A ÉTICA DO CUIDADO
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
Introdução
O objetivo desta reflexão consiste em chamar a atenção dos profissionais que atuam na área da saúde sobre a importância das questões da ética e do sentido no projeto de construção saudável do sujeito.
Num período marcado pela crise das grandes narrativas e pelo eclipse dos ideais utópicos, há um risco de enclausuramento identitário e de afirmação de um narcisismo problemático. É neste contexto que se coloca a importância essencial da retomada do grande desafio da questão ética e da abertura para a dinâmica da alteridade.
A atenção e abertura para a questão do outro revela-se na retomada da consciência do cuidado como modo essencial do viver humano: o cuidado com o planeta, com os outros, com a corporeidade, com a totalidade do ser humano e com a dimensão espiritual.
Gostaria de iniciar esta reflexão com uma imagem tomada do belo romance de Graciliano Ramos: São Bernardo, que retrata de maneira admirável a construção de um personagem, Paulo Honório, que representa alguém seduzido pela sede de poder e que não vacila diante dos meios. Tudo o que importa é possuir e dirigir o mundo.
Ao final do romance este personagem encontra-se só e tenta refletir sobre o processo de sua vida, “descascando fatos” e “acordando lembranças”. Apesar de afirmar que goza de “perfeita saúde”, encontra-se arrasado e sem amigos. Seu modo de vida inutilizou-o: tem um coração miúdo, lacunas no cérebro e dedos enormes… Incapaz de ouvir o choro da criança! E o personagem reflete:
O que estou é velho. Cinqüenta anos perdidos, cinqüenta anos gastos sem objetivos, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada. Cinqüenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para que! Comer e dormir como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez!”1
Este perfil traçado por Graciliano Ramos expressa de forma viva o horizonte de muitos de nossos contemporâneos, que raramente se colocaram ou se colocam seriamente a questão do sentido. O filósofo francês, Luc Ferry, sublinha em seu livro “L’homme-Dieu ou le sens de la vie”2, que em nossa vida cotidiana quase sempre nos escapa o significado último de nossas atividades consideradas “úteis”, ou seja, o sentido do sentido.
Com a crise das grandes narrativas e das utopias que inseriam nossas ações num horizonte de significado, a questão do sentido perde um espaço de expressão coletiva. Para alguns, torna-se caduca, ou mesmo ridícula.
Para outros, permanece confinada na intimidade da mais estreita esfera privada, só transparecendo em ocasiões excepcionais, como catástrofes, perdas ou doenças graves.
Mas paradoxalmente, ela não consegue ser abafada, e retorna com tremor e vigor. Se lançamos um olhar mais crítico sobre a modernidade, verificamos que o seu protagonista foi o “eu”, o mundo da identidade e a razão totalizante. Estamos hoje, ao contrário, vivendo um momento diverso: o momento da crise da identidade e a prova da diferença, onde a pergunta sobre o sentido, sobre a razão de viver, sobre a busca da felicidade e do horizonte último se colocam novamente com muita força:
Como expressou Dalai Lama, em recente livro sobre a arte da felicidade: “Para mim o próprio objetivo da vida é perseguir a felicidade. Isso está claro. Se acreditamos em religião ou não. (...) O próprio movimento de nossa vida é no sentido da felicidade” (A arte da felicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 13)
Nesta nova trajetória emerge o grande desafio da questão do outro, da questão da ética; do outro como condição necessária para a afirmação do valor do nosso viver e do nosso morrer, a ética do nosso existir.
Um dos difíceis obstáculos que nos impedem situar corretamente a questão do sentido, é o sentimento de apego e posse: a busca desenfreada que nos leva a ocultar ou deslocar a consciência de nossa impermanência.
O grande filósofo alemão Martin Heidegger, trabalhou esta questão no seu livro ser e tempo. Para ele, “o sentido do ser é tempo – isso significa: ser não é nada persistente, é algo passageiro, não é nada presente, mas acontecimento. Quem realmente ousa pensar a sua própria morte, descobre-se como verdadeiro acontecimento do ser” (cf. Rüdiger Safranski. Heidegger. São Paulo: Geração Editorial, 2000, p. 206). Trata-se da experiência da temporalidade: do passar presente, futuro, e finalmente mortal.
