração.

 

As últimas três estrofes da “Noite” são de uma beleza esplendorosa. É o momento onde transparece a força tátil do “poeta das carícias” que é João da Cruz. São preciosas liras preenchidas por imagens “intensamente perfumadas” e sublimes, que formam uma rica atmosfera estética. A fragrância dos versos remete ao ambiente alegórico do Cântico dos Cânticos, com seus cedros, ameias e açucenas. Há também uma semelhante representação erótica, com imagens magníficas que intercambiam delicadezas entre a amada e o Amado. Como é bela a cena onde no peito florido da amada o Amado deixa-se quedar adormecido (N 6). Não há melhor caminho para falar da união do humano com o divino que a alegoria do amor humano. E João da Cruz é um mestre no manejo dessa arte. O místico espanhol “refugia-se nas alegorias do amor humano, perdendo-se na música, inebriando-se com os densos e acurados aromas, exaltando-se entre as rosas e todas as cores que envolvem o mundo imaginário do Cântico dos Cânticos”[13]. A últimas estrofes traduzem poeticamente a experiência do alto grau de amor na profundidade noturna. Os amantes encontram-se entre as ameias, mais próximos do movimento dos astros e distanciados dos superficiais rumores do cotidiano. Ali a vida “permanece suspensa” e os amantes podem sentir o vigor dos “ares amorosos”. Vale recordar que para João da Cruz, o ar tem um significado muito especial, indicando “as mais íntimas e sutis operações da Divindade nos graus extremos da união perfeita”[14]. Em inversão de imagens, é agora a amada que reclina-se sobre o Amado, em recolhimento e quietude: “Oh! quão ditosa é a alma que sente de contínuo estar Deus descansando e repousando em seu seio!” (Ch 4,15).  Do alto das ameias os amantes são brindados com o suave ar que se filtra através dos cedros (N 6). É um momento especial de deleite e silêncio, onde tudo cessa e só o amor vibra. É o momento sublime da “comunicação e exercício de amor suave e pacífico” com o Amado (CB 14,2). O poema termina com a referência misteriosa das açucenas (N 8). E novamente a arte do poeta em tomar uma palavra específica  e fazê-la brilhar com uma novidade instauradora. É extraordinário o efeito poético suscitado pela presença das açucenas no último verso, com sua brancura e fragrância, que contrastam magnificamente com a paisagem “noturna” dos versos anteriores. As mesmas açucenas que no Cântico dos Cânticos são pastoreadas pelo Amado (Ct 6, 2-3).

 

A mistica reveste-se com um “rosto perfeito” em João da Cruz, e na sua forma mais sublime, que é a poesia. Os comentários são também importantes, mas acabam encolhendo ou reduzindo a força da experiência que a poesia canta em estado original. E se o místico espanhol escreveu também em prosa foi para comentar sua poesia. A poesia reflete a “crua manifestação do que não pode aceder à palavra e permanece como um grito ou gemido do que é inconfessável”[15]. Este livro que vem apresentado é um saboroso aperitivo para adentrar-se nos meandros magníficos deste grande místico e seu “desaforado amor pelo todo”.

(Publicado em: São João da Cruz. Noite escura. Petrópolis: Vozes, 2008, pp. 11-18)



[1] Damaso ALONSO. La poesia di san Giovanni della Croce. Roma: Abete, 1958, p. 12.

[2] Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo indecible. San Juan de la Cruz canta al éxtasis transformante. Madrid: Trotta, 31.

[3] Jean BARUZI. San Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística. Valladolid: Junta de Castilla y Leon, 2001, p. 665 (e também pp. 645 e 653). Ver ainda: Georges MOREL. Le sens de l´existence selon saint Jean de la Croix. Paris: Aubier, 1960, pp. 15 e 48 (Livre I – Problematique).

[4] Maria ZAMBRANO. Algunos lugares de la poesia. Madrid: Trotta, 2007, p. 129.

[5] Jean BARUZI. San Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística, pp. 289-290. E também: Eulogio PACHO. Noche oscura del alma. In: ____. (Ed). Diccionario de san Juan de la Cruz. Burgos: Monte Carmelo, 2000, p. 1033.

[6] Colin T. THOMPSON. Canciones en la noche. Estúdio sobre san Juan de la Cruz. Madrid: Trotta, 2002, p. 140.

[7] Leo SPITZER. Três poemas sobre o êxtase. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 80 e 82.

[8] Damaso ALONSO. La poesia di san Giovanni della Croce, p. 130.

[9] Eulogio PACHO. San Juan de la Cruz. Historia de sus escritos. Burgos: Monte Carmelo, 1998, p. 161; Id. Noche oscura. In: ____. (Ed.). Diccionario de san Juan de la Cruz, pp. 1018-1019.

[10] Jean BARUZI. San Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística, pp. 337-342.

[11] Damaso ALONSO. La poesia di san Giovanni della Croce, p. 64.

[12] Leo SPITZER. Três poemas sobre o êxtase,p. 68.

[13] Damaso ALONSO. La poesia di san Giovanni della Croce, p. 137.

[14] Ibidem, p. 58.

[15] Maria ZAMBRANO. Algunos lugares de la poesia, p. 130.

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