sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Os desafios do pluralismo e do diálogo inter-religioso

Os desafios do Pluralismo e do Diálogo inter-religioso 

Faustino Teixeira


            O diálogo inter-religioso constitui um dos desafios mais fundamentais neste século XXI. Não há como desligar-se do tema da diversidade religiosa e do essencial encontro entre os povos, culturas e tradições religiosas. A palavra chave que se coloca em nosso tempo é abrir-se para as diferenças, deixar-se tocar por sua melodia, exercitar-se na arte da hospitalidade e da cortesia com o outro. É uma tarefa muito exigente, pois sabemos que o momento em que vivemos, em âmbito nacional e internacional, vem marcado pelas intolerâncias, pela reticência à alteridade, pelos fundamentalismos de diversos matizes e pelas afirmações identitárias.

            Apesar das tendências de fechamento que se verificam por todo canto, temos exemplos bonitos de virtuosos do pluralismo, de buscadores religiosos que marcam sua trajetória pelo convite à acolhida da diferença, que lutam em favor da defesa da dignidade da alteridade. É o caso do papa Francisco, um exemplo singular de defesa da causa do pluralismo. Em sua última viagem à Myanmar e Bangladesh, no final de novembro e início de dezembro de 2017, o papa Francisco bradou alto e firme em favor da diversidade, lembrando um tema querido em seu pontificado: “a diversidade é bela”. Na saudação que fez no encontro com os líderes religiosos  de Myanmar ele sublinhou: “A paz se constrói no coro das diferenças”, bem como a unidade. O diálogo firma-se justamente no solo destas mesmas riquezas. A diversidade religiosa não pode ser vista como uma ameaça, mas como fator fundamental de enriquecimento e crescimento. O que possibilita a construção da identidade é o traço das interconexões com o mundo do outro. Nós crescemos na medida em que nos deixamos habitar pelos desafios do outro, pelas pistas novidadeiras que ele nos abre com suas riquezas particulares. É assim que se firma a dinâmica dialogal, com o recurso bonito da interconexão, outra palavra tão sublinhada por Francisco em sua caminhada como bispo de Roma.

            Dialogar não é uma tarefa simples, como às vezes se imagina, mas é um projeto que envolve desapego e disponibilidade; e igualmente atenção, cuidado, cortesia e escuta. Implica em profundo respeito pelo mundo do outro, numa humildade que se expressa em auto-exposição ao outro. A simpatia dialogal vai sendo tecida ao longo do tempo, acompanhando um caminho espiritual marcado pelo despojamento. No início, a alteridade apresenta-se como impacto que remove as entranhas. Ela não é só maravilha, mas também agonia, pois coloca o sujeito diante de uma alternativa nova, de transformação do mundo interior. A presença do outro suscita não apenas alegria, mas também tensão, pois desconcerta o mundo interior, revelando um desvio de trajetória, para além do caminho seguro até então traçado. Dialogar é vencer esse “estranhamento” inicial e entrar num novo circuito de amizade, delicadeza e atenção. Dialogar é deixar-se habitar pelo outro, abrindo novas portas de solidariedade.

            O diálogo não implica a negação ou relativização das identidades construídas. Os interlocutores entram nessa dinâmica com a alegria de suas convicções religiosas. Não se exige abdicação das identidades para que esse processo se realize com êxito. Ao contrário, é a própria autenticidade e sinceridade do diálogo que convoca os parceiros a embarcarem nessa travessia mantendo viva a integralidade de sua própria fé.

            E hoje, mais do que nunca, verificamos que o verdadeiro diálogo não pode reduzir-se ao diálogo inter-religioso. Ele requer a ampliação de laços e redes de acolhida capazes de abraçar com muitos braços a tessitura relacional de todas as coisas. Há que ampliar a cadeia do “nós”, de forma a poder também abrigar os outros seres. O ser humano não está isolado, mas conectado em “nexo singular de crescimento criativo” num âmbito de relacionamentos, que envolvem não apenas os humanos, mas também os animais, os vegetais e os minerais. Há que recuperar essa “malha” essencial da qual fazemos parte, sem se deixar levar pela arrogância ou sentimento de superioridade. Há que estar sempre muito atento a tudo isto, como forma de estar “vivo para o mundo”.

