APRESENTAÇÃO
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
No contexto atual da reflexão teológica sobre o pluralismo religioso, o teólogo dominicano Claude Geffré destaca-se como um dos mais originais e instigantes pensadores católicos. Nascido em Niort (França) em 1926, dedicou boa parte da vida ao ensinamento teológico, começando o seu trabalho nas Faculdades Dominicanas de Saulchoir (1957-1968) e posteriormente no Instituto Católico de Paris (1967-1996). Teve também uma passagem na Escola Bíblica e Arqueológica de Jerusalém, onde atuou como diretor de 1996 a 1999. Ao lado de sua atuação acadêmica tem marcado presença na revista internacional de teologia, Concilium, enquanto membro fundador e permanente colaborador, bem como na direção da prestigiosa coleção teológica “Cogitatio Fidei”, das Edições du Cerf (Paris). Uma de suas maiores contribuições tem sido no campo da hermenêutica teológica, onde vem se destacando como pioneiro e qualificado representante deste tipo de abordagem na França. O desdobramento de sua reflexão para a temática da teologia das religiões ocorreu sobretudo a partir da década de 80, quando então desenvolveu proposições particularmente originais no campo da relação do cristianismo com as outras grandes religiões.
A presente obra saiu originalmente publicada na França, no ano de 2001.[1] Neste trabalho, Geffré busca responder ao fundamental desafio de uma teologia hermenêutica capaz de correspender à experiência histórica contemporânea, em particular o desafio imprescindível do pluralismo religioso. O título do livro já sugere a retomada de seu projeto anterior de trabalhar o tema do cristianismo sob o “risco da interpretação”, agora sob novo ângulo: Crer e interpretar. A reviravolta hermenêutica da teologia. De forma bem organizada, o livro vem dividido em 7 breves capítulos, abordando os seguintes temas: A teologia como hermenêutica (1), Para uma hermenêutica conciliar (2), O neo-fundamentalismo na igreja (3), O pluralismo religioso como paradígma teológico (4), A salvação de Jesus Cristo e a missão da igreja (5), A reinterpretação teológica do judaísmo (6), A filiação divina de Jesus e o monoteísmo muçulmano (7).
O autor justifica no prólogo do livro a intenção de retomar o seu programa de teologia hermenêutica, desenvolvido no livro O cristianismo sob o risco da interpretação.[2] Na ocasião havia afirmado que “a fé só é fiel ao seu impulso e ao que lhe é dado crer se levar a uma interpretação criativa do cristianismo”. Assume desde então, como convícção íntima, a perspectiva de que uma teologia de orientação hermenêutica não significa uma entre outras correntes da teologia, mas “o destino mesmo da razão teológica no contexto do que se pode pensar contemporaneamente”. Indica que um dos mais decisivos desafios para a teologia neste início de milênio relaciona-se ao pluralismo religioso, entendido como traço quase insuperável. Não hesita em afirmar que este pluralismo assume hoje o papel de um “novo paradigma teológico” que confirma a dimensão hermenêutica da teologia. Em linha de superação da tradicional teologia da salvação dos infiéis, afirma-se agora uma teologia inter-religiosa, mais sensível e aberta aos desafios do tempo e voltada para a compreensão do significado do pluralismo religioso no desígnio unitário de Deus. No concerto polifônico das religiões mundiais, o cristianismo não perde sua singularidade, mas vem provocado a redesenhar sua identidade. Mas esta singularidade não pode em hipótese alguma apagar ou restringir o que há de único e de irredutível em cada religião. Este dado da irredutibilidade das outras tradições revela o mistério que habita as religiões, que jamais pode ser completado por outra. Um enígma que convoca a reinterpretação da singularidade mesma do cristianismo. Estas são interrogações que acompanharão o autor ao longo de todo o livro.