Toda a espiritualidade tibetana consiste numa educação permanente em favor da percepção da impermanência e no aperfeiçoamento do sujeito contra o domínio da apego.
Não pode haver busca de felicidade fora do dinamismo de compaixão que rompe com os bloqueios egocêntricos e desperta o sujeito para a aventura da comunhão.
Aprender a viver, é aprender a ir soltando as rédeas deste apego ensimesmador. Só quando “acreditamos que as coisas são permanentes que perdemos a oportunidade de aprender com as mudanças”.4
Em suas conferências e livros, Dalai Lama sempre advertiu os ricos e seu estilo de vida, bem como a ingenuidade de sua pretensão despropositada: “nós humanos temos apenas um estômago. Há um limite para a quantidade do que podemos ingerir. Temos também apenas dez dedos, de modo que não podemos usar cem anéis”.5
A emergência de novos desafios
O desafio da afirmação da consciência ética
Em recente obra abordando esta questão, o escritor Umberto Eco sublinhou que “a dimensão ética começa quando entra em cena o outro”.9 Há hoje uma concordância entre os estudiosos de que sem um mínimo de consenso fundamental no que tange a valores, normas e posturas não é possível a existência de uma comunhão maior nem uma convivência humana digna.
Impõe-se a necessidade de um “princípio de responsabilidade” : uma nova ética fundamentada no cuidado pelo futuro, na afirmação dos direitos humanos e da natureza, na solidariedade, na liberdade, justiça e paz.
O desafio da abertura à questão do sentido
Neste tempo de “crise da modernidade” e de eclipse das grande utopias que inseriam nossas ações no horizonte de um referencial plausível, a questão do sentido volta com toda a sua força.
Penso ser tarefa fundamental da educação o reaquecimento das energias utópicas, caso queiramos driblar o risco da banalidade ética. O desafio de acender o alento vital, recompor o universo motivacional e apontar o sentido da esperança numa sociedade distinta, onde as pessoas possam viver com dignidade.
A educação tem o papel de abrir novos horizontes, e evitar que a apatia e a moral cínica e cética dominem o conteúdo da consciência de nossos jovens, que muitas vezes habitam um mundo de descrença, cinismo e perplexidade.
O desafio de uma educação dialogante e plural
diálogo impõe-se hoje como um dos desafios fundamentais para a humanidade. É verdade que a diferença pode tornar-se um meio de hostilidade, mas pode também ser um meio para a criação de entendimento e solidariedade mútuos.11
Um dos grandes expoentes do mundo da bioantropologialogia, o chileno Humberto Maturana, vem afirmando há tempos o papel imprescindível da dinâmica do conversar na constituição do ser humano: “o humano surge na história evolutiva a que pertencemos ao surgir a linguagem, mas se constitui de fato como tal na conservação de um modo de viver particular centrado no compartilhamento de alimentos, na colaboração de machos e fêmeas, na criação da prole, no encontro sensual individualizado recorrente, no conversar”.13
Para este autor, o amor constitui a emoção que funda a origem do humano, sendo um fenômeno biológico. O Homo sapiens, encontra sua origem antropológica não na concorrência, como certa teorias evolucionistas deram a entender, mas na dinâmica de cooperação, enquanto atividade espontânea, marcada pelo traço do amor.14
Ao contrário do amor, a competição impede a afirmação do outro e gera cegueira. Os que sobreviveram não foram os mais fortes, mas o que souberam cooperar entre si e aceitar a presença criativa do outro ao seu lado.
Esta dinâmica de solidariedade e cooperação está na base da com-paixão
O cuidado como um modo essencial de viver o humano
Em recente e belo trabalho, o teólogo Leonardo Boff desenvolveu, com base nas reflexões de Martin Heidegger, o tema do cuidado como “raiz primeira do ser humano”, como “fenômeno ontológico existencial básico”, que marca a identidade mais profunda do ser humano.