            Dialogar é favorecer um outro clima para o mundo, uma disposição de alegria, de reconhecimento do outro como caminho fundamental para a paz. O diálogo requer abertura de comportas, envolve um respiro aberto, de caminho luminoso. É condição essencial para uma cultura da paz. E há que ser incansável nessa disposição: dialogar, dialogar, dialogar.

Referências:

TEIXEIRA, Faustino. Cristianismo e diálogo inter-religioso. São Paulo: Fonte Editorial/PPCIR, 2014.
TEIXEIRA, Faustino. Malhas da Hospitalidade. Horizonte, v. 15, n. 45, p. 557-605, 2017.
TEIXEIRA, Faustino. A nova perspectiva espiritual de habitar a Terra. Agenda Latino-Americana, p. 228-229, 2017.
TEIXEIRA, Faustino & DIAS, Zwinglio Mota. Ecumenismo e diálogo inter-religioso. Aparecida: Santuário, 2008.


(Publicado no caderno de Reflexões Temáticas do 14º Intereclesial das CEBs. CEBs e os desafios do mundo urbano – Publicação da Mitra Diocesana de Apucarana, 2018)

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Francisco e o desafio dos povos da Amazônia

Francisco e o desafio dos povos da Amazônia

Faustino Teixeira

Questões relacionadas à teologia do pluralismo religioso reaparecem quando analisamos determinados discursos ou documentos do magistério eclesial católico. Verificamos como a teologia do acabamento permanece vigente, ainda hoje, embora já visualizamos horizontes importantes de mudança nesse campo. Impressiona-me, por exemplo, o discurso do papa Bento XVI, na sessão de abertura dos trabalhos da V Conferência de Aparecida, em São Paulo (13/05/2007). Ali ele dizia:

“O que significou a aceitação da fé cristã para os povos da América Latina e do Caribe? Para eles, significou conhecer e acolher Cristo, o Deus desconhecido que os seus antepassados, sem o saber, buscavam nas suas ricas tradições religiosas. Cristo era o salvador que esperavam silenciosamente. Significou também ter recebido, com as águas do batismo, a vida divina que fez deles filhos de Deus por adoção”.

Essa visão teológica de Bento XVI estava também arraigada no pensamento de João Paulo II. Veja o exemplo contundente na Carta Encíclica Redemptoris Missio, sobre a validade permanente do mandato missionário (1990). A mesma ideia de acabamento e remate, favorecido pela novidade do evangelho:

“Ao anunciar Cristo aos não-cristãos, o missionário está convencido de que existe já, nas pessoas e nos povos, pela ação do Espírito, uma ânsia – mesmo se inconsciente – de conhecer a verdade acerca de Deus, do homem, do caminho que conduz à libertação do pecado e da morte” (RM 45)

Na linha desta percepção, o batismo seria o sacramento que operaria “um novo nascimento do Espírito”, instaurando “vínculos reais e inseparáveis com a Trindade” (RM 47)

Por diversas vezes em meus textos contestei este tipo de posicionamento, buscando caminhos novidadeiros para esta reflexão.

Ao ler esses dias o belo discurso do papa Francisco no encontro com os povos da Amazônia, durante sua viagem ao Peru, em 19 de janeiro de 2018, verifiquei o influxo do Documento de Aparecida em trechos de sua reflexão. Veja em especial os números 529 e 531 do documento mencionado.

O discurso é marcado por um espírito de grande abertura. Há passagens magníficas que sinalizam um novo passo. Fala do “rosto plural”, de “variedade infinita” marcando a caminhada destes povos da Amazônia: “Nós, que não habitamos nestas terras, precisamos da vossa sabedoria e dos vossos conhecimentos para podermos penetrar – sem o destruir – no tesouro que encerra esta região”.

O papa fala com contundência das ameaças que cercam estes povos: um território em disputa, com a violenta ideologia extrativa e a enorme pressão de grandes interesses econômicos. Fala da “perversão” presente nas políticas que pretendem promover a “conservação” da natureza; fala ainda do grave problema do “tráfico de pessoas”.