No primeiro capítulo aborda o tema da teologia como hermenêutica. Para o autor, a hermenêutica não significa uma corrente teológica entre outras, mas uma “dimensão interior da razão teológica ou ainda um novo paradigma, um novo modelo, uma nova maneira de fazer teologia”. A hermenêutica provoca assim uma reviravolta na teologia, intimamente associada à reviravolta linguística. Geffré estabelece uma distinção entre hermenêutica enquanto interpretação dos textos fundadores do cristianismo e a hermenêutica enquanto interpretação das fórmulas dogmáticas. Esta última tarefa hermenêutica não traduz para o autor uma relativização dos dogmas, mas um exercício de re-situar tais fórmulas dogmáticas na organicidade da fé. Marcando continuidade com seus escritos anteriores, Geffré busca distinguir o modelo dogmático que marcou a teologia católica após o concílio de Trento, do atual modelo hermenêutico. No primeiro modelo, a teologia é muito mais reflexo do que fonte. Sua tarefa fundamental é a de explicar o ensinamento oficial. A Escritura e a tradição entram apenas para comprovar o ensinamento dominante. Por sua vez, o modelo hermenêutico tem como ponto de partida o texto, privilegiando a sua compreensão e sua inscrição numa dada tradição. Para Geffré, não pode haver pensamento fora da linguagem e da tradição de linguagem onde alguém se inscreve. É no contexto de um lugar determinado, com seus recursos próprios, que são disponibilizados os esquemas interpretativos a partir dos quais faculta-se a apreensão da realidade e a eventual elaboração de novos conceitos. No caso da interpretação cristã, o teólogo irá se utilizar da longa tradição textual do cristianismo para poder aceder à experiência fundamental da salvação oferecida por Deus em Jesus Cristo. Sua singular tarefa hermenêutica será restituir esta experiência fundamental, dissociando-a de suas representações e interpretações, pertencentes a um mundo de experiência atualmente transformado. Não se pode prescindir nem do olhar do passado nem da prospectiva com respeito ao futuro. Para aquele que busca captar teologicamente o acontecimento de Jesus, há que reconhecer que ele vem recoberto pelo evento da palavra e pelo evento da escritura. Tal acontecimento é o ponto de partida de uma experiência de fé que se faz mensagem. A boa interpretação não é necessariamente a mais fielmente rigorosa, mas aquela que suscita as melhores potencialidades da obra. A hermenêutica envolve uma dinâmica de conversação entre o leitor e o texto, mas ambos falam e colocam questões. O modelo hermenêutico em teologia traz consequências bem precisas, como uma nova aproximação da Escritura e abertura às suas potencialidades desconhecidas; o reconhecimento de uma pluralidade de testemunhos que buscam traduzir o acontecimento fundador, rompendo-se com a obsessão fundamentalista em favor de uma palavra pura e original; a releitura da tradição, que busca discernir a experiência histórica subjacente às formulações dogmáticas. Há que acrescentar ainda a atenção concedida à dimensão prática, aos sujeitos concretos da história. A hermenêutica do sentido conduz à uma determinada prática social, não produz apenas novas interpretações mas motiva igualmente um novo fazer.
No segundo capítulo, Geffré propõe uma hermenêutica conciliar. Da mesma forma como os textos da revelação podem ser objeto de uma interpretação, o autor sugere que semelhante procedimento seja também aplicado com liberdade aos textos da tradição dogmática. O autor não nega a importância essencial da fidelidade ao passado, mas acrescenta que esta fidelidade deve ser criadora. Isto é verdadeiro para toda tradição, mas em particular para o cristianismo, na medida em que o que é transmitido não é apenas um texto do passado, ou um acontecimento do passado, mas uma realidade sempre atual: o acontecimento da ressurreição de Jesus Cristo. Estar em presença da tradição cristã é participar de um acontecimento dinâmico, inserido no coração da história. Há um elemento que é doado, que é precedente, mas que reeditado historicamente ganha uma interpretação criadora. Assim ocorre também com as definições dogmáticas, mediante as quais a tradição cria suas confissões de fé. Tais definições não se reduzem a atos de jurisprudência, mas traduzem também atos de interpretação. Buscam responder uma situação de crise, onde um dado elemento de fé pode estar sendo contestado, mas não podem expressar a totalidade da fé cristã, pois determinadas mudanças na situação eclesial tendem a exigir um novo sentido com respeito àquele original. A dinâmica da recepção pela igreja do ensinamento do magistério, não pode ser fechada, mas deve estar sempre aberta e disponível para a retomada criadora tendo em vista as novas experiências históricas e eclesiais.