O cuidado (preocupação: Sorge) constitui o dispositivo fundamental do lidar com o mundo. Trata-se de algo que não nos preocupamos de vez em quando, mas de algo que é uma marca fundamental da condição humana (cf. Safranski, Heidegger, p. 198)
Na trilha desta reflexão, podemos afirmar que o grande desafio que se apresenta ao ser humano, caso ele queira ser fiel à sua mais profunda identidade, é o de colocar cuidado em tudo o que projeta e faz.
“Construímos o nosso mundo a partir de laços afetivos. Sentimos responsabilidade pelos laços que nasceram. Não habitamos o mundo somente através do trabalho, mas fundamentalmente através do cuidado e da amorosidade. É aqui que aparece o humano do ser humano” (L.Boff. Princípio de compaixão e cuidado. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 12)
Cuidado, entendido aqui, como desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, bom trato. O cuidado emerge quando o outro ganha importância para mim. Este cuidado, como lembrou Leonardo Boff, se concretiza em diferentes instâncias.
Em primeiro lugar, pode-se mencionar o cuidado com o nosso planeta: com a terra, com a nossa casa comum, que se encontra ameaçada por inúmeros problemas, entre os quais a contaminação das águas, do ar e do solo, o desmatamento predatório etc.
Na recente carta da terra, elaborada em conjunto por personalidades do pensamento científico, esta preocupação e cuidado com a terra estiveram no centro da atenção: “precisamos abandonar o exílio e cuidar de nossa casa comum, a terra. Há demasiada violência, injustiça, sofrimento e pobreza em nosso mundo. Temos que mudar de rumo”.
Entre os compromissos assumidos em vista a uma re-educação da humanidade, sublinhou-se a importância do reconhecimento da diversidade, a proteção e restauração da biodiversidade, a adoção de um modo de vida sustentável, a substituição dos atuais padrões perdulários de produção e consumo, a eliminação do concentração fundiária e o favorecimento do acesso à terra.
Em segundo lugar, o cuidado com os outros. A abertura aos outros como ação preventiva contra a indiferença e a apatia. O respeito à sua dignidade e consciência e a afirmação de uma responsabilidade solidária .
O cuidado com os outros revela-se extremamente importante no campo da saúde. Em sua obra sobre a medicina de família, Ian McWhinney assinala que um dos princípios fundamentais desta área é a primazia da pessoa.16
Como compreender a doença sem compreender a pessoa enferma ? Trata-se de duas tarefas indivisíveis. Impõe-se ao profissional de saúde um grande cuidado para com o outro, que vive, em razão de sua enfermidade, uma vulnerabilidade, que pressupõe respeito e atenção.17
Abordando a delicada questão do doente terminal em congresso médico, Faustino Teixeira Neto afirmou que “a verdadeira função do médico deve ser a de cuidar” e não somente a de curar. A tarefa do médico, não se conclui quando não há mais o que fazer pela unidade orgânica viva: “o limite da possibilidade terapêutica não significa o fim da relação médico-paciente” (cf. nota 17, abaixo)
O profissional que atua neste campo, deve ser alguém que demonstre capacidade de escuta e sensibilidade para captar o sofrimento espiritual e humano implicado na doença física; alguém que consegue ser ponto de referência e apoio não só para o doente, mas também para a sua família.
O profissional de saúde deve estar atento ao fato de que a maioria dos transtornos psicológicos atendidos pelos médicos ou outros profissionais da área são de caráter existencial: nascidos das relações humanas ou suscitados por experiências dolorosas que provocam uma “crise de plausibilidade” no seu mundo: divórcio, separação, conflito familiar, solidão, violência, desemprego etc.
Madel Luz sinaliza que “uma parte considerável dos atendimentos em ambulatórios da rede pública das metrópoles brasileiras – acredito mesmo que todo o mundo contemporâneo – estimada às vezes em 80%, seja motivada por queixas relativas ao que poderia ser designado como síndrome do isolamento e pobreza”. Para esta imensa parcela da sociedade “ober saúde significa em grande parte, ser cuidado” (art. cit., p. 11 e 12)
“Estar saudável é poder ter alegria, disposição para a vida, recuperar o prazer das coisas cotidianas e poder estar com os outros (com a família, com os amigos)1. Deste ponto de vista, ter saúde é poder romper com o isolamento provocado pelas situações a que a sociedade contemporânea relega uma parte importante de seus componentes, devido à idade, à doença, ao desemprego, à pobreza, considerando-se as principais fontes de isolamento. A saúde representa, neste caso, uma vitória contra a morte social” (Madel, p. 12) = saúde como vitalidade.