Após relatar as ameaças sofridas, Francisco reitera a importância dos esforços para “gerar espaços institucionais de respeito, reconhecimento e diálogo com os povos nativos, assumindo e resgatando a cultura, a linguagem, as tradições, os direitos e a espiritualidade que lhes são próprios”. Sublinha que iniciativas alvissareiras encontram-se já em campo, com os povos originários assumindo o protagonismo da luta em favor do “bom agir” e do “bom viver”. Povos que assumem a responsabilidade essencial de serem os guardiães da Casa Comum.

Para Francisco, estes povos não podem ser considerados “uma minoria, mas autênticos interlocutores”. Rompe-se, assim, aquela ideia perversa de que os brancos ocidentais são os “donos absolutos da criação”. O papa já havia falado sobre isto na Laudato si, quando questionou o “antropocentrismo despótico que se desinteressa das outras criaturas” (LS 68); e agora retoma o argumento:

“É urgente acolher o contributo essencial que oferecem à sociedade inteira, não fazer das suas culturas uma idealização dum estado natural nem uma espécie de museu dum estilo de vida de outrora. A sua visão de mundo, a sua sabedoria têm muito para nos ensinar a nós que não pertencemos à sua cultura. Todos os esforços que fizemos para melhorar a vida dos povos amazônicos serão sempre poucos”.

Essa cultura dos povos originários, como assinala Francisco, é “sinal de vida”.

Temos aqui uma reflexão extraordinária, que se associa a importantes reflexões no campo da antropologia. Vale lembrar a reflexão feita por Eduardo Viveiros de Castro no prefácio do precioso livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu (2015): “Como observou Bruno Latour, falando da crise da ontologia dos Modernos e da catástrofe ambiental planetária a ela associada, assistimos hoje a um ´retorno progressivo às cosmologias antigas e às suas inquietações, as quais percebemos subitamente, não serem assim tão infundadas`”.

Na parte final do discurso de Francisco aos povos da Amazônia aparece então o tema da missão. E aí o “espírito” de Aparecida vem retomado, com traços que são, alguns positivos, mas outros problemáticos, ao menos na minha mirada. Vejo como pertinente a ideia de que certos missionários e missionárias comprometeram-se vivamente com os povos indígenas, na defesa de sua cultura, e o fizeram “inspirados no Evangelho”. Quanto a isto, não tenho dúvida. Mas nem sempre assim ocorreu, como sabemos bem. As descrições tecidas por Davi Kopenawa em seu livro sobre a ação dos missionários protestantes são impactantes, sobretudo na parte que aborda “a fumaça do metal”. Isto ocorreu igualmente na ação de missionários católicos.

O influxo de Aparecida, em linha de sintonia com a perspectiva do acabamento, aparece em trecho ao final do discurso de Francisco: “Não sucumbais às tentativas em ato para desarraigar a fé católica dos vossos povos”. Neste ponto, tenho minhas particulares dificuldades. O desafio não está em manter a fé católica viva, mas em buscar ouvir, captar e defender a dignidade da diferença. A inculturação se processa não apenas traduzindo o evangelho numa nova  perspectiva, mas em sondar os traços originais e novidadeiros presentes na cosmovisão do outro, o que ajuda a delinear novos contornos para a fé cristã, sem que isto signifique em momento algum apagar a singularidade do outro. É assim, a meu ver, que se busca construir uma igreja diferente, com rosto amazônico e indígena.



sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

A vida é bela

A vida é bela

Faustino Teixeira

Nos passos de meus cursos sobre mística tomei contato com uma personagem maravilhosa e única, Etty Hillesum, a jovem judia holandesa de ascendência russa que morreu em Auschwitz em 1943, aos 29 anos de idade. Foi uma mística singular, uma “santa” fora dos esquemas, mas movida por uma espiritualidade de intensa profundidade. Partilhei esse encanto com outras amigas, como a teóloga Maria Clara Bingemer e a poeta Mariana Ianelli. De Mariana recebi um lindo livro, de composição artesanal, em 2015, com a “versão festiva” de um artigo que ela tinha escrito, mas agora recheado de fotos dos lugares por onde passou Etty na sua juventude. Um livro belíssimo. Agora, recebo o livro de crônicas de Mariana, Entre imagens para guardar (2017), e logo no início deparo-me com um texto falando sobre Etty: A menina que não sabia se ajoelhar. Mariana relata passagens do diário da jovem holandesa, algumas curiosas como a de um guarda monido com sua metralhadora nas costas, colhendo flores. Vale a descrição de Mariana:

