sábado, 23 de julho de 2022

O morrer com dignidade

 O morrer com dignidade

 

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

 

Tenho refletido muito sobre a morte nesses tempos difíceis. A pandemia trouxe sofrimento para muitas famílias, que experimentaram a dor em grau extremo, a perda de seus queridos... Penso igualmente na dor daqueles que resistem a manter aceso o brilho no olhar, mas que encontram barreiras pelo caminho. Às vezes são empecilhos de uma doença terminal ou crônica, às vezes de uma idade que não permite mais tantas alegrias. Penso que teríamos que encontrar um caminho possível de alento para as pessoas, que não se resumiria a "tratamentos paliativos". 

 

Quando li o livro de Hans Küng, "Uma batalha ao longo de uma vida" (2014)[1], e já faz tempo, pude refletir com cuidado sobre o tema da morte digna. Quando o teólogo escreveu o livro, ele ainda podia ler ou escutar a música que lhe agradava. Na ocasião já reclamava, porém, das dificuldades que tinha para escrever ou se locomover, com os passos cada vez mais curtos e titubeantes. 

 

Com a coragem que sempre o caracterizou Küng refletiu, com base no livro do Eclesiastes, que “há um tempo de nascer e um tempo de morrer” (Eclo 3,2). Argumentou que “o ser humano tem o direito de morrer quando não vê mais esperança de uma vida humana conforme os próprios critérios pessoais, quando o sentido da vida se completa e ele deseja a morte”[2].

 

Estava na ocasião com quase noventa anos, mas tinha plena consciência de que ele deveria ser o sujeito de sua vida, mas também de sua morte. Dizia: "Continuo a pensar que a questão de quando e de como deva morrer é uma questão de minha responsabilidade, a não ser que seja colhido por uma ´morte imprevista`, como um acidente ou um golpe do destino"[3]

 

Agora, porém, quando diminui a temperatura vital, tudo fica tão diverso... No caso de Kung, que já faleceu, ele estava sofrendo com o mal de Parkinson, artrose, e uma degeneração macular extremamente complicada para o desdobramento de sua vida. Ele morreu, sem precisar usar mão de sua decisão em favor de uma morte assistida... Mas foi seu desejo último.

 

Küngdizia, com razão, que sua decisão final era como "a última aventura da liberdade". É o tempo kairológico que marca um caminho para a interioridade, em direção “a um novo liame ainda escondido: vita mutatur, non tollitur. A vida não é tirada, mas transformada”[4]. É quando se dá o passo “no infinito da pessoa finita”, na decisiva estrada, não só em direção ao cosmos mas ao “núcleo da realidade”, ocorrendo a bonita acolhida nos braços dos Deus misericordioso.

 

Ao final do livro, Küng faz uma linda oração onde agradece com alegria a Deus, omnicompreensivo, sentido originário do ser, por ter possibilitado a ele viver com tanta intensidade[5]

 

Ouvindo nesses dias a maravilhosa música de Michael Jackson, Heal the World, fixei-me numa passagem em que ele diz ser necessário deixar de existir para passar a viver. No caso, sinto com dor que muitas pessoas são "jogadas" nessa condição de um existir onde falta o viver. É um tema que deveria ser objeto de mais estudos de especialistas da questão. 

 

Recentemente refletimos também no Paz e Bem sobre o belo filme de Hal Asbhby, Being There, que ganhou a tradução brasileira de "Muito além do jardim"[6], com o o fantástico ator Peter Sellers. Aproveitei para ler o livro que inspirou o diretor, "O videota", de Jerzy Kosinsky[7]. Um título a meu ver injusto para mostrar toda a complexidade de um personagem que não era só determinado pela visão da televisão, mas igualmente pelo jardim, ao qual se dedicou a vida inteira. Não um "idiota", mas um "menino", vejo muito mais assim.

 

No livro e no filme, o personagem Chance, vivido por Peter Sellers, aproxima-se existencialmente do rico empresário americano, que era presidente do Conselho da First American Financial Corporation. O empresário viu no jardineiro um exemplo de vida, Alguma coisa presente ali no mundo interior do jardineiro o agradava e animava. O empresário, Rand, já estava muito doente, com uma anemia aplástica e o horizonte vital se fechava para ele. Como diz o autor do livro, era alguém "como uma árvore com as raízes na superfície", e tudo o que restava para ele era aguardar "o quarto lá de cima"[8].

 

E aí me deparo com uma lamentável entrevista de dois médicos da UFJF em jornal da cidade de Juiz de Fora, questionando o uso medicinal do Canabidiol[9]. Toda a reflexão movida por eles, que trabalham com o tema "espírita" da vida além morte, vinha sustentada pela ideia da ausência de evidências científicas para corroborar a utilização do canabidiol. 

 

Fiquei revoltado, pois vislumbrei na entrevista uma tremenda falta de respeito a outros tantos profissionais de gabarito que estão contribuindo com ajuda inestimável a tantos pacientes deste nosso país que sofrem de inúmeros males e que no medicamento encontram o alívio de que precisam.