Se o profissional não consegue reconhecer a angústia espiritual subjacente acaba dificultando a cura da enfermidade física. O profissional deve ser alguém que se preocupa com algo mais do que o empírico, ou com as “partes” que sinalizam a enfermidade, mas um sujeito atento para o todo. Alguém capaz de compreender igualmente a “solidão moral” que pode estar na base de um “dessarranjo orgânico”.
Para além de uma concepção meramente positivista, este profissional deve estar aberto para a investigação hermenêutica e inter-subjetiva: ser alguém capaz de “interpretar”, compreender os pensamentos, sentimentos e sensações do outro com quem entra em relação.
A verdadeira reciprocidade só pode existir quando o profissional de saúde demonstra que também é humano. Uma das chaves para a relação terapêutica é o auto-conhecimento por parte do curador.
A medicina de família rompe com o preceito tradicional de que o profissional de saúde deve manter uma “objetividade distante”. Os profissionais que atuam neste campo não podem deixar de estabelecer “relações”. Não nos podemos esquecer que as pessoas são também curadas por amor: e aqui entra em cena o exercício da acolhida, partilha, confiança; mas igualmente a fé, esperança e o carinho recíprocos.
Infelizmente, a dinâmica de formação destes profissionais caminha em sentido inverso: a ênfase é dada na objetividade, no concentrar-se nas técnicas e na absorção de informações. Junto com isto, a supressão dos sentimentos como forma de defesa das identidades. Como diz Ian Mc Whinney, “nossos corações podem endurecer-se sem que nos demos conta”.
Como é importante, por exemplo, a sensibilidade do profissional quando se depara com a difícil tarefa de comunicar notícias difíceis e duras a seus pacientes: Neste momento o profissional revela também quem ele é.
A saúde da família aponta uma dinâmica de hospitalidade: ser capaz de estar junto e apoiar aquele que sofre, ajudar a manter o seu mundo plausível e em pé.
A verdade é que não se pode dar más notícias e ir embora. Há que “perder tempo” com o outro, sentar-se com ele, assegurar-lhe o apoio de que necessita. Toda má notícia deve ser dada no contexto de uma relação continuada de apoio.
Em terceiro lugar, o cuidado com o nosso corpo na saúde e na doença. Trata-se aqui do cuidado com a corporeidade, entendida como a totalidade do ser humano indivisível.
Este ser humano como um todo vivo e orgânico é um ser marcado pela fragilidade e pela impermanência. A vida corporal é mortal. Começamos a morrer desde que nascemos.
A vida vai paulatinamente perdendo o seu “capital energético” e acaba se deparando com o dado inevitável da doença e da morte. “Vamos morrendo lentamente, até acabar de morrer”.18 Somos capazes de entender de forma diversa a saúde e a doença quando aceitamos a mortalidade da vida.
Para os budistas tibetanos, como vimos anteriormente, a reflexão sobre a impermanência e a morte constitui um estímulo que os animam incessantemente à prática espiritual. O filósofo Epicuro dizia que não devemos temer a morte, porque, na verdade, não a encontramos nunca.
Os tibetanos, ao contrário, trabalham com a idéia de que devemos viver como se tivéssemos todo o tempo à disposição... preparados. Em versos que se imortalizaram, Manoel Bandeira dizia que quando “a Indesejada das gentes chegar (...), encontrará lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar”.19
A morte destrói aquilo a que as pessoas mais se apegam: a si mesmas. O budismo, assim como outras tradições religiosas, ensina a dissipar todos os apegos poderosos, que muitas vezes fazem da morte uma tortura mental.