“Algumas cenas do campo são quase idílicas, tão irreais quanto a própria desgraça. Etty numa noite de verão comendo repolho junto dos tremoceiros. Etty deitada no seu catre e a Ursa Maior sobre os barracões. Porque nem tudo nesse inferno é torre de vigia, arame farpado, lamaçal. Há também alguém lendo Rilke para um amigo, há uma indignação profunda mas limpa de rancor, e de repente a sensação de que a vida parece diferente, que também ela se infiltra num campo de trânsito e coexiste com o horror”.

Sem dúvida, esse é o traço mais bonito presente na vida dessa jovem holandesa: ser capaz de captar entre os escombros um raio de luz, ou como diz o poeta Ungaretti, “a límpida maravilha da imensidão”. Em meio a tanto sofrimento conseguia perceber “uma nesga de céu visível” e gritar com alegria: “A vida é muito bela, apesar de tudo é muito bela”. O segredo disto estava no seu repertório interior, na sua vida em profundidade, cativada ao longo dos anos.  Ela dizia numa página de seu diário, em 9/10/1942: “Através de mim correm os largos rios e situam-se altas montanhas. E por detrás dos matagais do meu desassossego e confusão estendem-se as largas planícies rasas de meu sossego e entrega. Todas as paisagens estão dentro de mim”.

Dizia ainda em outra página de seu diário, em 12/03/1942, que “quando uma pessoa leva uma VIDA INTERIOR, talvez nem haja assim tanta diferença entre estar fora ou dentro dos muros de um campo”. Seu olhar conseguia captar jardins num campo de escombros: “O jasmim nas traseiras da minha casa encontra-se agora completamente destruído pelas chuvas e temporais dos últimos dias. As suas florzinhas brancas bóiam dispersas nas lamacentas poças negras do telhado raso da garagem. Mas, algures em mim, esse jasmim continua a florir sem impedimentos, tão exuberante e delicado como sempre floriu”.

Etty tinha consciência da presença das pedras e dos cascalhos no poço de seu mundo interior, como soterrando a voz de Deus. Sabia, porém, que ele estava ali presente e atento, e que era preciso desenterrá-lo. Lutava com todas as suas forças para manter acesa essa memória de vida. Conversava com ele, como um familiar querido: “Como vês, trato bem de ti. Não te trago somente as minhas lágrimas e pressentimentos temerosos, até te trago, nesta tempestuosa e parda manhã de domingo, jasmim perfumado. E hei-de trazer-te todas as flores que encontre pelo caminho, meu Deus, e a sério que são muitas. Hás-de ficar sinceramente tão bem instalado em minha casa quanto é possível”.

Na triste paisagem humana do campo de concentraçãoo de Westerbork, ao norte da Holanda, ela era o “coração pensante”, a alma jubilosa em busca da permanência da Alegria. Ali estavam desolados tantos companheiros, líderes de círculos culturais e políticos, desfocados de esperança. Em carta que escreveu a duas irmãs de Haia durante a guerra, Etty denuncia a situação. Estavam ali todos juntos “num espaço vazio, entre terra e céu, que têm de preencher eles mesmos, com o que ainda possuem dentro deles – por fora, já nada existe”.

Os relatos sublinham que mesmo durante sua última viagem, para Auschwitz, manteve acesa a esperança. Partiu cantando: uma forma de preservar “a emoção de poucas palavras”. Como indicou Mariana Ianelli em recente crônica, em torno de três corações pensantes da poesia brasileira:

“Quando caem alicerces e bandeiras, quando alguém só dispõe de sua humanidade em meio a uma terra desolada, quando valores fundamentais estão sendo postos à prova, o que ainda pode a linguagem? O que se pode reerguer depois de estremecida uma fé interna, o que se pode redesenhar com sentido a partir do caos, qual palavra vale a quebra do silêncio eloquente dos que perderam (quase) tudo, só com a alma por um fio? E qual poeta ainda consegue manter uma melodia sustentável diante do afundamento das próprias seguranças, diante da destruição de territórios e identidades familiares, a casa, a pátria, um ideário?”.