 

São tantas coisas, tantas ideias que me vêm a mente... Penso que é hora de reunirmos esforços para tratar com mais cuidado de um tema tão candente como este.

 



[1]Hans Küng. Una Bataglia lunga una vita. Idee, passioni, speranze. Il mio raccconto del secolo. Milano: Rizzoli, 2014.

[2]Ibidem, p. 1085.

[3]Ibidem, p. 1110.

[4]Ibidem, p. 1086.

[5]Ibidem, p. 1111.

[6]Muito além do Jardim. Direção de Hal Ashby. Warnes Bros Pictures, 1979. O debate no Canal Paz e Bem e no IHU ocorreu no dia 20 de julho de 2022, com a minha presença e também de Angelo Atalla e Mauro Lope.

[7]Jerzy Kosinsky. O videota. Rio de Janeiro: Artenova, 1971.

[8]Ibidem, p. 44-45.

[9]Professores questionam potencial terapêutico de derivados da cannabis. Entrevista com Alexander Moreira Almeida e Alexander de Rezende Pinto. Jornal Tribuna de Minas. Juiz de Fora, 23-24 de julho de 2022, p. 4.

terça-feira, 12 de julho de 2022

Contaminados pelos Encontros: caminhos dialogais

Contaminados pelos Encontros: caminhos dialogais

 

Faustino Teixeira

IHU/Paz e Bem

 

 

Incrível como o tema do diálogo aparece em tantos lugares. Estudando os fungos, vejo pistas muito interessantes para ajudar nessa reflexão. Como exemplo, vemos que os cogumelos matsutake "são os corpos frutificados de um fungo subterrâneo que se associa a certas árvores da floresta"[1]. São cogumelos muito apreciados, e que são encontrados poucos centímetros abaixo da superfície. Só os catadores experientes conseguem perceber a sua presença, olhando com atenção as sutis elevações do solo. São cogumelos extremamente resistentes. Basta saber que depois da destruição de Hiroshima, o primeiro ser vivo que emergiu das ruínas foi um cogumelo matsutake.

 

A vida dos cogumelos é um exemplo concreto da “abundância de vida” que existe abaixo de nossos pés. No mundo subterrâneo invisível processam-se outras formas de fazer mundo, que quebram com a ideia de que as histórias bonitas são sempre regidas por “heróis humanos”. Ao contrário, existe muita vida em movimento. Anna Tsing abre uma pista importante: “Siga os fungos até essa cidade subterrânea e você encontrará os estranhos e múltiplo prazeres da vida interespécies”[2]. Temos aqui um aprendizado importante nesse entrelaçamento interespécies: a vida sempre está a requerer a interação entre os seres.

 

Abaixo de nossos pés temos uma verdadeira metrópole cosmopolita habitada por um emaranhado de relações micorrízicas. São as micorrizas que facultam a "infraestrutura de interconexão entre as espécies", como aponta a antropóloga Anna Tsing em seu livro: O cogumelo no fim do mundo. Os fungos que se frutificam em cogumelos obtêm “seus carboidratos a partir de relações mutualísticas com as raízes de suas árvores hospedeiras, param quem eles também fornecem nutrientes”[3]. São eles, junto com as bactérias, que propiciam o solo necessário para o crescimento das plantas.

 

Enquanto o ser humano não pode desenvolver novos membros, os fungos, ao contrário, são marcados por indeterminação. Eles continuam sempre crescendo, e mudam de forma dependendo de seus encontros e ambientes[4]. Trata-se de um tema que se mostra muito importante para pensar o diálogo. 

 

O estudo dos fungos nos ajuda a perceber que "somos contaminados por nossos encontros"[5]. Não é possível a "pureza". O que ocorre sempre é a presença de uma precariedade que nos convoca ao outro. Somos todos vulneráveis e precisamos das relações. Sobretudo em tempos marcados pela perturbação humana, o tempo do antropoceno, somos tomados pela desorientação e angústia. Caminhos dialogais se fazem cada vez mais necessários.

 

Não há como escapar dessa precariedade, que é em verdade um "estado de reconhecimento de nossa vulnerabilidade aos outros". Não há como sobreviver sozinhos. Estamos ligados a uma rede fundamental. Como indica Tsing, “a sobrevivência sempre envolve alteridade”[6].

 

É rico o conceito de assembleia para nos ajudar a compreender a dinâmica de tecer mundos. Para além da ideia de uma "comunidade ecológica", que ainda carrega algo de fixo e limitado, a noção de assembléia evoca agrupamentos mais abertos[7], o que é bem interessante.



[1]Anna Lowenhaupt Tsing. O cogumelo no fim do mundo. Sobre as possibilidades de vida nas ruínas do capitalismo. São Paulo: N-1 Edições, 2022, p. 89.

[2]Ibidem, p. 211.

[3]Ibidem, p. 89.

[4]Ibidem, p. 97.

[5]Ibidem, p. 73.

[6]Ibidem, p. 75.

[7]Ibidem, p. 67.