A doença não diz respeito somente a uma parte de nosso ser, mas envolve a totalidade da existência. Como sublinha Leonardo Boff:
Não é o joelho que dói. Sou eu, em minha totalidade existencial, que sofro. Portanto, não é uma parte que está doente, mas é a vida que adoece em suas várias dimensões: em relação a si mesmo (experimenta os limites da vida mortal), em relação com a sociedade (se isola, deixa de trabalhar e tem que se tratar num centro de saúde), em relação com o sentido global da vida (crise na confiança fundamental da vida que se pergunta por que exatamente eu fiquei doente?)20
A doença faz parte da vida. A razão pela qual a tememos encontra-se numa racionalização, que busca impedir a emergência da verdade de nossa própria limitação.
É o que afirma o teólogo Carlo Maria Martini, em interessante reflexão sobre o corpo.21 O paciente não quer somente a cura, mas igualmente uma interpretação de seu estado, e isto nem sempre a ciência médica consegue fornecer.
Em muitos casos, chega-se inclusive a suprimir ou remover o espaço para a elaboração do significado mesmo da doença. Martini sublinha que a doença não constitui simplesmente um problema de medicina. Ela traz consigo uma interrogação e busca de ajuda, amor e sentido. O doente é alguém que necessita de apoio e conforto, inclusive a nível espiritual.
Mas a doença não constitui um ponto final, ela remete à saúde. Estar curado é reintegrar novamente a corporeidade nos níveis pessoal, social e fundamental. Significa retomar o sentido supremo da existência e do universo.
A reflexão filosófica e teológica acrescenta um dado a mais na compreensão tradicional de saúde cunhada pela Organização Mundial da Saúde da ONU. Para esta Organização, a saúde vem definida como um “estado de bem-estar total, corporal, espiritual e social”.
Falta realismo nesta definição, dado que toda existência humana vem acompanhada de dor e de morte.22 Não existe um tal estado de “bem estar total”. A saúde deve ser entendida sempre como um “processo permanente de busca de equilíbrio dinâmico de todos os fatores que compõem a vida humana”.
A saúde não constitui “um estado” ou “ato existencial”, mas uma “atitude face às várias situações que podem ser doentias ou sãs”23. Ser saudável “significa realizar um sentido de vida que englobe a saúde, a doença e a morte.
Alguém pode estar mortalmente doente e ser saudável porque com esta situação de morte cresce, se humaniza e sabe dar sentido àquilo que padece”.24 Um dos grandes místicos do sufismo, dizia que “o balde só se enche de água, se desce ao fundo do poço”. Ter saúde e saber acolher, vivenciar, enfrentar e amar a vida em sua dinâmica processual, da forma precisa como ela se apresenta a nós.
Há que sublinhar, finalmente, o cuidado com a totalidade do ser humano, em particular com a sua dimensão espiritual.
O ser humano é alguém que precisa de cultivar os seus sonhos, manter acesas suas utopias. A dinâmica da modernidade eclipsou esta dimensão essencial da vida humana e estamos hoje colhendo os seus frutos. Vivemos hoje um tempo marcado por uma crise profunda de sentido.
À nossa volta nos deparamos com muitas pessoas desencontradas, na iminência de desmoronar. Nada do que empreendem consegue acalentar o vazio e o nihilismo que as envolvem. Trata-se de pessoas que carecem de um alento vital, de uma razão superior ou comunitária que as preserve do vazio.
Em alguns casos, perde-se totalmente a razão de viver, como expresso no poema de Manoel Bandeira: “Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra, a lembrança de uma sombra (...). Morrer mais completamente ainda, sem deixar sequer esse nome” (A morte absoluta. Estrela da vida inteira, p. 148).
A sede de transcendência e o fascínio exercido hoje pelo sagrado talvez sejam caminhos perseguidos para aquecer a vitalidade espiritual. O grande místico Rumi, do século XIII, já afirmava que “para mudar a paisagem, basta mudar o que sentes”.