Acredito que a jovem Etty conseguiu com sua vida e testemunho registrar a presença desta esperança e desta alegria. E num lindo toque eucarístico, rasgou o seu corpo como se fosse um pão para oferecer como dádiva aos amigos queridos e sedentos de seu tempo.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

A paz em construção

A Paz em construção


Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF


            A Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, ocorrida em agosto de 1968, instaura um marco fundamental na caminhada da Igreja Latino-Americana. O período que cobre os anos de 1965 a 1968 foi decisivo para a experiência do movimento popular na América Latina. Foi o tempo onde se gestou as Comunidades Eclesiais de Base, bem como se firmou as raízes da teologia da libertação. Como mostrou com pertinência Gustavo Gutiérrez,

A teologia da libertação, que surgiu pouco antes de Medellín, tem suas raízes nesse período. Sem a vida das comunidades cristãs nessa época não se pode explicar o que aconteceu na Conferência Episcopal de Medellín: nela se expressaram as experiências da inserção desses cristãos no processo de libertação (GUTIÉRREZ, 1981, p. 291)

Na intenção da Conferência estava a aplicação das intuições do Concílio Vaticano II (1962-1965) às condições específicas do continente latino-americano. Na prática, o vigor da realidade continental e o compromisso dos cristãos no processo de libertação proporcionaram uma maior amplitude à temática proposta. Em verdade, novas pistas de ação e reflexão foram lançadas, sempre relacionadas à perspectiva dos pobres, o que conferiu a Medellín o seu caráter e originalidade.

Embora o tema dos pobres tenha sido aventado em momentos do Vaticano II, sobretudo em razão da presença e atuação explícita do cardeal Lercaro, arcebispo de Bolonha, o terreno não estava ainda preparado para a radicalidade deste argumento. O Concílio, porém, lançou pistas importantes neste sentido, criando um espaço propício para as experiências e reflexões que se seguiram na linha da Igreja dos pobres. A Conferência de Medellín foi uma destas expressões mais vivas de realização (GUTIÉRREZ, 1985, p. 243-246; TEIXEIRA, 1988, p. 290). É quando se firma na pastoral latino-americana a opção preferencial pelos mais pobres, com inspiração viva nos textos da Conferência (CELAM, 1969, p. 141).

Um dos eixos centrais no Documento relaciona-se ao tema da paz. Um tópico que se insere no campo temático da Promoção Humana, junto com o desafio da Justiça. Não era tarefa fácil pensar a questão da paz no início da década de 1960. As resistências ao tema eram muitas. No prefácio do livro de Thomas Merton,  sobre a paz na era pós-cristã, Jim Forest reconhece que a expressão “paz” causava suspeição  naquela ocasião. O livro que era para ser publicado em 1962 acabou sendo proibido pelo abade superior dos trapistas, Dom Gabriel Sortais, tendo em vista as resistências que a palavra encontrava também no campo político. Aqueles que a utilizavam eram logo identificados como “vermelhos” ou “simpatizantes” (MERTON, 2007, p. 8).

A Conferência de Medellin é expressão de uma nova presença da Igreja na América Latina, pontuada pela coragem profética de reagir contra a situação de miséria, injustiça e alienação que marcavam o continente naquela ocasião. Os bispos reconheciam a gravidade do momento, e percebiam que o projeto de paz não podia ser firmado fora do exercício da justiça. A situação era grave, sendo identificada como “violência institucionalizada” (CELAM, 1969, p. 55). Interpretando tal realidade à luz do evangelho, o diagnóstico era preciso. Tratava-se de uma “situação de pecado” (CELAM, 1969, p. 50). O olhar atento diante da conjuntura vislumbrava desacertos em vários âmbitos: as diversas formas de marginalização; as desigualdades excessivas; as frustrações crescentes; as formas de opressão e exercício de poder dos setores dominantes. Mas captava também os sinais de resistência crescente, com a tomada de consciência dos segmentos oprimidos.