O terceiro capítulo aborda o tema do neo fundamentalismo na igreja. Ao analisar esta complexa questão, Geffré reconhece a diversidade de sentidos que recobrem hoje a questão do fundamentalismo. O termo vem aplicado, nem sempre de forma rigorosa, a várias experiências religiosas, provocando assim equívocos e incompreensões. A “nebulosa fundamentalista” ganha, na visão do autor, duas possibilidades de expressão: o fundamentalismo escriturístico e o fundamentalismo doutrinal. A reflexão de Geffré estará sobretudo concentrada na primeira forma de expressão. Concentrando-se no caso particular do cristianismo, Geffré indica que a ação dos fundamentalistas atua sobretudo contra a plausibilidade do conjunto de recursos de ordem científica e histórica colocados à disposição da comunidade eclesial. Em nome da fé provoca-se o “suicídio da inteligência”. Para os fundamentalistas cristãos, não há outra história senão aquela que resulta da relação direta com os fatos e gestos de Jesus apresentados no Novo Testamento. Os textos evangélicos são entendidos como estenografia das palavras de Jesus. Não se admite em hipótese alguma a presença e o valor da dinâmica interpretativa e de reconstrução de um acontecimento histórico. O que na verdade ocorre, acompanhando a tentação fundamentalista, é o desconhecimento não só da dinâmica histórica, mas também da ação do Espirito no mundo e na igreja.
Um dos eixos mais importantes do livro de Geffré vem apresentado no quarto capítulo, que trata do pluralismo religioso como paradigma teológico. Na visão do autor, o pluralismo religioso constitui o “horizonte da teologia no XXIº século”. O pluralismo religioso é um dado essencial da experiência histórica deste tempo contemporâneo, que nenhuma teologia que se pretenda hermenêutica pode prescindir. É a partir de sua percepção, não apenas como fato mas também como valor, que se coloca hoje em dia o desafio de reinterpretação das verdades fundamentais do cristianismo. Os teólogos são hoje convocados a reconhecer para além de um pluralismo de fato, a presença de um pluralismo de princípio que corresponde a um misterioso desígnio divino. Esta é, para Geffré, a nova questão teológica que se apresenta para a teologia hermenêutica e para a teologia moderna das religiões no momento atual. O pluralismo religioso vem reconhecido como um “destino histórico autorizado por Deus, cuja significação última nos escapa”. Trata-se de um reconhecimento essencial para qualquer diálogo inter-religioso: a consciência precisa da presença de um enigma da pluralidade das religiões em sua diferença irredutível e irrevogável. Contrariamente à idéia de que representa um mal, ou dado conjuntural momentâneo, a diversidade religiosa constitui expressão das riquezas espirituais dispensadas por Deus às nações (AG 11). O pluralismo de direito provoca o reconhecimento da cidadania das religiões, bem como o estatuto de suas verdades diferentes e a caminho. Nenhuma religião pode esgotar o sentido da verdade. Cada religião traduz um vínculo particular e contingencial, que ao mesmo tempo possibilita e interdita a aproximação ao mistério das riquezas de Deus. Ao final do capítulo, Geffré aponta para a possibilidade de um ecumenismo planetário, que traduza simultaneamente a afirmação autêntica do humano e o descentramento de si em direção ao mistério da alteridade transformante do Deus sempre maior.
No quinto capítulo vem abordado o tema da salvação em Jesus Cristo e a missão da igreja. Na visão de Geffré, a teologia católico-romana tem buscado nos últimos anos superar um eclesiocentrismo estreito em favor de uma unicidade de inclusão. Torna-se mais difícil encontrar aqueles que defendem peremptoriamente o cristianismo como única religião autêntica e verdadeira. Há em curso uma nova sensibilidade a respeito. Na linha aberta pelo Vaticano II, Geffré busca defender que as religiões constituem mediações derivadas de salvação e objetivações da vontade salvífica universal de Deus. Ao destacar o lugar das religiões no plano da salvação, o autor indica a idéia de mediações derivadas, pois a mediação essencial cabe para ele a Jesus Cristo. Nem mesmo a igreja é vista como mediação exclusiva da salvação, pois Deus está para além das mediações eclesiais, como a palavra, os sacramentos e os ministérios. Todas as religiões estão marcadas por ambiguidades. Geffré reconhece a presença de valores crísticos nas diversas religiões, que possibilitam inclusive a melhor explicitação de certas virtualidades do mistério cristão não visualizados no próprio cristianismo. Estes valores podem ser da ordem do conhecimento, do culto e da exigência ética. Para Geffré, a história humana está recoberta por uma “cristianidade”, que traduz por toda a parte a superabundante presença do mistério de Cristo. O recurso à noção de “cristianidade”é visto pelo autor como uma possibilidade real de ampliar a visão inclusivista, que atribuía “valores implicitamente cristãos” às outras tradições religiosas. O reconhecimento da presença de “valores crísticos”, melhor do que “cristãos”, seria para ele mais conveniente para resguardar a dignidade e o enígma do pluralismo religioso.