Em artigo singular, a socióloga Madel T. Luz, do Instituto de Medicina Social da Uerj, sublinhou que a atual crise cultural, em curso na sociedade ocidental, acaba envolvendo as relações entre sociedade e medicina. Há hoje uma busca de outros paradígmas terapêuticos, de outras racionalidades em medicina e saúde, em que a questão do cuidado e da cura seja central (cf. As novas formas da saúde e a saúde em forma: práticas, representações e valores culturais em saúde coletiva. Mimeo, p. 1)
Para Madel Luz, “o apelo a saúde tornou-se tão importante na cultura contemporânea porque os valores que asseguram a sua presença estão ausentes: a cooperação, a cordialidade, a solidariedade, o prazer de estar em contato com o outro e consigo mesmo... Valores que estão sendo negados na sociedade atual (cf. art.cit. p. 15)
Aponta para um conjunto de pesquisas clínicas desenvolvidas nos anos noventa, sobretudos nos Estados Unidos, analisando fatores de sobrevida ou melhora em parcientes internados ou crônicos, em que aspectos concernindo representações, crenças, sentimentos ou práticas religiosas desses pacientes, como a oração, ou o otimismo, ou o pertencer a grupos de apoio (religiosos ou não) são considerados fatores positivos no sentido de recuperar a saúde (ou vencer a doença), ou ter melhor qualidade de vida (cf. ibidem, p. 4)
Esta mesma idéia foi confirmada pelo professor e cirurgião Osvaldo Malafaia, da Núcleo de Medicina da Faculdade Evangélica do Paraná (Curitiba) e docente do programa de saúde da família da mesma Faculdade, que chegou a propor uma linha de pesquisa para estudar esta questão.
Em livro que recebeu o prêmio Jabuti em 2001 na área de religião, o psicólogo Paulo Bonfatti realizou uma interessante pesquisa psico-antropológica em Juiz de Fora sobre a Igreja Universal do Reino de Deus. Defende no livro a seguinte hipótese: “Esta Igreja consegue, intencionalmente ou não, estabelecer um espaço terapêutico, de escuta, aceitação e elaboração de diversos aspectos da psique de seus membros; o que de certa forma ajudaria a compreender estes fenômenos de cura (...). Optamos por utilizar, nestes casos, a expressão suspensão em vez da expressão cura (...). O que foi visto diversas vezes, nesta Igreja, foram relatos de suspensão do fenômeno como alucinações, delírios, uso e dependência de diversas drogas como álcool, maconha e cocaína; recuperação da capacidade laborativa, de socialização, do restabelecimento de laços familiares, afetivos e, principalmente, de um reencontro de sentido da vida dentro de uma dimensão transcendente.”2
Como já dizia o pai da sociologia, E.Durkheim, o fiel que entra em comunhão com Deus é alguém que se torna mais forte. Ele sente dentro de si, mais força, seja para suportar os sofrimentos da existência, seja para vencê-los (cf. As formas elementares..., p. 493). A religião, afirma a socióloga Carmen Cinira Macedo, “torna possível enfrentar a dor”, integrando as experiências marginais ao nomos. Como diz o personagem Riobaldo no Grande Sertão Veredas: “Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas (...) Mas, se não tem Deus, então a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor” (Grande Sertão..., p. 48-9)
Os aportes fornecidos pelas tradições espirituais
Como último ponto de minha reflexão, gostaria de sublinhar o aporte que as religiões podem fornecer na afirmação de um sentido novo. Trata-se de alguns traços presentes e destacados em muitas das tradições religiosa, mas que podem igualmente servir de horizonte ou inspiração para as nossas práticas cotidianas.
Em primeiro lugar, pode-se mencionar a importância da compaixão. Esta compaixão baseia-se em uma consciência muito precisa de nossa pertinência à totalidade do mundo. Longe de ser identificada com um mero sentimento de piedade ou comiseração, a compaixão diz respeito ao profundo desejo de remediar todas as formas de sofrimento que corroem a humanidade e toda a criação.