Toda essa dinâmica nefasta vinha alimentada por tendões internacionais, acirrando um problemático neocolonialismo. Fala-se claramente em situação de “dependência”, com um peso econômico substancial: a distorção crescente do comércio internacional; a fuga dos capitais econômicos e humanos; a evasão de impostos e fuga de lucros e dividendos e o endividamento progressivo. O documento reflete uma nítida mudança de ocular, com o reconhecimento das causas mais profundas que alimentam a triste realidade continental: “o subdesenvolvimento aparece cada vez mais claramente como fato global e, antes de mais nada, como a consequência de uma dependência econômica, política e cultural de centros de poder que estão fora da América Latina” (GUTIÉRREZ, 1981, p. 46).

A seção sobre a paz vem construída com base nesse enfoque da situação latino-americana. Após o olhar sobre o contexto social e econômico, vem a reflexão doutrinal, também pontuada pela ousadia e sensibilidade profética. O lema é bem claro: “a paz é, antes de tudo, obra da justiça” (CELAM, 1969, p. 53). Ela não traduz “a simples ausência de violência ou derramamento de sangue”, mas é um exercício artesanal, que envolve um “trabalho permanente” voltado para o “desenvolvimento integral do homem” (CELAM, 1969, p. 54) . A paz não é algo que já se encontra dado, ou que se encontra pelo caminho, mas uma dinâmica que se constrói a cada dia. E o cristão é convocado a ser um “artesão da paz”. Como um fruto que se desdobra do amor, a paz é expressão viva de uma “real fraternidade” entre todos: “o amor é a alma da justiça. O cristão que trabalha pela justiça social deve sempre cultivar a paz e o amor em seu coração” (CELAM, 1969, p. 54).

Num toque teológico de alta profundidade,  o documento sinaliza que o fundamento último da paz interior e da paz social está na “paz com Deus” (CELAM, 1969, p. 54).  Teresa de Ávila tinha captado isto de forma tão singela na sua reflexão espiritual, ao tratar das quintas moradas. Reconhecia que a forma mais sublime de verificar a unidade do amor a Deus e o amor ao próximo era a caridade fraterna. O compromisso efetivo de amor ao próximo selava a presença do amor a Deus. A santa de Ávila indicava assim um “outro modo de união” possível, de alcance do favor de Deus mediante a prática do amor. Reconhecia, porém, igualmente que o amor ao próximo nunca poderia desabrochar perfeitamente a não ser que brotasse da “raiz do amor de Deus” (V M, 3,9). É o que também lembra o Documento de Medellin ao assinalar a centralidade da “paz com Deus”. É dela que brotam os frutos mais novidadeiros da harmonia interior e do essencial equilíbrio para a atuação firme no tempo. Uma paz que brota da profundidade, como indicou Leonardo Boff:

Dessa paz espiritual a humanidade precisa com urgência. Ela é a fonte secreta que alimenta a paz cotidiana em todas as suas formas. Ela irrompe de dentro, irradia em todas as direções, qualifica as relações e toca o coração íntimo das pessoas de boa vontade. Essa paz é feita de reverência, de respeito, de tolerância, de compreensão benevolente das limitações dos outros e da acolhida do Mistério do mundo. Ela alimente o amor, o cuidado, a vontade de acolher e de ser acolhido, de compreender e de ser compreendido, de perdoar e de ser perdoado[1]. 

Onde não existe a paz social e predominam as desigualdades sociais, políticas, econômicas e culturais, o que ocorre é um “rechaço do dom da paz do Senhor, e ainda mais, um rechaço do próprio Senhor” (CELAM, 1969, p. 54-55). Essa pista aberta por Medellín veio acolhida e abraçada pela teologia da libertação. Toda situação de injustiça revela, em verdade, uma situação de pecado, envolvendo uma precisa responsabilidade humana. Trata-se, como indica Gustavo Gutiérrez, “do pecado como fato social, histórico, ausência de fraternidade, de amor nas relações entre os homens, ruptura da amizade com Deus e com os homens e, em consequência, cisão interior, pessoal” (GUTIÉRREZ, 1975, p. 153).