No quadro geral da teologia das religiões, Geffré encontra sua melhor identificação no âmbito do inclusivismo.[3] Para a especificação de sua posição, joga um importante papel a idéia do mistério de Cristo como universal concreto. Em posição equidistante tanto do exclusivismo como do pluralismo mais radical, o autor prefere o caminho do aprofundamento do mistério da encarnação: “Em lugar de recorrer a um teocentrismo geral, creio que é o aprofundamento do mistério da encarnação que nos deve permitir compreender como manter a singularidade do mistério de Cristo, sua unicidade, sem que tal unicidade resulte numa espécie de imperialismo, de hegemonia do cristianismo com respeito às outras religiões”. Segundo Geffré, não é descartando mas aprofundando o mistério da encarnação que se pode chegar a uma perspectiva dialogal. O aprofundamento deste mistério possibilita reconhecer inclusive os limites presentes no cristianismo e na própria humanidade de Jesus, enquanto limitada e aberta às riquezas do Verbo de Deus. Para Geffré, Jesus é ícone e não ídolo de Deus. Com base na reflexão dos padres da igreja, ele insere “a economia do Verbo encarnado como o sacramento de uma economia mais vasta, aquela do Verbo eterno de Deus, que coincide com a história religiosa da humanidade”. O aprofundamento do mistério da encarnação revela a dimensão kenótica inerente ao cristianismo e de sua intrínseca dimensão dialogal, que convoca ao outro e ao diferente; bem como o valor simbólico da cruz, que traduz uma universalidade ligada ao sacrifício da particularidade. Segundo Geffré, é no interior da lógica inclusivista, depurada de uma visão limitada da singularidade cristã, que se deve buscar o caminho dialogal. Para tanto deve-se evitar confundir “a universalidade de direito do Cristo como Verbo encarnado e a universalidade do cristianismo como religião histórica”.
O autor defende uma unicidade do cristianismo relativa e não de excelência e integração, sem que venha comprometida a singularidade cristã. Trata-se de uma unicidade animada pela abertura e pelo devenir. Daí ser equivocado dizer que o cristianismo complementa todas as religiões. A correta relação do cristianismo para com as demais religiões deve estar precedida pela clara consciência da irredutibilidade de cada tradição religiosa, de forma a honrar dignamente a sua alteridade. Esta nova perspectiva teológica recoloca sob novas bases a missão da igreja e redefine sua urgência. Segundo Geffré, não é a igreja que define a missão, mas é a missão que delineia o rosto de uma igreja que busca ser na história o sinal do Reino de Deus. Em sua visão, “a vocação histórica da igreja não se traduz pela extensão quantitativa dos cristãos mas em favorecer, no diálogo com todos os homens e mulheres de boa vontade que podem pertencer ou não a outras religiões, o testemunho do Reino de Deus que vem”. A missão de testemunhar os valores do Reino na história não pode ser automaticamente motivada pelo desejo de conversão do outro à lógica particular da tradição específica. O objetivo não deve ser o da mudança de religião, mas de mudança na forma de exercício da religião, uma metanoia que produza a transformação recíproca de cada um.
O capítulo sexto trata a questão da reinterpretação da teologia do judaísmo. O autor busca abordar a questão de um patrimônio comum entre judaísmo e cristianismo. Seu objetivo é mostrar as mudanças ocorridas no campo católico-romano na linha de superação de uma mentalidade cristã anti-judaica. Assinala a importância da declaração conciliar Nostra aetate no reposicionamento da questão, ao sinalizar a singularidade e permanência de Israel com respeito à igreja católica. Mas esta abertura nem sempre encontrou continuidade em documentos eclesiais subsequentes, que demonstram a permanência ainda que velada de uma tradicional teologia da substituição, ou de transferência de alianças. Para Geffré, o tema da relação do cristianismo com o judaísmo ganha hoje grande atualidade pois revela-se paradigmático não só para o ecumenismo confessional mas também para o diálogo inter-religioso. Com ele emerge a essencial questão da irredutibilidade das tradições religiosas. O autor sublinha a importância do histórico discurso do papa João Paulo II na sinagoga de Roma, em abril de 1986. Em seu discurso aos representantes da comunidade judaica de Roma, o papa identifica os judeus como “irmãos prediletos” e afirma a “vocação irrevogável” do povo de Israel. Com seu discurso, o papa indica que a religião judaica não é extrínseca, mas intrínseca à religião cristã. Afirma-se, assim, a presença viva de um “patrimônio comum” entre as duas grandes tradições religiosas e a perenidade de Israel.