Como indica o Dalai Lama, a compaixão diz respeito ao movimento de expansão do amor, que busca, acima de tudo, o bem estar dos outros. Este sentimento é mais forte do que o amor próprio, e não encontra satisfação enquanto houver qualquer sofrimento.27
Esta compaixão está presente em várias tradições religiosas: é karuna no budismo (cuidado essencial com o mundo, compaixão), é ahimsa no hinduísmo (não machucar), é wu-wei no taoismo (não interferir na dinâmica da natureza), é rahamin no judeu-cristianismo (compaixão sob a forma de misericórdia), é rahman e rahin (misericórdia que não deixa nada fora de si: materna proteção) – cf. Boff,L. Princípio da compaixão, p. 15-17)
O nosso tempo carece de uma “ética da compaixão”. Não dá para entender como nós, seres humanos, conseguimos seguir indiferentes diante de uma história tão perturbadora, onde as condições de vida e a violência impedem a afirmação da dignidade dos seres humanos.
As imagens de um povo exilado de sua terra, como mostrou Sebastião Salgado28, obrigado a abandonar o seu lugar e fugir da repressão e das guerras, provocam a nossa consciência. Alguns povos são obrigados ao aprendizado de viver nas condições mais brutalizadas, anestesiados inclusive para a experiência da morte. Para eles, o que permanece é residual: o instinto de sobrevivência como fonte de animação para a caminhada.
Este “desgaste da compaixão” deve ser o motivo mais forte para acionar as energias fundantes do espírito humano, fazer vibrar suas cordas mais íntimas e despertar uma vontade nova, capaz de fazer frente às forças políticas, econômicas e sociais que justificam e mantêm tal situação.
Pode-se sublinhar igualmente o traço do desprendimento e humildade (kénose) e a consciência do limite. Trata-se aqui de outro item muito presente em diversas tradições religiosas.
A busca do desprendimento constitui uma poderosa energia contra o risco da arrogância, da hybris totalitária ou desmesura. Na medida em que somos capazes de reconhecer os nossos próprios limites e nos abrir às surpresas da alteridade, estamos dando passos seguros em direção ao crescimento pessoal.
Isto exige um trabalho paciente e interior: a criação de espaços livres para a hospitalidade, o que requer igualmente “fazer as pazes com nós mesmos”.
Outros traços podem ser mencionados, como a afirmação da vida, enquanto revelação da caridade e a renovação espiritual. A humanidade precisa não apenas de reformas sociais e ecológicas, mas também de uma renovação espiritual. As forças espirituais das religiões podem conferir à vida de homens e mulheres uma fidelidade de fundo, um horizonte de sentido, critérios últimos e uma “pátria espiritual”.
Por fim, a abertura à alteridade e a experiência da gratuidade. A percepção da importância deste último traço é hoje dificultada pela dinâmica utilitária que tomou conta de nossas ocupações. Em muitos casos, somos presa de determinados modelos de vida que nos são impostos, que impedem a explosão do que está oculto, de algo que constitui “a respiração que fertiliza e prolonga a vida”. No intuito de provocar as consciências sobre a possibilidade de se captar outras dimensões, um taoísta chinês escreveu:
Na região de Chiang-Shih, no estado de Song, há lindas florestas de plátanos, amoreiras e ciprestes. Quando atingem dois ou três palmos de altura, algumas dessas árvores são cortadas para servir de poleiros; das que medem quatro ou cinco palmos, há algumas que são cortadas para fazer estacas e das que chegam aos sete e oito palmos, muitas são serradas para tábuas de caixões. Assim, nenhuma destas chegou ao termo normal da sua vida nem pôde desfrutar, do alto do seu cume, a imagem do mundo para a qual tinha sido criada e, a meio do seu destino, caiu sob os golpes do machado. Este é o perigo de ser útil... 29
As religiões, com suas espiritualidades sinalizam a singularidade do aprendizado da gratuidade, da não-violência, da conversão do coração e da vontade de ultrapassagem. As religiões acendem na consciência dos seres humanos a afirmação de que estes se definem por sua abertura misteriosa a algo bem maior do que eles.
Notas
1 RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 23 ed. São Paulo: Martins, 1974, p. 188.
2 FERRY, Luc. L’homme-Dieu ou le Sens de la vie. Paris: Grrasset & Fasquelle, 1996.
3 RIMPOCHE, Sogyal. O livro tibetano do viver e do morrer. São Paulo: Talento/Palas Athena, 1999, p. 50-51.
4 Idem, p. 57.
5 DALAI LAMA. Uma ética para o novo milênio. Rio de Janeiro: Sextante, 2000, p. 191-192.
6 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 22.