Se há um “rechaço do próprio Senhor” numa realidade carente de “paz social”, o Deus que se visibiliza é, na verdade, um Deus inversus, como mostrou Leonardo Boff. Um Deus que se presencializa por uma dupla ausência. De um lado, ausência em razão da injustiça estrutural vigente, que oculta a visibilização da justiça, da solidariedade e do amor. De outro, a “ausência de Deus concreto, vivo e verdadeiro naqueles que usam em seus lábios o nome de Deus e o veneram em seus templos”. O Deus que vem venerado e proclamado é “antes um ídolo do que o Deus vivo que interpela” (BOFF, 1974, p. 38-39).

Diante de tal realidade que clama aos céus, os bispos reunidos em Medellin assumem a tarefa profética de contundente denúncia. Identificam como grave a situação, exigindo “transformações globais, audazes, urgentes e profundamente renovadoras” (CELAM, 1969, p. 55). Não é para eles motivo de estranheza o fato da “tentação da violência”, como caminho de reação ao traço da opressão vigente: “Não se há de abusar da paciência de um povo que suporta durante anos uma condição que dificilmente aceitaria quem tem uma maior consciência dos direitos humanos” (CELAM, 1969, p. 55). Com base na encíclica Populorum progressio (1967), de Paulo VI, os bispos não descartam a legitimidade da insurreição revolucionária, que se legitima no caso de ´tirania evidente e prolongada`, quando os direitos fundamentais da pessoa são gravemente afetados, com prejuízo ao bem comum (CELAM, 1969, p. 56).

Nas conclusões pastorais, ao final do documento, os bispos assumem responsabilidades bem concretas: despertar em todos a consciência da justiça na linha de uma efetiva solidariedade; defender o direito dos pobres; denunciar com vigor os abusos e injustiças e fazer valer na pregação, catequese e liturgia “a dimensão social e comunitária do cristianismo formando homens comprometidos na construção de um mundo de paz” (CELAM, 1969, p. 57).

O compromisso evangélico em favor da paz e o desafio de compromisso com os pobres ganham vitalidade nos anos seguintes, sendo confirmados na III Conferência Episcopal Latino-Americana, realizada em Puebla em janeiro e fevereiro de 1979. Fala-se ali, com vigor, em “edificar a paz na justiça” (CELAM, 1979, p. 285). Talvez tenha sido esse o grande legado da Igreja Latino-Americana, com seu testemunho vigoroso em favor da libertação, da busca da paz e do compromisso efetivo em favor dos mais pobres. Como asseverou com acerto o teólogo italiano, Ernesto Balducci, foi o momento do “retorno” das caravelas, agora partindo das Índias ocidentais, com os “novos anunciadores do Evangelho” (BALDUCCI, 1985, p. 22).

Essa presença profética da Igreja Latino-Americana ganhou repercussão importante em âmbito mais amplo, com irradiações singulares em documentos do magistério. Pode-se registrar o rico documento do Sínodo dos Bispos sobre a justiça no mundo (1971). Assume-se com clareza a consciência de que a situação do mundo moderno vem pontuada pelo “grande pecado da injustiça” (SÍNODO, 1972, p. 11). Como principal novidade, a acolhida da ação em favor da justiça e da participação na transformação do mundo como dimensões constitutivas da missão da Igreja (SÍNODO, 1972, p. 4). Ou seja, a luta pela justiça vem percebida como dimensão essencial da evangelização. Infelizmente, duas décadas depois, a conjuntura eclesiástica é outra, com nítidas mudanças na compreensão de evangelização. Como exemplo, uma passagem precisa do Sínodo especial para a Europa, em 1992, com a retomada de uma dinâmica evangelizadora mais centrada no anúncio explícito. Como argumentaram os bispos nesse Sínodo, “para a nova evangelização, portanto, não é suficiente prodigalizar-se para difundir os ´valores evangélicos` como a justiça e a paz. Só se a pessoa de Jesus Cristo é anunciada é que a evangelização se pode dizer autenticamente cristã” (SÍNODO, 1992, p. 14)[2].