O último capítulo do livro aborda o tema da filiação divina de Jesus e o monoteísmo muçulmano. O autor busca neste momento estabelecer pistas para um diálogo entre o islã e o cristianismo. A grande dificuldade para este diálogo relaciona-se à compreensão do monoteísmo, ou seja, a distinta inteligência na captação do mesmo mistério de Deus. Para Geffré, encontra-se aberto o diálogo entre o monoteísmo muçulmano e o monoteísmo cristão, pois as críticas tecidas pelo primeiro à questão da trindade e da filiação divina de Jesus não tensionam com a verdadeira compreensão cristã destes mistérios, uma vez bem compreendidos. O autor encontra uma pista para o diálogo fecundo com o islã na cristologia narrativa de Jesus Servidor de Deus. Seja para os cristãos, como para os muçulmanos, é o Deus de Jesus que é absolutamente único, o Deus confessado na experiência judaica de Jesus. A unidade e a unicidade de Deus vêm confirmadas seja na fé cristã como na muçulmana. Com base nos testemunhos da tradição neotestamentária, Geffré sublinha que a filiação divina de Jesus diz respeito não ao mistério da encarnação, mas ao mistério da páscoa, ressurreição e exaltação de Jesus como Cristo. O autor vale-se do conceito de “entronização”, tomado das mais antigas confissões de fé, para justificar sua tese. A filiação divina de Jesus, segundo o Novo Testamento, não é necessariamente de ordem de uma geração física ou metafísica, recusadas pelo islã, mas de ordem de uma entronização e enaltecimento de Jesus por Deus. É o que traduz São Paulo na carta aos Romanos, quando assinala que Jesus foi “estabelecido Filho de Deus com poder por sua ressurreição dos mortos” (Rm 1, 4), e os Atos dos Apóstolos: “Tu és o meu filho, eu hoje de gerei” (At 13, 33). O caminho proposto por Geffré, na linha de uma cristologia narrativa do Jesus Servidor de Deus, traduz uma tendência da moderna exegese neo-testamentária. Uma tal cristologia distancia-se da tradicional cristologia descendente e permite um diálogo mais fecundo com o islã. Neste diálogo há uma mútua interpelação. De um lado, uma advertência do islã para os cristãos, no sentido de evitar uma confissão da divindade de Jesus que atenue os direitos absolutos de Deus; por outro, do cristianismo para o islã, no sentido de uma convocação de abertura a uma maior dinamização da unicidade de Deus, rompendo com o risco de uma compreensão da divindade como perfeição auto-suficiente e impermeável à diferença do Deus de Abraão, Isaac e Jacó.
O livro em análise é claro e sintético, profundo e abrangente. A questão abordada é complexa e arriscada. Claude Geffré aceita o corajoso desafio de assumir esta espinhosa tarefa de clarear os rumos da compreensão da singularidade cristã nestes tempos de pluralismo religioso. O livro supera as expectativas e apresenta, dentro dos marcos do inclusivismo, hipóteses inovadoras. A presente tradução vem responder a uma lacuna ainda existente no Brasil a propósito da teologia do pluralismo religioso. Trata-se de uma iniciativa que vem favorecer o acesso à reflexão mais atual de Geffré, cujos trabalhos mais recentes, infelizmente, não se encontram disponíveis na lingua portuguesa.
[1] Claude GEFFRÉ. Croire et interpréter. Le tournant herméneutique de la théologie. Paris: Cerf, 2001. Em precedência, havia publicado o interessante livro de entrevista: Profession théologien. Quelle pensée chrétienne pour le XXI siècle. Paris: Albin Michel, 1999 (Entretiens avec Gwendoline Jarczyk).
[2] Id. Le christianisme au risque de l´interprétation. Paris: Cerf, 1983 (Cogitatio Fidei nº 120). Sua tradução brasileira saiu com o título: Como fazer teologia hoje: hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas, 1989.
[3] A posição inclusivista tem como traço de singularidade a atribuição de um valor positivo para as outras religiões e o seu reconhecimento como mediações salvíficas para seus membros. As religiões do mundo são reconhecidas como caminhos de salvção, mas enquanto implicam a salvação de Jesus Cristo.
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