7 SAGAN, Carl. Bilhões e bilhões. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
8 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. Op.cit., p. 562.
9 ECO, Umberto. Cinco escritos morais. 2 ed. São Paulo: Record, 1998.
10 COSTA, Jurandir Freire. Violência e psicanálise. Rio de Janeiro: Graal, 1984, p. 118.
11 GIDDENS, Anthony. Para além da esquerda e da direita. São Paulo: Unesp, 1995, p. 276.
12 WILSON, E.O. (Org.) Biodiversidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997; SAHTOURIS, E. A dança da terra. Sistemas vivos em evolução: uma nova visão da biologia. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1998.
13 MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997, p. 175.
14 Idem, p. 185-186. Ver também: BOFF, Leonardo. Saber cuidar; ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 111.
15 DUBY, Georges. Ano 1000 ano 2000; na pista de nossos medos. São Paulo: Unesp, 1998, p. 74. Este mesmo autor, lembra como a morte na Idade Média não era uma coisa embaraçosa, como para nós hoje, onde buscamos nos livrar o mais rapidamente possível do cadáver. Faz igualmente menção à presença na Idade Média da solidariedade ( mais presente do que hoje), ancorada no espírito dos homens daquele tempo. Cf. idem, p. 31 e 124.
16 McWHINNEY, Ian R. Medicina de familia. Barcelona: Doyma Libros, 1995. As reflexões tecidas neste item basearam-se nesta obra.
17 Abordando a delicada questão do doente terminal em congresso médico, Faustino Teixeira Neto afirmou que “a verdadeira função do médico deve ser a de cuidar” e não somente a de curar. A tarefa do médico, não se conclui quando não há mais o que fazer pela unidade orgânica viva: “o limite da possibilidade terapêutica não significa o fim da relação médico-paciente”. Permanece acesa a essencial tarefa de cuidar do outro e de acompanhar os seus familiares. Cf. TEIXEIRA NETO, Faustino. Terapia nutricional no doente terminal. Mimeo, Belo Horizonte, junho de 1998, p. 5.
18 BOFF, Leonardo. Saber cuidar. Op.cit., p. 142-145.
19 BANDEIRA, Manoel. Estrela da vida inteira. 14 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987, p. 202 (poema: consoada).
20 BOFF, Leonardo. Saber cuidar. Op.cit., p. 143
21 MARTINI, Carlo Maria. Sul corpo. Milano: Centro Ambrosiano, 2000, p. 15-29.
22 Verifica-se no campo médico, uma dificuldade de compreensão desta questão, exemplificada em certas condutas adotadas com os doentes terminais: o esforço de preservar a vida acaba provocando o desvio da “distanásia”, ou seja, o “ato de prolongar a morte”. Cf. TEIXEIRA NETO, Faustino. Terapia nutricional do doente terminal. Art.cit., p. 4-5.
23 BOFF, Leonardo. Saber cuidar. Op.cit., p. 144
24 Idem, p. 145. Em continuidade de sua reflexão, L.Boff cita um médico alemão: “Saúde não é a ausência de danos. Saúde é a força de viver com esses danos”: idem, p. 145.
25 HESSE, Herman. Felicidade. São Paulo: Record, 1999, p. 113-114.
26 RUMI, Jalal ud-Din. Poemas místicos. São Paulo: Attar, 1996, p. 54 e 70.
27 DALAI LAMA. O caminho para a liberdade. Rio de Janeiro: Nova Era, 1997, p. 11, 137-138, 140; id. Uma ética para o novo milênio. Op.cit., p. 138-147.
28 SALGADO, Sebastião. Êxodos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
29 BAPTISTA, António Alçada. O riso de Deus. 2 ed. Lisboa: Editorial Presença, 1994, p. 170.
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(Artigo publicado na Revista de APS, Ano 3, n. 7, Dez 2000 a Mai 2001, pp. 8-14)
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