O eixo de referência para a evangelização na América Latina, nas trilhas de Medellín e Puebla, foi o compromisso com a causa da justiça e do trabalho em favor da paz. Uma perspectiva que veio partilhada por outros episcopados, como o da Ásia. A proclamação evangélica vem marcada sobretudo pelo “diálogo e pelos atos”. Como sublinharam os bispos da Federação das Conferências Episcopais da Ásia, “proclamar a Cristo significa antes de tudo viver como ele, no meio dos próximos e vizinhos”, tendo como meta o reino de Deus (FABC, 2000, p. 42). O papa Francisco retoma esse itinerário de Medellín, centrando sua atenção na escuta do clamor dos pobres e no exercício evangélico da misericórdia. O desafio que ele lança para a Igreja é o de “alongar mais o olhar e abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos” (FRANCISCO, 2013, p. 113). O tema da paz volta a ganhar centralidade, e ela vem entendida como um processo “artesanal”, envolvida no processo amplo e complexo da abertura ao outro (FRANCISCO, 2013, p. 135). O jeito de ser da Igreja, seu estilo mais singelo, não é de empenho em “vencer a guerra”, mas de esforço em “vencer a paz”[3].

Nessa abordagem do tema da paz o nome referencial é o de Mahatma Gandhi, que foi sempre uma fonte inspiradora para todos os “artesãos” que se comprometem com essa nobre causa. A paz permanece sendo um desafio essencial. Como ele bem assinalou, “não existe um caminho para a Paz, a Paz é o caminho”.








Referências Bibliográficas:


BALDUCCI, Ernesto. Dalla teologia della dominazione alla teologia della liberazione. Testimonianze, v. 28, n. 1, 1985.
BOFF, Leonardo. Atualidade da experiência de Deus. Rio de Janeiro: CRB, 1974.
CONSELHO Episcopal Latino-Americano (CELAM). A Igreja na atual transformação à luz do Concílio. Petrópolis: Vozes, 1969 (Documento de Medellín).
CONSELHO Episcopal Latino-Americano (CELAM). Puebla. A evangelização no presente e no futuro da América Latina. Petrópolis: Vozes, 1979.
FABC. O que o Espírito diz às Igrejas – Documento de síntese da Federação das Conferências Episcopais da Ásia. Sedoc, v. 33, n. 281, julho/agosto de 2000.
FRANCISCO. Evangelii Gaudium – A alegria do evangelho. São Paulo: Paulus/Loyola, 2013.
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1975.
GUTIÉRREZ, Gustavo. A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981.
GUTIÉRREZ, Gustavo. La Chiesa e i poveri, visti dall´America Latina. In: ALBERIGO, G. & JOSSUA, J.-P (Eds). Il Vaticano II e la Chiesa”. Brescia: Paideia, 1985.
JOÃO PAULO II. Sobre a validade permanente do mandato missionário – Carta encíclica Redemptoris missio. Petrópolis: Vozes, 1991.
MERTON, Thomas. Paz na era pós-cristã. Aparecida: Santuário, 2007.
SÍNODO dos Bispos. A justiça no mundo. Petrópolis: Vozes, 1972.
SÍNODO dos Bispos. Testemunhas do Cristo. Petrópolis: Vozes, 1992 (Sínodo dos Bispos – Assembleia especial para a Europa).
TEIXEIRA, Faustino. A gênese das CEBs no Brasil. São Paulo: Paulinas, 1988.
TERESA DE JESUS. Castelo interior ou moradas.  São Paulo: Paulus, 1981.

(Publicado em: GODOY, Manoel & AQUINO JÚNIOR, Francisco de (Orgs). 50 anos de Medellín. Revisitando textos, retomando o caminho. São Paulo: Paulinas, 2017, p. 58-65)




[1] Leonardo BOFF. A espiritualidade na construção da paz. In:
[2] É a linha assumida pela carta encíclica de João Paulo II, sobre a validade permanente do mandato missionário (Redemptoris missio - 1990). Fala-se ali também em “prioridade permanente” do anúncio: Redemptoris Missio, n. 44.
[3] Homilia de Francisco por ocasião da canonização dos novos beatos, em 16/10/2016: